A CONFISSÃO INCERTA DE HEISENBERGDarryl J. Murphy |
Eu rezei pedindo castidade e disse “Dê-me castidade e continência, mas não ainda”.
SANTO AGOSTINHO, CONFISSÕES, LIVRO 8, CAPÍTULO 7
A máscara o mantém livre de misturas tóxicas de ácido hidrofluorídrico que saturam o ar ao seu redor, mas não impede que o aroma acre de ferro e sal penetre seu nariz. É cheiro de sangue, e ele pode senti-lo bem no fundo da garganta. O gosto ativa um pensamento que insiste em emergir: esse é o sabor de Emilio. Esse é o sabor do assassinato. Walter White, professor de química do Ensino Médio que se tornou especialista em produção de metanfetamina, matara Emilio dias antes, mas é somente depois, com o punho mergulhado na sopa química que é sua vítima, que Walt sente culpa por suas ações.
Conforme coloca mais uma concha do lodo de Emilio num balde, Walt lembra-se de um momento poeticamente relevante: Walt e Gretchen (sua antiga namorada) estudando a composição química do corpo humano.
Aparentemente, isso é tudo. E o resto? Gretchen pergunta: “E quanto à alma?”. Mas para Walt, um homem da ciência, a alma é algo completamente alheio a seu modo de pensar. “Não há nada além de química aqui”, ele sussurra a Gretchen, desaprovando o que ela perguntou. A rejeição grosseira de Walt, no entanto, não explica a discrepância de 0,111958% que o casal descobriu. Essa porcentagem que falta no lodo de Emilio provará ser da maior importância filosófica.
A rejeição de Walt à ideia de alma é condizente com o que a filosofia chama de ponto de vista materialista – e Walt é um materialista. No episódio piloto, ele expressa o materialismo de forma bastante clara em sua aula: “Química é o estudo da matéria... Elétrons mudam seus níveis de energia; moléculas mudam de ligação; elementos combinam-se e transformam-se em compostos”, e que “assim é tudo na vida!”.
Para um materialista como Walt, química e matéria são “tudo na vida”. Não há nada mais para ser entendido no que tange à vida e ao mundo, porque tudo o que acontece e pode vir a acontecer, inclusive a escolha de ler este livro, é explicado pelas regras que governam o comportamento das substâncias químicas das quais as coisas são feitas. Materialistas rígidos acreditam que ninguém resolve seguir o mau caminho. Ao contrário, uma série de reações químicas em nosso corpo, combinadas com interações químicas do ambiente, ditam nossas atitudes. Essas interações químicas causam a sensação que você tem de seguir o mau caminho.
Essa talvez fosse a perspectiva que você preferiria adotar, caso estivesse jogando a sopa que um dia foi sua vítima na privada. Se você pensar no mundo e em seu comportamento somente segundo as regras que governam nossos componentes químicos, talvez possa se convencer de que não resolveu matar alguém, que não foi sua vontade, que foram as leis da natureza as responsáveis por essa vida encerrada. Esse ponto de vista permite que você acredite que não escolheu seguir o mau caminho; em vez disso, o mal apenas acontece.
Se, contudo, a química dá conta somente de 99,888042% do corpo humano, então essa discrepância de 0,111958% tem um papel pequeno, mas importante, no ponto de vista materialista. A ideia de Gretchen, de que esse “buraco” é preenchido pela alma, expressa um tipo de concepção cancerígena ao materialismo. Ela deixa aberta a possibilidade de que existe algo no mundo que não pode ser analisado pelas leis da química, ou que não as obedece. E, se cada pessoa é parcialmente composta de algo que não obedece a essas leis, então talvez cada um seja mesmo responsável por suas próprias ações.
Não somente a alma traz consigo a noção de responsabilidade para as ações das pessoas, mas também outras noções, como: culpa, orgulho e instinto, contra os quais Walt parece lutar em sua nova carreira como produtor de metanfetamina. Ou seja, ele deseja limpar a consciência, aliviar-se da culpa que o atormenta por suas ações. Em uma palavra: redenção.
