A FICHA CRIMINAL DE WALTDavid R. Koepsell e Vanessa Gonzalez |
O número de vítimas de Walter White cresce em progressão impressionante ao longo das primeiras quatro temporadas, mas mais significante do que o número de mortos são os métodos de assassinato e a atitude cambiante de Walt perante cada novo ato.
Podemos facilmente situar tal número nas centenas, se incluirmos as mortes que ele causa indiretamente. E quanto aos inocentes passageiros do Wayfarer 515 (167 mortos), no episódio final da segunda temporada (“ABQ”)? Walt foi a causa dessas mortes? Suas atitudes são, certamente, parte de uma rede causal de eventos que leva à queda do avião, e moralmente podemos considerar Walt culpado, de certo modo, embora ele não possa ser acusado legalmente. Outras mortes indiretas resultam de ações de Walt, mas vamos nos focar nos casos mais simples.
Walt parece diretamente responsável por pelo menos nove mortes até o fim da quarta temporada: Emilio, Krazy-8, Jane, os dois caras que ele mata com o carro para salvar Jesse, Gale, Gus, Tyrus e Hector “Tio” Salamanca.
A natureza e a responsabilidade referentes ao envolvimento ou culpa de Walt nessas mortes são questões já muito complicadas para que nos preocupemos com a possível participação do personagem na perda de centenas de vidas, então vamos nos concentrar nessas mortes e avaliar o papel de Walt em cada uma, sua culpabilidade moral e legal, e as teorias de responsabilidade moral aplicadas ao seu delito.
A primeira pessoa que Walt mata genuinamente é Emilio. No piloto da série, Walt foge às regras do pior jeito possível. Sua tentativa de juntar dinheiro para a família após receber o diagnóstico de um câncer provavelmente fatal dá muito errado. Enroscado até o pescoço, ele é enganado por marginais de rua drogados que pretendem mantê-lo em cativeiro junto de Jesse para forçar uma demonstração (e, presumivelmente, fazer uma quantidade de metanfetamina que possam sair vendendo) das habilidades de produção de metanfetamina de Walt. Este, em pânico, elabora um esquema para libertar a si e a Jesse dos bandidos (Emilio e Krazy-8): basicamente, uma arma química. Funciona tanto que Emilio morre ao inalar fosfina, mas Krazy-8 sobrevive ao ataque. Emilio foi a primeira vítima de Walt. A questão é: vítima de quê?
Walt é diretamente responsável pela morte de Emilio. É o agente legal e concreto do ocorrido. Mas esse crime pode ser moral ou legalmente justificado de modo que não seja considerado assassinato? Em outras palavras, pelo que Walt é responsável moralmente?
Já nos tempos de Aristóteles (384-322 a.C.), os filósofos consideravam sob que condições um agente deveria ser consagrado ou punido por alguma atitude. Entre os critérios que ele considerava relevantes, considerados importantes até hoje por muita gente, estão:
» A capacidade da pessoa para escolher uma ação. Num assalto a banco sofisticado, por exemplo, jamais procuraríamos pelo culpado numa escola primária, sendo as crianças incapazes de realizar o serviço!
» As motivações da pessoa para a ação. Não consideraríamos Johnny moralmente responsável por chutar a bola no rosto de Sally, no parquinho, caso fosse acidental. Por outro lado, se o motivo ou intenção de Johnny foi, de fato, machucar Sally, então veremos o fato como imoral, de algum modo, e puniremos o garoto de acordo.
» As consequências da ação. A justiça precisa ser feita e alguém tem de pagar pelos danos resultantes de um acidente de carro (um acidente de verdade, não causado por um motorista bêbado, mas por um erro genuíno), ainda que saibamos que se trata de acidente. Além disso, se alguém comete um crime com múltiplas consequências negativas – como a morte de muitas pessoas na explosão causada por uma bomba que você lançou, ou muito dinheiro ser roubado de muita gente num esquema envolvendo seu cartão de crédito –, punimos a pessoa mais severamente.
