“Tudo é real porque tudo é inventado.”
Guimarães Rosa
“Que quando cuido que acerto vou mais fora do caminho.”
Gil Vicente
“A escada de pedra é feita de pedra com pensamento.”
Seu Gabriel, da Casa da Flor
O comício, o palanque e a madeira do palanque
No último comício das Diretas-já (1984), cerca de um milhão de pessoas entre a Central do Brasil e a Candelária (Rio de Janeiro), um amigo assistiu a uma cena insólita.
Espremido ao seu lado por várias horas, um negão não perdia um só movimento dos oradores. Beiço caído, olho rútilo, bebia as palavras de Tancredo Neves. Uma energia formidável, emanando da massa, parecia possuí-lo. Comovido, meu amigo indagou do sujeito:
– O que está achando?
Sem desviar a vista do palanque, ele respondeu:
– O que o senhor acha que eles vão fazer com aquela madeira toda?
Havia desse jeito, naquela noite histórica, um comício, um palanque e uma madeira do palanque. Anos atrás, hierarquizaríamos assim esses três fatos: madeira do palanque (plano das relações de produção), comício (plano político) e palanque (plano simbólico). Sociedade, política e cultura. Ocorre que esta hierarquização de planos não funciona mais, é uma hipótese cada vez mais insuficiente para organizar e explicar os fatos da sociedade. Como é possível – escreveu alguém – pensar o presente e um presente bem determinado, com um pensamento elaborado em face de problemas de um passado frequentemente bastante remoto e ultrapassado?282
A própria ideia de sociedade, aliás, parece ter mudado – e isto não diz respeito, exatamente, como se poderia pensar, à suposta falência do marxismo como teoria social283. Os postulados principais do marxismo continuam a se sustentar: a contradição como motor da história, a materialidade das ideias e sentimentos, a definição do capitalismo como síntese de um modo de produção e processo civilizatório etc. É possível, aliás, que o marxismo tenha mais condições de sobreviver no século 21 que qualquer outra teoria social da civilização industrial, livre agora dos dogmas e aparelhos ideológicos “marxistas” (partidos, células, sindicatos, Estados etc.) – governantes comunistas do leste europeu, sinceros ou não, haviam se tornado peças da simulação que fortaleceu a legitimação moral do capitalismo.
Alguém definiu os conceitos como “pedais do conhecimento”. Eles não podem ser, de nenhum jeito, o objetivo do esforço intelectual, mas apenas funções – como se vê, por exemplo, no conceito de sociedade brasileira284. Nos dicionários de sociologia, sociedade brasileira é definida, grosso modo, como o conjunto das relações sociais (de produção) do espaço brasileiro. A função dessa definição é valorizar as relações sociais decorrentes da produção (ou organização econômica) e traz como corolário o conceito vigente de história social brasileira: as mudanças, no tempo, das relações sociais do espaço brasileiro, de Cabral até hoje.
Poderíamos, no entanto, conceituar sociedade brasileira (e, por conseguinte, história brasileira) de outra maneira?
O Bumba meu boi é o folguedo popular mais universal do Brasil. Como o Boeuf Gras da França, por exemplo, ou o Boi Ápis, do antigo Egito, pertence ao ciclo difundidíssimo em todo mundo de rituais de nascimento-morte-ressurreição285. O nosso, porém, é original: o auto dramático é seguido de baile de rua em que o próprio Boi, verdadeiro ou simulado, dança286. Esse auto dramático redefine o que é sociedade brasileira, pois sendo uma representação de negros, brancos e índios para negros, quebra o monopólio de representação da sociedade pelo branco, apresentando de cabeça para baixo o modelo internalizado por todos.
O monopólio da representação pelo macho branco é, de fato, uma forma peculiar e renitente do racismo no Brasil. O negro representar o brasileiro – na publicidade, no livro didático, na política, na diplomacia etc. – é impensável para a mente brasileira, salvo nos lugares previamente demarcados do futebol e da música popular. [Ao dizer “negro” e “branco” estou falando de lugares sociais, não de “raças”. Raça, no caso humano, não nomeia nada geneticamente objetivo, salvo no sentido que lhe deu, entre outros, Lévi-Strauss, o de “raças invisíveis”: conjunto de frequências genéticas responsável (por exemplo) por imunidades, não por fenótipos. Ao dizer “negro” e “branco” estamos nomeando um topo, um lugar social cujas coordenadas são a aparência externa, a origem histórica, a classe social, o patrimônio cultural e a percepção em-si e para si287.]
O enredo do Boi, por sob uma variação enorme, é simples. Uma escrava grávida, Catirina, tem desejo de comer língua de boi e leva seu marido, Pai Francisco (ou Mateus), a sacrificar um animal do senhor. Satisfeito o desejo da mulher, ele reparte os despojos entre os companheiros de trabalho. Depois da festa, foge. Por azar, o animal era o preferido do amo que, irado e choroso, manda índios amigos à sua procura. Pai Francisco é capturado, castigado e, depois, ele próprio se empenha em resolver o problema. Convocam-se especialistas de diferentes tradições – médico, feiticeiro, pajé, curandeiro etc. – que ressuscitam o animal pela aplicação de um clister no rabo. O auto termina com a festa da ressurreição.
Quais são os tempos desse enredo? O desejo da negra, a repartição dos despojos, a fuga e captura por índios amigos, o castigo, a culpa e a purgação do escravo, a ressurreição do animal totêmico após a pajelança. O elemento fundador do Boi, seu tempo forte, porém, é o desejo da negra. Ao reconhecer esse desejo, o negro (Mateus) institui a mulher (Catirina) e a si próprio como humanos, coisa impensável para o senhor que os vê como coisa, instrumentum vocale no direito da época. Os negros escravos anônimos que “inventaram” essa história capaz de atravessar séculos se reconheciam, implicitamente, como desejantes e a essa luz se representavam a si e ao amo – que se opunha à realização do seu desejo288. Não admira que os intelectuais orgânicos da sociedade escravista – padres e bispos – exigissem do Estado a repressão aos folguedos de Boi. Não apenas a ordem pública corria perigo, mas a própria ordem social e, em última instância, não apenas esta mas a própria ordem do mundo. Emergindo da África profunda, um espectro rondava a sociedade escravista brasileira: o Boi Ápis.
À distância, a sociedade escravista colonial parece compacta, encarcerada pela dialética amo-escravo. A uma vista mais próxima, entretanto, mostrará camadas e interstícios, pequenas frinchas, terras de ninguém que os “excluídos” do bem-estar e do poder – os convivas recusados da expressão de Richard Aldington – aproveitarão vorazmente.
Havia, para começar, um grupo numeroso de homens brancos pobres, embrião da futura classe média. Naquele instante não são ainda classe média: sua renda não é média e sua noção de constituir um grupo à parte é zero; se consideram assim como senhores caídos em pecado. Não devemos chamá-la senão grupo intermediário. Há um grupo, também numeroso, de negros não escravos. Nos três primeiros séculos será sempre menor que o de negros escravos, mas a partir de 1850 (para tomar uma data) a proporção de negros e mulatos livres em comparação com os escravos será de 6/1. Este “grupão” de negros não escravos se formou de três maneiras principais: o abandono do escravo pelo senhor – essa confissão de impotência econômica que se torna comum no Norte e Nordeste, com intermitência, desde cerca de 1750; a emancipação – cativos libertados pela repressão ao tráfico e pela Lei do Ventre Livre; e a alforria, individual ou em grupo, que cresceu lentamente. Esse foi o embrião de classe média negra que o pós-Abolição abortou.
Aos negros livres, mas também aos que permaneceram escravos todo o tempo, a sociedade escravista deixava algumas brechas – e não foi isto um processo de todo espontâneo; diversos intelectuais do sistema lhe perceberam a necessidade, só insistindo num completo e impossível fechamento seus representantes mais atrasados. A imagem que nos vem aqui é o dessas formidáveis rochas do sertão nordestino que mostram, de perto, delicadas fissuras, pequenos nichos de verdes samambaias e gravatás. Tal é o caso dos chamados folguedos populares como o Boi ou a festa da Penha, no Rio de Janeiro. A morte e ressurreição do Boi – qualquer tenha sido o caminho até chegar aqui, arquétipo que é das sociedades pastoris – significaram, desde fins do século 17, o teatro do negro nortista: espaço e tempo da sua dramatização do mundo dos brancos em que estava metido. No Boi o negro é autor e protagonista e ali faz desfilar os parceiros branco e índio. Muita coisa incomodava a “boa sociedade” nortista naquela brincadeira de pretos, que começava invariavelmente a 23 de junho – coincidindo com o São João português – e se fechava a 30. O barulho, esse diabo que tanto atormentou o europeu nos trópicos (ainda hoje se lê em botequim carioca de português: “É proibido batucar nas mesas”) primeiro que tudo; depois, a luxúria, associação de sexo e perigo, a promiscuidade, a selvageria, o bodum. Aquilo incomodava, fazia mal e atraía ao mesmo tempo; mas se suportava. O que, no entanto, a boa sociedade nortista não aguentava era o caráter de representação do Boi. O Boi como auto mais que o Boi como espetáculo. As mais furiosas diatribes contra ele lhe apontam a monotonia, a falta de sentido, a tautologia, fazendo carga contra a representação289. Os inimigos do Boi – e conseguiram proibi-lo, formalmente, no Maranhão, entre 1861 e 68 – talvez o aceitassem como festa, não como drama.
Inúmeros folguedos brasileiros começam por aí: o negro que deseja e, por força do reconhecimento do seu próprio desejo, representa subversivamente a sociedade em que está inserido. Também a literatura culta brasileira captou o desejo e a capacidade de representação do negro como desestabilizadores sociais – redefinindo, ao cabo, o que chamamos de sociedade brasileira. Lembremos O demônio familiar de José de Alencar, encenado na Corte, sob polêmica, em 1858. O moleque Pedro deseja ser cocheiro para usar farda com libré. A família a que pertence (uma viúva com casal de filhos adultos) não tem, porém, fortuna para carruagens. Pedro, analfabeto e inteligentíssimo, começa então a enredar os jovens senhores com membros casadoiros de uma família rica. Faz isso manipulando cartas e recados dos amos – ele distingue mesmo uma carta de amor pela letra e a disposição na página. O demônio familiar expõe as vísceras da família patriarcal escravista, suas misérias ganham visibilidade a partir do desejo de um simples moleque. De que pode aquele moleque ser acusado? De manipular as regras da sociedade – competição, engodo, hipocrisia, libidinosidade – para satisfazer o seu desejo. Descoberto, recebe no final o mais exemplar dos castigos: “Toma, diz o amo, agora és livre”, e lhe dá a carta de alforria.
O segundo elemento forte do Boi, como disse, é a repartição.
A partilha do corpo do Boi feita por Pai Francisco (ou Mateus) é uma metáfora do destino vulgar do povo brasileiro. Se repartia, no tempo da escravidão, antes de tudo, a sorte de despossuídos. Sob a escravidão (4/5 da história brasileira), o que conferia identidade comum a trabalhadores oriundos dos mais diversos pontos da África era a não posse do próprio corpo – uma espécie de patologia de massa290 – circunstância, em geral, desprezada por historiadores. Escravo não era classe, era condição jurídica: aquele que pertence a outrem, como uma mesa ou um cavalo. A via mais frequentemente trilhada pelo africano no Brasil, a fim de refazer sua humanidade, era se associar a outro despossuído em irmandades religiosas, em comunidades-terreiro – que faziam lembrar o compound nigeriano – em clubes de ajuda mútua etc. O africano se reinventava. Essa reinvenção se fazia, inclusive, à margem do direito, como na prática do esusu, por exemplo, espécie de consórcio pela alforria; ou ressuscitando formas esquecidas do direito romano, como o escravo vicário, escravo do escravo. A própria língua brasileira, como tantas vezes já se assinalou, é um capítulo dessa reinvenção.
Contudo, a repartição organizada que o boi-bumbá alegoriza não é apenas a da despossessão do corpo – repartição do que faltava, por assim dizer. Se repartia também o comunitarismo arcaico, esse mesmo que emprestou à sociedade brasileira como um todo o ar de grande família – de parentesco “cordial” – que ao menos no passado parecia nos singularizar. O que Richard Burton (descobridor inglês do lago Tanganica) admirava nos africanos, e que a Europa não tinha, é hoje herança esmaecida dos brasileiros pobres: uma afeição suave repartida por coisas, gentes e bichos.
O senso comum supõe duas coisas opostas das relações escravistas (além de supor que a sua longa duração nada tem a ver com o Brasil atual): ou um regime diuturno de tortura ou um regime cordial encabeçado por senhores bons e maus, em que só estes castigavam. Na verdade, a escravidão era um regime de tortura sistemática – independente de haver senhores bons e maus – e que, no entanto, deixava margem à negociação entre senhor e escravo. A tortura, fosse de caráter preventivo ou corretivo, tinha um limite: a passividade do escravo. Em geral só se torturava quando era preciso, mas o fato de que frequentemente fosse preciso, não tornava a vida do escravo um permanente inferno. Era possível ser feliz sob a escravidão, como hoje também é possível ser feliz nos mocambos e favelas. Qual a receita? Não desejar além do permitido, policiar o próprio desejo – ao contrário do que fizeram Catirina, a negra que desejou língua de boi, e Mateus que, lhe reconhecendo o desejo, se fez ladrão para satisfazê-la. O limite do desejo consentido só não era tão estreito quanto se poderia pensar, pois a escravidão brasileira juntava no mesmo espaço (a fazenda) unidade produtiva e unidade familiar, trabalho e afetividade, escravidão e sexualidade. Daí o cotidiano escravista (que a história oficial oculta) ser um circo de horrores sadomasoquista: a mãe preta que fura o ouvido do neném com agulha de tricô, olhos da mucama sedutora servidos em vinagrete pela sinhá ao seu marido...
Contudo, mesmo rompendo os limites do permitido, era possível negociar o castigo. Bastava colaborar – uma possibilidade obviamente não generalizada, mas real. Em suma, aos antagonismos que caracterizam qualquer relação entre desiguais (sob a escravidão desiguais são mais desiguais que outros), devemos acrescentar a possibilidade da negociação. Negociação, eis a chave que permitiu à maioria dos escravos africanos e seus descendentes alargarem, em seu proveito, as brechas do sistema escravista. Foi assim que sobreviveram, originando o povo brasileiro atual. O castigo e o arrependimento de Mateus alegorizam esse fato.
O que quer que chamemos sociedade brasileira tem quinhentos anos de existência. Quatrocentos foram de escravidão. A escravidão é, portanto, a nossa tradição mais legítima, a que reside no fundo de qualquer invocação do passado para pensar e agir no presente, o fator a se levar em conta no entendimento do direito e sua atualização, da política cultural e sua democratização, da política econômica e sua implementação e assim por diante. A escravidão é o primeiro dos nossos fatores de “longa duração”. Fernand Braudel, que consagrou esse termo, o define como os gestos repetidos, as histórias silenciosas e como esquecidas dos homens, tudo o que teve peso imenso e rumor quase imperceptível291.
É assim que parece funcionar a sociedade brasileira, mesmo alterada por ondas de modernização que se sucederam desde a metade do século passado: ela produz, sem cessar, um espécie de desejo sobrante. Tanto a nossa literatura popular quanto a culta são pródigas nesse tema.
