MACBETH SOBRE O GELORay Bossert |
Coisas ruins pioram-se com o mal.
MACBETH, ATO 3, CENA 2
Shakespeare fez carreira com histórias de pessoas que seguem o mau caminho. Hamlet é uma peça sobre um jovem que entra num frenesi assassino (Oh, mas que desvio do caminho certo!). Em Otelo, um marido exageradamente romântico mata a esposa inocente. Nas peças sobre Henrique IV, Sir John Falstaff é um cavaleiro que rouba carruagens quando deveria defender o reino. Falstaff declara que seu cúmplice, Harry, o Príncipe de Gales, o corrompera. Obviamente, o príncipe não vinha se comportando como um.
Finalmente, temos Macbeth, o guerreiro leal, super-heroico, que fica furioso e mata o próprio rei e seu povo. De todos os meninos maus de Shakespeare, Macbeth é o que mais pode nos ajudar a entender Walter White.
Os exemplos de Shakespeare de pessoas que foram para o mau caminho nos provocam, porque são inesperados. São coisas de tabloide: “Príncipe de Gales é visto bêbado em Eastcheap – Mais notícias às 11”. Uma manchete como essa define uma pessoa com base em seu papel social e ela nos conta como as suposições acerca de seu papel foram violadas.
Quando Shakespeare quebrava a expectativa do público dessa maneira devia, provavelmente, ter em mente a teoria da tragédia de Aristóteles. Esta teoria argumenta que a tragédia descreve universais poéticos em vez de particularidades históricas: a arte deve mostrar como as coisas deveriam ser, em vez de como são. Acreditamos nos personagens quando eles se comportam como esperamos que o façam (ou queremos que o façam); duvidamos deles quando fazem o oposto.
Na arte, os professores deveriam ser altruístas; os traficantes, egoístas. Mais sutilmente, a ideia de um professor deveria sempre inspirar autossacrifício; a ideia de um traficante deveria evocar exploração. Claro, Aristóteles sabia que pessoas reais não correspondem às expectativas – alguns professores servem a si mesmos; alguns criminosos podem ser generosos –, mas ele não achava que os dramaturgos deveriam falar sobre esse tipo de professores e criminosos.
Para Aristóteles, a distinção entre universal e particular ajuda o público a manter uma suspensão de descrença – a habilidade de aceitar a realidade ficcional que ocorre no palco, mesmo sabendo tratar-se apenas de simulação; a habilidade de encenar e fazer crer. Aristóteles odiaria que o público pensasse “Mas os professores de Ensino Médio nunca fariam isso!” (ainda que esse público conhecesse professores que tivessem feito).
Isso cria um problema para qualquer autor ao escrever sobre figuras históricas, como Macbeth, ou personagens que desafiam estereótipos, como Walter White. Se o dramaturgo quer descrever um indivíduo particular, mas o público quer ver um universal, existe um jeito de fazer ambos? Dá para fazer o particular parecer universal? Podemos acreditar que um leal guerreiro escocês, que acaba de salvar a vida do rei, iria matá-lo um segundo depois? Podemos acreditar que um professor de química pode se transformar num traficante de drogas?
No mundo real, eu sei que não é tão difícil encontrar um Walter White. Basta pesquisar na internet “professores que vendem drogas” e encontrar diversos casos ao redor dos EUA; são tantos, que podemos supor uma epidemia. Entretanto, a ideia de “professores que vendem drogas” ainda é chocante. Eu sei que acontece, mas não espero que aconteça. Só porque é plausível, não significa que seja crível no palco. E não basta dizer que as pessoas às vezes simplesmente “seguem o mau caminho”. No drama, o público demanda por explicações além do acaso e da tautologia.
Aristóteles odeia histórias que terminam com deus ex-machina – eventos arbitrários, sobrenaturais ou completamente imprevisíveis que mudam o enredo. A não ser num filme de Michael Bay, a lógica tem que prevalecer ou o público sente que perdeu seu tempo. Um método que Shakespeare (e Vince Gilligan, no caso) emprega para satisfazer essa necessidade é mostrar como o personagem é por dentro, expor seu desenvolvimento psicológico ou – se for o caso – seu colapso nervoso. Entre os personagens de Shakespeare que passam para o lado negro, a mente de Macbeth – levada pela culpa, insegura de sua masculinidade e minuciosamente preocupada com deveres patriarcais – nos ajudará muito a entender por que acreditamos em Walter White como personagem.