» A justificativa para uma ação. Nós nos referimos aqui à teoria ou regra moral que a pessoa usa para justificar uma ação, completa, com argumentação racional e explicação. Por exemplo, você pode usar a regra moral “não se deve mentir nunca” como justificativa para quando diz a verdade, ou um interrogador pode usar “um fim bom e grandioso justifica meios ruins para ser obtido” quando tortura alguém que sabe onde está localizada uma bomba que vai explodir a qualquer momento, matando centenas de pessoas.
Mais recentemente, debates sobre a verdade do determinismo (segundo à qual o universo segue seu curso independentemente de nossas supostas escolhas) trazem questões complicadas de responsabilidade moral, mas um tema dominante que emergiu foi o da compatibilidade, que sustenta que atribuir culpa é ainda compatível com um universo pré-determinado. Ainda que seja verdade que alguém foi determinado por sua natureza (genes ou cérebro) e por sua criação (o pai que espanca regularmente e denigre constantemente) a agir imoralmente e ir contra a lei, ainda pode-se considerar a pessoa moralmente responsável, colocá-la na prisão e dar-lhe terapia e drogas para mudar suas motivações, de modo que ela seja determinada a agir moralmente e segundo a lei!
Um fator final a considerar, na responsabilidade moral e na legal, é a que grau o ator é a causa próxima de um erro ou dano. Walt é um cientista, provavelmente determinista, mas ele se sente obviamente culpado por causa de suas escolhas, expressando horror ao causar a morte de Emilio, e depois horror e remorso, como veremos.
A culpabilidade moral de Walt pela morte de Emilio é discutivelmente reduzida porque ele estava tentando salvar, e de fato salvou, Jesse e a si mesmo da morte quase certa. Emilio e Krazy-8 eram assassinos frios que não lhes mostrariam piedade alguma. Ademais, o estresse e a tensão da situação na qual se encontravam representam mais fatores que aliviam Walt da culpabilidade moral pelo assassinato. Matar em legítima defesa é uma justificativa ou desculpa legal e moral famosa e amplamente reconhecida. Mas essa justificativa claramente desaparece com a morte de Krazy-8.
Walt pretendia matar Krazy-8 e Emilio com a fosfina no trailer. Apenas eliminando a ambos, naquele momento, ele e Jesse poderiam escapar e garantir um futuro seguro. Infelizmente, Walt não conseguiu matar os dois imediatamente, e a tarefa de dar cabo de Krazy-8 ficou para depois. A iminência da legítima defesa não existia mais, visto que Krazy-8 estava amarrado no porão de Jesse, recuperando-se lentamente do envenenamento por fosfina. Preso, imobilizado, recobrando a consciência e as forças lentamente, o destino de Krazy-8 era, claramente, morrer, e o assassino foi escolhido em um jogo de cara ou coroa: Walt perdeu. Nesse ponto, a natureza de qualquer desculpa é consideravelmente diferente do que no caso de Emilio.
Walt entra em agonia por ter que matar Krazy-8, tanto que resolve fazer uma lista de prós e contras para ajudar a tomar ou justificar sua decisão. O motivo final, avassalador, que o convence é um único pró: Krazy-8 vai matar Walt e sua família, caso este não o mate. Esse fator desequilibra a balança da imoralidade do assassinato.
Enfim, Walt permanece incapaz de matar Krazy-8, fica conversando com ele, tenta conhecer um pouco sobre ele e chega a simpatizar com o bandido. O processo aparentemente torna mais difícil realizar o assassinato, e ele chega perto de libertar Krazy-8. Walt finalmente compreende que precisa ir até o fim quando vê que desapareceu uma lasca em forma de faca que despontara de um prato que Walter quebrara acidentalmente enquanto dava um sanduíche ao marginal. Krazy-8 pretende matar Walt assim que for libertado. Walt passou perto de ser surpreendido, e enforca Krazy-8 brutalmente numa confrontação final, contendo o sangramento de uma facada. As ações de Walt ganharam teor para validar a legítima defesa, mas a possibilidade de ser culpado pela morte de Krazy-8 parece maior do que no caso de Emilio. O que sustenta essa distinção?