A redenção não é uma questão do momento. Não tem muita popularidade nos blogues, no Facebook, no Twitter, no rádio ou na TV. Não é uma palavra popular nem mesmo entre os filósofos contemporâneos. Contudo, trata-se de uma questão filosófica séria, relevante para todos aqueles que fazem uso de uma bússola moral. De acordo com o Dicionário de Inglês Oxford, a redenção é “a ação de salvar ou ser salvo do pecado, do erro ou do mal”. No nível mais básico, a redenção envolve uma espécie de alívio do sentimento de culpa que a pessoa possa sentir em relação a suas más atitudes.
Uma das discussões filosóficas clássicas em torno da redenção pode ser encontrada nas Confissões, de Santo Agostinho. As Confissões foram escritas aproximadamente quatrocentos anos depois de Cristo, quando a Igreja Católica estava se tornando uma das mais dominantes forças político-ideológicas do mundo. Trata-se de uma autobiografia de Agostinho, que retrata sua experiência de redenção durante a passagem de leigo para sacerdote e, depois, para bispo.
Sendo uma criatura de sua época, a redenção de Agostinho é baseada em sua religião e compreensão de Deus. Religião e Deus não costumam encontrar lugar no ponto de vista materialista, mas o que é comum à luta pela redenção de Agostinho e de Walt é a dúvida quanto a nossas ações serem guiadas por escolhas genuínas ou nossas disposições, escolhas e ações serem ditadas por certas regras superiores. No caso de Walt, as regras superiores são as que governam nossa composição química; para Agostinho, prescritas por Deus.
Walt parece acreditar que nossas ações são governadas por leis indiferentes à química, mas seus sentimentos de culpa o contradizem, já que o ponto de vista materialista sugere que seguir o mau caminho não é algo a ser escolhido; pelo contrário, somos quimicamente levados a isso.
Muitos dos grandes filósofos da história seguiram o mau caminho em algum momento de suas vidas: Heidegger foi nazista; Kierkegaard foi excomungado; Abelardo foi um infame fanfarrão, antes que o pai e o irmão da amante o castrassem e desonrassem; Boécio, Anaximandro e, claro, Sócrates foram todos executados por heresia, entre outras coisas. Até mesmo Platão foi acusado de “profanar os mistérios” ao revelar os segredos de seu grupo para uma pessoa de fora. Isso tudo era punido com morte, dos modos mais criativos. Felizmente, para Platão, seu destino foi somente o ostracismo, exilado de Atenas até que o clima melhorasse.
Antes de receber o nome Santo Agostinho, Aurelius Augustinus era um adúltero confesso (tinha fama de se envolver com mulheres mais velhas e casadas em Cartago) e fornicador (tinha muitas relações sexuais). Aurelius era também um homem da ciência; ele era profundamente comprometido com a filosofia – nomeada a mãe de todas as ciências. Como Walt, Aurelius ganhava a vida como professor (antes de se tornar padre) de retórica e argumentação, em Roma. Como Walt, Aurelius expressava uma preocupação perturbadora com a redenção. E, de novo, como Walt, essa preocupação levou Aurelius a se intrigar profundamente com a origem e natureza do mal: se o mal é parte da natureza e, como tal, apenas algo que acontece; ou se o mal é resultado das escolhas e ações das pessoas.
O contexto de vida de Agostinho era consideravelmente diferente do de Walt. Para o filósofo, a existência de Deus é a única verdade que a ciência deve admitir como explicação para nossas experiências com o mal. Como ele expõe no Livro 7 das Confissões, se Deus é todas as coisas que a tradição judaico-cristã diz – onisciente, onipotente e bondoso –, então Ele deve ter conhecimento do mal e possuir o poder de evitá-lo. Entretanto, aparentemente, Deus não faz isso. Mais problemática ainda é a alegação judaico-cristã de que Deus está presente em todas as coisas, o tempo inteiro. Se for assim, conclui-se que Deus, ele mesmo, é de certo modo corrupto; que o mal é parte dele, ou está misturado a ele. Isso não condiz com a noção de que Deus é totalmente bom. Ao longo da história da filosofia, esse conjunto de problemas vem sendo referido como o problema do mal.