No começo da peça de Shakespeare, uma rebelião violenta gera o caos na Escócia medieval. A batalha parece cada vez mais perdida para o rei escocês, Duncan, até que Macbeth e seu amigo, Banquo, reprimem valentemente as forças rebeldes, defendendo o rei e restaurando a paz. Viva Macbeth! Quando os dois guerreiros deixam o campo de batalha, contudo, encontram um grupo de bruxas que preveem que Macbeth se tornará rei, sucedido pelo filho de Banquo. Nas encenações, costuma haver barulhos esquisitos e efeitos especiais nesse ponto, conforme as bruxas saem do palco.
Quando Macbeth, mais tarde, informa sua esposa sobre a profecia, ela o convence a matar o rei Duncan assim que possível, para tomar logo o trono. Convenientemente, o rei se convida para passar a noite no castelo de Macbeth, apenas para ser assassinado em sua cama. Macbeth põe a culpa nos guardas do rei e é imediatamente eleito monarca. Mas o mau caminho não cai bem para Macbeth. Consumido pela culpa, assolado pela paranoia, ele logo cai na loucura, que – num rei – se traduz em tirania. Seus capangas matam seu amigo Banquo (que aparece, mais tarde, para assombrá-lo num jantar), mas falham ao matar o filho dele. Macbeth continua tirando a tranquilidade de seu povo, e as pessoas se revoltam contra ele. A esposa, entrementes, desenvolve demência e fica tentando limpar, compulsivamente, manchas de sangue que ninguém enxerga. Embora Macbeth tivesse contido a revolta contra seu predecessor, morre em batalha nas mãos do líder Macduff.
Isso resume o enredo que Shakespeare escreveu, utilizando muita coisa de crônicas britânicas. Sua contribuição artística original é mais sutil: ele precisa convencer o público de que Macbeth faria as coisas que faz. O drama simula a vida e suas ações, mas representa também a mente e o pensamento. O Macbeth de Shakespeare é crível porque o autor cria uma ilusão convincente de que retrata a mente dele.
A traição e a tirania de Macbeth nos chocam porque parecem contraditórias com tudo o que ele valoriza: autossacrifício, honra, lealdade, patriarcalismo e masculinidade. Estes são bons valores para se sustentar na Escócia medieval, na qual o rei Duncan descreve a habilidade de Macbeth em cortar um homem ao meio como algo que faz dele um “gentleman”, mas também são eles que acabam transformando o guerreiro num monstro. Quando o rei o promove, a honra e o reconhecimento da lealdade satisfazem Macbeth. Mas quando o filho de Duncan é promovido, apesar da superioridade dele no campo de batalha, isso fere o senso de lealdade e honra de Macbeth.
Mais tarde, Lady Macbeth fala em tom lânguido para Macbeth virar-se contra o rei. Ela sugere que um homem de verdade – um homem másculo – tomaria a profecia das bruxas como desculpa para usurpar o trono; um marido de verdade sacrificaria tudo pelo futuro da família, mesmo sua reputação e sua vida. Aqui, ela coloca o apreço de Macbeth pelo patriarcalismo contra si mesmo – ele quer respeitar a figura masculina de autoridade, mas também quer ser reconhecido, ele mesmo, como uma figura masculina de autoridade.
O Macbeth de Shakespeare poderia ter matado o rei por pura ambição, cobiça ou vilania, como um vilão bigodudo de um desenho Hanna-Barbera. Mas, pelo contrário, ele possui uma ansiedade complacente e ainda se sente inseguro com relação à sua masculinidade, apesar do físico musculoso. Ele mata o rei para provar-se masculino para si mesmo. Isso não desculpa Macbeth de suas ações, mas nos ajuda a compreender por que as comete. Podemos mais facilmente imaginar um “bom menino” tornando-se um “menino mau” se focarmos no que significa ser um “menino”.
Conforme a peça prossegue, Macbeth torna-se um tirano que domina o povo escocês, assombrado por seus antigos valores – literalmente, no caso do fantasma de Banquo. Macbeth não receia somente que alguém lhe faça o que ele fez a Duncan: ele se sente profundamente culpado e atormentado por seus atos. Seu senso de honra finca-lhe uma adaga no coração.
