MAIS QUE HUMANOStephen Glass |
No centro de duas séries de TV, Breaking Bad e Mad Men, estão dois caras fascinantes, Walter White e Don Draper. Ambos encontram-se presos entre duas identidades e não sabem qual preferem.
Walt é um professor de química sem brio ou um cruel rei do tráfico? Don é um publicitário tranquilo ou um menino sem mãe? Quais identidades esses homens deveriam abraçar, e por que suas crises de identidade os tornam tão irresistíveis?
Tanto Walter White quanto Don Draper batalham para se livrar das regras da sociedade e fazer algo por si mesmos. O filósofo Friedrich Nietzsche previu a chegada de um ser superior, o além-homem, que viveria de acordo com suas próprias regras, não as do bando comum. Walt e Don têm o impulso de se tornarem além-homens.
A maioria das pessoas são criaturas fracas, satisfeitas com confortos simples e conformadas com o status quo no qual nasceram. Veem o além-homem como mal, porque seus novos valores contradizem os delas. Seu bom é o mal delas, e elas não compreendem que o mundo é aparente – tudo é questão da perspectiva pessoal; deveríamos aceitar que tudo é bom e ruim, igualmente. Ser capaz de fazer isso está na raiz da felicidade. É um monte íngreme de se escalar, mas Walt e Don lutam para chegar ao topo.
O oposto do além-homem de Nietzsche é o último homem. Don e Walt certamente não entram nessa categoria. Os últimos homens não são heróis, são dignos de pena; na verdade, um detrimento para a sociedade. Evitam o esforço, são incapazes de sonhar, não pensam sobre o sentido de sua existência, ganham o suficiente para viver e manterem-se aquecidos, e têm orgulho de sua mentalidade niilista.
Roger Sterling, em Mad Men, encaixa-se nesse modelo com muito conforto. Sua vida resume-se a piadas baratas e bebidas caras. Felizmente ele é deixado para trás pelas gerações mais novas, lideradas por Peggy e Pete – pense na cena em que Peggy está fumando maconha que corta para Roger cantando, todo pintado de negro (“My Old Kentucky Home”, terceira temporada), ou no racismo de Roger para com os japoneses (“The Chrysanthemum and the Sword”, quarta temporada). Roger é egocêntrico, hedonista e não tem objetivo algum na vida além de se manter rico – mas é espécie em extinção.
Oposto a ele, Don Draper quer trabalhar, quer construir algo seu. O trabalho é sua paixão e prioridade, mas o desejo de ter o que a sociedade diz que é o melhor – uma bela esposa, uma casa grande com cerquinha branca em volta – o detém, assim como seu prazer de envenenar-se feito um último homem, bebendo e fumando muito para lidar com a ansiedade. Ironicamente, isso apenas piora todos os seus problemas, mas ele não consegue se manter limpo. Uma vez, bêbado, ele teve uma visão com uma amiga já falecida, Anna, ficou arrasado e parou de beber (“The Summer Man”, quarta temporada). Mas ao se manter sóbrio, a vida fica sem graça, então ele volta ao vício.
Walt, definitivamente, não é nenhum último homem. Imediatamente após ser diagnosticado com câncer de pulmão, ele abraça sua mortalidade e infringe a lei desesperadamente, produzindo metanfetamina em parceria com um ex-aluno, Jesse. Mesmo quando pensa que foi pego, depois de se desentender com produtores rivais, ele faz um vídeo de despedida para a família e nega às autoridades que está admitindo a culpa. Escolheu infringir a lei pela necessidade de proteger a família. Pela primeira vez na vida, Walt está exercendo sua vontade de poder.
Demora muito até que ele comece a gostar mesmo do trabalho, entretanto. Em geral, ele permanece sob estresse constante para preservar sua vida e liberdade. Em “... And the Bag’s in the River”, primeira temporada, o estresse é o motivo para o segundo assassinato – o fatigante estrangulamento de Krazy-8 –, e a câmera se demora no rosto dele, cheio de lágrimas, apologético. Vemos desespero similar quando ele deixa Jane engasgar até a morte com o próprio vômito, a mão sobre a boca, descrente de si mesmo (“Phoenix”, segunda temporada). E no episódio “Fly”, da terceira temporada, ele reflete sobre o momento ideal em que deveria ter morrido – embora não deseje a morte. Ele aprende a “deixar para trás”, deixar o passado do qual cultiva culpa. Um além-homem tem que aceitar que tudo o que aconteceu, bom e ruim, foi consequência de sua vontade. Somente então ele pode seguir adiante.
