CHOCANDO-SE COM A MORTECraig Simpson |
Há uma tendência entre os enredos de rumar para a morte... A ideia da morte é construída dentro da natureza do enredo. O enredo de uma narrativa é não menos do que uma conspiração de homens em guerra. Quanto mais preso o enredo está à história, mais provável será que acabe em morte.
DON DELILLO
Breaking bad é uma série que fala, em primeiro lugar, sobre reações. Essas reações podem ser químicas, como quando pseudoefedrina é misturada a cristais de iodo e fósforo vermelho, que reagem gerando metanfetamina em cristal; podem ser físicas, como quando as células do corpo humano crescem sem controle, devido a reações a toxinas presentes no meio ou em nosso DNA, gerando tumores malignos; ou podem também ser humanas, como o sentimento arrebatador de desespero do ser humano ao descobrir que vai morrer.
Em Breaking Bad todas essas reações, esse jogo entre o químico, o físico e o humano, podem ser ligadas ao anti-herói da série, Walter White, um professor de química do Ensino Médio extraqualificado que descobre sofrer de um tipo raro e fatal de câncer de pulmão. Depois do choque inicial da notícia, ele formula um plano de ação para salvaguardar a segurança financeira da esposa grávida, Skyler, e do filho Walt Jr., que sofre de paralisia cerebral.
O que esse drama nos apresenta é um homem jogado numa situação aparentemente sem esperança de resolução e que deve lidar não somente com a própria mortalidade, mas também com o fato de deixar para trás seus entes queridos em precária situação. Para Walt, saber que ele logo vai morrer de câncer e que sua expectativa de vida foi drasticamente reduzida (a não ser que ocorra uma cura milagrosa), faz com que a morte não seja mais um limite abstrato ou distante imposto à vida, mas uma presença incômoda e diária.
Walt é posto a caminho da morte logo no começo. O filósofo alemão Martin Heidegger afirmava que toda a existência humana era o que ele chamava de caminhar para a morte, “a possibilidade de nossa própria impossibilidade”.
Heidegger argumentava que as categorias humanas de experiência são construídas com base no conhecimento de que somos finitos, historicamente situados e presos a uma vida que caminha para a morte. Quando percebemos e aceitamos a realidade de que a vida caminha para a morte, passamos a viver uma existência autêntica. A autenticidade também está em viver cada momento ao máximo, enquanto temos em mente a transitoriedade da vida no fluxo do tempo. Heidegger procurava encontrar a melhor maneira dos humanos se relacionarem com a própria mortalidade – o melhor jeito de viver a vida perante uma morte certa e irrevogável.
Heidegger acreditava que nós, seres humanos, escolhemos modos profundamente inautênticos de viver nossas vidas perante a inevitável ameaça da mortalidade. Na verdade, ele acusava a filosofia ocidental tradicional de abandonar o dever de lidar com a questão da morte. A filosofia sempre foi mais preocupada com verdades não mortais do que com o problema da morte. Por exemplo, a noção de mente ou de alma imortal foi privilegiada em relação à matéria do corpo, que apodrece e é finita.
Para Heidegger, a única verdade da vida é que nascemos e morremos. Ser é o que acontece no meio. Sempre nos encontramos já em certo ponto do tempo e não temos controle algum sobre ele quando entramos em seu fluxo. Nossa existência na Terra é, portanto, maciçamente influenciada pelo tempo. Heidegger não se referia ao tempo comum, do relógio – que imaginamos progredindo, numa série de agoras, em que o ser humano é visto meramente como existente numa longa linha de momentos sucessivos –, mas sim ao tempo visto como um espaço limitado (devido a seu status de ambiente historicamente condicionado), que abre as possibilidades para a emergência do que ele chamaria de ser autêntico, ou Dasein.
Flashbacks são uma importante ferramenta na narração da história em Breaking Bad, assim como podemos usá-los para explicar algumas ideias de Heidegger sobre o ser e o tempo. O filósofo acreditava que o ser emerge de uma unidade de passado, presente e futuro; nossas ações passadas determinam, portanto, uma série de possíveis futuros para nós. Ele dizia que o passado de um ser humano nunca é deixado para trás; ele permanece e influencia aquilo que somos no presente e quem podemos ser no futuro.