Machado de Assis narra a história de um certo Candinho, capitão do mato que ia diariamente à luta com uma corda e classificados de jornal no bolso. Seu olho perito identificava com facilidade um fugitivo, caçava-o e recebia a recompensa. Bom e simpático rapaz, um dia se apaixona e casa. Mal dos pesares, escravos fugidos começam a rarear (ou a oferta de caçadores ultrapassou a demanda), a mulher engravidou, a tia foi morar com eles, o aluguel atrasou. O senhorio lhe deu cinco dias. Decidiram levar a criança para a Roda dos Expostos, da Santa Casa (uma roda de pau, meia circunferência para fora, meia para dentro, o enjeitadinho era depositado naquela, as irmãs, invisíveis, giravam a roda e filho nunca mais). A tia e a mulher ficaram chorando, ele saiu com o bebê. Ia lento, agasalhava-o do sereno, beijava-o. Perto da Santa Casa enxergou um vulto de mulher. Consultou os classificados. Era uma preta fugida. O dono oferecia cem mil-réis pela sua captura. Nenhuma fortuna, mas podia dá-los como entrada para um empréstimo. Pagaria as dívidas e, mais importante, sustentaria o próprio filho. Candinho entra numa farmácia e pede que lhe guardem a criança um minutinho. Arminda (era o nome da escrava) pediu, chorou, firmou os pés na parede. “Estou grávida, meu senhor! Se vossa senhoria tem algum filho, me solte!” Arminda alegava que o senhor a açoitaria, e grávida... “Você é que tem culpa – lhe dizia Candinho, sem pena. – Quem mandou fazer filho e fugir depois?” O dono de Arminda estava em casa. “Aqui está a fujona”, disse Candinho. “Meu senhor!” – a escrava caiu de joelhos. “Anda, entra”, ele ordenou com fria voz. Enquanto Candinho embolsava duas notas de cinquenta, Arminda, no chão, desesperada, começa a estrebuchar. De repente se forma uma poça de sangue. Abortara. Candinho pegou o filho na farmácia, correu para casa. A mulher e a tia mal acreditaram na sorte. Riam à toa. Entre lágrimas verdadeiras, o capitão do mato abençoava o destino. De vez em quando se lembrava de Arminda: “Nem todas as crianças vingam” – lhe dizia então o coração. Esse conto de Machado se chama “Pai contra mãe”.
A ciência psicológica, na sua forma ortodoxa ou na psicanalítica, pode, de alguma forma, contribuir para a noção de sociedade brasileira? Em sentido estrito (sociedade como estrutura de classes e relações sociais) provavelmente não. Como, no entanto, se precisa admitir alguma estrutura externa à sociedade, algum “lado de fora” – algo que a institui como objeto precisamente pela sua externalidade ou anterioridade, seria possível, nesse caso, utilizar a categoria desejo. Uma pequena dificuldade é que desejo, em nossa língua, tem acepção quase somente sexual, de concupiscência. Freud utilizava o termo Wunsch (wish em inglês) que designa sobretudo uma aspiração, um voto formulado292. Foi Lacan, como se sabe, quem procurou ajustar e trazer essa noção ao primeiro plano da teoria analítica, distinguindo-a de necessidade e de exigência. O desejo nasceria do afastamento entre a necessidade e a exigência, sendo irredutível à primeira por não ser, fundamentalmente, relação com um objeto real, independente do indivíduo, mas com o fantasma (fantasia); e à segunda na medida em que procura impor-se sem ter em conta a linguagem nem o inconsciente do outro, exigindo ser reconhecido em absoluto por ele293.
Esse saber não sociológico nos ajudaria a redefinir sociedade brasileira. Ela seria, então, o conjunto de relações sociais estruturado sobre a posse, pelo que chamamos branco, do corpo do Outro, que chamamos preto. A negação desse fato é o que chamamos História do Brasil. As sociedades, como os indivíduos, podem adoecer, uma das possibilidades de isso acontecer é quando a vontade de gozar do Outro destrói a estrutura simbólica sobre a qual ela se ampara, impossibilitando o desejo. Nessas circunstâncias não havia desejo do branco sobre o negro, salvo patologicamente, ele estava impossibilitado de desejar pelo regime em que era o dono do corpo do Outro – concebido como extensão do seu, corpo extensional. Mas o negro não tinha essa impossibilidade, ele pode desejar o corpo do outro negro – que não é extensão do seu – e mesmo o corpo do branco, havendo para isso uma só condição: que ele projete esse desejo fora da sociedade escravista, isto é, que se oponha simbolicamente a ela, identificando seu desejo com a destruição dessa sociedade, representando-a no sonho ou na arte – o que ajudaria, aliás, a explicar a vitalidade artística dos contextos culturais negro-brasileiros. Só o escravo pode se libertar a si e ao amo.
É possível ser este o significado do negro do Brasil: o corpo do desejo sobrante. É, entre outras, uma leitura que se pode fazer da novela Dãolalão (o devente) de Guimarães Rosa294. Soropita se refugiara no mais longe sertão das Gerais, protegendo sua paixão por Doralda. Ela fora puta em Montes Claros. Periodicamente ele ia a Andraquicé e entre outras coisas trazia para os vizinhos a audição dos últimos capítulos da novela de rádio. Certa vez, num retorno, prelibando o reencontro com a mulher, encontra um bando de valentes a que pertencera no muito antes, tenta evitá-los, mas vão na mesma direção. Um do bando é o negro Iládio. Deflagra a fantasia de Soropita: e se o negro tiver metido seu pau enorme em Doralda?295. E se ela gostou? Se ela nunca esqueceu? Na última página, o bando vai partir, depois de acampar no sítio de Soropita. Ele rende aos berros o negro Iládio, ninguém sabe por quê. O outro, inocente, se ajoelha. “Tou morto, tou morto, patrão Surupita, mas peço não me mate, pelo ventre de Deus, anjo de Deus, não me mata... Não fiz nada! Não fiz nada!... Tomo bênção... Tomo bênção...” Esta novela não é enigmática; como outro reacionário político, Nelson Rodrigues, Guimarães compreendeu o significado do negro na civilização brasileira: o corpo do desejo sobrante: “ – Apeia, negro, se tu não tem caráter! Eu te soflagro!...”.
O fim do social
Mudanças históricas, mais ou menos da Segunda Guerra para cá, realizaram o conhecido prognóstico de Engels: a superestrutura se tornará o lugar principal da reprodução do capital e, por conseguinte, do sistema social moldado por ele.
Não admira, assim, que os pensadores mais influentes no circuito acadêmico brasileiro hajam sido, nos últimos anos, aqueles que, de uma forma ou de outra, desde a “escola de Frankfurt”, pensaram ou trataram a cultura como plano anterior – Foucault, Deleuze, Derrida, Lyotard, De Man, Barthes, Kristeva, Baudrillard, Bourdieu, Bernstein, Paul Virilio, Maffesoli...296 A lista é quase toda francesa, o que apenas comprova o galicismo da “inteligência” brasileira, por qualquer razão incapaz de ir além do saber importado. Também a tríade de Frankfurt (Marcuse, Adorno e Benjamin) exerceu seu esforço teórico sobre um objeto que já não era o funcionamento da organização social e econômica, mas algo vagamente chamado “cultural” – arte, pensamento, comportamento, religião, visão de mundo, linguagem, sexualidade etc. É como se tivéssemos acordado, de repente, para o fato de que a sociedade contém outras dimensões além das econômico-sociais. O que aconteceu?
“Ora, algumas experiências profundas de transformação social de nosso tempo – deliberadas ou inconscientes, revolucionárias ou puramente evolutivas – forçaram a teoria crítica da sociedade a inclinar-se com maior minúcia sobre essas dimensões. Em particular o fato de que, uma vez alterado o regime social econômico de determinadas nações, toda uma série de problemas tivesse continuado a embargar o atingimento dos ideais de justiça e felicidade que haviam animado os movimentos de mudança, alertou vivamente os analistas mais sensíveis para a complexidade e o relevo assumidos, na totalidade do processo social, pelos elementos propriamente ‘culturais’”297.
Jean Baudrillard – que escapa muitas vezes da sociologia pela poesia – em À sombra das maiorias silenciosas298, por exemplo, aponta a noção de massa, preciosa para as antigas estratégias de esquerda, como “buraco negro” das ciências sociais: ela absorve toda a eletricidade do social e do político e as neutraliza, sem retorno:
“Elas [as massas] não irradiam, ao contrário, absorvem toda a irradiação das constelações periféricas do Estado, da História, da Cultura, do Sentido. Elas são a inércia, a força da inércia, a força do neutro”299.
O que parece dizer Baudrillard é que o comportamento errático da massa só se tornará explicável, se o for, no plano desalienante da cultura, pois neste plano já não existe a polaridade que caracteriza todos os sistemas (disjunção ou distinção de polos, um e outro), havendo somente comportamentos erráticos (como os átomos no vácuo). Se, por hipótese, aceitarmos a intuição de Baudrillard (massa como “buraco negro”) ficaria decretada a morte da política – pois ela é um exercício de atribuição de sentido. A essência vital da massa é o espetáculo, enquanto os políticos (salvo os midiáticos, como Collor) o que lhes oferecem são sentidos300.
Diversos pensadores apontaram o impasse da política em países como o nosso: as propostas transformadoras, ou apenas reformistas, jamais seduzirão as massas, a personagem principal da história contemporânea ocidental. Isto foi possível até a Revolução Francesa, quando eram chamadas vagamente de Terceiro Estado. Parece impossível hoje manipular o seu desejo para torná-lo um desejo revolucionário301. Por que a política se meteu nesse beco sem saída? Ela perdeu a nobreza: “todo político rouba”, crê o senso comum. Em nosso país, a imagem do homem público entrou em colapso há uns cinquenta anos. As manifestações públicas, idem. “Exagerando-se apenas um pouco, poder-se-ia dizer que cinquenta sujeitos inteligentes que conseguem obter cinco minutos na tevê para um happening bem-sucedido podem produzir um efeito político comparável ao de meio milhão de manifestantes”302. Mas o fenômeno é mundial e decorreu, por um lado, de uma certa perda de controle do Estado sobre seu território, do outro, da perda de controle sobre a economia. Há minorias hoje com poder de usar armas de grande porte e se esfumou a crença numa paz territorial sonhada quando da criação da ONU303. O declínio da política teria, assim, duas pontas – uma externa, a perda de potência dos Estados; e outra interna, a impossibilidade de manipular as massas.
Das minhas lembranças de preso político (1972-74), emerge um rosto negro de menino, Pelezinho, assaltante de fôlego curto. Preso, matou com um cabo de vassoura lascada o “dono” da cela que ia estuprá-lo. Acreditávamos, naquele momento, combater o capital, seus cães de fila, para tirar do crime meninos como ele. Pelezinho era capaz de compreender a nossa luta armada, mas não o motivo dela – a defesa atual do trabalhador e a sua felicidade futura – pela simples razão de que todo trabalhador para ele era um bunda-mole. Seu pai vinha visitá-lo aos sábados, lá ficava no pátio com uma marmita no colo. Cinco minutos antes de terminar a visita Pelezinho descia, trocavam uns monossílabos e o velho partia. Um dia lhe perguntei a razão daquela ingratidão: “É um bosta de um sapateiro, nunca ganhou nada”. No seu contexto cultural – o dos pequenos assaltantes da cidade de São Paulo304 – trabalho tinha um significado oposto ao que tinha no nosso, o de classe média rebelde. Não gostávamos também do trabalhador passivo, mas o Trabalhador era a nossa razão de lutar. Quando Pelezinho soube que assaltávamos bancos “para dar a operários” perdeu o pouco de admiração que tinha por nós. Ao dizer “trabalhador”, embora Pelezinho usasse o mesmo vocábulo em circunstâncias parecidas, o que ele “recebia” era uma noção e um sentimento negativos. A chance de vencer sua alienação era infundir nele a acepção (o sentido) positiva do signo trabalhador. Esse sonho “dialético” – concentrar os trabalhadores no polo oposto ao da alienação – embalou gerações de esquerda desde a Grande Revolução de 1789. A sociedade de massas, entrementes, parece ter criado uma consciência sem polos, em circulo, em vórtice – nenhuma consciência passará de um a outro. Por falta de horizonte parecem morrer, desse jeito, a esquerda e a política: eis o niilismo de volta. Pessimismo da análise, otimismo da ação – a isso estão obrigados como imperativo moral, os homens e mulheres de esquerda, tendo de recomeçar do zero a cada fase histórica. Como produzir sentido nas circunstâncias de um mundo cuja identificação é justo a morte do sentido?
Macunaíma na Califórnia
– Por que os pobres trabalham para nós?
Trinta anos antes de Baudrillard dois pensadores não escritores – sem o vício portanto da sua metodologia “de espelho”, em que tudo tende a ser visto como mero reflexo de tudo – lançaram as bases do que chamo plano anterior. Foram ambos, não por acaso, mentores intelectuais de maio de 68 – outono de 69.
Desde San Diego, após uma passagem pela Suíça (onde se refugiara do nazifascismo) Herbert Marcuse escreveu: “Considero-me um incorrigível otimista... Apesar de tudo, não consigo imaginar que o melhor regime capitalista possa durar eternamente”305. Bem, esse otimismo era contraponto a que pessimismo? O que advém do triunfo do pensamento positivo, unidimensional, glorificador do empirismo mercantil, chamado agora “pensamento único”.
– Por que os pobres trabalham para nós?
Resposta de Marx: por necessidade, repressão e/ou religião. Nos anos 1930 do século 20, Marcuse e outros buscaram atualizar essa resposta. Ele partiu de três dispositivos que articulavam dominação política e poderio técnico – nazismo, stalinismo e capitalismo –, dispositivos que fazem em tempo integral a mobilização da natureza, dos espíritos e dos corpos. Pois bem, a eliminação dos dois primeiros dispositivos e o triunfo do terceiro é parte da tragédia de nosso tempo. A máquina indolor de doutrinar, invisível, consentida, se vê em funcionamento a cada programa Sílvio Santos, mas também nos “programas de bom nível” da televisão a cabo – e é difícil, aliás, escapar à ideia de que o doutrinador é o próprio veículo, o que nos devolveria ao pessimismo que Marcuse precisamente queria negar. A sociedade de massa, parece evidente, não reprime desde fora, mas desde dentro, numa espécie de formidável lavagem cerebral que para ser compreendida exigiria categorias de uma psicologia dinâmica306, o que conduziu Marcuse, como se sabe, à tentativa de casar Marx e Freud. A tevê é o lugar em que se produz o discurso da verdade hoje. Ela é a retórica do capital, a sua linguagem de convencimento, a sua única ideologia (proposição capaz de ocultar a sua mentira de si própria). Como seu lugar de enunciação é a empresa, a verdade só pode ser a da mercadoria. A tevê é a morada da verdade sofística: a publicidade. A publicidade é a única verdade possível no capitalismo atual.
Não há novidade, a rigor, nesse diagnóstico. Ou melhor, há uma: com o tempo a verdade (ou retórica) da televisão se tornou totalitária, o que Marcuse previu. Toda a sociedade passou a ser organizada através daquela verdade: pobres, ricos, pretos, brancos, todos sem exceção se relacionam por seu intermédio e não mais por intermédio das relações de produção. Críticos já fizeram notar que, salvo criados e choferes, nenhuma personagem de telenovelas trabalha. Nada mais realista: nas telenovelas nenhum ser humano se relaciona por meio da sociedade como a entendíamos até aqui.
Por outras palavras, Marcuse foi levado à necessidade de considerar os fatos da organização social antes de se mostrarem como tal, enquanto fatos simbólicos. Aquela repressão-extra, instituída pela sociedade de massa, conduziu-o diretamente ao que chamo plano anterior. Nada mais explícito nesse sentido do que as palavras de abertura do seu Eros e civilização: “Este ensaio emprega categorias psicológicas porque elas se converteram em categorias políticas”307.
Pois Marcuse entrou para a história do pensamento como um dos que acendeu o estopim no interior da “fábrica de consentimento” (Chomsky.), em que se tornou a megamáquina ocidental. Se recusou, e arrastou a essa recusa parte da juventude americana dos anos 60, ao papel de serviçal de si mesmo (Hegel), ao prosaísmo, à inércia, ao horizonte curto (filisteísmo), à capitulação diante das tecnologias de mobilização308. Ao se colocar no plano da cultura – o da interioridade e anterioridade – Marcuse abriu uma perspectiva de ação para si e seus estudantes: assumir a mobilidade, levando às últimas consequências a paciência e corrosividade do pensamento negativo (no sentido hegeliano)309. Como um Macunaíma na Califórnia poderia abrir os braços e dizer: “Não vim ao mundo para ser pedra”.
No Macunaíma, Mário de Andrade levou o seu a herói uma intrigante descoberta: os homens da cidade sofrem porque não têm iaras explicáveis que tornem o mundo suportável para eles. Freud interpretava a sociedade contemporânea em termos da tendência à resolução da autonomia do ego conjugada ao retorno à horda primitiva – a obediência irracional ao fuehrer. Marcuse ressalvou que o advento de sociedade de massa requer uma nova categoria: a sociedade sem pai. Nos tornamos sem consciência moral, agressivos ao extremo, destrutivos, quase sem instinto vital: sem pai. Sem pai não significa, porém, sem controle. O princípio de realidade (nos termos freudianos), perdendo a intermediação dos superegos individuais, passou a ser intermediado (na sua função controladora) por uma entidade impessoal: a publicidade.