O motivo pelo qual Walt pode escolher seguir em frente é porque, ao contrário de Don, que se destrói com bebida e cigarro, o veneno de Walt (o câncer) lhe foi imposto. Peculiarmente, seu veneno o ajuda a se transformar e a perceber que tem vontade e poder para escolher seu futuro.
Jesse é último homem em Breaking Bad. Da primeira à terceira temporada, sua preguiça para o trabalho e para a vida é destacada. Esse estilo de vida causa, indiretamente, a morte de Jane, visto que a influência dela sobre ele entra em conflito com a de Walt. O amor dele por ela é símbolo de sua preguiça, e a imagem mais clara disso é Walt chacoalhando-o freneticamente de um estupor induzido por heroína, exemplo perfeito de sua dinâmica ativo-passiva. A morte de Jane não muda Jesse, como Walt gostaria, mas o faz perceber seu próprio ódio (o que o tira da posição de último homem), ao se culpar. Na quarta temporada, ele piora, esconde-se dentro de casa, cerca-se de estranhos e volta a usar drogas. Somente quando Walt e Gus manipulam sua perspectiva que ele toma senso de propósito e vontade de trabalhar, para cuidar de Andrea e Brock.
Então nenhum dos nossos personagens principais das séries é um último homem. Mas até que ponto eles são verdadeiros criadores, verdadeiros além-homens de Nietzsche?
A série começa com Walt dirigindo em alta velocidade no deserto do Novo México, com dois cadáveres dentro do trailer e, preparando-se para atirar na polícia. O que poderia ter levado a isso?
No episódio piloto de Breaking Bad, depois da abertura, a primeira pessoa que vemos é Skyler, que está dormindo pacificamente enquanto Walt está acordado. Ele faz exercícios parcamente, fitando seu certificado do Prêmio Nobel de Contribuição à Pesquisa. No café da manhã, Skyler lhe serve bacon vegano, e ele papagueia sobre o conselho dela (“Acho que começamos a cuidar do colesterol, pelo visto”). Walt não vive. Ele mal sobrevive, e sabe disso. É fraco e submisso à sua amada e autoritária esposa.
Perante o diagnóstico do câncer, preocupado com as finanças da família, Walt “acorda” e percebe que sua vida é passageira e que somente seu medo e fraqueza o mantiveram distante de utilizar todo seu potencial. Esse é o primeiro passo para se tornar um além-homem: a mudança de perspectiva – a que diz não aos valores impostos pelo status quo. Walt faz isso ao seguir o mau caminho, com o intuito de juntar dinheiro para sua família – e esse é o conceito central da série, o que mais atrai o público em primeira instância: é correto desrespeitar e magoar outrem para cuidar daqueles que amamos?
Walt teve vontade de rejeitar o status quo mesmo antes de receber o diagnóstico da doença, o que sugere que sempre temos vontade de nos tornarmos além-homens. No episódio piloto, quando ele vê o vídeo da blitz realizada por Hank num laboratório de metanfetamina, em sua festa de aniversário, pergunta imediatamente sobre o dinheiro que lá havia, em vez de querer saber sobre as drogas. Pense também no flashback que aparece no episódio “Full Measure”, da terceira temporada, quando Walt diz a Skyler que quer mais do que uma casa medíocre: “Pra que ser cauteloso? Nosso único caminho agora é para o alto”. No episódio anterior (“Half Measures”), ele mata dois homens para proteger Jesse, e faz seu parceiro matar Gale, para proteger-se. Foi a esse ponto que almejar mais coisas o levou.
Walt faz questão, contudo, de confirmar sua escolha pelo mau caminho. Breaking Bad adapta o pensamento de Nietzsche, segundo o qual um além-homem vai muito além de simplesmente negar os valores bons e ruins impostos: ele escolhe (confirma) os seus. Isso o faz feliz. Até o fim da quarta temporada, Walt está longe da felicidade e acha que tomou decisões ruins. Acredita que agiu por desespero, não pela vontade de ter sucesso, mas isso não significa necessariamente que ele não atue como um além-homem. Como Gus diz, no episódio “Más”, da terceira temporada, as decisões de Walt não foram ruins: “Um homem tem que sustentar sua família... mesmo quando não é apreciado, respeitado ou mesmo amado. Ele simplesmente suporta”. Walt precisa compreender que ele pode enxergar suas atitudes como boas, mesmo que sua família não concorde. Essa percepção seria uma mudança final em sua perspectiva, que o faria feliz e indicaria sua transformação em super-homem; seria também uma confirmação de que seu trabalho é bom para ele. No fim da quarta temporada (“Face Off”), Walt chega a esse ponto.