Apesar de que quase todo mundo desconfiar que Macbeth tenha feito algo errado, sua incapacidade de confessar os crimes indica que seu sofrimento é totalmente interiorizado; mas esse tipo de interioridade faz dele medroso e covarde. O ato que deveria servir como prova de sua masculinidade o transforma num choramingão, compelindo-o a agir de modo muito mais peçonhento para reafirmar seu poder sobre o povo. No começo, Macbeth tenta, pelo menos, manter as aparências; no fim da peça, não liga mais para quem sabe o quê. Aristóteles chama isso de “reverso” – uma ação que gera consequência oposta à que pretendia –, e Macbeth compra reversos por atacado.
Aristóteles liga os reversos ao conceito de hamartia, o defeito trágico. Heróis trágicos precisam fazer algo condenável, cometer algum erro para justificar seu fim trágico. Precisamos sentir pena deles, mas não podemos pensar que são vítimas de tudo. A hamartia mais comum é a húbris, ou orgulho excessivo. O orgulho depende de como o personagem se vê, atuando em seu interior. É aí que as coisas mais incitantes acontecem no palco shakespeariano. É aí também que ocorrem as batalhas mais interessantes na série de Vince Gilligan, Breaking Bad. O protagonista, Walter White é tão complexo que incorpora não somente os conflitos internos de Macbeth, mas os de Lady Macbeth e de Macduff também.
Apenas acreditamos no comportamento de Walt se acreditarmos em seu psiquismo forjado. Seus valores iniciais, embora menos militares que os de Macbeth, possuem tendências patriarcais similares. Inicialmente, ambos tentam cumprir papéis masculinos tradicionais, como provedores autossacrificantes e protetores de suas famílias. Walt alega verbalmente que produz metanfetamina para poupar a família dos gastos com seu tratamento contra o câncer e para mantê-los bem financeiramente após sua morte inevitável, ao que tudo indica.
Embora a desculpa seja plausível, o roteiro sugere que outros pensamentos possam motivá-lo. Em nosso primeiro encontro com ele, um Walter White sem calças grava uma mensagem potencialmente suicida, com uma câmera doméstica. Ele diz à família: “Não importa o que pensem, eu só tinha vocês dentro do coração”. Esse é o Walt, como gostaria de ser lembrado. Seu uso da preposição “dentro” sugere, figurativamente, que ele está revelando seu interior.
Acreditamos nele? A família é a única coisa que ele tem dentro do coração? Como podemos saber? Em Hamlet, o personagem título professa: “Tenho mais dentro de mim do que pode transparecer”. Muito do drama shakespeariano se vale precisamente dessa ilusão de profundidade – um personagem nos diz que há mais acontecendo dentro dele do que podemos ver. Isso nos força a conjecturar os segredos que movem os personagens e suspeitar quando nos contam sobre suas motivações.
Outros personagens também imaginam o que está “dentro” de Walter White. Quando o professor de química reconta a história de como cortejou a esposa, o cunhado Hank diz para Walter Jr.: “Não sabia que o seu pai tinha dessas coisas”. É uma expressão comum, mas o que quer dizer “essas coisas” de Hank? Ele está falando de libido masculina, agressividade – os traços masculinos do bárbaro guerreiro escocês, que levaram Walt a buscar o que queria –, ao que Macbeth se refere como “ambição”. Ninguém olha para Walt e pensa que ele possui ambições ou que poderia alcançá-las.
Quando Walt dá ao traficante Krazy-8 a chance de implorar por sua vida, Walt diz: “Você fica dizendo que não tenho isso em mim”. “Isso” é o coração de um assassino de sangue frio – alguém que pode superar seus escrúpulos e o medo de fazer algo moralmente errado. Mas o apelo de Krazy-8 volta contra si mesmo. Por um lado, ele quer dizer que Walt não possui maldade, ruindade ou crueldade na alma. Por outro, poderia estar afirmando que ele não tem coragem. Sem saber, o traficante desafia a masculinidade de Walt.