Se diria que a passagem das “iaras explicáveis” em Macunaíma é uma ilustração da análise marcusiana. As cunhãs (moças) que ele encontra na cidade se relacionam com as máquinas através de superegos enfraquecidos. A publicidade de suas projeções pessoais e/ou pedagógicas é que nos explica o mundo das máquinas. Alguém que vem de outro mundo (da roça, do mato, da aldeia), como o herói, não se satisfaz, contudo, com as explicações. Estranha o mundo das máquinas. Quem depende de quem? Quem manda em quem? No mundo indígena havia as iaras (mulheres belas, vozes fascinantes, habitando rios e lagos) que todos entendiam: cada iara tornava compreensível para todos cada máquina, cada fenômeno do mundo. Tornavam, pois, a realidade suportável. Não havia empate como em nosso mundo: “Os filhos da mandioca homens brancos da cidade não ganham da máquina nem ela ganha deles nesta luta. Há empate”.
Maio de 68 já foi analisado de muitas maneiras e mesmo análises de direita lhe são simpáticas. “Fat is a feminist issue”. “Tomo meus desejos por realidade pois acredito na realidade de meus desejos”. “O pessoal é político”. “Chamarei de político qualquer coisa que me preocupa”. “Quando penso em revolução quero fazer amor”. “Não confie em ninguém com mais de 30 anos”. Esses gentis slogans vão ecoar ainda por muito tempo em nossos ouvidos, sinais de uma revolução juvenil sob cuja rubrica um historiador do futuro talvez enfie criaturas díspares como James Dean, Bob Marley, Fidel Castro (ele chegou ao poder com 32 anos) e Guevara – que, não querendo envelhecer como Fidel, ficará talvez mais perto dos Beatles que de Mao Tsé Tung310.
A juventude se tornara, de fato, agente social independente – o que, no Brasil, se deveu, além disso, à urbanização acelerada daqueles anos. Se abrira um espaço entre o menino e o adulto311. Espaço para o capital, antes de mais nada: cresceram vertiginosamente, a partir de então, a “indústria de juvenescimento” (cosméticos, higiene pessoal, natural e esportiva e afins). A tecnologia se tornou causa e efeito desse juvenescimento: computadores e programas foram projetados e criados por pessoas na casa dos 20 anos para serem usados, com humilhante vantagem, por cabeças jovens312. É verdade que, com os avanços da saúde pública e da medicina, se tinha mais chance de envelhecer; mas paradoxalmente, num mundo cada vez mais jovem, o apogeu do homem ocidental passou a ser entre os 20 e 30 anos. “É pecado não ser jovem no Brasil”, reclamava Nelson Rodrigues, em 1968, sob fogo cruzado da esquerda e da direita.
A revolução jovem não consiste exatamente em que os jovens (entre o infante e o adulto) passem a ser um grupo social autônomo, produzindo, por exemplo, música (o rock) e de traje distinto (o blue jeans). Consiste em que o ideal da vida humana se torna ser jovem – e jovem quer dizer tutto e subito. Jovem é, pois, uma economia do tempo, uma maneira de empregá-lo: vertiginosa, alucinatória e, por consequência, drogável313. Do ponto de vista especificamente econômico era previsível o boom atual do tráfico de drogas. O sistema capitalista desde sempre caminhou para a mercantilização de tudo. Quando este tudo vai finalmente ser alcançado, os intelectuais do capital se organizam, em defesa de homens que reverenciam o dinheiro desde meninos como medida geral equivalente (os homens de bem), para impedir que outros (narcotraficantes) tratem o dinheiro como medida geral equivalente. Nos últimos metros, quando Aquiles vai, finalmente, ultrapassar a tartaruga, os juízes da prova correm para freá-lo. Por outro lado, se revelou a enorme capacidade (ou força) de internacionalização da cultura jovem: rock e blue jeans se tornam igual a moderno314. A revolução jovem começou a montar o “inferno sobre a terra” em que vivemos hoje. Sartre se enganou: o inferno não são os outros, são os jovens.
Em suma, por mais diversa leitura que se faça de seu legado, Marcuse foi buscar fora da economia e da política315 respostas a velhas perguntas que atormentavam a esquerda mundial. Pode, então, preconizar o que está hoje na boca de todos: o “fim da sociedade do trabalho”316. Contudo, o que faz dele, em minha leitura, um verdadeiro precursor do que chamo plano anterior é o seu apelo à sensibilidade moral de jovens, intelectuais, mulheres, grupos religiosos e outros – as minorias marginalizadas – para salvarem a sociedade. Eis a chave da sua praxis: “Uma das coisas que aprendi [...] é que moral e ética não são mera superestrutura ou mera ideologia”.
Marcuse era filosoficamente quase um eclético – Habermas, que o conheceu bem, o chamou de “o primeiro Heideggermarxist” – e fala, com frequência, da solidariedade da razão e do sentimento. É pouco, contudo, para explicar o papel que teve na rebeldia da geração 1960. Este se deveu, ainda segundo Habermas, à coincidência entre os impulsos de sua filosofia vitalista de matizes freudianos e a emergência da juvenilidade no pós-guerra. Eis como o próprio Marcuse viu, em síntese, a atitude da juventude que orientou: “Essa oposição [ao sistema] é simultaneamente uma revolta sexual, moral, intelectual e política. Nesse sentido, é uma revolta total, voltada contra o sistema como um todo”317.
Não confundia revolta com revolução, aquela seria apenas fagulha desta. O tempo correu, a identificação da juventude com uma vanguarda revolucionária deixou de fazer sentido na era das academias de musculação, mas Herbert Marcuse levantara a lebre: no plano anterior à política e à economia está a chave para abrir a compreensão do impasse social em que nos metemos.
Síndrome de Eustáquio
Em 1994, um casal de amigos assistia pelo Jornal Nacional à inauguração do primeiro McDonald’s em Moscou. Fila enorme, empurra-empurra. O marido, velho comunista, perdeu a estribeira:
– Isso eu não aguento! Não aguento!
Foi à janela, berrou para a rua:
– É demais, não aguento!
A mulher tentou acalmá-lo:
– Calma, Eustáquio, é só o McDonald’s em Moscou....
– Mas é isso que eu não aguento!
Vinte e sete anos antes do surto de Eustáquio, um jovem e enigmático pensador parisiense previu a derrocada fragorosa do “mundo socialista” para a macdonaldização – Guy Debord, autor de um livro que já nasceu clássico, A sociedade do espetáculo318, expressão, aliás, cunhada por ele. Direita e esquerda se insurgiram imediatamente contra a obra (a primeira pelo desprezo). Enquanto isso, a “esquerda acadêmica”, auto-proclamada, pouco depois, pós-moderna, optava por “saquear” o livro, desconsiderando um pensador imune às galas universitárias – Debord foi maldito de propósito, sem trabalho fixo, sem contato com instituições, não frequentou qualquer universidade, nunca deu entrevista ou participou de congressos. “Vivi em toda parte – escreveu em algum lugar – menos entre os intelectuais desta época”. E, ainda, contra a ilusão da notoriedade do intelectual: “Considerarei tão vulgar tornar-me uma autoridade na contestação da sociedade quanto na própria sociedade”319.
Mas o que é “sociedade do espetáculo” nos termos de Guy Debord?
Sob as modernas condições de produção, tudo o que era vivido diretamente teria se tornado uma representação, de forma que o espetáculo já não é apenas um conjunto de imagens mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens. Dessa premissa, Debord extrai uma conclusão: o espetáculo é a principal produção da sociedade atual. Sendo, na sua origem, o produto das técnicas de difusão maciça das imagens, se converteu numa visão de mundo materialmente traduzida – uma visão de mundo que se objetivou. Outrora podíamos pensar o espetáculo como um suplemento do mundo real, um reflexo, quase uma decoração, que lhe é acrescentado, mas isso ficou pra trás: o espetáculo é o âmago do irrealismo da sociedade real. Ele não diz nada além de “o que aparece é bom, o que é bom aparece”. O espetáculo não deseja chegar a nada que não seja ele mesmo. A sociedade que se baseia na indústria moderna não é fortuita ou superficialmente espetacular, ela é fundamentalmente espetaculoísta – o que significa que nela o diálogo é impossível (por este ser o contrário do espetáculo) mas também que o espectador não se sente em casa em lugar algum, pois o espetáculo está em toda parte. O que chamávamos antes “realidade objetiva” está presente tanto na sociedade real quanto no espetáculo, cada noção só se fundamenta em sua passagem para o oposto: a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real. Essa alienação recíproca é a essência e a base da sociedade moderna atual.
O espetáculo, sob todas as suas formas – informação, propaganda, cinema, publicidade, esporte, arte, show etc.– constitui, portanto, o modelo atual da vida dominante na sociedade. No mundo realmente invertido do espetáculo, a verdade é, portanto, um momento do que é falso. Considerado nos seus próprios termos, o espetáculo é a afirmação da aparência e a afirmação de toda vida humana como simples aparência.
O espetáculo é, em síntese, uma negação da vida que se tornou visível. A abstração generalizada é uma consequência da sociedade capitalista da mercadoria, da qual o espetáculo é a forma mais desenvolvida. E, enfim, com o desenvolvimento do capitalismo, o tempo irreversível se unificou mundialmente – por meio do espetáculo.
Eis porém o mais importante na análise de Debord: o espetáculo nada mais é que o sentido da prática total das formações sociais ditas modernas, a sua maneira de emprego do tempo. O espetáculo em nossa sociedade corresponde, pois, a uma fabricação concreta da alienação. Sendo uma produção industrial específica da formação social moderna, ao crescer “espetacularmente” só faz crescer a alienação que estava em seu núcleo original. O espetáculo, em suma, é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem320. Ele se apresentava (no início dos anos 1960) sob três tipos: o espetáculo difundido (ou democrático, como na França); o concentrado (ou ditatorial, como na União Soviética); e o integrado (como o atual, dito pós-moderno). Este último, o espetáculo integrado, se caracterizaria pela combinação de cinco aspectos principais: a incessante renovação tecnológica; a fusão econômico-estatal; o segredo generalizado; a mentira sem contestação; o presente perpétuo.
Na visão de Debord não havia, portanto, qualquer possibilidade de o regime soviético (o do espetáculo concentrado) ganhar a corrida. O comunismo de Estado, que vigorava ali, acabava mesmo favorecendo o espetáculo difuso e democrático ocidental: servia para os comunistas de todo o mundo terem na União Soviética a imagem da revolução, enquanto a ação real era deixada aos Estados e partidos comunistas, cúmplices, por essa maneira indireta, do espetáculo ocidental – a perda da esperança no leninismo, consequente ao desabamento da União Soviética, no fundo, foi a perda de esperança no liberalismo centrista321. Meu amigo Eustáquio teria se indignado com essa hipótese de Debord. Ou com o desabafo melancólico de um historiador comunista: “Já então [aí por 1960], como um jovem intelectual, me parecia evidente que não havia nenhum comunista na União Soviética. Havia, sim, gente que trabalhava, vivia e amava sob um regime comunista, o que é diferente”322. Ambos parecem desclassificar sua vida de sofrimentos pela Revolução.
Contra a sociedade do espetáculo, Debord pregava um movimento novo (fundou uma Internacional Situacionista323, entre 1957 e 72), inspirado no conteúdo libertário da arte moderna, na revolução da vida cotidiana, na realização dos desejos oprimidos, na recusa aos partidos, aos sindicatos e outras formas de luta “alienadas e hierárquicas”, na abolição do dinheiro, do Estado, do trabalho e da mercadoria. Se candidatou, assim, a guru de Maio de 68, espécie de Karl Marx (ele foi também leitor inclassificável de Hegel) da era dos Beatles. No contexto de transformações radicais da Guerra Fria e do parto da “aldeia global”, pretendeu retomar a luta por intermédio de conselhos (ele dizia terem sido os sovietes a melhor coisa de 1871 e de 1917)324. Vendo política em toda parte, Debord acreditava, pois, como Marcuse, na morte da política.
A Internacional Situacionista fechou, Debord se matou em 1994, aos 63 anos325. Como Guevara também não quis envelhecer. Suas 221 teses, sua recusa à exposição, irradiam até hoje certa simpatia que ele, certamente, desdenharia. Que lições podemos tomar, de seu livro e de sua vida, os que rejeitamos a soturna condição do capitalismo? A primeira lição é que a condição de intelectual em si é cúmplice ou vã, se não gerar a de trabalhador da cultura. Atribuem esta sentença a Nietzsche: “Nenhuma verdade radical é possível nas universidades”. Somente o intelectual crítico, se escapa à imaginação papeleira (essa também é de Nietzsche), do tipo “jogo do espírito”, pode desempenhar algum papel na luta contra um sistema aparentemente invencível e mutante de quinhentos anos.
A segunda lição de Debord é: a economia transforma o mundo, mas o transforma apenas no mundo da economia.
Fetiche, uma palavra predileta de Marx, vem, como se sabe, do português feitiço. Feitiçaria é transformar uma coisa em outra, para o bem ou para mal, aproveitando a convicção arcaica de que tudo tem a ver com tudo. Feitiçaria é virar um pedaço de metal redondo e amarelo, cor de merda, em “suprema alegria” da vida. Feitiçaria é transformar a vida em espetáculo. Feitiçaria é transformar esse espetáculo em acumulação de mais metal redondo e amarelo. Nisso, e apenas nisso, consiste a transformação econômica dos tempos modernos: feitiçaria. Marx não devia afirmar que a religião é o ópio do povo, não experimentou nenhum dos dois326 ; mas a feitiçaria. Em Manuscritos econômicos e filosóficos, escreveu:
“Eu sou desajeitado, mas posso comprar para mim a mais bela das mulheres. Portanto, eu não sou desajeitado, porque o efeito do desajeitamento, sua força repulsiva, é destruída pelo dinheiro. Eu, segundo minha individualidade, sou paralítico, mas o dinheiro me proporciona vinte e quatro pés; eu não sou, portanto, paralítico. Eu sou um homem mau, desonesto, sem consciência, sem espírito, mas o dinheiro é respeitado, portanto o seu possuidor também. O dinheiro é o bem soberano, portanto o seu possuidor é bom. Demais, o dinheiro me dispensa da pena de ser desonesto, portanto eu sou presumidamente honesto. Eu sou sem espírito, mas o dinheiro é o verdadeiro espírito de todas as coisas; como o seu possuidor poderia ser desprovido de espírito?”327.
Ora, contra a feitiçaria, só há um recurso: a contrafeitiçaria.
Chegamos à terceira “lição” de Debord: a necessidade de uma “vida autêntica” como contrafeitiçaria328. Se criticou, com certa razão, o fundador do situacionismo como “idealista” por seu anseio de uma “vida autêntica” – espécie de idade de ouro ou estado natural rousseauniano, que nunca existiu. Também lhe apontaram uma certa paranoia diante do videocapitalismo (como se diz hoje) e, quem sabe, preconceito aristocrático contra a difusão da cultura. No entanto, Debord viveu o que pregava: não se deixou espetacularizar. Não era um passadista, pois acreditava que a “vida autêntica” só se instalará no futuro, quando a sociedade do espetáculo, depois de vencer os seus adversários, sucumbirá ela própria à sua loucura e irracionalidade. Desejando permanecer no âmbito do marxismo, seu pensamento não é uma simples crítica da mídia, mas uma crítica do capitalismo na época da mídia. O que ele buscava era uma totalidade que se opusesse à totalidade da sociedade do espetáculo – talvez os artistas de vanguarda, as mulheres, as crianças, os homossexuais, os negros; talvez os fundamentalistas islâmicos (se fosse vivo), talvez os pobres do Terceiro Mundo (se tivesse se interessado por eles).
O que chamo, neste livro, de plano anterior é, pois, em parte, na atualidade, a sociedade do espetáculo de Debord. No seu interior, e só nele, se pode pensar a construção de uma vida autêntica, que não seja imitação de imagens criadas por outros. (No apogeu da Rede Globo, aí por 1970, tivemos no Brasil um exemplo dessa perversão: cerca de 50 milhões de brasileiros tinham da vida uma imagem gerada por algumas dezenas de produtores, diretores, telenovelistas, programadores etc., moradores permanentes ou ocasionais de Ipanema–Leblon, Zona Sul do Rio.)