Ter mantido Krazy-8 no cativeiro parece alterar a responsabilidade moral de Walt no assassinato. Enquanto ele tentou matar os dois bandidos numa situação óbvia de legítima defesa, fica mais difícil alegar legítima defesa contra um prisioneiro. A escolha de Walt é claramente diferente na morte de Krazy-8. Ele teve tempo de deliberar, e tinha opções. Poderia contatar as autoridades e confessar. Seus crimes, nesse ponto, seriam significativamente diminutos em comparação ao assassinato de Krazy-8. Matar Emilio poderia ser facilmente justificável ou desculpável legalmente.
Ao optar por matar uma vítima presa e imobilizada, Walt incrementou seu grau de culpa moral. Ele é a causa direta da morte de Krazy-8: apesar de ter opções, decide matar mesmo sem desculpa ou justificativa imediatas. Não sendo um assassinato a sangue frio, dada a intenção de Krazy-8 e sua tentativa de matar Walt, o assassinato de Krazy-8 é certamente mais passível de atribuição de culpa do que o de Emilio. Walt tinha alternativas menos moralmente problemáticas disponíveis e escolheu não buscá-las. Escolheu o caminho menos escolhido, e foi mais fundo nas profundezas de sua total degradação moral, belamente ilustrada pelas circunstâncias bastante conturbadas referentes à morte de Jane na segunda temporada.
A namorada de Jesse, Jane, era uma ex-drogada recuperada, construía uma nova vida honesta como gerente do complexo residencial do pai, e corria atrás de tornar-se tatuadora profissional. Infelizmente, ela conheceu Jesse, traficante e viciado. O resultado é previsível: ela volta ao vício nas drogas e apresenta a heroína a Jesse. Viciada em heroína e apaixonada por Jesse, Jane o convence de virar-se contra seu parceiro e chantageá-lo para obter dele sua porção nos lucros ilegais. Walt não tem dúvida de que Jane e Jesse vão injetar o dinheiro para dentro das veias, e muito provavelmente morrer de overdose, desperdiçando suas vidas. Ainda assim, ele sofre, percebendo que precisa deixar Jesse fazer suas próprias escolhas, e tenta entregar o dinheiro dele. No processo, acidentalmente, ele empurra Jesse, que está dormindo ao lado de Jane, dopados de heroína. Com isso, ela muda de posição e fica de barriga para cima; a moça vomita, engasga e morre perante Walt, enquanto Jesse permanece profundamente drogado, dormindo (“Phoenix”). Então, em que grau Walt é responsável pela morte de Jane?
Essa morte representa um conjunto complicado de problemas para a culpabilidade moral de Walt. Ela morreu, tecnicamente, devido à sua própria escolha de usar heroína e às consequências fatais que acompanham o uso. Ela sabia muito bem que, quando sob influência da substância, o usuário pode vomitar, engasgar e morrer. É por isso que ela avisa Jesse para que deite de lado, e faz a mesma coisa. Ela reduzia os riscos, mas não os eliminava, uma vez que há a possibilidade de trocar de posição durante o sono. Mas foram as ações de Walt ao tentar acordar Jesse, virando Jane acidentalmente de barriga para cima, que, diretamente, tornaram a moça vulnerável. Jane vomitar não era consequência necessária de deitar de barriga para cima, mas foi potencialmente fatal quando aconteceu. Walt poderia ter salvado a vida dela, mas escolheu conscientemente não fazê-lo. A culpa com relação a essa escolha e ao seu resultado foi óbvia. Ele chora quando ela morre.
Mas ele é moralmente responsável? Em que grau? Parte desse julgamento depende da distinção entre responsabilidade ativa e passiva. Geralmente, não consideramos que as pessoas têm o dever moral de salvar alguém a não ser que possua algum conhecimento especial da vítima ou um relacionamento com ela. Não há responsabilidade efetiva de salvar um estranho que se afoga a não ser que você seja salva-vidas e, portanto, tenha se colocado numa relação especial para com os frequentadores da piscina. Estranhos que fracassam ao tentar salvar crianças que se afogam não são assassinos, nem passíveis de acusação moral de modo algum, a não ser passivamente. Eles têm certa culpa moral, mas não são a causa nem tinham dever efetivo de salvar. Podem ser passivamente responsáveis, especialmente se tiveram capacidade evidente de salvar, mas não são culpáveis moral nem legalmente pela morte a não ser que tenham, de algum modo, criado a situação da qual a vítima demanda salvamento, ou tenham sido responsáveis de algum modo efetivo.