Os flashbacks de Breaking Bad nos mostram os momentos da vida de Walt antes dele se transformar em Heisenberg, o mítico produtor e traficante de metanfetamina. Quando visto sob essa luz, os flashbacks se tornam mais do que um modo de contar a história. Seu significado filosófico vem do fato de vislumbrarmos breves, porém notáveis, indícios do homem que Walter antes aspirava a ser (para Heidegger, essa é uma das possibilidades de Walt): um químico renomado, que poderia dar uma boa vida a Skyler e Walt Jr., enquanto, ao mesmo tempo, aproveita todas as delícias materiais que o sonho americano tem a oferecer.
Embora de um modo bagunçado, Walt conseguiu alcançar tais aspirações, mas é justo dizer que não foi da maneira que ele sonhara! No episódio “... And the Bag’s in the River”, da primeira temporada, um flashback é mostrado quando Walt está limpando os restos do parceiro de Krazy-8, Emilio, dissolvido por ácido, a quem Walt matara quando foi atacado, junto com Jesse, em seu laboratório móvel no deserto. Vemos Walt mais jovem, nos Laboratórios Sandia, tentando quantificar a composição química do corpo humano com sua animada parceira de experimentos, ambos divertindo-se muito com o prazer de estudar ciências. O passado de Walt como químico habilidoso se entrelaça, de modo comicamente macabro, com sua situação atual de quem cometeu um assassinato e deve agora livrar-se dos restos do morto.
No episódio “Full Measure”, da terceira temporada, vemos Walt em momentos felizes, dessa vez com a esposa, Skyler, imaginando o que o futuro lhes reservaria e o que ele poderia oferecer à grande família: “Nosso único caminho agora é para o alto”, gaba-se um Walt otimista. Existe um quê de aspereza nesses flashbacks, considerando o que o espectador já sabe sobre a vida de Walt e Skyler e os caminhos diferentes que os dois tiveram de traçar.
Heidegger acreditava que o que aconteceu no passado já se encontra inscrito ao mesmo tempo em nosso presente e futuro. A húbris ou arrogância de Walt ao planejar sua vida ao longo de uma linha de tempo, o tempo moderno do relógio, (algo que todos nós fazemos quando organizamos um calendário ou escrevemos um diário) significa que ele tenta separar passado, presente e futuro numa linha plana e unificada de existência. Para Heidegger, esse comportamento para com a temporalidade é inútil, porque nós não podemos ver todos os três – passado, presente e futuro – ao mesmo tempo, como blocos separados e distintos de tempo.
Ao planejar ou organizar nossas vidas assim, estamos, na verdade, vivendo inautenticamente, porque estamos desejando um determinado momento no tempo, no futuro. Podemos ver na afirmação de Walt “Nosso único caminho agora é para o alto” que ele acredita que seu status na sociedade e a felicidade futura da família estão seguros. Os flashbacks em Breaking Bad servem para nos lembrar de que o passado de Walt teve influência em sua situação presente – ele continua, afinal, praticando química e cuidando do bem-estar da família –, assim como terá em seus possíveis futuros. Heidegger chamaria isso de futuridade, o Dasein de Walt direcionado para um futuro que sempre contém o passado – o seu ter-sido.
Esse ter-sido do passado de Walt (a paixão pela química nos Laboratórios Sandia, o amor pela família e o desejo de felicidade) não desaparece quando ele descobre que tem câncer e vê sua vida tomar uma nova direção drástica. Enquanto nos é impossível argumentar que a vida de Walt não mudou devido a essas novas circunstâncias, esses flashbacks nos mostram que o homem que ele é agora sempre foi uma possibilidade no horizonte de sua existência.
Tudo o que Walt fora antes de descobrir sua morte iminente, sua vida antiga, com suas esperanças e aspirações – não somente a ter uma família feliz, mas também à uma mobilidade social (que está intimamente ligada ao seu conceito de sonho americano) – é um elemento do todo unificado, em vez de um segmento que já passou. Essa ideia de todo é um aspecto muito importante do pensamento de Heidegger sobre temporalidade, porque considerava passado, presente e futuro uma coisa só. Em outras palavras, o futuro não deveria ser visto como algo depois do passado, e o passado, antes do presente (o que tem mais a ver com esse conceito moderno e comum do tempo). Para Heidegger, é por esse todo unificado que a temporalidade se revela como o futuro que atualiza o passado.