Dissemos acima que a esquerda acadêmica saqueou o livro de Debord. Talvez fosse melhor dizer que lhe tomou as ideias, desprezando, ao mesmo tempo, a atitude de trabalhador da cultura – organizador de sovietes, produtor de revistas, panfletos, grafites, histórias em quadrinhos, manifestos, escândalos (situações) etc.329 Em meados dos 1960, tais ideias estavam no ar, o mérito de Debord sistematizá-las. Um pouco o que aconteceu com Descartes: se o lemos hoje não tem graça, incorporado que está definitivamente à maneira moderna de pensar.
Consideremos, por exemplo, o que ficou de Debord em Muniz Sodré. Em O social irradiado, Muniz trabalha a ideia de que as teletecnologias militares e civis (a superioridade norte-americana em grandes computadores devida a investimentos militares) deslocaram a política em sua forma clássica, tecendo novas formas de sociabilidade em que os laços interindividuais são indiretos ou mínimos330. Em Reinventando @ cultura, Muniz recusa a redução das mutações culturais da contemporaneidade a termos de mercadoria, exploração e mais-valia – isso seria perder de vista o que já se chamou “dessublimação das forças produtivas”. Muniz prefere ver aquelas mutações como uma operacionalização das trocas sociais sob a égide do signo, o que equivaleria a uma espécie de espetacularização da vida social; e vê o poder ou o controle na sociedade do espetáculo como discursivamente sutis331. Ele se aproxima e depois se afasta de Debord ao admitir que a sociedade do espetáculo não obedece à lógica da mercadoria, enquanto para Debord a sociedade do espetáculo é precisamente a lógica da mercadoria aplicada ao mundo da aparência. Se pode ver essa lógica em ação, por exemplo, no campo do jornalismo atual, no da tevê em especial – e, por via deles, no campo da cultura. Essa contaminação não é novidade. A rigor, a chamada “literatura industrial” (a grande imprensa e o folhetim da segunda metade do século 19) já despertara reações de escritores e artistas – segundo Raymond Williams viria daquelas, aliás, a própria ideia de cultura do século seguinte. Na atualidade, contudo, é que se criaram os canais de importação da lógica do mercado para o interior do jornalismo cultural. Um empresa jornalística e/ou televisiva se constitui de receitas publicitárias, ajuda do Estado (por via de publicidade, concessões ou subvenções) e grau de concentração de anunciantes332.
A questão, porém, não está nesse canal “comercial” que leva do mercado (incluindo o Estado) às redações e estúdios. A quantidade e a fluidez do dinheiro que corre por ela diz da maior ou menor autonomia dos jornais e da tevê – só excepcionalmente a autonomia é zero. Lembra Bourdieu que quando o campo jornalístico se constituiu, no século 19, havia separação entre duas lógicas, que eram também dois princípios de legitimação: o reconhecimento do jornalista pelos seus pares ou o reconhecimento pelos compradores de jornal (ouvintes e espectadores no caso do rádio e tevê). Em nosso tempo prevalecerá a segunda (mantendo-se a primeira de forma modificada) através dos veredictos do mercado, da sanção direta (da clientela) ou indireta (índice de audiência). Por exemplo, a habitual prática televisiva de falar de livros, a entrevista. A entrevista com um autor nada mais é do que autopublicidade disfarçada: ninguém fala mal do próprio livro. Vão se impondo ao ofício jornalístico os critérios “índice de audiência”, “fazer simples”, “fazer curto”, “fotografa bem na televisão” (sic), “vende bem” – até que em 1998, por exemplo, Eco já podia constatar que “a imprensa italiana é completamente submissa à TV”333. A divisão interna da categoria se acentua: os veteranos de função, em geral, mais elevada (diretores de emissora, redatores-chefes etc.) capitulam primeiro. Se trata da produção de um bem altamente perecível – notícias – e o furo (a prioridade da informação) se transforma numa obsessão, não para servir à clientela, mas para valorizar o jornalista no mercado de jornalistas334. Velocidade – um jogo vertiginoso que impossibilita a memória e, portanto, a reflexão – e renovação permanente se tornam, então, os atributos principais, além da espionagem (para descobrir como e por que o outro teve sucesso). Aonde levam essas práticas comerciais do jornalismo? Um convicto neoliberal responderia que à liberdade e diversidade da escolha. Levou, de fato, à uniformidade da oferta, basta ler, por exemplo, os grandes jornais e emissoras a propósito do que se “combinou” chamar guerra contra o terrorismo, após a derrubada das torres do World Trade Center (setembro de 2001). Nunca o alinhamento ao Império foi tão completo. Há tempos, em suma, a profissão de jornalista nos grandes jornais e emissoras pouco se distingue da do tecnoburocrata – controlar gerencialmente um conhecimento específico em favor da economia transnacional (as agências de notícias).
Nenhum analista hoje, mesmo os que se dizem ou disseram marxistas, faz tábula rasa da nova socialização instituída pelos media – e não se trata apenas daquele poder enorme de “cinquenta sujeitos inteligentes que, obtendo cinco minutos na TV para um happening, produzem um efeito político comparável ao de meio milhão de manifestantes”335. No livro citado, Muniz Sodré utiliza a terminologia (de Guilhaume336), encadeamento e irradiação, para abordar os modelos atuantes na vida social contemporânea (mais precisamente na relação entre as massas e os modernos meios de comunicação). Encadeamento seria a circulação sequencial dos efeitos da mídia na coletividade (por exemplo a epidemia, o rumor, a imitação...); já irradiação é quando um centro irradia efeitos das mensagens simultaneamente sobre a coletividade (as vacinas, os meios de comunicação de massa, o controle social pan-óptico, em que se vê sem ser visto, a dissuasão nuclear...)337.
Esse modelo de telerrealidade parece imaginoso, mas encontra correspondência na vida econômica, no jogo político, na esfera artística, no direito, na arquitetura, nas formas religiosas e assim por diante. Preenche, pois, a condição de totalidade que se requer para historicizar um fenômeno, é uma mutação histórica. Que mutação? Aquela que Debord, primeiro que todos, chamou “sociedade do espetáculo”: a implantação da prótese no lugar do real tradicional. Nos termos do materialismo histórico, essa mutação corresponde ao modo de produção resultante da extensão do capital a todo o planeta – a “globalização” do senso comum. A economia-mundo pariu o shopping center global. A velocidade máxima da circulação mercantil criou um novo tempo (uma nova vivência do tempo), e este um novo modo de organização social, constituído por formas de êxtase, formas vazias, alucinógenas. Ainda se distingue droga de mercadoria, mas será por pouco tempo.
Em nossa época, a mídia se colocou, como mesmo disse, entre a sociedade e o lucro. Ela é o lugar em que se produz o discurso da verdade: verdade é o que a tevê diz ser a verdade. Já não há Verdade transcendente (com v maiúsculo). Como esse lugar de enunciação de verdade é a empresa, a verdade acaba sendo, pois, o desejo pela mercadoria. A televisão é, portanto, a ideologia (proposição que oculta a si própria a sua mentira) do capitalismo atual: ele é um videocapitalismo. E a publicidade a Retórica do capital, a sua palavra, uma palavra sofística que tem apenas valor de troca: assim-é-se-lhe-parece. Antes havia anúncio, o reclame, a propaganda; agora há a publicidade, a verdade totalitária: a sociedade inteira (pobres e ricos, brancos e pretos, incluídos e excluídos) passa a se organizar por intermédio do seu discurso – não mais por intermédio de relações de produção.
Cultura versus mercadoria
A origem da palavra cultura é colo, eu moro, eu ocupo (e, por extensão) eu trabalho, eu cultivo o campo, que no particípio passado se dizia cultus e no particípio futuro culturus. Havia, portanto, no latim, o reconhecimento de um fundamento (cultus) e de um destino (culturus). Cultura teve, na sua origem, e nada impede que continue a ter, uma dimensão comunitária (fundadora) e, ao mesmo tempo, de projeto, implícita, por exemplo, no mito de Prometeu, “que arrebatou o fogo dos céus para mudar o destino material dos homens”. Quem lembrou isto, em Dialética da colonização, foi Alfredo Bosi338.
Ora, quem diz fundamento diz espírito comunitário; quem diz destino diz projeto, porvir, ideal, utopia. São essas, qualquer que seja a definição, as principais dimensões da cultura339. A terminação urus, em culturus, indica processo, ação em realização, e não produto. Cultura é, pois, a ponte entre fundamento e destino. Não é, um objeto, um ente concreto, um produto mas um processo, algo que se esconde dentro e atrás do produto. Cultura não é, por exemplo, a garrafa de cerveja; é a maneira de fazer e tomar a cerveja, o seu nascimento e a sua intenção. Um carro é produto de borracha, vidro e metal, mas o seu significado não é borracha, vidro e metal – é transporte. O significado transporte é a cultura do carro.
Já mercadoria é outro significado. Não há um objeto, uma coisa chamada mercadoria, ela é o significado que ganha qualquer coisa quando levada ao mercado, quando objeto de compra e venda340. É um significado ontológico porque, provavelmente, comprar e vender aciona o dispositivo que nos faz humanos: o dispositivo do jogo. Uma civilização, porém, se estruturou sobre o significado mercadoria, daí modo de produção capitalista e civilização moderna capitalista coincidirem. O que chamamos história moderna é, pois, o tempo histórico criado pelo capital entre os séculos 15 e 20.
Mercadoria, por definição, se realiza no tempo presente. Quanto mais rápido o tempo de realização, mais mercadoria. Ela não admite, portanto, o fundamento (o tempo passado), nem o destino (o tempo futuro), não poder ser cultus nem culturus. O tempo que vivemos hoje, em nossa civilização, só pode ser o tempo da mercadoria: veloz, sem história, sem projeto, sem futuro, sem cultura. Jean de Léry, o cronista calvinista da França Antártica (1555), teve um diálogo com um “selvagem” tupinambá em que se vê, com clareza, a exclusão desses dois significados (cultura e mercadoria):
“Os nossos tupinambás muito se admiram dos franceses e de outros estrangeiros se darem ao trabalho de ir buscar o seu arabutan [pau-brasil]. Uma vez um velho perguntou-me: – Por que vindes vós outros, mairs e perós [franceses e portugueses] buscar lenha de tão longe para vos aquecer? Não tendes madeira em vossa terra? Respondi que tínhamos muita, mas não daquela qualidade, e que não a queimávamos, como ele o supunha, mas dela extraíamos tinta para tingir, tal qual o faziam eles com os seus cordões de algodão e suas plumas.
Retrucou o velho imediatamente: – E porventura precisais de muitos? – Sim, respondi-lhe, pois no nosso país existem negociantes que possuem muito mais panos, facas, tesouras, espelhos e outras mercadorias do que podeis imaginar e um só deles compra todo o pau-brasil com que muitos navios voltam carregados. – Ah! retrucou o selvagem, tu me contas maravilhas, acrescentando depois de bem compreender o que eu lhe dissera: – Mas esse homem tão rico de que me falas não morre? – Sim, disse eu, morre como os outros.
Mas os selvagens são grandes discursadores e costumam ir em qualquer assunto até o fim, por isso perguntou-me de novo: – E quando morrem, para quem fica o que deixam? – Para seus filhos, se os têm, respondi; na falta destes, para os irmãos ou parentes mais próximos”.
É irrelevante saber, quinhentos anos passados, o que é mais importante no sistema capitalista, se o modo de produção que o faz diferir de outros, se as ideas y creencias (Ortega y Gasset) que lhe permitiram funcionar como civilização, mais do que como sistema social. Para um economista, o foco recairá sobre a produção fabulosa de objetos segundo a lei da mercadoria, mas como esta lei só foi acionada após a superação de dilemas subjetivos, escolha entre caminhos que se bifurcavam e exploração de possibilidades reais sucessivas, ao longo de quinhentos anos, o observador pode falar num plano anterior ao econômico-social. Não se trata de uma instância imaterial e, às vezes, abstrata por oposição a outra concreta, isso não se dá na existência real. O capitalismo histórico realmente existente não se criou como os modelos, cada peça no seu lugar, a infraestrutura primeiro, a superestrutura depois, ou ao contrário. Os que desde sempre se opuseram a ele precisaram vê-lo como um modelo a ser substituído por outro, e, desse jeito, seu olhar racionalizante, analítico, se concentrou nas suas partes mais visíveis e espetaculares, a mais-valia, por exemplo. A luta contra o capitalismo se pretendeu muitas vezes científica, mas não passou de empiria. Hoje, contudo, os adversários do capitalismo podemos vê-lo como um fenômeno histórico total, sistêmico, em que as anterioridades do modo de produção, ainda que tenham operado, em alguns casos, a posteriori, como superestrutura, foram também causa do desenvolvimento do sistema como um todo. O sistema capitalista pode ser visto hoje, numa palavra, como civilização capitalista. Ora, essa visão (que admite um plano interior/anterior ao modo de produção criado pela lei da mercadoria) é que reabre, hoje, possibilidades de ação aos seus adversários. Antes de se mostrar como vertiginosa reprodução de mercadorias, o capitalismo foi crenças complementares e/ou contraditórias – universalismo341, individualismo, racismo, cientificismo, confiabilismo342 etc.
Economia da cultura versus cultura da economia
Definidas cultura e mercadoria como significados antagônicos, como nasceu, em certos círculos intelectuais, a ideia de que cultura é indústria e deve em primeiro lugar buscar rentabilidade, criar riqueza, dar empregos, pagar impostos e assim por diante? De onde vem, em suma, a expressão “economia da cultura”, que se tornou, na atualidade brasileira, um refrão entre produtores e autoridades culturais? “Economia da cultura” é o nome da fabricação concreta, por parte do Estado, da alienação da cultura em mercadoria, ele designa uma prótese do real, um reconhecimento da vitória da sociedade do espetáculo, não passando, em última análise, de instrumentalização da ideia de cultura pelo capital.
Na atualidade, os governos, de qualquer nível, sob pressão do mercado, ao praticarem a política da “economia da cultura”, concentrando seus esforços na geração de renda, sofrem da “síndrome de Pedro” – aquele moleque de O demônio familiar cujo supremo desejo era servir de palafreneiro na carruagem dos amos. Há, de fato, muito dinheiro investido na “indústria cultural” (num estado como o do Rio de Janeiro, por exemplo) mas só a inocência pode acreditar que essa dinheirama será gerida pelo Estado e não pelos executivos da indústria cultural. Gerida não por ele, mas (com toda lógica) pelos investidores, em que se transformarão os órgãos de cultura? Em palafreneiros de libré doirada.
Estamos, em suma, diante de duas políticas culturais divergentes: a da mercadoria, que converte os órgãos do Estado em guardiões do cofre da indústria cultural; e a da cultura, que visa a convertê-los em ponte entre o fundamento (cultus) e o destino (culturus). Adotar a segunda não significa desconhecer o mercado, a indústria cultural, a cultura de massa, o lucro, a rentabilidade etc. Significa atender ao aviso que Maanape, o irmão feiticeiro, deu a Macunaíma, diante de um certo palacete da rua Maranhão, onde tinham ido recuperar a Muiraquitã perdida:
“Chegou na porta de casa e cantou feito pássaro: Ogoró! Ogoró! Ogoró! Parecendo muito longe. Macunaíma secundou logo: – Ogoró! Ogoró! Ogoró! Maanape sabia do perigo e murmurou: – Esconde, mano! que é o gigante Piaimã, comedor de gente!”.
A intimidação dos trabalhadores da cultura em nossa sociedade, visando à sua substituição por produtores culturais, se faz pelo pragmatismo: devem ser práticos e evitar as teorias, pois sem dinheiro “não se faz nada”. No entanto, a expressão “indústria cultural” é pejorativa, só poderia evocar a quem conhece a origem da indústria o inferno sobre a terra. Se a negação da mercadoria não é, em si, revolucionária, a sua afirmação é consensual na esfera política – um consenso que é, verdadeiramente, o princípio do “pensamento único”. Entre a negação possível da mercadoria e a sua inviolabilidade cerra fileiras o exército de Lilliput343. Na verdade, não se precisa do socialismo – da ideia socialista e/ou do “modo de produção” socialista – para se opor à mercadoria e ao capital, que o digam pensadores como Keines, Marcel Mauss, Bataille e tantos outros. O lugar da mercadoria, ali onde ganha seu sentido, é o dinheiro; o lugar da cultura, onde se produz o seu sentido, é o não dinheiro.
