A INTERVENÇÃO DE SKYLER FOI ÉTICA? CARAMBA, NÃO DEVERIA NEM SER LEGAL!Dan Miori |
Bem escrita e bem encenada, Breaking Bad é uma série muito fácil de assistir. Apesar de sua premissa efetivamente ultrajante, ela retrata muitas complexidades da vida que confrontam a todos nós diariamente.
Por exemplo, no episódio “Gray Matter”, da primeira temporada, um aspecto da tomada de decisão médica é mostrado de um modo que devia estar muito além do que os autores, atores e diretor intencionavam. Nele, houve uma cena envolvendo um evento que Skyler chamou de “encontro de família”, estruturado mais como uma intervenção sem psicólogo, que no fim não foi nada disso. Esse evento foi crítico para a estabilização do caráter de Walt. Seus relacionamentos, sua tendência de racionalizar, a tranquilidade mórbida com que lida com a masculinidade de Hank, tudo aparece nesta cena.
A cena monta o cenário para a transformação de Walt, de um triste professor de química passivo-agressivo a um triste produtor de metanfetamina passivo-agressivo. Conforme assistimos, incomoda-nos o modo como as coisas acontecem nesse encontro. A intervenção de Skyler não foi somente antiética, como nem deveria ser legal. Mas por quê? Por que é tão errada? Numa palavra, houve coerção. A autonomia de Walt – sua liberdade de tomar a própria decisão quanto ao tratamento do câncer – é limitada por Skyler num momento em que ele mais precisa de apoio e amor de toda a família. Na verdade, Walt é coagido ao tratamento agressivo.
A maioria das pessoas faz ideia do que seja uma intervenção: um grupo de pessoas aplicadas, geralmente família e amigos, que se juntam para intervir na vida de uma pessoa querida e causar uma mudança positiva em sua vida. A pessoa pode ser viciada em drogas ou mal adaptada socialmente, por exemplo, e o evento é usado para incentivá-la a fazer mudanças positivas. Costuma haver um psicólogo ou terapeuta envolvido, mas nem sempre.
Conduzir intervenções eticamente, assim como profissionalmente, é importante – e ética, ou mais corretamente, bioética, caso você ainda não tenha percebido, é importante para mim. A bioética é um ramo da ética (que é, por sua vez, um ramo da filosofia ocidental) na qual posições filosóficas são colocadas em prática ao tomar-se decisões acerca de questões como suicídio assistido por médicos, aborto, contracepção, uso de animais para pesquisa e demais questões nas áreas da biologia, medicina e prática clínica.
Para ser totalmente aberto, devo revelar que sou médico assistente em cuidados paliativos (a área especializada da medicina no alívio da dor e do sofrimento) em Buffalo, Nova York. É minha rotina fazer reuniões com famílias para discutir os riscos e benefícios de tratamentos de manutenção de vida. Uma vez que boa parte das questões com as quais lido têm um forte componente ético, estou envolvido no sistema bioético em meu trabalho e publico meus artigos.
Já que acho que todo mundo entende as coisas que eu entendo, sempre que me coloco num projeto como a escrita deste capítulo tento abordar verdadeiras falhas de compreensão; ou, pelo menos, tento não soar como um babaca pomposo. Para diminuir o risco já perigosamente alto de soar como um babaca nesta discussão sobre Walt e Skyler, pesquisei um pouco, para me certificar de que as questões que vi no encontro de família eram relevantes para outras pessoas, e procurei abordá-las apropriadamente.
Como um verdadeiro cientista, comecei a reunir informações carregando um DVD portátil por todo canto, mostrando a cena da intervenção ao máximo de pessoas que consegui. Fiz isso também para poder incluir um monte de termos e jargões de pesquisa neste capítulo. A maioria das pessoas para as quais mostrei a cena sabem o que faço da vida, e tive receio que isso gerasse um fenômeno chamado viés experimental. Em outras palavras, receei que me dessem respostas que julgassem que eu gostaria de ouvir, não sua opinião honesta. Meu critério de inclusão para esse estudo foi o seguinte: eu dizia “Ei, venha ver isso!”, e qualquer um que não saiu correndo foi incluído. Meu critério de exclusão foram pessoas que conseguiram escapar de mim e o cirurgião vascular que me chama de “Doutor Morte”.