O problema do mal de Walt é efetivamente o mesmo, embora brote de uma suposição essencialmente oposta da de Agostinho. Walt nunca diz que Deus não existe, mas isso fica implícito na afirmação de que a química é “tudo na vida”. Segundo o ponto de vista materialista de Walt, nada é mais ou menos mal do que qualquer outra coisa. Mal, medo, culpa e similares não são nada além de sentimentos quimicamente induzidos, que ajudam o organismo humano a se autopreservar. Segundo esse ponto de vista, não existe livre-arbítrio, porque, assim como o medo e a culpa, o livre-arbítrio não passa de uma sensação quimicamente induzida, que não tem nada de livre. Segundo essa perspectiva, o mal é apenas problemático, caso exista uma parte do organismo humano que funcione independentemente das leis da química e, sendo livre dessas leis, possa genuinamente escolher más ações em vez de boas.
Santo Agostinho responde ao problema argumentando que mal e corrupção não foram criados. Na verdade, o mal ocorre na destruição – ou seja, ele é o desfazer da criação. Portanto, Agostinho é capaz de dizer, sem contradição ou heresia, que Deus está presente em toda a existência, porque o mal é presente apenas onde a existência está em ruínas. E o que faz com que isso aconteça? A corrupção do arbítrio. Em outras palavras, o mal ocorre quando alguém toma atitudes que o levam para longe de Deus, longe da bondade – ou seja, em direção à destruição.
A análise que Agostinho faz do mal é a mesma que a dos materialistas. Ambos associam a bondade com existência continuada e autopreservação; e o mal, de um jeito ou de outro, com autodestruição. Então parece que, com ou sem Deus na jogada, seguir o mau caminho envolve alguma ação em direção à autodestruição. Essa ideia incomoda Walt quando ele pensa no que fazer com relação a Krazy-8.
O coração acelerado. Os pensamentos rodopiam: “Ele sabe meu nome, ele sabe tudo sobre mim”. A maconha que fumara acalma o coração, mas nada impede a cabeça de Walt de girar. Não adianta tentar se acalmar. Zanzar entre sala e cozinha estranhas ajudara a passar o tempo, mas não solucionara o problema. Krazy-8 continuava amarrado pelo pescoço à viga do porão e, segundo o ritual sagrado de jogar cara ou coroa, sobrara para Walt “dar cabo” do bandido.
A situação ficou ainda mais problemática quando o rapaz tossiu. De vez em quando, Krazy-8 tossia forte. Parecia-se tanto com seu filho que seu olhos ficaram marejados. A compaixão é um saco! Walt sabia que a compaixão deixaria ainda mais complicada a situação. Pelo menos ali, sentado na privada do banheiro do segundo andar, Walt não conseguia mais ouvir a tosse, o espirro ou qualquer sinal vital de Krazy-8. Naquele pequeno santuário, com um punhado de paz, decide abordar o problema racionalmente:
As deliberações de Walt podem ser resumidas assim: a favor de deixar Krazy-8 viver, Walt oferece três alegações baseadas em princípios morais do senso comum, uma inculcação de duas das mais espalhadas religiões do mundo, uma alegação fervorosa concernente à sua própria identidade e duas considerações bastante práticas. Entretanto, quando considerado o motivo muito forte que Walt tem para matar Krazy-8, a solução racional é mais do que óbvia. Fica clara a batalha de Walt para ser uma boa pessoa enquanto faz coisas ruins.
Aqui também a vida de Walt e seus sentimentos assemelham-se aos de Agostinho. Ao contrário do que se possa esperar, graças ao que foi dito sobre as Confissões, não se trata de uma história na qual o protagonista lascivo tem uma grande epifania e subitamente se endireita. Muito pelo contrário, segundo sua própria confissão, Agostinho desejava desde muito cedo ser uma pessoa moral e entender as origens do mal; ao mesmo tempo, cedia aos excessos. O que muda e matura ao longo da trajetória de vida de Agostinho são seus argumentos e crenças com relação às questões que essa preocupação suscita.