O campo atual da cultura
No limiar do século 21, os intelectuais e trabalhadores da cultura estão obrigados a redefinir o campo da cultura e, em consequência, a reprogramar as suas estratégias. A própria dinâmica social se encarregou de fazer isso, aliás, cabendo-nos tão somente ajustar a nossa visão e as nossas ações. Para começar, cultura herdou alguns significados e intenções de revolução.
A esquerda católica do pós-guerra, como se sabe, assimilava capitalismo e morte, contrapondo-os a socialismo e vida. Onde estava socialismo, o mundo pós-Muro de Berlim passou a ler cultura. Houve troca também da base para o homem novo, de Guevara: a cultura, e não a revolução, é tida hoje como a parteira do sujeito comunitário, sem egoísmos. No sentimento de hoje – e o sentimento de cada época é que dá às palavras suas distintas acepções – cultura é a chance de furar o pensamento único e sobreviver às mortes decretadas da história e da geografia. Ainda por muito tempo haverá quem tome cultura como sinônimo de saber, ou de patrimônio artístico e científico. Em nossa era imaginal, porém, ela pode ser melhor definida como uma substância plástica de que tudo é feito, os objetos e os interstícios entre os objetos. O queijo é cultura, mas os buracos do queijo também o são. As diferentes qualidades de queijo levadas ao mercado são um produto cultural, já o trabalho dos vermes – “explorado” por seres humanos – que o fez queijo é um processo cultural. Ambos são cultura. Os processos – antes de se materializarem ou não em produtos –, os vazios, as lembranças e os esquecimentos constituem campo da cultura. Não se pensava assim há trinta anos.
Pierre Bourdieu foi um que contribuiu para essa ampliação, com a ideia de campo (social)344: a estrutura social mais a economia de bens simbólicos mais a cultura345. Por analogia com a física, campo seria o corpo físico mais a alteração que ele provoca no espaço-tempo por força da gravidade e outras formas de interação. No mundo físico, um corpo não está em contato exatamente com outro, como parece. Os contatos entre corpos se dão por meio de campos – tal como os grupos e classes sociais que só aparentemente se relacionam pelas relações de produção. A classe dominante da sociologia convencional, por exemplo, formaria um campo de poder: a propriedade exclusiva dos instrumentos de produção não lhe constitui exatamente o poder, mas a propriedade acrescentada, modificada, curvada (para manter a analogia com a física) pelo simbólico e pelo cultural. Com esse espaço curvado é que as classes e grupos dominados estão em contato, o que provoca, por sua vez, sua curvatura346. A ideia de campo, similar à do meu plano anterior, é o que permite a Bourdieu escapar à noção comum de classe, mais enganosa, aliás, no capitalismo periférico que no central. O que inicialmente ele tenta mostrar é que há uma relação entre a posição que as pessoas ocupam no espaço social e seu estilo de vida o que, em si, não é novidade. Bourdieu insistirá, no entanto, no caráter indireto dessa relação: a mediação entre essa posição no espaço social e as práticas, as preferências, as ojerizas é o habitus, uma disposição geral diante do mundo que pode ser relativamente independente da posição ocupada no momento considerado, por ser o rastro de toda uma trajetória passada, e que está no princípio de tomadas sistemáticas de posição. Fica evidente, assim, a força do poder simbólico, cuja peculiaridade é esconder, de si próprio e dos outros poderes, que é poder enquanto é, de fato, o único poder que se reconhece e goza de reconhecimento no mesmo passo em que realiza sua violência arbitrária. O poder simbólico se realiza num plano anterior ao dos simples fatos sociais – e essa localização é uma forma de identificá-lo. Pensemos na linguagem – ou é um simples meio de comunicação ou é uma objetivação de poder. As palavras (insiste Bourdieu) exercem um poder tipicamente mágico: fazem ver, fazem crer, fazem agir. Que condições sociais tornam possível a eficácia mágica das palavras? É toda a primeira educação, no sentido mais amplo, que deposita em cada um as molas que as palavras (uma bula papal, uma palavra de ordem de partido, uma fala de psicanalista um parecer técnico de psicólogo num julgamento de divórcio etc.) poderão, num ou outro dia, desencadear347.
É nesse ponto que se põe e repõe a questão da língua (e suas diferenciações) como poder, isto é, como atributo dessa forma de inserção chamada ordem – há uma língua para cada ordem e as trocas entre elas obedecem às leis gerais da troca. A primeira dessas leis é a da desigualdade dos valores de troca. No Brasil, mesmo pessoas letradas costumam se referir a línguas africanas como dialetos, o que parece inocente mas já é em si uma atribuição de valor (baixo). Os seus falantes, tanto os de hoje quantos os que entraram no Brasil como escravos, valem menos porque a sua língua vale menos (e vice-versa). Muitos jesuítas aprenderam o tupi-guarani (Anchieta compôs mesmo a sua primeira gramática), mas não o consideravam capaz de exprimir alta espiritualidade, somente pouco mais que práticas rituais. Condescendiam em falar a língua geral para melhor afirmar a superioridade do cristão sobre o gentio, seu direito natural de dominação. Quanto ao colonizado (gentio de África ou etíope da América) seu aprendizado da língua do colonizador se faz por baixo: ele nunca conseguirá falar a língua do amo, a estropia, é uma fala broken, é uma inferioridade natural, pois se refere à sua condição humana. Está certo, como quer Bourdieu, que quando um francês fala com um argelino, não limite, não são dois homens que se falam, é a França que fala com a Argélia, mas o descompasso, do ponto de vista do colonizado (ou do pobre, do analfabeto, do ágrafo, de mulher, em certas circunstâncias, do crioulo etc.), é mais profundo. É a sua humanidade que está em questão.
Essa inferiorização só será superada por uma radicalidade. Contra o imperialismo da língua do amo, o escravo defenderá a “língua que a gente fala” (um exemplo dessa defesa é a língua de Adoniran Barbosa)348. Pois as línguas são atributos nacionais, se referem ao Estado-Nação. Nossa língua foi a portuguesa enquanto fomos colônia, passou a brasileira, em fins do século 19, quando se projetou a nação. Ocorre que a nação ficou inconclusa e nesse momento começaram a falhar os mecanismos de imposição das normas e padrões da língua brasileira. A “língua que a gente fala” é distinta da língua oficial.
Não há novidade nesse diagnóstico, só temos agora de conectá-lo à questão do funcionamento histórico real, não o presumido, da sociedade brasileira. A existência de duas línguas, a partir do século 20, sugere a existência de uma ordem do povo (a língua que se fala) e um bloco formado pelas ordens oligárquica e moderna (que fala a língua brasileira).
Anterioridade do Social
Essas últimas considerações parecem recair na gratuidade dos “jogos de espírito”, que os intelectuais de esquerda desprezam, se afastando do que efetivamente interessaria: o papel dos trabalhadores da cultura nas lutas sociais e políticas. Na verdade se aproximam, pois não se vê como fazê-lo sem antes obter clareza sobre o campo específico da cultura.
A díade arcaico-moderno – e não qualquer dos dois termos de per si – integra o campo da cultura349. E civilização brasileira nada mais é que um estágio daquela díade, o seu equilíbrio precário. Nossa originalidade nacional – um dos problemas magnos do campo da cultura – não se encontra, como é óbvio, na megamáquina ocidental, a parte comum de nossa civilização, mas no encontro dela com a ordem tradicional. Se pode dizer que o lugar do Brasil naquela megamáquina é um problema de economia política, mas o Brasil como lugar é de política cultural, de forma que o principal insumo brasileiro é a sua civilização (assim como a sua natureza é a sua biodiversidade). Cultura, numa palavra, nada mais é que uma das vias brasileiras para a globalização.
A tecnoburocracia, grosso modo, é a forma de administração pública da etapa de economia globalizada, assim como a burocracia foi a da etapa das economias nacionais, e a patrimonialista a da etapa das economias pré-capitalistas. Correspondendo a uma realidade histórica, ela é, portanto, incontestável. Onde se instala a megamáquina aí se instalam a tecnoburocracia, a luta de classes, a teoria dos direitos humanos, a visão sistêmica, o pensamento único etc. Pensamento único mas não realidade única. A própria dinâmica social vai se encarregando de frear as pretensões da globalização e seus entusiastas: com impaciência os responsáveis pelas reformas tecnoburocráticas do aparelho do Estado acabarão por ensarilhar suas armas350. A cegueira da tecnoburocracia não decorre apenas de pensarem o Brasil como um lugar passivo que, mais cedo ou mais tarde, graças a iniciativas modernizantes, se ajustará à tendência global desconsiderando, portanto, o País como “ponto de fuga” ele próprio, capaz de retificar o desenho das tendências mundiais. Decorre também de uma visão economicista das tendências da megamáquina ocidental, desconsiderando o “estilo estético” de nosso tempo – outra maneira de designar a sociedade do espetáculo. (Estilo não em seu sentido estrito, mas antes como um quadro geral no qual se exprime a vida social em um dado momento, assim como se pôde falar de um estilo teológico, na Idade Média, ou de um estilo econômico durante a modernidade e até recentemente.)
De fato, o quadro contemporâneo parece indicar, salvo para os ingênuos da razão triunfante, um espocar do “imaginal”, do hedonismo, do tribalismo, do comunitarismo etc., uma subjetividade de massa, em suma, o que condena ao fracasso as estratégias de governo e controle baseados na racionalidade, no individualismo, na eficiência, e assim por diante, como pretende a “administração gerencial”.
Já se disse que a modernidade baniu a filosofia, pois nela os problemas só existem conforme podem ser detectados e medidos. O narcotráfico, por exemplo, é um problema sociológico, político e de governo. Suas outras dimensões, tidas como vagas e teóricas, não interessam a planejadores e autoridades policiais. A filosofia é a “louca da casa”, não deve e não pode ser apresentada aos visitantes. Ocorre que a louca agora ocupa o cômodo de entrada e não se penetra nos demais sem passar por ela. Todos os problemas têm uma anterioridade que a pós-modernidade (ou como se queira chamar) não pode ignorar. A primeira anterioridade do narcotráfico, para começar, são as drogas. Essas, por sua vez, ou são tratadas como um mero (e complexo) problema social, de competência médica, jurídica e policial ou, de outra forma, numa anterioridade ainda mais anterior, como expressão de um sentido essencial da civilização contemporânea ocidental, a jovialidade351. Eis o kit completo da jovialidade: sexo, drogas e rock’n’roll.
Também se pode tomar o caso da mais renitente das tradições brasileiras, a tortura. Enquanto prática criminosa, interessa exclusivamente aos órgãos de polícia (sic) e justiça. Ocorre que no Brasil a tortura, sendo prática universal, é uma forma eficaz de dominação social352 e, nesse nível, interessa aos partidos de esquerda e às ONGs que brandem contra ela a teoria dos Direitos Humanos – e já estamos aqui num nível anterior à prática criminosa (mas não ainda a rigor no campo da cultura).
Em sociedades pluriculturais como a nossa, a eficácia da tortura contrasta com a ineficácia dos Direitos Humanos. Da Magna Carta (1215), à Declaração Universal da ONU (1948), passando pelo Bill of Rights, pela Enciclopédia e as Declarações de 1789, francesa, e de 1798, americana, a história dos Direitos Humanos é a história da civilização ocidental. Junto com o universalismo, o racionalismo, o individualismo, o antropocentrismo, o tecnologismo etc., eles constituem o ethos do Ocidente Moderno. Desse jeito, supor que conceitos como democracia, direitos humanos e seus corolários possam ter o mesmo efeito em quaisquer contextos culturais é se render ao universalismo mais vulgar. A harmonia e a felicidade humanas possíveis só podem ser a convergência de homeomoformias funcionais353, nunca o transplante de valores e sentidos. Transplantados, os Direitos Humanos têm sido aqui “ideias fora de lugar”. E, pior que ineficazes, funcionam, ao contrário, como instrumentos de mais injustiça e autoritarismo.
A quem cabe localizar os homeomorfos da democracia e do equilíbrio social no universo das nossas culturas tão rico e includente em contraste com a estrutura social, tão perversa e “excludente”? A quem cabe, enfim, escrever a versão brasileira do que Lévi-Strauss chamou o problema magno de nossa espécie – viver juntos, nós os diferentes – senão aos intelectuais críticos agindo por intermédio do Estado? O problema das homeomoformias (ou como queiramos chamar) é a Esfinge, às portas de Brasília: se o deciframos nos habilitará a discutir os rumos da civilização universal desde um lugar original.
O campo da cultura está circunscrito, em síntese, pelas anterioridades354. Nada do que é anterior lhe é estranho. Exemplo são as reformas do aparelho do Estado, intentadas periodicamente desde a Revolução de Trinta – tendo a sua anterioridade na redefinição do papel do Estado brasileiro, essas reformas pertencem ao campo da cultura. São assuntos sérios demais para serem deixados aos tecnoburocratas. Não poderia, assim, um Ministério da Cultura permanecer fora da Câmara da Reforma do Estado (como foi o caso da proposta Bresser Pereira, 1996). Na atuais circunstâncias do mundo (prosseguimento da globalização econômica e comunicacional) ou o Estado aprende a operar no campo da cultura ou estará condenado à anomia – e, em nosso caso, mais cedo ou mais tarde provavelmente ao autoritarismo. Quanto à cultura ou ela se torna uma entrada para o social ou permanece, simplesmente, belas-artes. Para constatar a importância do campo da cultura em nosso tempo – um campo expandido, horizontal e verticalmente – bastariam as metáforas culturais que a globalização vulgarizou, desde a “aldeia global” de McLuhan: “terra-pátria”, “nave espacial”, “nova babel”, “Disneylândia global”, “fim da geografia”, “fim da história”, e tantas outras355. Globalização não significa a mera extensão a todo o planeta de mercadorias-objetos, antigas ou novas, mas a disponibilização on line everywhere worldwide all time, como se diz, de informações. Ora, quem diz informação diz cultura. Na era do modem, Livingstone nada tem a fazer no lago Victoria.
Centralidade da cultura. Cultura como rede
Como o garçom demorasse a servi-lo ouvi, certa vez, um sujeito berrar num botequim carioca: “Cerveja também é cultura!”. Cerveja é um bem material, produzido numa fábrica e posto à venda numa loja (processos econômicos). Desde sempre envolveu um cultivo de cereais, uma maneira de fazer, uma degustação e um prazer dos seus bebedores (processos culturais). Os dois fatos, o econômico e o cultural, se materializam no objeto à minha frente.
Cultivo e cultura pertencem, na origem, como lembrei, ao mesmo campo semântico: do latim colo, eu moro, eu ocupo a terra, eu cultivo o campo. O que devemos explicar é por que o aspecto cultural (“Cerveja também é cultura”) passou a ser tão decisivo em nossa época. Por que razão uma categoria antes reservada às criações da classe alta (a literatura e a música clássicas, as belas-artes etc.) hoje é aplicada a qualquer objeto ou ente?
Uma hipótese (Maffesoli, Morin e outros), que também já aventei, é que a atual etapa do capitalismo empurrou a nossa civilização para uma “Era Estética”, assim como no passado tivemos uma “Era Religiosa”, uma “Era Racional” e uma “Era Científica”. Só o que se manifesta visualmente, sensualmente, parece agora ter realidade. O próprio corpo humano vai sendo modelado para parecer, o narcisismo se torna o “mal do século” etc., etc. Ora, a estética é da ordem do simbólico, da representação – é cultura, em suma. Hipótese complementar (Hobsbawm entre outros), também já mencionada, é ter ocorrido no pós-guerra uma revolução jovem: o capitalismo descobriu a juventude. Esta deixou de ser faixa etária e passou a ser estado de espírito, se ampliando para aquém (engolindo a adolescência e mesmo a infância) e para além (engolindo a madurez e a velhice). Ao falar de estética e juvenilidade, estamos falando de quê? De simbólico, de cultural, de representação, de civilização e de cultura, aspectos sempre presentes no conceito, mas recalcados. A contemporaneidade os desrecalcou:
– Cerveja também é cultura!