Minha estimativa de quanto as pessoas se importam com o que eu penso estava totalmente defasada (vacilo típico de nós, acadêmicos) e, consequentemente, minha base de dados foi variada e incrivelmente cheia de insights. Quase todos reconheceram que as ações de Skyler não pareciam corretas. Mesmo os iconoclastas carecas, que disseram que fariam a mesma coisa, também afirmaram que, embora os sentimentos dela estivessem no lugar certo, Skyler não agiu com justiça. Acredito que o motivo pelo qual as pessoas sentem isso é que, mesmo que as ações de Skyler para com Walt possam ter sido apropriadas pela tendência dele a se comportar feito uma criança birrenta, elas não foram éticas. Ela o coagiu a aceitar o tratamento que ele não queria fazer, e, independente de quais argumentos você possa levantar, isso está errado.
Para analisar a cena e apontar seus pontos negativos, seria interessante rever as opções médicas de Walt. Quando ele diz ter apenas alguns anos de vida, está coberto de razão. Ele questiona o diagnóstico e o prognóstico do mesmo modo que qualquer um de nós faria. Uma questão que ele levanta, contudo, é fundamental: os efeitos colaterais e possíveis problemas adicionais, como infecções fatais, valem pelo tempo teórico que se recebe em troca?
Sabemos bastante sobre o tipo de câncer de pulmão que acomete Walt. No episódio piloto, em sua visita ao eminente (e sem planos) dr. Delcavoli, Walt recebe a notícia de que tem adenocarcinoma do pulmão, estágio IIIA. Ao dar-lhe dois anos de vida, os autores o colocam pouco abaixo do prognóstico médio padrão para esse tipo de câncer. Na verdade, dependendo de fatores como o tipo e a localização do tumor, a chance do paciente continuar vivo após cinco anos do diagnóstico gira em torno de 10%. Essa sobrevivência supõe que ele receba um tratamento, que não é de todo efetivo.
Uma cirurgia não ajuda, mesmo o dr. Mustard Stain sabe disso; radioterapia, que pode ser útil para limitar sintomas como falta de ar e dor, não causará grande impacto na sobrevida; e quimioterapia, que enquanto pode aumentar em média a sobrevida de um a dois meses, não poderá alterar dramaticamente o curso da doença.
Existe até um estudo publicado no New England Journal of Medicine que sugere que, ao aplicar tratamento agressivo contra o câncer – especialmente acrescentando agentes secundários e terciários de quimioterapia, quando a primeira linha fracassa –, podemos na verdade encurtar as vidas das pessoas de um a dois meses. Esses tratamentos secundários são, em geral, colocados em segunda linha, porque não mostraram ainda nenhum benefício evidente a mais que os de primeira. Na verdade, costumam não funcionar muito bem, só agem de modo alternativo ou causam menos efeitos colaterais. Não aumentam sobrevida e costumam diminuir a qualidade dela. Esses tratamentos-reserva conseguiriam fazer apenas uma coisa, justo o que Walt quer evitar: medicar seus últimos meses de vida. O que ele ganharia em troca por todo esse tratamento é a possibilidade de ter mais tempo; talvez um ano ou dois, talvez nenhum: não há garantias. A chance de o tratamento encurtar a quantidade de tempo que ele tem é na verdade maior do que a de ajudá-lo a viver por mais cinco anos após o diagnóstico inicial.
O que é autonomia, afinal? A definição básica de autonomia é “a habilidade de agir, livre de coerção, contanto que não prejudique os outros”. Na filosofia ocidental, a autonomia é discutida junto do conceito de coerção, que são dois polos totalmente opostos nas tomadas de decisões.
Immanuel Kant (1724-1804) acreditava no chamado imperativo categórico, que ele descrevia como “Agir somente segundo a máxima que você pode, ao mesmo tempo, desejar que isso seja uma lei universal” – vagamente similar à regra de ouro “faça aos outros como quer que façam a você”. Na primeira temporada, tenho quase certeza de que Walt ainda acreditava nisso também; ele pareceu ficar chateado por dias depois de ter matado aqueles dois caras. Kant achava que temos a habilidade de escolher as regras segundo as quais vivemos livre e autonomamente, considerando que o façamos independentemente de emoções e circunstâncias que ajam como elementos coercitivos.