O episódio do assassinato de Krazy-8 é acompanhado por um flashback que mostra ao público um Walt muito mais novo, contemplando uma equação da formação química do corpo humano com Gretchen. Quando a fórmula parece incompleta, ela conjectura que a porcentagem que falta poderia ser a alma – a expressão de uma vida anterior. Walt refuta a teoria de Gretchen, afirmando com confiança erótica que “Não há nada além de química aqui”. Esse materialismo científico, masculino, combina-se ao machismo para mostrar um Walt muito diferente do homem desajeitado, nervoso e afeminado que começa a série. Este é um homem macbethiano que ficou enterrado dentro de Walter White, impossível de ser percebido exceto na memória.
Então, o que está dentro de Walt não é apenas amor por sua família. O que ele tem dentro de si é uma insegurança profunda e incômoda sobre sua própria masculinidade. No primeiro episódio, Walt passa por uma porção de experiências que a minam. Ele é forçado a lavar o carro de luxo do aluno que o desrespeita em sala de aula. Quando Hank lhe mostra sua arma, no aniversário de cinquenta anos de Walter, ele fica assustado e manuseia a arma com dificuldade. Hank responde: “É por isso que só contratam homens”. Os convidados de Walt o ignoram em sua própria festa para assistir à manchete de TV sobre a blitz heroica de Hank. Walt é deixado sozinho com seus pensamentos, separado dos convidados, sentindo-se inferior ao parente hipermasculinizado, despachado e sensual.
Após a festa, ele passa por um episódio de disfunção erétil quando a esposa, Skyler, oferece-lhe, parcamente, prazer manual enquanto checa o eBay. O desinteresse sexual da esposa, assim como a falha na ereção, faz Walt se sentir ainda mais inseguro. Após seu primeiro crime, contudo, ele a procura sexualmente com agressividade: enxerga-se como o macho novamente.
O crime restaura a masculinidade de Walt e, portanto, seu senso interior de orgulho – a húbris, que em geral leva à hamartia. Durante a cena da intervenção de Skyler, na primeira temporada, Hank interpreta o dilema de Walt nesses mesmos termos. A esposa pede à família que, um por vez, expresse sua frustração por Walt recusar-se a passar pelo tratamento contra o câncer. Quando Hank segura, relutante, a “almofada da vez”, ele diz a Walt: “Você tem orgulho, meu velho, eu entendo”.
Referindo-se a Walt com o genérico termo masculino “velho”, Hank liga a identidade masculina à húbris. É claro, a fala de Hank é irônica; ele pode entender o “orgulho masculino”, mas não “entende” Walt, pelo menos não completamente, como acha. Entretanto, a interpretação de Hank ameaça Walter, que gosta de se pensar superior ao ponto de vista bárbaro de Hank – mas talvez não seja.
Se o conflito dramático de Walt fosse meramente material – honrar as obrigações financeiras de sua família de classe média –, ele poderia resolvê-lo de diversos modos menos criminosos. O amigo de faculdade rico e bem-sucedido de Walt, Elliot Schwartz, lhe oferece um contrato de trabalho com cobertura médica completa ou o pagamento de seu tratamento. Porém, Walt recusa a assistência. Ele rejeita igualmente a sugestão de pedir à mãe ajuda financeira. O público pode facilmente concluir que essas recusas brotam de um desejo masculino de independência financeira e autossuficiência. De fato, muito da relutância de Walter em fazer o tratamento vem do ressentimento com a dominância e assertividade da esposa – ela pesquisa opções para ele, liga para os médicos e o infantiliza.
Poupar a dignidade motiva Walter White, mas o mundo pútrido, vil e sanguinolento no qual ele escolhe se meter parece autodestruição. Por acaso, retirar às colheradas os restos parcialmente dissolvidos de um produtor de metanfetamina do piso da casa de seu cúmplice incrementa o senso masculino de orgulho de alguém? Explorar viciados, que estão se envenenando aos poucos com a droga, é mesmo muito mais nobre do que receber caridade por parte dos amigos? Além disso, como Gretchen aponta, Walt diz à família que está aceitando caridade, mas suas ações contradizem os motivos declarados. O dilema contínuo de Walt, como o de Macbeth, faz com que os mesmos atos que o fazem se sentir mais masculino, o deixam, ao mesmo tempo, ainda mais envergonhado. Sua vergonha, contudo, alimenta a insegurança, levando-o a repetir o ciclo do crime. Suas escolhas mais do que frequentemente provam-se contraprodutivas: ele vivencia uma série de reversos.