Parece também certo que, aumentando o tempo e o acesso ao lazer nos países ricos, aumentou com eles o consumo dos bens simbólicos, alterando ipso facto a noção de cultura, que passou de atividade supérflua, reflexa, a essencial e determinante. Quanto aos desclassificados do Terceiro Mundo, esses, na verdade, sempre tiveram “tempo de lazer” (o que não é o caso das suas classes operárias, obrigadas ao padrão industrial). Portadores de uma cultura arcaica – a que “não falta nada”, na definição antropológica – ou híbrida, índios, negros e mestiços da América Latina, sempre fizeram cultura de forma essencial e “natural” (por exemplo, a religião para eles nem sempre foi “ópio do povo”). A alegria dos pobres, em nossa parte do mundo, é invejável: os pobres do Primeiro Mundo não a têm.
Outra evidência da centralidade da cultura na atualidade é o triunfo quase mundial do esoterismo. O sentimento de que “vivemos cercados de mistério” não é novo na história do Ocidente, mas agora a própria economia e a política batem em retirada diante dos horóscopos, gnomos e “Diários de um Mago”356. Por outro lado, o que leva os governos, sobretudos nos países centrais, a investirem cada vez mais em cultura, senão a sua importância crescente? E por que pensadores instigantes de nosso tempo – um Foucault, um Appiah, um Chomsky, um Rosenzvaig357, um Jurandir Freyre – trabalham sobre a cultura, ou a partir dela, e não sobre o econômico ou o político?
Se pode, pois, admitir a centralidade da cultura neste começo de século. Mas e a sua anterioridade? Os fatos, antes de se apresentarem como fatos sociais, se apresentam como fatos simbólicos, isto a rigor não é novidade. No entanto, é como se de súbito tivéssemos aberto uma janela do tempo: podemos ver as coisas antes de acontecerem, sua projeção num plano anterior, ainda fora do campo de visão. É o caso da droga. Só ingênuos e velhacos acreditam na eficácia de campanhas antidrogas. Os bilhões de dólares investidos nelas esbarram num fato anterior: droga é cultura – e talvez por isso a religião, essa anterioridade universal, vem sendo uma das poucas terapias eficazes para dependentes.
Em suma, as noções, ideias e definições de cultura foram abaladas, como era inevitável, pelas circunstâncias históricas contemporâneas. Já não estamos no século 19, o que é evidente, mas também não estamos em 1950. Intelectuais e trabalhadores da cultura (o que não é a mesma coisa) têm à sua frente tarefas ampliadas e distintas das que teve a geração anterior. As transformações do sentimento e da ideia de cultura obrigam, por toda parte, a repensar as estratégias de política cultural – tanto mais que o objeto cultural, mais que uma coisa (superestimada pelas ideologias de dominação), tende agora a se apresentar como circuito.
O que chamamos cultura no Ocidente teve várias acepções desde o Renascimento. Foi primeiro o conjunto de obras clássicas (de classe aristocrática), foi depois o conjunto de coisas e atitudes refinadas de alto preço (só acessíveis à burguesia). Essas acepções permanecem até hoje no fundo do senso comum (quando se diz, por exemplo, “é preciso levar cultura ao interior do estado do Rio”). Há cinquenta anos, o desenvolvimento da etnografia e da antropologia impôs uma nova acepção: cultura é o conjunto de bens simbólicos dos grupos humanos, as etnias. Etnia é cultura mais território358. Têm cultura, por exemplo, tanto os shonas de Moçambique quanto os suecos de Estocolmo. A antropologia, porém, refinou seus instrumentos e chegou à noção de contexto cultural: as etnias perdem importância para os sentidos imateriais que fundam os contextos, espécies de “campos de força” autorreferenciados. (Foi esta acepção, aliás, que permitiu a um folclorista dizer: cultura popular é tudo que não faz sentido para nós.)
Na noção de contexto cultural já está implícita a ideia de desterritorialização. É o que vem acontecendo na atualidade: a cibernetização da informação e da comunicação (chamada, às vezes, de mundialização para distinguir de globalização), bem como a aceleração das migrações, tendem a desterritorializar os contextos culturais. O fenômeno é mais perceptível na música: qual é o território do rock, da salsa, do reggae, da axé music etc.? A circulação, em certos casos, se torna mais importante que o lugar. Não é que a circulação não existisse antes. Há muitos anos, um excepcional mestre-sala da Mangueira, perguntado sobre com quem aprendera sua arte sutil, respondeu: “Com meu pai e com Fred Astaire”. Ocorre que hoje um jovem sapateador norte-americano também pode aprender com um mestre-sala brasileiro: os lugares em boa parte foram deslocados pelos circuitos. É possível, pois, redefinir a velha palavra cultura: uma “rede de neurônios”, com ênfase em rede e não em neurônios. Como é próprio dos circuitos e das redes, pode conectar qualquer coisa em qualquer lugar.
A definição de cultura como circuito ou rede se presta, é verdade, a idealizações e delírios. Há quem ache suficiente conectar contextos culturais para criar um “mundo novo”, dinâmico e democrático. A idealização, no entanto, prestou um serviço: fez ver que, mesmo não estando envolvida alta tecnologia de comunicação, o elemento principal da cultura é a comunicação. Ela engendra a troca, que, por sua vez, engendra a civilização. Se redefiniu, dessa maneira, uma outra palavra gasta: civilização. O que vem a ser civilização na atualidade? Os processos e produtos sincréticos ou híbridos criados pelo intercâmbio de culturas (ou contextos culturais). Em qualquer parte do mundo pode haver civilização (ao contrário do que afirmava a ideologia do colonialismo), desde que haja intensas e continuadas trocas culturais. Para exemplificar, música sinfônica (quer gostemos ou não) é cultura, mas não é civilização, pois permanece um luxo de classe média intelectualizada; bossa-nova (quer gostemos ou não) é civilização, pois resultou de trocas entre um gênero brasileiro (samba) e outro internacional (jazz)359, como mais atrás o maxixe, a primeira dança urbana carioca, casamento da polca, do scottisch e da mazurca (europeias) com o lundu afro-brasileiro.
Do acadêmico ao político
As considerações que fiz nesse capítulo serviram para mostrar que o plano anterior não é novidade na história do pensamento ocidental. Se viu, por exemplo, como firmados em Marx (que pensou a transformação da economia liberal em monopolística), Marcuse e outros buscaram pensar sobre como a sociedade de massas liquidou as aspirações de liberdade e de satisfação embutidas na tradição ideológica ocidental. Marcuse foi dos primeiros a detectar o caráter essencialmente psicológico da repressão em nosso mundo desencantado. “Neste ensaio, empregam-se categorias psicológicas, visto que se tornaram categorias políticas”, é a frase que abre Eros e civilização360.
Debord, a seu turno, demonstrou que se pode pensar, pela esquerda, o fenômeno da sociedade do espetáculo: ela não tem lógica própria, mas a da mercadoria; a “sociedade do espetáculo” não significou a aposentadoria do velho Marx, mas a sua sobrevida, uma vez que a imagem (por exemplo) passou de lugar subordinado à produção (superestrutura) a lugar principal de reprodução da mercadoria. A imagem já não serve mais para enganar os pobres, é o próprio engano dos pobres.
É provável que o final do século 19 fique na história como o da tecnociência (com destaque para a revolução digital), da tecnocultura, da globalização e da imanência do mercado. Os três combinados mataram o que chamávamos política. Com o fim dos fundamentos transcendentais (Deus, Razão, Ciência, Marxismo, História) a Tecnologia se tornou um novo habitat para o indivíduo contemporâneo. Essa possibilidade estaria indicada basicamente, para alguns observadores, pela Internet, portadora de mutações (mais do que mudanças) culturais. Quanto à impossibilidade hoje do fundamento transcendental (entendido como vontade exterior à vida concreta), ela estaria indicada pela lógica sofística da tecnociência triunfante: não há qualquer Verdade além das verdades particulares, nem qualquer Ética além da fidelidade ao seu lugar social, à sua corporação, ao seu condomínio de residência e assim por diante.
Esse conjunto de crenças – mais do que ideias e conceitos – seria o dilema do nosso tempo, a sua perplexidade. Em 1934, um ensaísta liberal-conservador, Ortega y Gasset, chamava a atenção para esse plano anterior das ideias que são as crenças. Crenças: todas as coisas com que absolutamente contamos ainda que não pensemos nela. Caminhando pela rua não tentamos passar através dos prédios, não precisamos de que em nossa mente surja a ideia expressa “paredes são impenetráveis”. A todo o momento, a vida pessoal, como a histórica, assenta em crenças semelhantes. Há, contudo, coisas e situações diante das quais os indivíduos (e as sociedades, civilizações, épocas históricas) se encontram sem crenças firmes: têm dúvida se são ou não, se são deste jeito ou daquele. Não há remédio: precisam fazer ideia. Ideias são, pois, as coisas que de maneira consciente construímos, elaboramos, precisamente porque não cremos nelas361. Daí a função ortopédica das ideias vulgares, científicas, religiosas, ideológicas: atuam onde as crenças se esgarçaram ou enfraqueceram. Não seriam, pois, as crenças, o plano anterior das ideias, a realidade plena e autêntica (Gasset) sobre o qual devem ser projetadas para fazerem sentido?362
No limite, o que não é mediatizado não existe ou existe muito pouco. Possivelmente, dentro em breve, o número do telefone, o número do fax e o e-mail de um indivíduo serão substituídos por uma única senha que o identificará como um nó de uma rede mundial de informações. “Quem não possuir esta senha simplesmente não existirá”, previu uma analista363. O reducionismo dessa conclusão lembra o daqueles que nos anos 1960 acabaram conhecidos como Integrados, crentes ingênuos e absolutos na revolução da indústria cultural, por oposição aos Apocalípticos, que enxergavam o fim do mundo na cultura de massa. Uns e outros se desapontaram. O reducionismo atual anda, contudo, de braço dado com um darwinismo social mal disfarçado. O que dizer dessa “mensagem” de fim de ano do segundo homem da Rede Globo de Televisão (1999)? Ela se chama, cavernosamente, Feliz futuro:
“Faleceu também o sonho comunista/socialista, ao desistir-se da tentativa de mudar a natureza humana e fazer-nos todos bons, generosos, solidários – tentativa essa que custou milhões de vidas humanas nos vários países que se deixaram seduzir pela utopia. Deixou-nos como herança um ressentimento fatalista contra qualquer ideologia e até a impressão de que a história acabou. A vida possível é essa que está aí: luta, competição, seleção natural, eliminação dos mais fracos”364.
O triunfo da telecultura teria engendrado uma nova metafísica tecnológica, uma procura da verdade além dela própria. Os principais meios de comunicação de massa já não sendo, hoje, a tevê, o rádio, os jornais, as revistas, o disco, a publicidade, mas os rizomas e as redes telemáticas, uma antiga questão filosófica parece retomar: a possibilidade da verdade sofística. A retórica daqueles meios visa ao prazer e ao sucesso (retórica: arte ou técnica de bem dizer, objetivando convencer os cidadãos, de argumentar, com eloquência no espaço público). Na Grécia, filosofia (busca da verdade) e retórica se opunham. Continuam a se opor hoje? A retórica implacável dos meios de comunicação (verdade é o que aparece como verdade, é o que convenci os consumidores de que é verdade) contém algo de bom? O telediscurso contém, de alguma maneira, possibilidades de estratégias antissistêmicas? Ou generalizando a pergunta: é possível uma nova Política na era da revolução digital, da globalização, do triunfo do mercado e da tecnociência? Anelise Pacheco, no livro citado (e desde que a tecnologia ofereceu um novo habitat para o indivíduo) sugere que essa possibilidade está indicada pela práxis da generosidade. A fórmula exige que se aceite a 1) a liquidação de todo fundamento transcendental e da lógica sofística da tecnociência e 2) a Internet como portadora de mutações culturais. A lei da abundância regeria a rede e a abundância favoreceria a generosidade365. Esta, ao se tornar ontológica, poderia fundar uma ética imanente nova, um imperativo moral a partir de um “eu” proteico (a rede telemática). É evidente nesta fórmula de uma nova ontologia do Social, a vontade de superar o niilismo que acompanha nossa civilização desde pelo menos a morte de Deus. A revolução digital traria como seu acólito uma verdade generosa, para além da oposição binária pessoa livre versus pessoa assujeitada.
Um aspecto da crise atual da esquerda é a falência da política. Não o fim da história, não a derrocada do socialismo real, que tornou mais capitalistas que os capitalistas os ex-socialistas (sic) do leste europeu. O que faliu não foi esta ou aquela forma de fazer política. O que acabou foi a eficácia da política em orientar e conduzir ações de justiça social e, consequentemente, a confiabilidade dos políticos. A política parlamentar, como qualquer outra, se tornou em si uma instância conservadora. Nos estados da federação brasileira (2002), por exemplo, todas as políticas vão sendo a pouco e pouco hegemonizadas, com a conivência da esquerda, por políticas de segurança enquanto reproduzimos a tendência mundial da troca do homem público pelo homem notório. Política de segurança, no entanto, não pode ser política porque ela cria a doença de que diz ser o remédio. Quase a totalidade dos nossos presidiários não precisava estar ali, a repressão ao crime (organizado ou avulso) é uma ideologia, só nesse exato sentido é uma política. No apogeu da sociedade de consumo, ela se divide: os com meios e os sem meios para consumir. “Cinco malandros como consertariam a Previdência”, me disse uma vez um hóspede de Bangu 3. A ética dos com e sem meios é a mesma.
Disse alguém que a psicanálise consiste em esgarçar a psique pelo relato, de tal forma que através dos buracos se possa ver o que está no fundo. A política, enquanto ações dos políticos, pode ser também esgarçada – deixando ver no fundo o plano anterior da cultura. (Tomemos, para raciocinar, dois políticos brasileiros atuais (2001) do campo progressista, Itamar Franco e Cristóvão Buarque. Cristóvão Buarque é um político excepcional no quadro brasileiro, não porque tenha uma visão sistemática do funcionamento da sociedade, outros a têm em graus variáveis, mas porque suas propostas políticas e administrativas emergem, quase sempre, do plano da cultura. Ao propor, por exemplo, um “novo conceito de riqueza”, Cristóvão se opõe frontalmente às políticas econômico-financeiras em curso, de direita e de esquerda – um novo conceito de riqueza social, pelo fato de ser um conceito, só pode emergir do plano anterior ao das sociedade e da política. Cristóvão trabalha no nível superior da política, um passo à frente e sai da política. Cristóvão distende, estica o plano da política até o ponto em que esta se esgarça e deixa ver as engrenagens que a movem. Para realizar essa distensão, ele se coloca do lugar da cultura revitalizando, dessa forma, a política. É outro o caso de Itamar Franco, cuja excepcionalidade consiste no seguinte: sua personalidade nega qualquer excepcionalidade. Ele é do tipo “político novo” da Revolução de Trinta, que substituiu o “carcomido”, da República Velha, avançado com relação à moralidade pública, à defesa do patrimônio nacional, material e cultural, sensibilidade para as reivindicações dos pobres etc. Ao contrário de Cristóvão, Itamar acredita na ação política desde que corrigida pela própria política. Para ele, as ideias e conceitos já estão dados. Um passo atrás e se torna um oligarca – seu mérito está em que, presumivelmente, nunca o dará. Já Cristóvão Buarque é um produto e um testemunho da morte da política em país periférico; Itamar Franco, a seu turno, um produto da prolongada crise brasileira.)
O leitor terá notado que, neste capítulo (O plano anterior), fiz uma “exibição” de como ideias podem ser tratadas de forma “erudita” e descompromissada com a luta política: como res acadêmica. Na Ideologia alemã, Marx advertiu para o “culto do conceito”: todas as relações sociais podem se expressar na linguagem dos conceitos, cabendo aos políticos e juristas apresentá-los como se fossem a realidade da vida, em lugar das condições materiais de existência366. Proponho no próximo capítulo (Como podem os intelectuais trabalhar para os pobres) tratar as ideias e conceitos à nossa disposição como res pública. A admissão de um plano anterior, uma anterioridade efetiva aos fatos sociais, cria novas possibilidades de intervenção para os intelectuais de classe (compassivos e/ou avançados), aqueles que busquei identificar no segundo capítulo deste livro. Uma dessas possibilidades, talvez a maior, é se tornar trabalhador da cultura, interagindo dialeticamente com os intelectuais dos pobres.