John Stuart Mill (1806-1873) também discutia sobre autonomia e coerção. De acordo com ele, já que um indivíduo é um ser consciente, ele tem o direito de agir de formas não necessariamente inteligentes, que podem ser, em geral, consideradas erradas ou autodestrutivas. Você pode gritar com esse imbecil, mas nem você nem ninguém – inclusive o governo – pode impedir que essa pessoa aja de modo autodestrutivo, contanto que essa pessoa não prejudique ninguém. Segundo Mill, somos autônomos o bastante para nos mutilar e até nos matar, sem que alguém nos impeça – porque impedir seria uma forma de coerção.
A dificuldade dos leigos, pessoas não treinadas em medicina, em alcançar esse entendimento de autonomia não é facilitada por nós, leigos treinados em medicina. Na verdade, em vários sentidos, somos parte do problema. O aspecto que mais me desapontou no encontro de família do episódio foi a subestimação da importância que nós, profissionais da medicina, temos para estabelecer uma melhor compreensão dos limites entre o que podemos fazer e o que não podemos (mas queremos tentar fazer mesmo assim).
Veja, as pessoas que oferecem um tratamento têm suas próprias ideias e métodos de coerção. Se imaginarmos a conversa que o dr. Delcavoli e Walt teriam caso a náusea e fraqueza geradas pelo tratamento tivessem piorado, certamente ouviríamos o médico oferecendo agentes secundários ou terciários à quimioterapia como substitutos. Agentes estes que ele saberia, com certeza, que não ajudariam – e, na verdade, encurtariam a pobre sobrevida de Walt – mas ele os ofereceria mesmo assim.
O médico faria isso por um sem-número de motivos: por entender a importância da esperança; porque gostaria de acreditar que vai funcionar; porque seu ego não o permitiria admitir a derrota; possivelmente porque ele é sócio do centro onde Walt faria o luxuoso tratamento; mas também porque ele é apenas mais um covarde que, como todos nós, não quer lidar com a mortalidade de Walt e com a sua própria.
Quando digo nós, a propósito, infelizmente quero dizer nós. Tenho vergonha de dizer que houve momentos em que não tive coragem de dizer aos meus pacientes exatamente o que estava acontecendo. Fiz isso por quase todas as razões listadas acima, exceto a de ganhar muito dinheiro – essa ainda me escapa. Então por que estou contando esse segredinho ao tentar falar sobre coerção? Porque quando não queremos lidar com a sua (nossa) mortalidade, sugerimos, damos a dica, persuadimos e até manipulamos para que aceite um tratamento que você talvez não aceitasse naturalmente. Tentamos coagi-lo a aceitar esse tratamento pelo modo que o apresentamos. Fazemos as coisas que queremos que você aceite soarem muito verossímeis e as que não queremos soarem desumanas.
Isso também afeta como respondemos às suas perguntas: “Doutor, ele vai sobreviver à cirurgia?” “Claro, ele pode sobreviver”, dizemos. Se disséssemos a verdade – “Se ele sobreviver à cirurgia, existe quase 100% de chance de que ele passe o resto da vida na UTI, com tubos saindo por todos os orifícios” –, você não nos deixaria operá-lo.
Aparentemente, a ideia de ganhar um pouco de tempo não parece tão ruim, o que torna a coerção bastante fácil. Vendemos às pessoas algo que elas realmente querem. Infelizmente, o resultado dessa coerção é que o tempo ganho vem com um custo. Os efeitos não são efetivamente garantidos, são desconfortáveis e algumas das medidas suportivas, como ventiladores e hemodiálise, poderiam ser consideradas absolutamente desumanas. Às vezes, o que a tecnologia nos entrega é muito pouco tempo, medido em horas e até mesmo em minutos. Desaceleramos o processo da morte, mas não o paramos. Geralmente, somos colocados em situações nas quais devemos decidir pelo resultado menos pior; e quando a melhor coisa a oferecer é uma aposta a longo prazo, escolhas baseadas nos valores do paciente são tão importantes quanto aquelas que dependem de compreensão médica, incompleta ou inexistente.
Por causa disso, a ideia de autonomia atualmente é aplicada de modos muito mais sutis e pessoais do que jamais foi. A ideia de autonomia se tornou mais importante e a compreensão da coerção mudou, o que nos leva de volta a Walt e Skyler. Numa virada infeliz, até irônica, conforme o estresse de ter que tomar decisões cresce junto com os riscos, muitos de nós se tornam menos capazes de afirmar nossa autonomia de maneira corajosa e independente. Ancoramo-nos em nossas famílias, que também estão pressionadas por muito estresse e têm suas questões pessoais. Em algumas situações, as pessoas de que mais precisamos podem ser aquelas com as quais menos podemos contar. Não é engraçado. É meio assustador, mas acontece. E que Deus abençoe os autores de Breaking Bad, que encontraram um jeito de nos mostrar esse enigma.