Walt tem consciência desses reversos trágicos, principalmente no que tange à segurança da família. Quando ele escreve a ridícula lista de prós e contras de matar Krazy-8, a única razão para matar o traficante é proteger a esposa e os filhos do perigo. Depois de testemunhar Tuco matando um membro da gangue, Walt suspeita que ele vai procurar sua família também. Ele passa uma noite inteira vigiando, da janela, com uma faca, esperando um ataque de Tuco. E também rouba um revólver de Pinkman, esperando um confronto com Tuco e seus capangas. Enquanto o comportamento de Walt pode ser comparado com a paranoia de Macbeth e suas noites de insônia, ele empresta, temporariamente, seu papel de análogo de Macbeth para o violento psicopata Tuco. Walt, nesse ponto, é mais vítima de um tirano sanguinolento do que o próprio tirano. Nesse sentido, ele pode ser comparado com outro personagem de Macbeth: o rebelde Macduff.
Macduff é uma charada psicológica para os acadêmicos shakespearianos. Sabendo que o rei estava matando gente a torto e a direito, Macduff abandona sua casa para procurar outros possíveis rebeldes, deixando esposa e filho para trás. Os capangas de Macbeth assassinam brutalmente a família de Macduff, encorajando-o a destruir o rei de uma vez por todas. A questão é por que Macduff não levou a família consigo. A esposa e o filho têm dúvidas similares, ambos falam com vergonha da fuga do patriarca. Eles reagem de modo similar a Walter Jr. e Skyler, quando Walt começa a desaparecer por dias inteiros.
Por um lado, o público se compadece com as perdas de Macduff; o sofrimento dele o transforma no oprimido pelo tirano. Por outro lado, alguns espectadores mais perspicazes tendem a questionar se talvez Macduff investira menos do que poderia na segurança da família. O rapaz deixa a família morrer de propósito? Teria ele sacrificado mulher e filho por capital político, para se tornar vítima e parecer ser o melhor líder? Poderia ele, por masoquismo, ter desejado sofrer com a perda para poder lutar com maior ferocidade e abandono?
É o tipo de questão sem resposta que os professores fazem no meio do semestre – e as escolhas de Walter suscitam perguntas similares. Ele acha mesmo que pode salvar a família com uma faca de cozinha? Enquanto a patética estratégia de Walt poderia simplesmente resultar de pânico irracional, pode-se supor que suas parcas preparações servem de autoboicote. Na quarta temporada, Skyler e Pinkman imploram que Walt se entregue à polícia e entre no programa de proteção à testemunha. Ele se recusa. Protegerá sua família do perigo, mas não às custas de revelar seu segredo.
Apesar de alegar que não tinha nada em mente a não ser a família, poderia Walt, nos recônditos de seu ser, desejar a destruição da família? Se os capangas de Tuco aparecessem na casa, ele poderia morrer como um herói em defesa da família, não como um ínfimo trambiqueiro que trazia sofrimento aos entes queridos. Isso permitiria que ele mantivesse a aparência do professor e pai autossacrificador. Ou tal autossacrifício, na verdade, acaba se tornando uma forma de fustigar aqueles por quem ele se sacrifica? De qualquer modo, os capangas teriam matado todos na casa.
Depois que Walt encena insanidade temporária, aparecendo nu num mercadinho, é mandado para a psicoterapia. Nessa hora, ele embarca num duplo blefe contra o psiquiatra. Walt confessa que encenou sua loucura, mas mente sobre a causa. Superficialmente, Walt está criando um álibi para cobrir o período em que será refém de Tuco. Mente, dizendo que fugiu da família por ressentimento. Mas tudo o que Walt afirma ressentir – ser qualificado demais para seu emprego, a interferência da família, o sucesso do amigo – são coisas que vimos magoá-lo anteriormente. Ele também expressa um rancor suicida para com a família na cena da intervenção com a “almofada da vez”, reclamando, passivo-agressivamente, que achava que não lhe foram concedidas escolhas na vida (nem mesmo o casamento?). Novamente, ele mente para esconder seu segredo, mas, ao forjar essa mentira, Walt tenta enganar a si mesmo. Se o ressentimento para com a família é parte da mentira, então isso significa (para ele, pelo menos) que o ressentimento não é genuíno? Walt suprime a parte de si mesmo que desdenha de seus entes queridos. Ele se sacrifica pela família para provar a si mesmo que a ama; mas seus esforços também os machucam, pois saciam um ressentimento inconsciente contra aqueles que o limitam. Walt está desesperado para provar seu amor porque, em certo nível, duvida dele.