Agostinho expressa com franca honestidade o prazer que tinha em realizar seus desejos carnais. Apesar dos pedidos da mãe para que não fizesse sexo fora do casamento, Agostinho admite ter tido muitas relações. Mesmo depois que se separou da namorada (e mãe de seu filho), ao preparar-se para se casar com uma mulher que a mãe escolheu, Agostinho confessa: “porque eu era mais um escravo da luxúria do que um amante genuíno do casamento, tive outra amante” (Livro 6, Capítulo 15). Com tudo isso, Agostinho está dizendo a mesma coisa: ele queria ser sacana, e gostava de sê-lo; e não há como ser sacana sem ser mau.
Enquanto isso, e apesar de toda a satisfação de desejos, Agostinho pedia a Deus por redenção, mas por uma redenção específica: sem sacrifício da diversão, da devassidão e da gratificação dos desejos corporais que ele aproveitava na época. Ele queria redenção, mas não ainda.
Isso é exatamente o que Walt quer: consciência limpa sem sacrificar a adrenalina, a liberdade e as gordas somas que ele crê que garantirão o futuro da família. Walt também quer redenção, mas não ainda. Seu desejo de redenção, embora continue no mau caminho, é sintetizado quando, depois de fazer um trato com Tuco e presenciá-lo espancando seu amigo até a morte, Walt diz a Jesse: “Eu preciso de US$ 737 mil... Mais onze contratos, e sempre em local público, de agora em diante. Dá pra fazer, definitivamente dá pra fazer” (segunda temporada, episódio “Seven Thirty-Seven”). Apesar de tudo que já vira, Walt ainda acredita que um negócio do tipo não-muito-complicado é possível. Isso, é claro, não é o que se espera de um homem racional. Não é também o que Walt espera. É o que ele deseja, porque esse é único jeito de ser uma boa pessoa enquanto faz coisas ruins. Antes desse plano ser executado, contudo, Walt vai matar Krazy-8, explodir um carro, explodir um prédio e adotar o nome Heisenberg.
Werner Heisenberg (1901-1976), físico e matemático alemão, revolucionou a ciência ao definir o que é conhecido como o princípio da incerteza de Heisenberg. O princípio opera no nível subatômico do universo e governa o comportamento de moléculas químicas. O significado prático do princípio é o seguinte: considerando-se que a localização e a velocidade de uma partícula são partes necessárias para determinar as leis que a governam, o princípio da incerteza de Heisenberg requer que essas leis envolvam certo grau de incerteza. Essa incerteza pode ser discreta, cientificamente falando, mas seu significado filosófico é imenso! O princípio da incerteza de Heisenberg abre espaço para uma lista ampla de fenômenos até então não explicados dentro do ponto de vista materialista. Essa incerteza pode, por exemplo, dar conta da discrepância de 0,111958% na contagem de Walt da composição química do corpo humano. E responde à pergunta de Gretchen: “E quanto à alma?”, sugerindo que a porcentagem de volume dos elementos que compõem o corpo humano é incerta por necessidade científica.
O princípio da incerteza de Heisenberg possibilita a existência do livre-arbítrio, no paradigma materialista senão-determinista, transformando as leis rígidas do comportamento das partículas em tendências. É assim porque o princípio requer que suavizemos as alegações às quais chegamos por meio da ciência, ao reconhecer a incerteza inerente no registro e predição do comportamento subatômico. Podemos, por exemplo, dizer que “pseudoefedrina tende a ativar uma resposta alfa-adrenérgica”, mas não que “pseudoefedrina causa respostas alfa-adrenérgicas”. A diferença é sutil, mas importante. Tendências são como leis, porque governam o comportamento, mas são diferentes porque permitem desvios. É possível, dado o princípio da incerteza de Heisenberg, que em alguns casos – bastante improváveis, porém possíveis – a pseudoefedrina não ative uma resposta alfa-adrenérgica. As leis, no sentido científico, são revestidas de ferro, e se acontecer algo que as contrariam, elas têm de ser modificadas ou abandonadas. Tendências são flexíveis, e pode-se desviar delas sem necessariamente mudar o resultado esperado de um evento similar futuro.