Armados com algumas ideias sobre autonomia e coerção, podemos agora desmembrar a ética do “encontro de família”. Sob comando de Skyler, Hank, Marie e Walt Jr. sentam-se na sala de estar, numa verdadeira cilada, esperando que Walt traga seu corpo cansado para casa. Skyler sai à frente, armada com a sagrada almofada da vez, anunciando sua intenção com uma candura que, como testemunha de diversos desses encontros, eu já consideraria falsa. Sendo o consumidor de televisão preguiçoso que sou, no entanto, continuei assistindo e, conforme o diálogo prosseguiu, fiquei animado com a veracidade com a qual esse tipo de reunião estava sendo retratada. Questões que levariam horas para serem desmascaradas, mesmo com a ajuda do mais habilidoso psicólogo (o que, deixemos claro, eu não sou), foram desnudadas em segundos pelo meio artístico da dramatização.
Skyler fala primeiro, mas já sabemos que se trata de uma reunião apenas no nome; a intenção dela é fazer Walt agir do jeito que ela quer, aceitar a ideia do tratamento, seguir o melhor caminho, crer na ilusão de que uma cura é possível e que lidar com um tratamento agressivo não é lá grande coisa. Quando Walt tenta expressar seus pensamentos, é reprimido por falar sem estar com a almofada da vez, reforçando o contraste entre a reunião que Skyler quer simular, a intervenção de amor que ela acredita estar conduzindo e a escancarada tentativa de coerção que está de fato acontecendo. Ela passa a palavra a Hank, que recebeu a incumbência de conduzir Walt pelo teste de masculinidade, do modo que Skyler pretendia fazer.
Desconfortável com o assunto, falando de modo que todos sentem ser ineficaz e após algumas metáforas sobre esportes, obscurecidas pelo restinho de queijo no canto da boca, Hank passa a palavra a Walt Jr., a primeira voz completamente honesta. Skyler usa o garoto não uma, mas duas vezes, como uma arma contra Walt, com o intuito de maximizar o efeito de sua crua expressão de emoção – e a manipulação dela funciona. Walt absorve a dor de ser chamado de covarde pelo filho, que superara tantos desafios físicos, mas que não tem ciência de quão errado está com relação a “um pouco de quimioterapia”.
A próxima aliada de Skyler é Marie, mas ela deixa todos de queixo caído ao aceitar, inesperadamente, a decisão de Walt. Seguindo a regra do que as pessoas deveriam fazer numa reunião desse tipo, ela expressa seus sentimentos honestamente. Um tanto exagerada, um tanto imperfeita, sua sinceridade faz sentido para Hank. Capaz, então, de repensar a decisão de Walt num sentido que acha compreensível e honrável – morrer como um homem –, Hank passa para o lado dele. A defesa não é bem digerida por Skyler, que anuncia seu verdadeiro propósito: a crença de que Walt “não precisa morrer”. Num curto momento de irritação, sua motivação em reunir todos ali fica clara: fazer Walt aceitar o tratamento médico que ela acredita que vai curá-lo. O ataque verbal que o representa é interrompido com o assovio de Walt, e somente aí ouvimos a verdade médica empírica sobre a situação real de Walt. Real no mundo real e real (até onde sabemos, sem ter participado da reunião com o autor) em Albuquerque também.
No encontro, o exemplo mais simples e direto de coerção vem, é claro, de Skyler. Walt está prestes a fazer algo que ela não quer que ele faça. Que fique claro que, embora os autores mostrem esse evento como uma intervenção, ele não chega nem perto disso. Intervenções são feitas para fazer as pessoas tomarem consciência do prejuízo resultante de suas ações; por exemplo, a destruição que o alcoolismo causou num casamento. A intenção não é mudar comportamentos legais que não sejam, em si, destrutivos; e as decisões de Walt não saem dos padrões da autonomia e, nem mesmo remotamente, chegam perto da concessão generosa de John Stuart Mill para decisões autônomas.