Há ainda, contudo, uma res acadêmica a tratar.
Épura do social
Como se prova que a cultura é um plano anterior, e não apenas um plano simultâneo aos outros? Considerar os fatos culturais como conteúdo e os sociais como forma não é cair no erro oposto ao da sociologia vulgar, uma vez que os fatos são vivenciados simultaneamente (ou não são vivenciados) – tal como os apresenta a ficção realista? Admitir a anterioridade da cultura não é cair num idealismo vulgar com todas as consequências analíticas e políticas decorrentes?
Em geometria descritiva, a projeção de um objeto tridimensional sobre os planos horizontal e vertical, se fazendo, em seguida, girar este último sobre seu próprio eixo, rebatendo-o sobre a terra (linha de terra), permite resolver problemas geométricos daquele objeto – esse plano único, assim criado, é a épura. As projeções que nos permitem visualizar objetos tridimensionais num único plano dependem, logicamente, de um observador (dito impróprio) situado no infinito, cujos raios visuais chegam perpendicularmente ao quadro de projeção. Chamo de plano anterior o que em geometria descritiva se chama plano vertical de projeção. Ainda não é a épura: ela só ocorre quando este plano vertical se coloca como continuação do plano horizontal, formando um plano único, se exibindo então todas as dimensões (e medidas) do objeto. A questão de saber qual o plano anterior (ou principal), se o horizontal, se o vertical, desaparece a uma simples rotação do vertical (rebatimento) sobre si mesmo: o objeto aparece representado por inteiro, sem necessidade de ordenarmos (ou hierarquizarmos) qualquer de suas partes.
Um fato notável, por exemplo, da atualidade é a imediata epurização do fato social pela mídia, apagando-o enquanto fato social, objeto da sociologia, e lhe dando um novo estatuto ontológico: o de épura, isto é, fato perfeitamente visível, total, unívoco, integral e simultâneo.
O objeto social se epurizou, numa palavra. A tecnocultura operou a torção, o rebatimento do plano vertical sobre o horizontal criando uma épura dos fatos sociais. Salvo pelo recurso à geometria descritiva, não há também, a rigor, originalidade nessa maneira de ver:
“Separar o continente e o conteúdo na vida social é uma operação que dissolve a Forma Social como tal e não nos dá senão uma Forma ‘abstrata’ ou ‘formal’. No fundo temos como Durkheim e Simmel duas operações redutoras que pertencem simplesmente a dois níveis diferentes: uma – a de Durkheim – no nível ‘físico’, outra – a de Simmel – no nível ‘lógico’. A forma social perde aí a sua realidade, pois é uma forma real que possui a sua materialidade, uma materialidade social. A dissociação entre continente e conteúdo nos extravia, porque não existe continente social separável do conteúdo salvo por uma abstração que destrói a unidade do continente e do conteúdo, sem a qual não existe realidade social. Essas duas ‘abstrações’ têm contudo uma verdade parcial que encontra o seu valor quando elas são situadas em seu nível e em seu conjunto relativamente às formas sociais reais”367.
Aquela analogia é que me levou a denominar este capítulo de O plano anterior e este livro de Épuras do social.
282 Bourdieu: “Mas a oposição entre a infraestrutura e a superestrutura ou entre o econômico e o simbólico é apenas a mais grosseira das oposições que, ao encerrar o pensamento dos poderes em alternativas fictícias, coerção ou submissão voluntária, manipulação centralista ou automistificação espontaneísta, impedem que se compreenda completamente a lógica infinitamente sutil de violência simbólica que se instaura na relação obscura por si mesma entre os corpos socializados e os jogos sociais em que eles estão engajados”. BOURDIEU, Pierre. O campo econômico. Campinas: Papirus, p. 119.
283 “Não sem Marx, não há futuro sem Marx, sem a memória e sem a herança de Marx: em todo caso, de um certo Marx, de seu gênio, de um ao menos de seus espíritos”. DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994, p. 30.
284 Um exemplo de onanismo intelectual foi, nos anos 1960, o debate sobre o modo de produção brasileiro (capitalista ou feudal), esticado muito além do necessário às estratégias políticas de esquerda. Nem possuíamos bastante informações sobre a sociedade brasileira para qualquer generalização, nem consultávamos várias disciplinas para passar da categoria (conjunto de conceitos no interior de um sistema conceitual) ao conceito. Experimentávamos um certo gozo em longas e ásperas discussões sobre uma categoria, um modelo, que no máximo seria “pedal” do conhecimento sobre a realidade brasileira. Quarenta anos depois, podemos concluir: como metafísica, os dois lados tinham razão.
285 A difusão do bumba meu boi pelo país (também chamado boi-bumbá, boizinho, boi de mamão etc.) se deveu a afro-brasileiros e caboclos trabalhadores da agroindústria e pecuária, desde mais ou menos 1700.
286 O baile de rua acabou por se descolar do auto, ficando este – salvo nas encenações folclóricas encomendadas – como a razão “sem significado” daquele. Para os brincantes de hoje, consumidores da indústria de entretenimento, a dramatização comunitária não passa de um prólogo dispensável. Para a maioria só contam o baile e o cortejo (como na famosa festa do Boi de Parintins, por exemplo).
287 Clóvis Moura, sobre a correspondência de colonialismo e incapacidade brasileira de se ver como negro: “[O branco] é mais uma categoria sociológica que antropológica e reflete mais a nossa posição de subordinação visual aos padrões das nações que nos exploram do que uma visão autoconsciente da nossa composição étnica”. O negro: de bom escravo a mau cidadão?. Rio de Janeiro: Conquista, 1977, p. 20.
288 “O termo desejo tem um sentido específico nas teorias contemporâneas da subjetividade e se refere fundamentalmente ao movimento inconsciente do psiquismo para um objeto não real, mas ‘imaginário’ ou ‘simbólico’. Desejo é aí algo fadado à radical insatisfação, uma vez que seu objeto (um traço ‘mnésico’, na doutrina freudiana) é da ordem da falta com relação ao real, não tem nenhum valor de realidade”. SODRÉ, Muniz. Reinventando @ cultura. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 101.
289 Como esta, do Padre Lopes Gomes, no famoso O carapuceiro de Pernambuco, 1840: “Um negro metido debaixo de uma baleta é o boi; um capadócio, enfiado pelo fundo de um panacu velho, chama-se o cavalo marinho; outro, alapardado, sob lençóis, denomina-se burrinho; um menino com duas saias, uma de cintura para baixo, outra de cintura para cima terminando para a cabeça com um urupema, é o que se chama caipora; há, além disto, outro capadócio que se chama o Pai Mateus. O sujeito do cavalo-marinho é o senhor do boi, da burrinha, da caipora e do Mateus”. O que irrita Lopes Gomes fica ainda mais claro adiante: “Há danças ao som de violas, pandeiros e de uma infernal berraria”, morte e ressurreição do boi “por virtude de um chiste, que pespega o Mateus” e ainda o aparecimento de “um sujeito vestido de clérigo, e algumas vezes de soquete e estola, para servir de bobo da função. [...] Esse padre ouve de confissão ao Mateus, o qual negro cativo faz cair de pernas ao ar o seu confessor, e acaba, como é natural, dando muita chicotada no sacerdote!”
290 “Quando se trata do sadomasoquismo e da sexualidade, é também impossível assumir o direito ao corpo próprio. A apreensão do desejo é pela parte do corpo do outro, isto lhe é inerente, e não vem sem a agressividade necessária à revivescência desta parte cortada. Do ponto de vista do fantasma sexual, o direito à propriedade do corpo vem como reivindicação histérica paralela a uma frigidez sintomática. Ou pode se manifestar com violência na tentativa frustrada de apropriação, implicando o dano ao corpo real. A ideia da propriedade do corpo leva a uma patologia, do ponto de vista psicanalítico”. “Psicanálise e ética do bios”. In: BECKER, Paulo. Bioética e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1999, p. 107.
291 Um bom exemplo de “longa duração” é o regime biológico da Europa (relação numérica entre vivos e mortos) que levou quatrocentos anos (de 1400 a 1800) para se alterar em favor dos vivos. Quatrocentos anos! Que historiador convencional contabilizaria esse fato? E, no entanto, sem ele nada teria mudado. Ver BRAUDEL, Fernand. Civilização material e capitalismo. Lisboa: Cosmos, 1970.
292 O nosso desejo seria Begierde ou Lust. Ver LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, Jean-Bertrand. Vocabulário da psicanálise. Rio de Janeiro: Martins Fontes, p. 158-9.
293 Idem, ibidem, p. 160.
294 ROSA, Guimarães. Noites do sertão. 5. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.
295 “Ela tãozinha de bonita, simples, delicada, branquinha como uma princesa – e aceitando o preto Iládio, membrudo, franchão, possanço... Ah, esse cautério!” Idem, ibidem, p. 39.
296 Derrida/Vattimo: “O mundo que emerge a partir do fim da ‘guerra fria’ e dos blocos Oriente/Ocidente caracteriza-se por um evidente policentrismo, onde as diferenças ideológicas retrocederam em benefício dos substratos culturais”. A religião. Lisboa: Relógio d’Água, 1997, p. 120. Pierre Bourdieu, com seu conhecido rigor sociológico, foi outro a desvelar o que chamo plano anterior (ou épura do social). Chama de campo econômico a dimensão simbólica da dominação. Para ele cultura nada mais é que o mundo econômico às avessas. A ideia de campo, trazida da física, corresponde aos meus plano anterior (da geometria) e épura (da geometria descritiva).
297 Essa explicação correta mas parcial é de Merquior. MERQUIOR, J.G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969, p. 13.
298 BAUDRILLARD, Jean. À sombra das maiorias silenciosas. São Paulo: Brasiliense, 1985.
299 Idem, ibidem, p. 9.
300 “Nenhuma força pode convertê-las [as massas] à seriedade dos conteúdos, nem mesmo à seriedade do código. O que se lhes dá são mensagens, elas querem apenas signos...” Idem, ibidem, p. 15.
301 “Tal é a massa, um conjunto no vácuo de partículas individuais, de resíduos do social e de impulsos indiretos: opaca nebulosa cuja densidade crescente absorve todas as energias e os feixes luminosos circundantes, para finalmente desabar sob o próprio peso. Buraco negro em que o social se precipita”. Idem, ibidem, p. 10. Também para os desclassificados (fora da sociedade de classes, mas não fora da sociedade) a indústria cultural produz uma “estética sem estética, uma política sem política”. Em suma, uma forma sem sentido.
302 Bourdieu, citado por HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 314.
303 Eric Hobsbawm, in Folha de S.Paulo, 8 jun. 1997. George Bush, Joseph Blair e Ariel Sharon lançaram a pá de cal à ONU em fevereiro de 2003.
304 Os assaltantes de banco e empresas, enquadráveis, como os presos políticos, na Lei de Segurança Nacional, estavam um degrau acima.
305 As obras mais influentes de Marcuse foram: Eros e civilização; O marxismo soviético; Razão e revolução; O homem unidimensional; O fim da utopia; No caminho da libertação e A ontologia hegeliana e a teoria da historicidade.
306 Isto é, que parta do conflito entre os impulsos naturais do homem e as barreiras antepostas pela sociedade.
307 MARCUSE, Herbert. Eros e civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1968, p. 25.
308 CHÂTELET, Gilles, Folha de S.Paulo, 9 ago. 1998.
309 “No impulso dialético que nega continuamente o dado e o existente, no passo rebelde e crítico da destruição criadora, Marcuse descobre a medula da posição de Hegel. [...] Na mola da negatividade dialética, Marcuse revela como as aspirações libertárias se fundem no cerne da conceituação especulativa de Hegel. [...] A essência criadora do homem se assimila ao pensamento do negativo.” MERQUIOR, José Guilherme. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969, p. 21.
310 Hobsbawm, aliás, chama a atenção para um fato pequeno e eloquente: em meados dos anos 60 o movimento de Baden Powell, os boy scouts, abandonaram o boy do nome e trocaram os velhos sonbreros pela boina.
311 Humberto Eco lembrou o “fenômeno Rita Pavone”, no final dos anos 1950. Quando surgiu, ela tinha por volta de 18 anos, mas fazia uma personagem (a Pavone) entre 13 e 15. Não era apelo sexual exatamente, pois este conserva ainda algo de “natural”. Era um triunfo espetacular da adolescência, a sua estreia (ou a estreia de um espetáculo definitivo), para o público interno e para exportação. A adolescência ganhava, pela primeira vez, uma qualidade histórica geral: a “medianidade”. Rita se despediu dos palcos (provisoriamente) com um show de nome “Não é fácil ter 18 anos”. De caso clínico (conclui Eco) Rita Pavone se transformou em Norma Ideal, se estabilizando como Mito (Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 311-312). No Brasil, o correspondente foi a Jovem Guarda, de Roberto Carlos e Wanderleia, adolescência convertida em “classe biológica”, sem compromisso de qualquer espécie com o mundo.
312 HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 318.
313 “Muito mais do que uma questão de fórmula e mecanismo neurofarmacológico, na droga se põe em jogo a própria humanidade do homem. [...] O grande desafio de nossa época é o desafio de uma conversão do homem para sua jovialidade. Impõe-se uma conversão, que reponha o homem no lugar de sua humanidade, a sua essência de futuro. Ora, vários são os caminhos em que, neste contexto sufocante, a juventude busca esta conversão. É a terceira pergunta: Como a juventude procura realizar a jovialidade no mundo de hoje? [...] Não encontrando espaço e expansão para suas possibilidades de futuro, a juventude contesta e contradefine o sistema de controle em todos os níveis da linguagem: no verbal e imaginativo, no gestual e perceptivo, no situacional e coletivo. Pois é aqui, na dinâmica desta contradefinição, que se insere o uso de drogas e entorpecentes. O sentido hermenêutico do tóxico é, portanto, essencialmente ambíguo. Articula-se em duas dimensões. Mais profundamente exprime a dinamização de um projeto de jovialidade e de futuro. Mais na superfície, nos caminhos de sua concretização situacional, desvirtua-se num compromisso com a própria essência da sociedade afluente e da subjetividade moderna”. LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 41-43.
314 A juvenilização da sociedade assentou também nas transformações do sistema escolar, concluiu Bourdieu: “Em primeiro lugar, acho que a inflação e a correspondente desvalorização dos títulos escolares tiveram efeitos muito gerais: poderíamos ligar a isso certos aspectos do movimento dos jovens, da ecologia, do movimento feminista, certas mudanças profundas na política, o aparecimento do esquerdismo etc. [...] Assim é que, para dar conta de certos fenômenos atuais, por exemplo, o aparecimento de esportes novos como o surf, o windsurf, a asa-delta, eu devia analisar essa transformação profunda de sociedade [em La distinction] que está ligada às transformações do sistema escolar”. BOURDIEU, Pierre. O campo econômico. Campinas: Papirus, 2000, p. 39.
315 Marcuse, entretanto, foi um intelectual essencialmente político. Na juventude integrou um conselho de soldados em Berlim e muitos anos depois ainda sofria com o assassinato de Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo. No começo dos anos 60, já na América, fez campanha contra a guerra do Vietnã e, finalmente, se fez guru dos movimentos estudantis na Europa e na América. Muito antes do Clube de Roma, ele denunciou a “produtividade progressista, para a qual a natureza está ali, grátis, pronta para ser pilhada” – isto é, a união fatal, em nossa civilização, entre produtividade e destrutividade. Procurou distinguir socialismo de capitalismo “não tanto pelo grau de desenvolvimento das forças produtivas, mas sim em seu redirecionamento, pré-condição para a abolição do trabalho, a autonomia das necessidades e o apaziguamento da luta pela existência”.
316 Ver, entre outros, O horror econômico, de Viviane Forrestier, São Paulo: Unesp, 1997.
317 Jürgen Habermas, “O centenário de Marcuse e os ritmos diversos da filosofia e da política”. Folha de S.Paulo, 9 ago. 1998.
318 DEBORD, Guy. La société du spetacle. Commentaires sur la société du spetacle. Paris: Buchet-Cartel, 1967. Há uma tradução da Contraponto, Rio de Janeiro, 1997.
319 DEBORD, Guy. Oeuvres cinématographiques complètes. Paris: Gallimard, 1994, p. 269-270.
320 Quem leu o livro de Debord percebe que “editei” as suas 34 primeiras teses, visando a responder ao seguinte: o que é sociedade do espetáculo?