Embora Macbeth e Macduff sejam inimigos mortais, assemelham-se no momento mais trágico de suas trajetórias: descobrem a morte da esposa. Lady Macbeth é um elemento crítico da identidade de Macbeth. Ela o possibilita definir-se em papéis patriarcais – como marido, amante e guerreiro cavalheiresco. Assim, ele justifica muito de suas ações como feitas em nome da esposa. Quando ela morre, Macbeth discursa sobre crise existencial.
Walt, que, de modo similar, justifica suas ações como feitas em nome da esposa e do lar, percebe que o que fez acabou por distanciá-lo dos familares. Esse reverso trágico se manifesta na terceira temporada, quando a esposa se separa dele. Sem a família, Walt perde a motivação mais propulsora para seguir o mau caminho.
Skyler funciona como um agente humanizador para Walt, embora até tente tornar-se cúmplice dele, oferecendo-se para lavar o dinheiro do tráfico. Entretanto, ela nem chega perto de realizar as funções mais complexas de Lady Macbeth. É, na verdade, Jesse Pinkman quem mais atua neste papel dramático, como consorte de Macbeth. Pinkman, assim como Lady Macbeth, incita o protagonista (Macbeth chama Lady Macbeth de seu “ânimo”), oferecendo os recursos, a inspiração e, às vezes, simplesmente a força humana adicional necessária para cometer o crime. Como Lady Macbeth, o papel de Pinkman como cúmplice também é o que o conecta ao protagonista: no começo das duas histórias, Pinkman e Lady Macbeth são apenas personagens que compartilham o segredo e a culpa do protagonista. Mais adiante, eles refletem nos momentos mais obscuros os lampejos do que resta de moralidade no personagem principal.
As interações de Macbeth com sua conspiradora expressam sua preocupação com ela; Walt demonstra senso de proteção para com Pinkman, a quem chama de “parceiro” (termo que ele usa também para sua esposa). Quando Tuco espanca Pinkman severamente, Walt força o traficante a pagar pelo que fez. Mais tarde, intercede pelo parceiro quando os dois estão sob o jugo de Tuco. Walt intervém por Pinkman novamente quando eles entram em conflito com Gus e quando ele impede Pinkman de se vingar dos capangas do chefe do crime. Walt “precisa dele”, profissional e emocionalmente. Quando Walt adota a persona de Heisenberg, tornando-se um macho durão, confiante e agressivo, a vulnerabilidade de Pinkman extrai sua humanidade remanescente, provando que Walt mantém a capacidade de ser um “cara legal”, mesmo parecendo não ser.
E mais, Walter também age como a Lady Macbeth de Pinkman. Parte da complexidade da série recai no fato de que Walter não é fácil de classificar. Ele é praticamente a peça Macbeth encenada por um só ator. Walt incita Pinkman a mergulhar ainda mais no submundo, desafiando sua masculinidade, como fez Lady Macbeth. É uma perversão dos valores professorais de Walt ao querer que o aluno evolua. Quando um dos capangas de Pinkman é roubado, Walter ataca seu parceiro, como retaliação. Até a liberdade que Walter inveja em Pinkman remete a Lady Macbeth, que fantasia ser um homem.
Na segunda temporada, quando Pinkman começa a se afirmar e querer para si o papel de chefe do crime, Walter se submete ao papel de subordinado, como “produtor”. Walt passa a ser a mulher que cozinha, enquanto Pinkman sai para trazer dinheiro. Isso ecoa a inversão de papéis que Walter sofre em casa, onde a esposa começa a deixá-lo literalmente na cozinha quando sai de casa. Embora o intuito de Skyler seja fazer Walter sentir o gosto do próprio remédio, ele, ao contrário, sente-se novamente como a vítima afeminada. Walt parece ter seguido o mau caminho para ser mais homem, mas acaba assumindo um papel submisso em ambos os mundos. Na quarta temporada, ele convence Jesse a conspirar contra a vida de Gus. Chega a tentar um golpe à la Lady Macbeth contra Mike, capanga de confiança de Gus, para convencê-lo a ajudar a matar seu chefe. Mike, em vez de ajudar, deixa Walt com um olho roxo. Pelo visto, ele assistiu a Macbeth.