Esse encontro não serve para refletir sobre o prejuízo que a escolha de Walt lhe causou, mas como a última tentativa de Skyler de manipular a decisão dele. A estratégia dela é ameaçá-lo de isolamento emocional, caso ele escolha evitar o tratamento. Podemos pressupor que a ameaça é de isolamento emocional, dado o relacionamento entre os dois durante os quatro episódios anteriores; também temos provas disso pela transformação de Skyler, por sua resposta fria ao abraço do marido na pia (pela manhã, após o encontro), pela presença atenciosa e afetuosa no centro de tratamento, vendo as veias de Walt serem infundidas com o que ele considera ser veneno. Ela faz tudo isso de modo claro e premeditado (as bolachas com queijo estavam cobertas com filme plástico, pelo amor de Deus!), com o intuito de fazer Walt aceitar o tratamento.
Hank foi usado por Skyler, manipulado para oferecer exatamente aquilo que estava programado desde o seu nascimento: masculinidade. Mas Skyler simplesmente subestimou suas outras ferramentas. Hank serve como contraste para o esteticismo de Walt; na mente de Skyler ele é o protótipo de macho protetor, o que a faz não lhe dar crédito pela inteligência e pela preocupação que havia demonstrado anteriormente, e mostradas depois desse episódio com abundância. Hank não coagia ninguém; ele apenas devorava o cenário... e o queijo.
Walt Jr. não planeja fazer o pai mudar de decisão; ele simplesmente expressa seus sentimentos em relação à escolha dele. Isso certamente diminui a sensação de liberdade de Walt para agir segundo suas decisões, mas isso é uma consequência de seu amor pelo filho, não o resultado de ser coagido por ele. Walt Jr. é a única pessoa que agiu do modo que eu espero que as pessoas sempre façam numa intervenção. A frase que diz ao pai é “Estou de saco cheio!” – resposta verdadeira, emocional, não uma ameaça. Ele não disse que ficaria de saco cheio ou que estar de saco cheio o faria agir de modos que Walt consideraria inaceitáveis. E o mais importante: não sugere que seu sentimento mudaria seu relacionamento com o pai de modo algum. Esses detalhes importantes fazem da resposta de Walt Jr. não coercitiva. Walt poderia, e muito provavelmente já o fez, desistir de controlar a própria vida em nome do filho. Até aceitaria a coerção de Skyler e seu pensamento mágico para recobrar o amor do filho.
Dados os valores de Walt, sua decisão de aceitar o tratamento agressivo não é convicta, mas foi tomada de modo autônomo, e é dele por direito. Uma decisão que pode custar muito ao Walt paciente de câncer, mas, para o Walt pai, vale pagar o preço no momento. A diferença na sua fonte de motivação para a decisão é melhor expressa em como ele age durante o tratamento. Se fosse coagido totalmente pela ameaça de isolamento emocional de Skyler, Walt teria ficado desleixado e ranzinza, fazendo-a pagar, passivamente, durante cada nova sessão de quimiovômito. Ele não faz isso, no entanto; pelo menos não no início. Convencido da utilidade de aceitar esse tratamento falso e suas consequências, ele se arma com bravura e toma o remédio. Mas por que faz isso?
Como pai ou avô, estou sujeito a tomar algumas decisões beneficentes. Não dando notas de vinte dólares, como fazia meu avô, mas sacrificando tempo e dinheiro, que não tenho de sobra, ajudando a cuidar da minha família. Do mesmo modo que vemos beneficência casual por parte das pessoas que nos cercam, podemos ver também essas mesmas pessoas agindo não em benefício próprio, mas dos entes queridos.
Ao longo da vida, vi meus pais se colocarem no buraco, financeiramente falando, para cuidar dos filhos, em especial daquele que escreve este capítulo. Acho tal comportamento justificável; meus pais não gostavam da ideia de ter dívidas depois de aposentados, e meus irmãos provavelmente ficariam muito irritados se descobrissem. Chamo isso de beneficência autônoma e cheguei a contar com ela em certo nível nas tomadas de decisões com meus pacientes.