Walt tem certa participação efetiva, por ter invadido a casa de Jesse, perturbando Jane e Jesse, que dormiam. Suas tentativas físicas de acordar Jesse acabam, sem querer, empurrando Jane, que deita de costas, inclinada, vulnerável, passível de engasgar com o vômito... O que acaba acontecendo. Walt, portanto, contribuiu com o perigo no qual Jane se encontrava, e depois se omite conscientemente, quando poderia salvá-la. Seus motivos são claros: ele teme o fato de Jane conhecer suas atividades no mercado das drogas, e há também a influência dela sobre Jesse, parceiro dele, que, junto da namorada viciada, vai fugir e não mais trabalhar com ele. Os motivos de Walt para falhar em salvá-la são, obviamente, direcionados para salvar seu relacionamento com Jesse, e possivelmente salvar também o rapaz, mas ainda assim são motivos para querer vê-la morta. Ele não é um espectador inocente assistindo à morte de uma estranha; é ativamente responsável pela vulnerabilidade dela, e está ciente das consequências de seu fracasso em ajudar, escolhendo permitir que ela morra, por diversos motivos, incluindo os efeitos beneficentes que a morte dela causará em seu próprio futuro.
A responsabilidade moral de Walt, ou sua culpa, pela morte de Jane é reduzida, mas presente, assim como uma mistura de responsabilidade ativa e passiva. As duas mortes seguintes são menos complicadas, tanto factual quanto moralmente.
Walt salva Jesse mais uma vez no episódio “Half Measure”, perto do fim da terceira temporada. Jesse descobrira que Gus Fring estava por trás do uso do irmãozinho da nova namorada de Jesse para matar seu amigo, Combo, e Jesse planeja usar a substância ricina para matar Gus. Uma pequena dose dessa substância, algo como alguns poucos grãos de sal, pode matar uma pessoa. Sendo a sutileza e a destreza de Jesse como são – ou seja, inexistentes –, as intenções deste para com Gus se tornam claras, e ele ordena que Jesse seja morto. Mas Walt salva Jesse mais uma vez (se supusermos que Walt salva a vida de Jesse deixando que Jane morra), atropelando os ex-futuros assassinos de Jesse com seu Aztek, depois atirando no que sobrevivera à colisão, a queima-roupa.
O assassinato dos capangas 1 e 2 atropelados pelo Aztek foram diretos; Walt foi efetivamente responsável por eles. Ao contrário de Emilio e Krazy-8, que foram mortos por legítima defesa (óbvia no caso de Emilio e discutível no caso de Krazy-8), Walt não foi ameaçado pelos homens que matou. Jesse foi. A questão é: o assassinato daqueles que ameaçaram seu amigo é justificável – ou pelo menos digno de aplauso moral?
O dever de salvar pode aparecer no caso de algum tipo de relação especial. Jesse e Walt têm tal relação, e de diversos modos Walt é como um pai para Jesse, e parece mais interessado e envolvido com a vida dele do que com a do próprio filho, Walt Jr. Como guia, professor, às vezes amigo e parceiro de Jesse, Walt lhe dá direcionamento, confiança e habilidades que ele jamais conseguiria de outro modo. É fato que Walt se envolvera na morte do grande amor de Jesse, Jane, mas também ajudou o rapaz a se livrar da heroína, ofereceu-lhe treinamento na preparação da famosa metanfetamina azul e tomou conta do dinheiro e da vida do rapaz quando estavam em perigo. Devido a essa relação especial e a tudo que ela engloba, Walt assumiu o dever especial de proteger Jesse, e seu envolvimento ao impedir que Jesse tentasse matar Gus e depois salvando-o quando os capangas de Gus estavam prestes a matá-lo, pode ser moralmente justificado devido a essa relação especial.