Os planos de Walter White fracassam por completo. Por um tempo, ele é o rei Duncan, traído por Jesse, que foi instigado pela chantagem da namorada viciada em heroína (Pinkman, aparentemente, tem diversas Lady Macbeths em sua vida). Por um tempo, ele é Banquo, perseguido pelos capangas de Gus (embora Walt vire o jogo rapidamente contra o químico rival, Gale). Por um tempo, Walter foi quase todos os personagens de Macbeth, até mesmo uma bruxa barbada a misturar ingredientes exóticos num caldeirão.
No fim de Macbeth, o rebelde Macduff dá ao tirano a última oportunidade de se render. Macbeth poderia fazê-lo, talvez até redimir-se, em parte. Poderia desculpar-se pelos horrores que cometera e reconhecer sua vergonha, mas ele decide morrer lutando. Teria sido mais “masculino” oferecer a reparação por vontade própria, ou é mais “masculino” lutar até mesmo quando está fadado a morrer (e está errado)?
E pelo que Macbeth luta no fim? Seu reino foi perdido, a esposa morreu e sua reputação arruinou-se – Macbeth não tem nada. Macduff carregará a cabeça dele, decapitada, em torno do palco – nada muito digno. Macbeth fica tão acostumado com o mal que este se torna seu padrão. Ele não procura mais desculpas ou análises de custo-benefício. Ele nem mais tem prazer com a maldade. Macbeth escolhe o mal pelo mal. Aceitamo-lo no fim porque Shakespeare nos apresenta e desenlaça uma série de conflitos psicológicos críveis.
Ao contrário das bruxas de Macbeth, não posso prever como as coisas terminarão para Walter White nem predizer como suas motivações flutuarão. Se a história dele é uma tragédia, então Aristóteles prediria que o reverso final do protagonista viria de um reconhecimento – a descoberta de um conhecimento, geralmente sobre si mesmo. Talvez Walter White descubra o que mais tem dentro de si. Talvez perceba que o que pensava existir acabou ou jamais existiu.
Testemunhamos diversas alternativas plausíveis quanto ao “o que” ele tem “dentro” de si – sua família, sua antiga vida, sua luxúria, seu orgulho. Mas como Walt perde cada uma das conexões exteriores, seus motivos parecem cada vez mais fracos. Como Macbeth, ele para de sentir prazer com o fruto proibido; as motivações escapam. O que mobiliza Walt nos atormenta, conforme ele fica mais corrompido e menos compreensível. Vendo Macbeth e Walter White fazerem o que querem, parte de nós quer o que eles têm dentro de si e outra parte teme já ter.
Walter White tem, de fato, algo ruim dentro de si: câncer de pulmão. O câncer funciona tanto como ferramenta de enredo quanto metáfora. Ele instiga o protagonista ao crime, a domar seu destino e dias restantes, mas também significa a corrupção de sua alma. O câncer de pulmão reside no interior: não dá sinais até que algo horrível venha para fora – uma tosse, um arquejar, uma gota de sangue expelida. Mas Walt abraça o câncer em vez de rejeitá-lo; o autossacrifício se mistura à autodestruição. A doença fatal o torna, nas palavras dele, “desperto” – dá-lhe um motivo plausível, uma máscara sob a qual realizar desejos ilícitos.
Essa máscara torna-se quase literal em Heisenberg, com seu chapéu preto. Quando Walter White adota esse pseudônimo, não mais o vemos somente como um professor que se tornara criminoso. Vemo-lo com identidades competindo dentro de uma só mente: Macbeth e Lady Macbeth e Macduff e Duncan e Banquo e a bruxa. Acreditamos nele porque, em nossos pensamentos, nós também nos ressentimos por ter um único papel no palco da vida. Temos pena de Walt, e tememos que possamos cometer erros similares porque somos como ele. É isso que Aristóteles chama de catarse, a pena e temor pelo protagonista – e é justamente esse o propósito da tragédia.