Pensando assim, Walt não tomou o nome Heisenberg para homenagear um homem que idolatra, mas pelo princípio que ele procura exemplificar. Tomou o nome da verdade metafísica que passa a abraçar e incorporar, porque o princípio da incerteza de Heisenberg abre-lhe a possibilidade de pensar que ele não estava destinado a ser mau. Heisenberg permite que Walt acredite que ele escolheu seguir o mau caminho, assim como pode escolher voltar a ser bom. Na ausência de uma alma, o princípio da incerteza de Heisenberg dá a Walt a possibilidade de redenção. Como será essa redenção, já é outra história.
Gritos de socorro ecoaram na sala de estar da família White, onde estavam os amigos e familiares de Walt. O grito trouxe os pensamentos dele de volta ao escritório cinza e ao momento em que ele ouviu que todos haviam se reunido para celebrar. “Você está mostrando sinais de remissão”, disse o dr. Delcavoli, antes de lançar-se num fluxo interminável de avisos e qualificações acerca do que o termo “remissão” realmente significa. De acordo com ele, remissão geralmente se refere ao encolhimento de um tumor maligno; mas uma pessoa pode também estar tecnicamente em remissão quando o tumor para de crescer. A remissão de Walt é um pouco mais promissora: “Walt, seu tumor encolheu 80%” (segunda temporada, “4 Days Out”).
“Remissão” completa a definição de “redenção” mencionada anteriormente. Num sentido metafórico, a remissão salva o corpo do mal – a saber, o mal que ameaça a sobrevivência do organismo. Essa metáfora é geralmente usada em relação ao câncer; a palavra maligno, afinal, é derivada do latim malum, que significa “mal”. Uma célula ou câncer maligno é aquele que se multiplica rapidamente e invade outras células, causando tumores e seu crescimento. Se a remissão é, como explica o dr. Delcavoli, a cessação do crescimento do tumor ou seu encolhimento, então a remissão é equivalente a ser salvo do mal, como do câncer.
A novidade dada pelo dr. Delcavoli foi recebida com risos, abraços e lágrimas. Agora, contudo, perante os amigos dos quais ele buscara com tanto afinco esconder sua vida como Heisenberg, suas palavras repetem o mesmo pensamento que o invadiu com a chegada do câncer.
“Quando recebi o diagnóstico, de câncer, eu disse a mim mesmo... sabe... ‘Por que eu?’” Walt continua: “E daí... outro dia, quando recebi a notícia boa... Eu disse a mesma coisa” (segunda temporada, “Over”).
A pergunta de Walt pode ser lida de diversos modos, mas, para aqueles que sabem de sua vida como Heisenberg, ela representa um ataque direto à ideia de que a remissão é equivalente à redenção. Walt está perguntando por que ele foi poupado, apesar das coisas horríveis que fizera; e o público entende que a remissão não traz a redenção a Walt, porque ela mina justamente o motivo que justificava suas atitudes tão terríveis. Apesar de ter congelado alguns caras enquanto fornecia veneno para viciados, Walt fez uma fortuna dessa forma, e essa fortuna vai garantir o futuro da família muito tempo após sua morte precoce. Por outro lado, se Walt sobreviver, não há motivo para pensar que ele deixaria de sustentar a família com a produção do veneno e matando pessoas. Com essa pergunta, Walt mostra que reconhece essa verdade.
À luz do princípio da incerteza de Heisenberg, podemos compreender a remissão de Walt como uma mudança muito profunda nas tendências de seu organismo físico. O comportamento de seu organismo não é mais uma ameaça à sua sobrevivência física, pelo menos não em grau tão extremo (20% do tumor ainda existe). Isso sugere, talvez, a definição de uma saúde, em geral, ótima – e a tendência do corpo é para um comportamento que não ameace sua sobrevivência prolongada. Essas tendências, contudo, pertencem aos 99,888042% de Walt que estão sujeitos às leis da química. São governados pela química e, sendo assim, sua relevância à disposição moral de Walt (sua redenção) é questionável.