Ao contrário da falta de responsabilidade efetiva de intervir, salvando estranhos, temos deveres maiores para com nossos amigos, familiares e todos com quem temos certo relacionamento especial, como o têm Walt e Jesse. Enquanto Jesse certamente não é inocente, era-o mais do que Gus ou seus capangas na tentativa de matar o rapaz. Até esse ponto, Jesse não havia matado ninguém, e sua intenção de matar poderia ser talvez justificada moralmente como vingança pela morte do amigo e para punir Gus por usar uma criança inocente para esse fim.
Pesar a culpa moral de Walt nesse caso envolve cálculo complexo. É justificável o assassinato de dois não inocentes para impedir a morte de um terceiro não inocente? Jesse certamente não estaria em posição de resolver matar Gus ou não se não fosse por Walt, então suas ações e intenções são parcialmente responsáveis pelo desejo do rapaz de matar, e por ele também tornar-se um alvo. Num cálculo prático, se a felicidade total cresce de tal modo que supera a quantidade total de infelicidade de uma ação, deve-se optar pelo resultado mais feliz, eticamente falando. Pondo na balança a vida de Jesse contra a dos capangas de Gus, as ações de Walt seriam justificáveis. Ademais, porque o próprio Walt ajudara a criar a situação na qual o rapaz se encontra, salvar Jesse talvez seja moralmente justificável tendo por base a responsabilidade efetiva de Walt, considerando-se a relação especial dos dois e as intenções relativamente “honradas” de Walt.
A culpa moral de Walt cai de nível com a morte de Gale. Embora Jesse tenha sido a causa direta da morte de Gale, Walt é obviamente mais responsável. Pesar os graus de culpa moral pela morte de Gale fica complicado graças ao papel crucial da escolha ao atribuir-se responsabilidade moral, e ao decifrar quem teve quais escolhas nas ações finais executadas.
Gale é quase inocente no esquema composto por todos os personagens de Breaking Bad. O rapaz é um geek gentil, com justificativas ideológicas para fazer metanfetamina de qualidade. Tem um amor puro e simples pela química, parece não ser movido por ganância ou orgulho, e presta reverência e afeição genuínas a Walt. Sabe que o que está fazendo é ilegal, mas justifica-o com base em seus ideais libertários, e no fato de que os usuários de metanfetamina acabarão arranjando a droga de qualquer jeito, e pelo menos ele pode oferecer um produto quimicamente puro. O rapaz parece motivado para o serviço meramente pela criatividade que ele proporciona, por seu amor pela química e pela necessidade de trabalhar. Ele respeita Walt e busca sua aprovação.
Mas Gale está sendo usado por Gus para roubar o conhecimento de Walt, de modo que este possa ser eliminado. Walt percebe que ensinar seus métodos para Gale vai torná-lo dispensável, e tem certeza de que os dois não podem conviver. Mas Walt não puxa o gatilho. Pelo contrário, ele manda Jesse fazê-lo, embora ele mesmo tenha impedido que Jesse matasse Gus, o que também teria impedido a necessidade de matar (considerando que Jesse tivesse alguma chance de sucesso). Jesse acaba na posição de matar Gale ou deixar que Walt morra. Walt, é claro, foi quem colocou Jesse nessa situação que, como em qualquer outra posição horrível requer decisões igualmente horríveis, mas a morte de Gale seria o primeiro assassinato do rapaz. É um divisor de águas, tanto para Walt quanto para Jesse. Um rapaz quase totalmente inocente leva um tiro à queima-roupa, a sangue frio, para salvar a vida de um Walt muito-menos-inocente acometido de câncer (“Full Measure”). Além disso, Walt não comete o crime, mas usa Jesse, que até então não tinha manchado as mãos de sangue. Jesse é um assassino? Ou seria Walt, apesar de não ter se envolvido diretamente no assassinato de Gale?