Antes da quarta temporada, a felicidade do protagonista vinha de acessos breves e de magoar outras pessoas. Ele provava aos outros (mais do que a si mesmo) que estava ultrapassando as expectativas – ele se gaba pelo contrato multimilionário que faz com Gus para Jesse (“Estou dentro, você está fora”). Saul, o egoísta, responde: “Siga o vencedor”, provando que o orgulho e o ego de Walt fazem as pessoas o admirarem. Mas Jesse mostra que essa perspectiva não é tão forte quanto parece, destruindo, simbolicamente, o para-brisa de Walt (“Más”, terceira temporada).
Nietzsche concordaria que o orgulho e a presunção de Walt não são sinais de poder, mas de insegurança e fraqueza. Para ser um além-homem, Walt precisa ser feliz, independentemente das opiniões das outras pessoas. Em contraste com as pessoas mais comuns, que se adéquam à moralidade da sociedade e das religiões tradicionais, o super-homem define sua própria imagem. Ele cria sua própria moral e valores, escolhendo o que é necessário para si mesmo e vive feliz de acordo com sua própria vontade, não de acordo com a vontade das pessoas ou de algum deus. Graças a essas ideias desconcertantes, Friedrich Nietzsche tornou-se o pensador mais notório de toda a filosofia ocidental. Suas ideias foram aproveitadas por alguns dos mais famosos e infames personagens da história, desde Albert Camus a Adolf Hitler.
Jesse vira-se contra Walt na quarta temporada, dando espaço para que ele perceba que está vivendo para si mesmo. Até Jesse, que o admirava no passado, agora o considera egoísta e similar a Gus. Isso faz Walt perceber que ele não pode confiar sua verdadeira felicidade aos outros. Ele precisa criar sua própria felicidade – e Gus é seu único obstáculo.
O final do episódio “Crawl Space” (quarta temporada) subverte habilmente a imagem de Walt morto e enterrado para mostrar que ele está “afundando”, expressão que Nietzsche usa para explicar a rota de superação dos homens ao tornarem-se um além-homem. Essa cena nos faz pensar que Walt morreu, visto que a imagem do enterro sinaliza um fim, mas Breaking Bad faz dela o início de um final de temporada inspirador.
Walt torna-se um além-homem, superando a todos, inclusive a nós, espectadores. Como Jesse, não sabemos nada do seu plano de mestre – é o primeiro momento na série em que não ficamos perto do que se passa pela cabeça dele. A última cena da quarta temporada (“Face Off”) revela que ele envenenou Brock, em um elaborado blefe duplo para desviar a perspectiva de Jesse sobre quem está ao lado dele, virando-o contra Gus.
A moralidade de Walt mudara inesperadamente. Agora, fazer o que é bom para ele inclui fazer aquilo que ele recentemente via como desprezível: machucar, talvez até matar, uma criança. Ele entende que fazer isso não é inerentemente ruim e que se tornou necessário. Todos pensamos que violentar crianças é errado, e, considerando a resposta de Walt ao assassinato do garoto Tomas no episódio “Half Measures” (terceira temporada), não esperamos que ele ache o contrário. É essa suposição que torna a revelação tão chocante. Ele foi além de nossas expectativas e nos superou.
Ao fazer Jesse pensar que Gus envenenou Brock, Walt vence, ganhando de Gus ao suplantá-lo. No fim da temporada, ele aparece no topo de um prédio, literalmente “sobre” a humanidade, sorrindo, calado, sozinho. Finalmente, ele confirma para si mesmo que alcançou seu potencial.
Breaking Bad adapta Nietzsche novamente aqui, postulando outro ponto de vista filosófico. Nietzsche diz que um além-homem quer mais criadores em torno de si, de modo que possam criar novos valores juntos e ultrapassar o status quo – e a competição entre Walt e Gus demonstra isso. Ela sugere que, num cenário moderno e capitalista, dois criadores não podem coexistir. Os motivos de ambos para infringir a lei são muito similares, mas, uma pequena diferença de perspectiva – o modo como lidam com Jesse –, os torna competidores.