Quando Walt conta a novidade da remissão a Jesse, vemos um pouco das tendências com as quais Walt mais se preocupa: a promessa de sair do mercado da metanfetamina (presumivelmente, de uma vez por todas), e com essa decisão ele espera conseguir redenção. Basicamente, quando Walt parar de produzir, ele não será mais uma má pessoa, porque não estará mais fazendo coisas ruins (segunda temporada, “Over”). Como no caso da remissão, esse comportamento tenderá a promover a sobrevivência física de Walt; mas, ao contrário da remissão, esse comportamento parece originar-se no 0,111958% que escapa da governança de sua composição química. A promessa que ele faz a Jesse parece vir da remissão, mas, como uma lembrança dessa parte da história de Walt sugere, a conexão é tênue.
“Tem mofo aqui”, Walt grita para Walter Jr. por um buraco no piso, na casa da família. “Mofo?”, responde Walter Jr. “É... Aqui... Vou mostrar... Aqui... Olha isso aqui”, diz Walt, passando ao filho um pedaço de madeira que ele removera das entranhas da residência.
Walter Jr. continua com uma expressão confusa, enquanto o pai explica como o mofo é causado por fungos que acabam ameaçando a integridade da estrutura física da casa. “A casa toda vai cair?”, Walter Jr. pergunta. “Não se eu puder evitar”, Walt responde (segunda temporada, “Over”).
Nesse ínterim, Skyler, outra habitante da casa de Walt, engaja-se no comportamento que ameaça minar sua integridade. Os esforços de Walt para eliminar o fungo da casa, enquanto Skyler começa um caso com Ted Beneke, seu chefe, reflete poeticamente a luta pessoal de Walt pela redenção. Como ele irradia o câncer, causando mofo em seu próprio corpo, outra parte dele realiza um comportamento que resulta em mofo de outro tipo. O mofo causado por Skyler e pelas escolhas de Walt persiste, não importa quão fresca, forte ou nova seja a estrutura física da casa ou do corpo de Walt.
São as tendências à podridão que permanecem. A vã missão de Walt de defender a integridade física de sua casa parece definhar quando, no estacionamento da Raks, loja de construção, ele avisa a um possível futuro produtor de metanfetamina: “Fique fora do meu território!” (segunda temporada, “Over”). Vemos que a condição física de Walt não dita as tendências que guiam suas escolhas. Essas tendências são fortes e persistentes, apesar da remissão.
Essas tendências são determinadas pela química de Walt? As escolhas dele são predeterminadas? O princípio da incerteza de Heisenberg sugere que essas perguntas não têm respostas. Entretanto, as tendências e escolhas às quais as perguntas se referem continuam sendo moralmente relevantes e vão determinar a redenção de Walt. São moralmente relevantes precisamente porque suas respostas são fundamentalmente incertas. Se não podemos dizer com certeza que elas são governadas pela química – e, portanto, predeterminadas – então, na ausência de qualquer causa certa, devemos concluir que nossa escolha livre é a única coisa que pode alterá-las.
O personagem Walter White nos oferece esse insight realmente filosófico: são as tendências das escolhas livres de Walt, e não as que governam seu organismo físico, que são relevantes à sua redenção. É a tendência de Walt de escolher sua persona de Heisenberg, em vez da do humilde homem de família, que o impede de alcançar a redenção que ele procura. São essas tendências que fazem Walt questionar se merece a remissão.
Para aqueles de nós que acreditam junto a Walt que a química é “tudo na vida”, essas tendências sustentam a possibilidade, senão a necessidade, de redenção: a redenção para o homem da ciência, no fim das contas, está nos comportamentos que parecem recair no reino da incerteza em relação a sua causa. São os comportamentos que acreditamos ser efeito de nossas escolhas, porque o princípio da incerteza de Heisenberg postula que eles não têm outra causa certa. A redenção, para Walt, assim como para aqueles que compartilham de seu paradigma materialista, pode ser alcançada quando suas escolhas (em vez de sua química) tenderem à preservação e longevidade de seu organismo.
Até o momento, Walt parece rezar pela castidade e pela pureza, “mas não ainda”. O que ele nos mostra é que encontrará sua redenção quando escolher não mais apodrecer.