NO DESERTO, SOBRE UM CAVALO SEM NOMEOli Mould |
Quando Walt entra na sala de Tuco, está com um inegável olhar férreo e a certeza de que não há como voltar atrás. Conforme Walt encara o psicopata nefasto que é Tuco, perguntamo-nos como ele poderá sair vivo dessa.
Contudo, logo vemos que Walt planejara o ataque e a negociação usando seus intrincados conhecimentos de química. Ao disfarçar fulminato de mercúrio com a aparência de metanfetamina em cristal, ele consegue, na verdade, infiltrar uma bomba para dentro da sala de Tuco e usá-la como ameaça para negociar o trato que lhe dará o dinheiro de que precisa. Assim que deixa a sala de Tuco, Walt caminha calmamente pela multidão que se reúne, aturdida demais com a devastação que presenciara para se preocupar com ele. Ele entra no carro e, repentinamente, libera a raiva, a frustração e a ansiedade numa cacofonia de semblante contorcido.
Essa cena do episódio “A No-Rough-Stuff-Type Deal”, da primeira temporada, é dramática não somente pelas suas qualidades cinematográficas, mas porque marca um divisor de águas na vida de Walt, o ponto em que ele começa sua descida ao que pode ser chamado de Deserto do Real – chamado de deserto por ser severo e sem vida.
O mundo de Walt, desde o momento em que ele descobre que tem câncer terminal, se desfia, e ele começa sua descida. Ou talvez fosse melhor dizer que seu mundo se desvela. Até esse ponto, somos levados a crer que a vida de sua família é sólida, seu trabalho, embora insatisfatório, mantém-no seguindo um caminho correto e ele tem certa porção de respeito enquanto pai, marido, cunhado, professor e colega de trabalho. Dado que a história de Walt nos é contada a partir da descoberta de sua morte iminente, as informações que temos de sua vida até esse ponto veem por meio de conversas, fotos e idiossincrasias. Tudo para ele parece muito real.
Porém, sua realidade é muito diferente do que filósofos e psicanalistas chamam de Real. Existe uma distinta diferença qualitativa que precisa ser explorada para que vejamos como Walt entra no Deserto do Real.
Nossa realidade é construída por uma combinação de linguagens, símbolos, mídias, histórias, culturas e experiências cotidianas. Mas essa realidade construída é diferente do Real.
A Figura 15.1 nos dá uma noção de como tendemos a nos separar do Real com nossas próprias ideias, percepções e realidade construída, que agem como camada, escudo ou véu entre nós e o Real: a morte, os eventos traumáticos, as experiências horríveis ou estáticas, as interações positivas e os eventos muito memoráveis. A realidade construída é um mecanismo de defesa que erguemos para evitar que sejamos esmagados pelos diversos aspectos severos e sem vida das manifestações do Real.
A realidade sem câncer construída por Walt acaba invalidada pelo Real quando ele recebe o diagnóstico da doença. Ou, mais precisamente, os véus de sua realidade construída erguidos ao longo de sua vida levantam-se momentaneamente e expõem o Real. A partir desse ponto, sua realidade construída muda drasticamente.
A jornada de Walt para dentro do Deserto do Real pode ser articulada com o pensamento de um dos mais famosos psicanalistas, Jacques Lacan (1901-1981). Para ele, o Real pode existir e se impor sobre nós momentaneamente, fornecendo-nos exemplos que podem parecer surreais dados os pontos de referência de nossa realidade construída.
Um exemplo: se um turista branco, de classe média, está numa cidade grande e acidentalmente entra num bairro dominado por minorias étnicas, ele pode encontrar um grupo de jovens rapazes ouvindo gangsta rap e falando gírias que ele não entende. Para o turista, cuja realidade construída até aquele ponto não continha gangsta rap nem nada similar, todo o incidente lhe pareceria surreal, talvez até ameaçador. Isso é o Real, no entanto, furando ou atravessando a realidade construída do branco de classe média.
A diferença, portanto, entre nossa realidade construída e o Real determina quão surreal pode ser uma irrupção. No caso de Walt, a diferença entre sua realidade (marido, professor, lavador de carros) e o Real são experiências muito distantes umas das outras. A fugacidade do contato com o Real, contudo, tem o efeito de mudar os mecanismos de reconhecimento da realidade de Walt, derrubando a distância (embora momentaneamente) entre o Real e sua realidade construída.
O Real, portanto, tem o poder de perturbar ou romper Walt, de subverter suas percepções construídas de realidade ou suas experiências cotidianas da vida familiar. E essa ruptura é severa e sem vida, como um deserto. A realidade construída no cotidiano em que Walt vive é monótona e previsível. É nessa ruptura que o sujeito, Walt, entra em contato com o Real. O Real, contudo, não é uma entidade singular, como poderíamos entendê-lo.
Alguns chamam o Real de hiper-realidade, pois seus exemplos geralmente apresentam características surreais. Isso, diz Lacan, torna as pessoas fracas e “desequilibradas”. O Real rompe, choca e surpreende, cavando as edificações da realidade construída que Walt fizera para si. Ao longo dos episódios de Breaking Bad, esses exemplos de escavação são catalisadores para as mudanças na narrativa – são os momentos de conflito, suspense e drama.