É autônoma porque é uma escolha feita livremente; é beneficente porque envolve fazer coisas boas que não temos necessariamente vontade de fazer. E merece discussão, porque, às vezes, é difícil aceitá-la vinda dos outros, como amigos, irmãos e equipe médica. Um indivíduo mantido por respirador pode preferir a morte a continuar acorrentado a aparelhos médicos, mas posterga a retirada do tratamento para esperar que passe um aniversário, uma formatura ou outro evento familiar insignificante. Para uma pessoa presa a uma cama hospitalar, que perdeu todo o controle de sua vida, inclusive a nutrição e a excreção, esse pode ser o único jeito de ajudar. Considero essa decisão positiva e procuro auxiliar quando possível.
Um exemplo ocorreu num encontro de família que inventei. Uma mulher, cuja vida era mantida apenas pelas horas gastas ao lado de uma máquina de hemodiálise, três vezes por semana, descobriu que o coração do marido estava falhando e que ele recebera indicação de cirurgia. A resposta dele, muito coerente com o que eu esperaria em uma situação real, foi prorrogar a cirurgia. Quando a esposa descobriu, disse: “Se eu não o fizer aceitar a ponte de safena, ele nunca vai fazer a cirurgia, e então eu serei obrigada a vir assombrá-lo”. Embora camuflado com humor, o ato dela foi autônomo, foi supremamente beneficente, e não foi coerente com nenhum plano que ela pudesse ter criado para si. Obviamente, sua situação de saúde de mentira era muito mais urgente do que a do marido. O problema – que não é dos menores – é traçar a linha que separa um ato autonomamente beneficente de uma coerção. No cotidiano, esse grau de coerção é virtualmente impossível de identificar, e mesmo que fosse, seria impossível de repreender.
Em “Gray Matter”, contudo, temos um caso em que as questões de relacionamento estão abertas (complementos dos quatro episódios anteriores), a realidade médica foi posicionada como uma bigorna de desenho animado pairando sobre uma pilha de alpiste, e temos a oportunidade de dissecar as dinâmicas da reunião, considerando todos responsáveis por suas atitudes. Minha opinião é que Walt decidiu receber o tratamento por causa de Walt Jr., não pela chantagem emocional de Skyler.
No mundo real da medicina, temos de lidar com os detalhes específicos de cada situação. Esperamos poder guiar cada pessoa, seja paciente ou familiar, a certo nível de compreensão e aceitação. Esperamos que as decisões do paciente sejam tomadas com o total interesse próprio, já que cada um de nós merece poder se satisfazer no final da vida. Esperamos que os pacientes em tratamento tenham todo o apoio de família e amigos, o que os fará sentirem-se confortáveis. Confortáveis não como eufemismo para suicídio assistido, mas no sentido de livrá-los de um desconforto oneroso. Fazemos de tudo para que as decisões não sofram coerção, mas no fim temos de aceitar a decisão tomada pelo paciente e oferecer o tratamento do modo mais humano possível. Embora seja difícil assistir a um tratamento que sabemos ser inútil, pode acontecer que a pessoa o aceite de modo autônomo, pelo desejo genuíno de confortar os entes queridos.
Para os leitores que prestaram bastante atenção e pensaram – tolinhos – que eu pretendia sugerir um modo de tornar uma coerção como a de Skyler ilegal, sinto muito; a coisa não funciona assim. Eu apenas disse que deveria ser ilegal, estão lembrados? Um dos jeitos pelos quais somos coagidos é pela lei. Não podemos crer que todo mundo vai agir honestamente, por isso temos fechaduras nas portas e mantemos os curiosos do lado de fora. Qualquer ladrão que se preze pode invadir uma residência em menos tempo que eu levei para escrever esta frase (que, só para constar, levou-me quase vinte minutos. Escrevo muito devagar). Leis são necessárias para impedir o caos, mas não podemos ditar completamente todas as ações. As decisões com relação a nossas vidas e, principalmente, com relação a nossos corpos devem ser autônomas. Um kantiano pode argumentar que Walt tomara sua decisão de receber tratamento exatamente como Kant gostaria, sem levar a emoção em conta. Um milliano sugeriria que Skyler ficou fula da vida, porque Walt pode tomar decisões por conta própria.
No fim das contas, tanto no final da vida quanto no meio, deveríamos ter a liberdade de tomar as decisões mais estúpidas pelas mesmas razões indecifráveis que sempre nos guiaram. Nosso trabalho – e falo mesmo sobre todos nós – é ajudar nossos entes queridos a fazer escolhas melhores, mas dar-lhes liberdade de tomar essas decisões e, concordando ou não, apoiá-los.