321 “O colapso do comunismo foi um golpe muito maior para a estabilidade da civilização capitalista do que os acontecimentos de 1968. Antes, havia quem pudesse desculpar os fracassos de alguns movimentos anti-sistêmicos e sugerir que eles eram inerentemente fracos por terem abraçado de maneira insuficiente o modelo soviético”. WALLERSTEIN, Immanuel. Capitalismo histórico e civilização capitalista. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001, p. 139. Uma testemunha contou o espetáculo da morte de um ditador comunista (1990): “Quando foi levado para fora, Ceausescu começou a cantar pedaços da Internacional. Eu estava a 100 metros de distância, observando a cena com cerca de 100 homens. Ele gritou algo como ‘Morte aos traidores!’ Então os pára-quedistas o encostaram (ele e a mulher). Acho que ele enfrentou a morte bravamente”. In. Jornal do Brasil, 23 dez. 1999.
322 Eric Hobsbawm. in: Folha de S.Paulo, 8 jun. 1997.
323 Situacionismo, nos termos de Debord, era a atividade prática de construir situações, e situacionista aquele que se engaja na construção de situações. Em 1957, ao lançar a Internacional Situacionista, escreveu: “A construção de situações começa além do desmoronamento moderno da noção de espetáculo. É fácil ver a que ponto está ligado à alienação do velho mundo o princípio mesmo do espetáculo: a não intervenção”. Apud JAPPE, Anselm. Guy Debord. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 19.
324 1871: Comuna de Paris; 1917: Revolução Soviética.
325 Explicou o gesto num cartoon: “Doença denominada polineurite alcoólica, detectada no outono de 1990. No começo, quase imperceptível; depois, progressiva. Tornou-se verdadeiramente dolorosa só a partir do fim de novembro de 1994. Como em toda doença incurável, ganha-se muito em não procurar nem aceitar tratar-se. É o contrário da doença que pode ser contraída através de uma lamentável imprudência. Ao contrário: para contraí-la é necessária a fiel obstinação de toda uma vida”.
326 Essa blague é de Paulo Coelho.
327 Apud LUKÁCS, G. Goethe et son époque. Paris, 1949, p. 267. É difícil não pensar, aqui, numa obsessão da telenovela brasileira: a glamourização, pela posse do dinheiro, de personagens nefastos. Nefastos mas ricos.
328 A expressão contrafeitiçaria é minha. Emprego-a no mesmo sentido em que Pierre Bourdieu fala de contrafogo: Contrafogos, táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Editor, 1998.
329 Nesse sentido, tem razão Robert Kurz (JAPPE, Amselm, op. cit.): “Mas Guy Debord não merece ser confundido com Baudrillard e ser reduzido ao formato de um pôster pop cultural”.
330 SODRÉ, Muniz. O social irradiado. São Paulo: Cortez, 1991, p. 44. E ainda: “Na crise da política – esvaziada pela perda do poder da classe política para o estamento organizacional e pelo enfraquecimento ético das formas tradicionais de representação – os meios de administração ou gestão hipertrofiam-se em detrimento dos fins coletivos” (p. 56).
331 SODRÉ, Muniz. Reinventando @ cultura. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 23.
332 “A influência que o campo jornalístico e, através dele, a lógica do mercado exerceu sobre os campos de produção cultural, mesmo os mais autônomos, não tem nada de uma novidade radical: poder-se-ia compor sem dificuldade, com textos extraídos dos escritores do século passado, um quadro inteiramente realista dos efeitos mais gerais que ela produz no interior desses universos protegidos”. BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 101-102.
333 ECO, Humberto. Cinco escritos morais. Rio de Janeiro: Record, 1998.
334 O assassinato no Rio, em 2002, do “repórter especial” da Rede Globo, Tim Lopes, por uma quadrilha de narcotraficantes, mobilizou a mídia do país. Tim foi apresentado como mártir do “jornalismo investigativo”, eufemismo que encobriu a responsabilidade da emissora na sua morte. O investigador de polícia que no seu relatório sugeriu, com sensatez, distribuir responsabilidades, foi exonerado pela governadora. É o poder da mídia.
335 Não é a opinião de Pierre Bourdieu: “Um dos erros teóricos e práticos de muitas teorias – a começar pela teoria marxista – foi esquecer de considerar a eficácia da teoria”. Contrafogos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, p. 73.
336 GUILHAUME, M. “Digréssions sur les masses et les médias”. In: Masses et Post-Modernité. Klincksieck, 1989.
337 Muniz ressalva, no entanto, que “irradiação” é um termo problemático. Na sociedade midiática, a rigor, não há um centro irradiador, mas apenas “lugares” de maior absorção e transformação do fluxo histórico-dinâmico da vida social em êxtases fantasmagóricos. A “irradiação” ele parece preferir “telerrealidade”. Quem liga a televisão brasileira sabe o que é isso.
338 Bosi lembra ainda a relação intrínseca entre cultura e pedagogia: “Como ideal de status, já descolado do antigo culto religioso, [o termo cultura] aparece tardio em Roma, espelhando o programa, igualmente tardio, da paideia que só se autodefine a partir do século 4 a.C. conforme esclarecem os estudos capitais de Jaeger e de Marrou. Paideia: ideal pedagógico voltado para a formação do adulto na pólis e no mundo”. BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 16.
339 Recentemente (2001) um desembargador e diretor-geral da Escola de Magistratura do Estado do Rio tentou melhorar o perfil de seus juízes. “A cultura é fundamental”, declarou. Criou uma galeria de arte, uma biblioteca e aulas de ópera.
340 “Veio, finalmente, um tempo em que tudo o que os homens tinham encarado como inalienável, tornou-se objeto de troca, de tráfico e podia ser alienado. Este foi o tempo em que as próprias coisas que, até então, eram transmitidas, mas jamais trocadas; dadas, mas jamais vendidas; adquiridas, mas jamais compradas – virtude, amor, opinião, ciência, consciência etc. – em que tudo enfim passou ao comércio. Este foi o tempo da corrução geral, da venalidade universal ou, para falar em termos da economia política, o tempo em que tudo, moral ou físico, tornando-se valor venal, é levado ao mercado, para ser apreciado no justo valor”. MARX, Karl. Oeuvres I– Misère. Paris,1963, p. 11-12.
341 É esse também o modo de ver de Wallerstein: “A crença no universalismo é a pedra fundamental do arco ideológico do capitalismo histórico”. WALLERSTEIN, Immanuel. Capitalismo histórico, civilização capitalista. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001, p. 70 e ss. O universalismo é uma epistemologia, conjunto de crenças sobre o que pode ser conhecido e como pode ser conhecido. É uma fé também: exige respeito e reverência a uma verdade indefinida, porém real. E, aliás, não se opõe ao racismo e ao sexismo como se pensa, mas se combina com eles em favor da eficácia do sistema-mundo que é o capitalismo.
342 Confiança, como mostrou Antony Giddens, entre outros, é uma crença (e uma palavra) essencialmente moderna. Ele substituiu a antiga crença no invisível. Todos os mecanismos de acumulação modernos, sejam tecnológicos (o telefone, por exemplo), ou econômicos (a bolsa de valores, por exemplo) exigem, para operar, confiança cega, a priori, em seu funcionamento. Confiança é, pois, uma interioridade/anterioridade da civilização (ou sistema) capitalista.
343 “O cinema brasileiro não pode ser uma coisa só. Deve experimentar linguagem, ser audacioso, mas também precisa ter coragem para competir internacionalmente e conquistar mercado interno, pois esta é a única forma de se ter uma indústria saudável”. Luis Carlos Barreto, O Globo, 23 ago. 2002, Segundo Caderno. “Não há linhas de financiamento para filmes que propõem riscos e aí não há condição de ter filme bom. O lado bom é o desenvolvimento técnico que esse cinema comercial proporcional, mas sem cabeça e busca de identidade não adianta.” Paulo Caldas, idem, idem.
344 BOURDIEU, Pierre. O campo econômico. A dimensão simbólica da dominação. Campinas: Papirus, 2000.
345 Simbólico e cultural não são sinônimos perfeitos. Simbólico é a diferença (distinção) que se representa por alguma forma; cultural é a diferença que se estabelece na percepção do e na relação com o mundo. O cultural é, pois, anterior ao simbólico. Este é tão somente a distinção encarnada (como a gravata em nossa civilização, por exemplo) em algum objeto reconhecível por todos os diferentes.
346 “A corte, tal como Elias [Nobert Elias] a descreve, é um belíssimo exemplo do que chamo um campo em que, como num campo gravitacional, os diferentes agentes são arrastados por forças insuperáveis, inevitáveis, num movimento perpétuo, necessário para manter as hierarquias, as distâncias, os afastamentos”. BOURDIEU, Pierre. Op. cit., p. 48.
347 “O princípio do poder das palavras reside na cumplicidade que se estabelece, por meio delas, entre um corpo social encarnado num corpo biológico, o do porta-voz autorizado, e corpos biológicos socialmente moldados para reconhecer suas ordens, mas também suas exortações, suas insinuações ou suas injunções, e que são os ‘sujeitos falados’, os fiéis, os crentes”. BOURDIEU, Pierre, op. cit., p. 61.
348 Em dissertação interessante (A língua que a gente fala, Faculdade de Letras, UFRJ, 2003), Germano Correia usa a expressão como substantivo acompanhado de artigo e não como locução pronominal.
349 Arcaico entendido não como estágio inferior do moderno, mas como sua negação dialética.
350 Foi o caso da Reforma Bresser Pereira que o Executivo encaminhava ao Congresso em 1996.
351 A jovialidade, está claro, não é a única anterioridade da droga. Vale como exemplo. Vide LEÃO, Emanuel Carneiro. Aprendendo a pensar. Petrópolis: Vozes, 1993.
352 Inclusive a tortura de presos políticos durante as nossas ditaduras.
353 “As operações de tradução são mais delicadas que os transplantes cardíacos. O que devemos fazer, então? Devemos cavar profundamente até que apareça um solo homogêneo, ou uma problemática similar: devemos trazer a lume o ‘equivalente homeomorfo’ – no caso presente, o equivalente homeomorfo do conceito dos Direitos do Homem. ‘A homeomorfia não é idêntica à analogia; ela representa uma equivalência funcional diferente da descoberta através de uma transformação topológica’. Ela é uma espécie de analogia funcional existencial. [...] As duas palavras Brama e Deus, por exemplo, não são nem análogas, nem simplesmente equívocas (nem unívocas, naturalmente). Elas também não são exatamente equivalentes. Elas são homeomorfas.
Elas desempenham um certo tipo de função manifestando uma correspondência nas duas diferentes tradições, no seio das quais estas palavras vivem”. Panikkar, Raymundo. É a noção dos direitos do homem um conceito ocidental”. in: Diógenes. Brasília: EUBr, 1983, p.7 e 26 (nota 4).
354 Cultura no âmbito mais geral é tudo o que fazemos para escapar do dilema tudo ou nada. Não podemos compreender e aceitar o tudo (um privilégio dos deuses); nem o fragmento, o desconexo, o singular, o irrepetível (o nada) em que a natureza, na realidade, está. Conjuramos, então, os dois sentimentos insuportáveis por meio da arte, da religião e da ciência.
355 IANNI, Octavio. Teorias da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.
356 Diário de um mago é o título do primeiro best-seller de Paulo Coelho.
357 Eduardo Rosenzvaig, historiador e antropólogo argentino, autor entre outros de Etnias y árboles, Historia del universo ecológico Gran Chaco. Havana: Casa de las Americas, 1996. Kwame Anthony Appiah é autor do instigante Na casa de meu pai. A África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
358 Max Weber: “Chamaremos grupos ‘étnicos’ aqueles grupos humanos que, em virtude de semelhanças no habitus externo ou nos costumes, ou em ambos, ou em virtude de lembranças de colonização e migração, nutrem uma crença subjetiva na procedência comum, de tal modo que esta se torna importante para a propagação de relações comunitárias, sendo indiferente se existe ou não uma comunidade de sangue efetiva”. “Relações comunitárias étnicas”. in: Economia e sociedade, fundamentos da sociologia compreensiva, v. 1, 3. ed., Brasília, UNB, 1944, p. 270.
359 “O aparecimento da bossa-nova revolucionaria o ambiente musical no país, trazendo polêmicas e controvérsias que mobilizavam os meios de divulgação mais variados. Sua concepção musical bastante diferenciada do samba, em relação a sua posição estética, sua estruturação melódica e harmônica e suas características de interpretação, consolidaram a aceitação do gênero e tornaram completamente antagônicas e ultrapassadas as características e valores estético-musicais que haviam elegido o samba como o mais importante gênero musical do país. Quando João Gilberto rompia com tudo que havia dado ao samba sua estrutura – inclusive o ritmo em torno do qual ele se organizava – alargava ainda mais a distância entre a música popular e o público do samba. Os inovadores não queriam mostrar nada que parecesse com samba em suas composições”. SANTOS, Regina Maria Meirelles. Samba: comunicação, cultura e identidade nacional. Rio de Janeiro: UFRJ, CFCH, ECO, tese de doutoramento, 2002, p. 16.
360 MARCUSE, Herbert. Eros e civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1968, p. 27.
361 “É melhor método partir da situação presente, do fato inquestionável, e este consiste em que somos constituídos de um lado por crenças – venham de onde vierem – e de ideias, que aquelas formam nosso mundo real, e estas são não sabemos bem o quê”. GASSET, Ortega. Ideas y creencias. 8. ed. Madri: Revista de Occidente, 1959, p. 28.
362 “O que costumamos chamar realidade ou ‘mundo exterior’ não é a realidade primária e desnuda de toda interpretação humana, mas sim o que cremos, com firme e consolidada crença ser a realidade. Tudo o que nesse mundo real encontramos de duvidoso ou insuficiente nos obriga a fazer-nos ideia sobre ele. Essas ideias favorecem os ‘mundos interiores’, em que vivemos, sabendo desde logo que são invenção nossa, assim como vivemos o mapa de um território quando viajamos através dele”. Ibidem, p. 40.
363 PACHECO, Anelise. Das estrelas móveis do pensamento. Ética e verdade em um mundo digital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
364 ANDRADE, Evandro Carlos de. “Feliz futuro”. in: O Globo, 1 jan. 2000. Evandro, reputado mesmo entre intelectuais de esquerda, foi diretor da Central Globo de Jornalismo até falecer em julho de 2001.
365 “Acentuada, dinâmica, a Internet desenvolve novos programas de compartilhamento, dissimetriza dar e receber, abre caminhos insuspeitados para a porosidade e o contato, sem respeito a barreiras de espaço e tempo. É por aí que uma nova socialidade pode emergir, de trocas não mercantis: de disponibilidades, dispositivos e disposições – identidades, ações e desejos no momento da sua máxima contração”. PACHECO, Anelise, op. cit., prefácio, p. 11.
366 “As condições de produção dos indivíduos que até agora vinham dominando, não têm mais remédio que manifestar-se também no plano das relações políticas e jurídicas. E, dentro do regime da divisão do trabalho, estas relações ganham, necessariamente, existência substantiva face aos indivíduos. Todas as relações podem expressar-se na linguagem dos conceitos. E que estes conceitos e generalidades se façam valer como potências misteriosas, é consequência necessária da substantivação das relações reais e efetivas de que são a expressão. Além desta vigência na consciência usual, ditas generalidades adquirem vigência e desenvolvimento especiais, por obra dos políticos e dos juristas, a quem a divisão do trabalho encomenda a missão de praticar o culto desses conceitos, vendo neles, e não nas condições de produção, o verdadeiro fundamento de todas as relações reais da propriedade”. MARX E ENGELS. La ideología alemaña, Montevidéu, 1959, p. 408.
367 LEDRUT, Raymond. La forme et le sens dans la société. Paris: Librairie des Méridiens, 1984, p. 38. Ver também B. Latour (Nous n’avons jamais été modernes, essai d’anthropologie symétrique. Paris: La Découverte, 1991) e, sobretudo, Maurice Godelier (“Système, structure et contradiction dans Le Capital”, Tempes Modernes, n. 246, 1966, novembro) e, no Brasil, Milton Santos (A natureza do espaço. São Paulo: Hucitec, 1996).