Como tudo na filosofia de Heidegger, a morte nunca está distante, mesmo quando fazemos planos. Já que a morte é um fato certo e inegável, quando planejamos o futuro, como faz Walt, estamos sempre chegando mais perto dela; nos projetar num tempo que ainda não chegou é sempre um movimento em direção à nossa própria aniquilação. Entretanto Heidegger sentia que, em nosso planejamento diário, ignoramos a possibilidade da morte e vivemos como se todos os objetivos que definimos pudessem ser alcançados sem sua possível intromissão. Se ele estivesse vivo hoje em dia, certamente seria contra nossa atitude perante a mortalidade. A cultura ocidental continua num estado de negação abjeta quanto à realidade do fim, visto que, no fundo, todos nós nos recusamos a aceitar que vamos morrer.
Vivemos numa cultura muito difundida de ansiedade perante a morte; tentamos burlar o processo de envelhecimento com cirurgias plásticas e até sonhamos em transportar nossas mentes para dentro do disco rígido de sofisticados computadores. Quando Walt recebe o diagnóstico do câncer, torna-se, de certo modo, ciente de sua existência corpórea como ser finito que, como todos nós, é vulnerável ao sofrimento e à morte. Se a doença faz algo por nós, é talvez nos lembrar da natureza material de nossos corpos; que somos, no fim das contas, matéria orgânica em processo de declínio. Talvez seja por isso que ouvimos Walt dizer que “Tem de existir mais do que isso para o ser humano”. Ele acha difícil aceitar que pode não haver mais nada para o ser humano do que sua composição de carne e sangue.
Mas essa ansiedade de negar a morte e a repressão do pensamento sobre mortalidade estão aparentes no pensamento calculista de Walt antes de descobrir o câncer. Para Heidegger, o pensamento calculista era um estranho jeito de ver o mundo, que fugia ao próprio pensamento. É um jeito de pensar tão preocupado em alcançar objetivos e conseguir resultados que nunca se detém sobre tudo mais, para acalmar e ponderar sobre o cotidiano. Podemos vê-lo como um modo de pensar e o mundo que leva à ausência de pensamento. Heidegger acredita que as ciências da idade moderna tecnológica foram as que mais usaram esse tipo de pensamento, porque ele serve para propósitos específicos. Ao mesmo tempo que o reconhece como benéfico para as necessidades humanas no mundo tecnológico, Heidegger lamenta o fato desse pensamento ser estreito e limitado no que tange ao pensar e ao ser no mundo.
Lembre-se de que Walt é um cientista, em essência. Podemos ver que seu pensamento calculista e seu planejamento não alcançaram os objetivos que ele tinha em mente quando disse “Nosso único caminho agora é para o alto”. Talvez esse seja o motivo pelo qual somos apresentados, em Breaking Bad, a um homem desesperadamente infeliz, mesmo antes de descobrir que tem câncer. Ele é mostrado como um professor de química improdutivo, humilhado quando um aluno descobre que ele trabalha também num lava-rápido para incrementar o orçamento. Os pensadores calculistas são capazes de levar em conta somente as circunstâncias presentes, a partir das quais eles planejam e se colocam em busca dos objetivos futuros. O desapontamento inicial de Walt vem da crença de que ele não alcançou tudo o que planejou conseguir na vida. Suas expectativas são frustradas quando as coisas não saem como ele planejou.
Heidegger acreditava na existência de uma possível reparação para esse modo de pensar, muito moderno e racional: o pensamento meditativo. Talvez nos seja mais fácil visualizar o pensamento meditativo como oposto ao calculista, porque, para Heidegger, ele significa notar, observar, pausar e focar nos momentos que compõem a vida de alguém, “despertar uma consciência do que está realmente acontecendo ao nosso redor e dentro de nós”. As principais limitações do pensamento calculista parecem ser a falta de noção e uma inquietude originários de um foco estreito na busca por realizações e (o que cremos ser) resultados benéficos. Se o pensamento meditativo tem um propósito, este é o próprio pensar – que Heidegger acreditava demandar paciência, cuidado e determinação. Em vez de zombar desse tipo de pensamento por sua falta de praticidade e utilidade, Heidegger o encorajava avidamente, porque ele nos permite focar no aqui e no agora.