Jesse agora é culpado por assassinato, tanto moral quanto legalmente. Ele puxou o gatilho que matou Gale, e ademais, teve escolha. Embora tenha agido sabendo que não matar Gale resultaria na morte de Walt, ele não tinha justificativa legal para o delito, visto que o geek não representava ameaça. Ele poderia ter sido responsável moral e passivamente pela morte de Walt caso não matasse Gale, mas não tinha responsabilidade efetiva de matar Gale, inocente, para salvar a vida de Walt. Matar Mike teria sido muito mais justificável, certamente. Matar Gus – absolutamente.
Mas o fato de Walt ter mandado Jesse matar Gale por causa da ameaça à sua vida, resultado de suas próprias ações, torna-o cúmplice e moralmente culpado pela morte de Gale talvez tanto quanto se ele mesmo tivesse puxado o gatilho. O fato de a sobrevivência de Walt ajudar a garantir a sobrevivência de Jesse atenua um pouco a situação, e o plano, de fato, tinha mais chances de sucesso do que o de Jesse. Mas Walt foi a força motriz: ele deu a ordem, e dependia da decisão de Jesse – destino que poderia ser facilmente evitado caso Walt tivesse ajudado Jesse a proceder com seu plano – talvez justificável – de vingar-se de Gus, ou, Deus nos livre, caso Walt jamais tivesse resolvido entrar no negócio da metanfetamina, para começo de conversa.
Walt deixa o melhor para o final. Bom, pelo menos para o final da quarta temporada... Talvez ele meta uma bomba em Albuquerque na conclusão da série. O trio de mortes no fim da quarta temporada parece realizar uma série de coisas: elimina as principais ameaças contra Walt, resolve rancores importantes e pavimenta o caminho para que Walt domine o mercado local de metanfetamina de uma vez por todas. Mas é a complexa rede de culpa moral que faz desse final explosivo o melhor para o propósito deste livro.
Gus e Tyrus são ameaças diretas para Walt, e as tentativas dele e de Jesse de envenenar e explodir Gus falharam, assim como muitos dos demais planos. Mas em Hector Salamanca Walt vê sua salvação. Salamanca e Gus têm uma história de ódio. Salamanca matou o parceiro de Gus, o químico que fazia parte dos Pollos Hermanos originais. O sobrinho de Salamanca era Tuco, e “Tio”, como Hector era chamado, tinha mágoa de Walt também, devido à participação dele na morte do sobrinho. Mas o ódio de Salamanca por Gus era mais profundo, tendo este se divertido muito ao visitar e lentamente atormentar Hector, que convalescia em uma casa de repouso. Por isso, Hector serve como a isca perfeita, e detona a bomba que Walt não pôde detonar, sacrificando sua própria vida para matar Gus e Tyrus, que estava por perto (“Face Off”). Qual seria, temos de questionar, a responsabilidade moral de Walt por essa explosão suicida, se é que ele tem uma?
Walt é certamente responsável por fornecer a Tio os meios para que ele matasse a si mesmo, a Gus e a Tyrus. Sem a bomba de Walt, construída com o propósito claro de matar Gus, em primeira instância, fica claro que Tio teria ficado indefeso perante suas provocações intermináveis. Nenhum dos mortos era inocente. Salamanca, Gus e Tyrus eram todos assassinos envolvidos no mercado das drogas. Mas Walt também. Walt usou Tio como meio de chegar a Gus. Livrar-se também de Salamanca, que continuava sendo uma ameaça a Walt, pelo o que sabia, e de Tyrus, que sem dúvida perseguiria Walt caso Gus fosse ferido, são dois bônus.
Walt é moralmente responsável, visto que forneceu os instrumentos (a bomba) e teve escolhas que o levaram ao bombardeio assassínio/suicida. Contudo, Tio teve a escolha final e foi a causa imediata das mortes de Gus e Tyrus. Ele carrega o peso da responsabilidade moral e legal, compartilhando-o com Walt. Legalmente, estava envolvido em conspiração e é cúmplice de assassinato. Moralmente, agiu tendo alternativas, não estava sob pressão e teve a intenção de tirar vidas. Ao contrário de Jesse, que ainda não havia matado quando Walt o ordenara a atirar, Tio era um assassino treinado, com uma mágoa a resolver. Tinha vários motivos para dar cabo de Gus. Walt acabou, pode-se dizer, fazendo a Tio um favor ao dar-lhe um modo honrado de acertar as contas. As mortes triplas são o grande triunfo de Walt, e um final de temporada muito mais aceitável moralmente do que a morte do pobre e inocente Gale nas mãos do pobre, inocente e assustado Jesse.