Ao matar Gus, Walt abraça uma importante parte da doutrina do além-homem nietzschiano: o eterno retorno. Esse conceito explica que tudo na vida ocorre em momentos que ocorreram infinitas vezes antes e que se repetirão infinitamente. O além-homem, o criador, reordena elementos da vida que retornam, de acordo com sua vontade pessoal. Ele modela a vida de acordo com o que acha que é bom.
Os episódios finais da terceira e da quarta temporadas mostram Walt e Gus tentando neutralizar um ao outro – e eles compartilham temas de enredo notáveis. O mais importante deles é a criança morta ou à beira da morte, como alavanca emocional contra Jesse. O que importa, no entanto, é o que muda na passagem de uma temporada para a outra. Na quarta, Walt usa o fato de a morte de Tomas magoar Jesse. Ele decide usar o traumático evento, arriscando sentir uma grande porção de culpa, com o intuito de manipular a perspectiva de Jesse. Aqui vemos Walt aceitando o eterno retorno de toda alegria e tristeza, como Nietzsche coloca. Ele reconhece, alegremente, que desejara todo o bem e mal, e que superou sua afeição por Jesse. Walt alcançou a verdadeira autoafirmação – transformou-se em super-homem.
Don Draper, de Mad Men, é mais difícil de caracterizar como além-homem, mas ao explorar essa ideia podemos tentar explicar sua popularidade. O pensamento de Nietzsche é teórico e, ao aplicá-lo a um cenário da vida real, temos de sacrificar o lado mais fraco de nossa natureza, devido às nossas relações com pessoas cuja vontade de se sobressair não é igualmente poderosa. O entusiasmo de Don por trabalhar segundo as próprias regras é geralmente sacrificado em benefício de um colega – o que é necessário se ele quiser alcançar o topo da pirâmide capitalista (um sistema cujas raízes se prendem a conformistas, não a além-homens).
Após anos de trabalho sem contrato, o projeto de Conrad Hilton requisita o contrato de Don com Sterling Cooper, e Don aceita. Quando Hilton pula fora e a Sterling Cooper é dissolvida, Don fica agitado e almeja tornar-se individualista novamente, planejando construir uma nova companhia, a Sterling Cooper Draper Pryce. O final da terceira temporada (“Shut the Door. Have a Seat”) quase sugere que Don tenha aceitado o eterno retorno, quando ele inaugura, feliz, uma nova empresa e se divorcia de Betty, que representa os valores predominantes em 1963. Ele aceita a alegria e a tristeza num só pacote.
Apesar disso, a quarta temporada de Mad Men mostra o retorno de Don à fraqueza e à infelicidade. No fim, ele se ilude ao ficar noivo de Megan – uma Betty “melhorada”, já que ela entende a fraqueza dele por sexo casual e trata melhor seus filhos. Mas Peggy enxerga além da felicidade de Don por ser tão similar a ele, só que mais autoconsciente. No fim da quarta temporada (“Tomorrowland”), Don está acordado, ao lado de Megan, que dorme. (Quando supunha que Betty era feliz no casamento, ele não tinha dificuldade para dormir; mas, tendo passado pela dolorosa separação, passa a entender a dor da ex e sente-se incomodado com o noivado.) Sua fraqueza, que o fizera sustentar um casamento tedioso e confortável, levou-o a uma decisão dura.
O fato de Don não querer ser de ninguém atrapalha sua vida pessoal. Raramente ele não está tendo um caso, e, mais de uma vez, ele pede à parceira que fuja com ele. Todos os relacionamentos de Don estão fadados à ruína porque a vontade da parceira de se sobressair é mais fraca ou mais forte do que a dele. Midge e Rachel recusam-se a sair da cidade com ele porque têm amigos e negócios (ou seja, são conformistas), e Don é tão desesperado por obter o amor insatisfatório de sua família que não consegue ficar com Joy e sua família hedonista e desestruturada.
Para evitar perder-se totalmente nessa ansiedade, Don visita Anna Draper, a única pessoa que sabe de sua tumultuada transformação de identidade. Don chama Anna de “a única pessoa no mundo que realmente me conheceu” (“The Suitcase”, quarta temporada). Peggy discorda, e é verdade que se Don fosse se juntar a uma “criadora” além-mulher nietzschiana contemporânea, seria a ela. A secretária está certa ao dizer que realmente o conhece – ela sabe como é difícil sustentar suas escolhas feministas nos anos 1960, com tanto patriarcalismo contra esses valores. Novamente, no entanto, a vontade de Peggy é mais forte do que a de Don, e eles não ficam juntos. A força dela entra em conflito com sua fraqueza para ser um homem dominante.