Ao descobrir que tem câncer e pode morrer em pouco tempo, Walt torna seu jeito de pensar mais meditativo, focando naquilo que está mais perto e que lhe importa mais. No episódio “Fly”, da terceira temporada, Jesse e Walt estão trabalhando no requintado laboratório de Gus quando Walt vê uma mosca no fim da linha de produção, fazendo-o embarcar numa missão à la capitão Ahab para matar o inseto, considerado um risco de contaminação. Walt logo fica obcecado, o que gera uma série de situações cômicas entre ele e Jesse, assim como revelações sobre sua vida e, talvez mais intrigante ainda, sobre sua morte.
Depois que Jesse coloca calmante no café de Walt ele se abre com o amigo, com notável franqueza e clareza. Num monólogo mordaz, Walt delineia a aparente falta de controle que tem sobre sua vida (matar a mosca talvez fosse uma vitória simbólica). Ele fala sobre como “não era para ser assim”, como o momento perfeito para ele morrer teria sido meses antes, quando Skyler ainda não sabia sobre sua vida secreta.
O que podemos tirar dessa fala é que Walt compreendera que seu pensamento calculista fracassara. Comportando-se como um cientista racional, ele acreditava que o melhor seria fazer dinheiro para a família e depois morrer sem revelar-lhes o homem que se tornara para concluir o intento. Mas tudo fora arruinado, principalmente quando Skyler descobre seu segredo, na terceira temporada.
Essa compreensão leva o personagem ao pensamento meditativo de Heidegger. As reflexões de Walt sobre sua vida e tudo o que ele acha que deu errado nela o levam a tornar-se uma pessoa mais meditativa: ele passa a pensar sobre sua existência de um modo que lhe permite focar no que está mais perto e que mais o interessa. Esse momento de clareza com Jesse (induzido pelo calmante) desperta uma tomada de consciência que Heidegger acreditava ser ativada pelo pensamento meditativo. Quando Walt fala de sua morte e do momento em que ela deveria ter ocorrido, ficamos sobressaltados, porque não é o tipo de coisa de que as pessoas falam tão abertamente.
Entretanto, é isso que Heidegger considera a força especial do pensamento meditativo, e é por isso que ele encoraja abertamente que todos pensemos assim. Este pensamento nos ajuda a ir além do pensamento calculista, moderno, racional, para enxergar mais do que aquilo que consideramos meramente útil para nós. Ao pensar na própria morte, Walt compreende que é um ser finito que um dia vai morrer. E é essa reflexão que o leva para mais perto do que Heidegger chamaria de um “jeito autêntico” de viver. Ao falar sobre o momento em que deveria ter morrido, podemos também dizer que Walt está assumindo sua própria temporalidade – o fato de estar “jogado” no tempo como ser historicamente situado –, em que cada momento presente é uma transição, porque está sempre já desaparecendo em meio ao passado.
O ponto crucial do ser-autêntico-que-caminha-para-a-morte de Heidegger é que deveríamos viver cada momento como se fosse o último. Quando pensamos de modo meditativo sobre esses momentos em nossas vidas, como Walt faz aqui (embora o faça, obviamente, com uma pontada de arrependimento), começamos a compreender seu significado cotidiano, porque entendemos como são efêmeros. Pensar de modo calculista reforça nosso ser-inautêntico-que-caminha-para-a-morte, porque ignoramos a possibilidade da morte ao fazermos planos e estabelecemos objetivos para serem alcançados. Ele tira do caminho o cotidiano e torna os humanos, como diz Heidegger, desenraizados da realidade e de si mesmos.
Martin Heidegger tem relevância especial em meio ao cenário da TV americana, visto que ela está tomada pela morte e povoada por personagens que, como Walter White, precisam frequentemente lidar com a própria mortalidade. Se Don DeLillo está certo ao dizer que existe uma tendência inevitável entre os enredos de tratar da morte, então não há melhor filósofo para lidar com o assunto.1