Mergulhamos um pouco na culpa moral de Walt referente às mortes de nove pessoas que foram mortas por consequência direta de suas ações. Mas há mais pessoas que morrem em parte por causa de Walter White, mas menos diretamente. São as mortes dos 167 passageiros do Wayfarer 515 e de Donald Margolis, que se mata em seguida, sem dúvida em resposta ao acidente de avião e à morte da filha (“ABQ”). Sua filha era Jane e, como vimos, Walt é moralmente culpado, em parte, pela morte dela. O pai de Jane, que era controlador de voo, transtornado, gera a queda do avião e a morte de 167 pessoas. Walter deve ser responsabilizado pelas mortes dos passageiros do voo Wayfarer 515 e pelo suicídio de Donald?
Analisando novamente os elementos de responsabilidade moral – incluindo-se causa, capacidade, motivação, consequências e justificação –, seria um tanto exagerado considerar Walt moralmente responsável por essas mortes. Embora suas ações estejam complexamente implicadas nos dois eventos relacionados, a queda do Wayfarer e o suicídio de Donald, e algumas das decisões de Walt os tenham ajudado a ocorrer, eles parecem distantes demais para que a culpa recaia sobre Walt. Ele é uma causa, mas não a causa imediata, mais próxima, dessas mortes. Suas ações e decisões criaram a possibilidade, mas não as tornaram inevitáveis. Pelo contrário, Donald Margolis tinha capacidade de evitar a queda do Wayfarer 515 (talvez reduzida, em parte, dado o seu estado emocional, mas foi opção dele retornar ao trabalho) e sua própria morte.
Sim, Walt carrega culpa moral pela morte de Jane, mas o vício da moça, suas escolhas e ações também parecem resultado de problemas familiares. Donald também luta para se livrar do vício. Não foi por culpa de Walt que Jane usava heroína, e não foi por falha dele que a moça não ficou livre das drogas. As falhas de Donald estão implicadas na morte dela. Às vezes, amar os filhos não basta. Walt intervém ativamente para salvar Jesse, no fim das contas. Donald confia tanto na filha que acaba não intervindo quando deveria para salvar-lhe a vida. A culpa de Donald é real, e merecida, embora Walt não possa ser totalmente inocentado. Donald também tem a responsabilidade final de não voltar ao trabalho, onde coordena o tráfego aéreo (um dos empregos mais estressantes do planeta), tendo em suas mãos as vidas de milhares de pessoas, estando ele ainda em sofrimento por causa da perda da filha.
Em última instância, contudo, deveríamos considerar Walt responsável por muito sofrimento. Sua desculpa é frívola: muitas pessoas morrem deixando suas famílias sem dinheiro nem legado. Talvez suas decisões anteriores o tenham levado a esse ponto (não sabemos por que ele deixou Grey Matter, nem se foi orgulho, ego, ciúme ou outro fator o que o fez separar-se de Elliot), mas sua família o ama e o respeita por quem ele é, ou quem ele era antes de entrar para o crime.
No fim da quarta temporada, ele fica ainda mais perverso, tanto quanto Gus – embora aparentemente tendendo a se tornar igualmente bem-sucedido na vida criminosa. Ele leva a mulher consigo, pelo mesmo caminho, corrompendo-a, envolvendo-a numa conspiração, colocando a família e os amigos em perigo. A responsabilidade moral de Walt é complexa em diversos casos, como vimos, mas igualmente ampla – aplicável a todo um escopo, uma comunidade de participantes cujas vidas foram pioradas graças às decisões e atitudes de Walt.
Como o destino de qualquer anti-herói grego, o fim de Walt nessa tragédia geek só pode ser a condenação. Veremos quantas pessoas mais ele leva consigo nesse processo.