Don é o meio-termo inconformado entre a geração em extinção de Roger Sterling e a geração politicamente progressiva de Peggy. Ele não percebe a ironia quando chama Peggy de “uma extensão” de si mesmo. Embora eles compartilhem aspectos de caráter, Peggy não aceita se submeter a um papel feminino submisso. O filho não planejado que tem com Pete Campbell sinaliza para o que essa armadilha pode ocasionar, então ela se põe a lutar contra tudo o que pode subjugá-la (“The New Girl”, segunda temporada). Don pode ser conformista e ficar no conforto, o que para ele é ser um homem branco de poderosa posição.
Isso não deveria implicar no fato de Don ser completamente não criativo e nunca asseverar suas ações. Boas ou más, as ações dele são situacionais. Elas o beneficiam momentaneamente, com quaisquer perspectivas que ele tenha num dado momento. Veja como ele trata Sal: ao descobrir que ele é gay, avisa: “Cuidado com a postura” (“Out of Town”, terceira temporada). Não faria sentido que esse detalhe tão trivial fizesse Sterling Cooper perder um diretor de arte, correto? Até certo ponto. A perspectiva de Don muda depois que Sal recusa um avanço de Lee Garner Jr., arriscando perder um trabalho enorme. Nessa situação, torna-se imperativo que Sal vá embora (“Wee Small Hours”, terceira temporada). É ele ou os negócios, e não escolher os negócios seria fraqueza. Don, como qualquer um que tenta ser um além-homem, deve ser egoísta. Deve também se lembrar de que toda ação é momentânea, assim como os motivos. Em outras palavras, “as pessoas fazem coisas assim”.
Don fracassa como além-homem mais do que Walt White porque nega valores muito mais do que cria ou assevera os seus. E isso não é inesperado: ele construíra uma vida para si mesmo no mundo dos negócios, no qual é incrivelmente difícil ser individualista quando se tem tantas responsabilidades para com colegas e clientes.
Nietzsche descreve o homem como uma “corda amarrada entre a fera e o super-homem... uma ponte e não um fim”. Don é literalmente a ponte que leva a nós, espectadores. Podemos ver seus erros, suas falhas e superá-los; daí o período em que a série se passa. Mas se situar em época passada é uma faca de dois gumes: primeiro, lembra-nos do que já passou e nos faz sentir superiores, faz-nos sentir que podemos superar os problemas do passado; mas, em segundo lugar, torna-nos nostálgicos. Mad Men é uma série de aparência estonteante, e não podemos deixar de desejar, pelo menos um pouquinho, ter morado na Manhattan dos anos 1960. (Especialmente nós, homens, vendo nossos ancestrais ter na ponta dos dedos tudo o que eles podiam – e também nós poderíamos – desejar.)
Por que continuamos assistindo a Don Draper? Porque simpatizamos com ele. Vemos seus erros, o que o impede de ir além e ser feliz consigo mesmo, mas geralmente nos identificamos com sua fraqueza. Temos problemas em nossos empregos, famílias, na esfera política – mas pelo menos nos sentimos confortáveis. Nosso humor varia, mas pelo menos não nos sentimos sozinhos: temos Don com quem simpatizar. E, dado que Don incorpora muito do além-homem de Nietzsche, há uma parte de nós que simpatiza com um homem que é vítima da própria tentativa de definir e criar a si mesmo e a sua moralidade.
Walt é mais inspirador para muita gente, provavelmente porque incorpora o além-homem nietzschiano (mais que Don Draper) por de fato recriar-se como Heisenberg e por viver segundo o próprio código moral, um código que lhe fornece o que ele e sua família precisam para sobreviver. Breaking Bad pega um homem de meia-idade e incute-lhe um propósito, poder, vontade; e ele tem sucesso ao construir uma nova vida para si, independente do preço. Se o cinquentão Walt pode fazer isso, nós também podemos! Ou, ao menos, há uma parte de nós que gostaria de poder viver como Heisenberg, um exemplo de além-homem. Como público, somos passivos, em certo sentido; e se queremos genuinamente nos tornar além-homens, ou seja, ser felizes conosco e recriar nossa identidade, precisamos ser ativos. Precisamos nos levantar do sofá, para começo de conversa.