Conforme Walt se relaciona com Jesse, Tuco e depois com Gus, seu envolvimento com o comércio de metanfetamina resume-se cada vez mais a sobreviver e lucrar de qualquer jeito – e a vida de um produtor e traficante de metanfetamina torna-se a realidade construída que ele aceita.
Mas nem sempre foi assim. Walt fica, compreensivelmente, relutante antes de resolver produzir a droga com Jesse para obter dinheiro suficiente para pagar pelo tratamento do câncer. Ele luta contra sua consciência diversas vezes, à medida que suas ações tornam-se mais criminosas (algumas com consequências deveras nauseantes, como limpar do chão o corpo decomposto de um traficante).
As irrupções do Real que cavam a realidade construída que Walt criara para si começam a borbulhar, e o assassinato de Krazy-8, no porão de Jesse, mostra isso. Antes de Walt entrar na sala de Tuco, antes que sua jornada para o Deserto do Real estivesse realmente em processo, temos esse exemplo do Real furando a realidade de Walt: quando ele aborda Krazy-8 e continua tentando convencer-se de que vai ficar tudo bem: “Tudo o que quero é ir pra casa”, diz o rapaz. “Eu também”, Walt responde.
Walt quer mesmo ir para casa. Mais do que isso, quer retornar à realidade de sua vida caseira, desesperado por ter se envolvido com o comércio de drogas. Quando percebe que Krazy-8 pretende mesmo matá-lo com um caco de porcelana, Walt o mata. Ao ver que o rapaz está morto, Walt chora: “Desculpe” (“... And the Bag’s in the River”, primeira temporada). Quando Walt se senta no porão, aos soluços, é porque sabe que sua realidade definitivamente alterou-se em resposta ao Real.
Nossas realidades construídas mudam o tempo todo. Lacan diz que a realidade construída é feita de linguagem, símbolos, sinais e experiências, e, sendo assim, são codificadas e recodificadas continuamente. Esses filósofos, que argumentam que a realidade não é um objeto absoluto, sugerem que ela é um construto, constantemente manipulada pelas ações da vida cotidiana. Para Walt, sua realidade altera-se dramaticamente após matar Krazy-8; em outras palavras, sua realidade fora bem e verdadeiramente subvertida por um ataque do Real.
Conforme o Real penetra (em geral, violentamente) nas realidades, os mecanismos embutidos de adaptação falham, e vemos Walt seguir o caminho da degradação. O Real deixara uma marca na consciência de Walt e sua realidade alterou-se terminantemente. Contudo, sempre existe escolha. Nesse ponto, Walt poderia abrir o jogo, admitir seus crimes e enfrentar as consequências. Ele prefere, ao contrário (ou se convence de que esta é a única opção), continuar a produzir metanfetamina – e a degradação de sua vida, criminalidade adentro, continua. O Real interfere em sua realidade, domina-o e altera a sua realidade e a das pessoas ao redor.
Conforme Walt continua a produzir metanfetamina, ele se envolve mais e mais em atos criminosos e imorais. Roubar equipamento do laboratório de química da escola para produzir metanfetamina já foi bem ruim, mas botar a culpa no zelador exemplifica o modo como Walt permite que o Real irrompa em sua realidade e em suas ações (“Cat’s in the Bag...”, primeira temporada). Walt abomina a atividade ilegal que está “forçado” a perpetrar, insistindo que é o único jeito de conseguir o dinheiro de que precisa. A recusa do emprego oferecido por Gretchen e Elliot é racionalizada por Walt, ainda que conscientemente, como sua incapacidade de prover sua subsistência. Ao não aceitar a esmola (é disso que se trata), ele expõe sua realidade para mais irrupções do Real.
Ao reconhecer que a realidade é construída e que existe o Real além dela, alcança-se uma espécie de estado de nirvana na consciência do verdadeiro eu. Para Walt, pode ser que seu verdadeiro eu sejam as tendências criminosas de Heisenberg e um estilo de vida mais subversivo. Por exemplo, seu apetite sexual revigorado é correlato à produção de metanfetamina. Quando ele vai com a esposa à reunião de pais e mestres para falar da prisão do zelador (sua responsabilidade), temos outro exemplo do Real atravessando a realidade de Walt (e de Skyler). A discussão sobre o equipamento laboratorial que sumiu é justaposta ao encontro sexual agressivo com Skyler, no carro. Walt indica que foi a ilegalidade do ato o que incrementou o prazer, uma relação clara com a produção ilegal da droga que estimula a jornada de Walt para dentro do Deserto do Real, severo e sem vida.
Acontece uma tentativa no consultório do médico de tentar justificar o aumento na potência sexual como efeito do tratamento do câncer. Mas, de maneira mais evidente, quando Walt está compartilhando um charuto cubano com Hank, seu cunhado agente do departamento antidrogas, os dois discutem sobre os limites da legalidade (“A No-Rough-Stuff-Type Deal”, primeira temporada). A discussão, contudo, deixa Walt claramente incomodado por conta de descobrir que a metanfetamina já foi legalizada e por ver a satisfação de Hank com a ilegalidade atual. Nesse ponto, Walt tenta desculpar-se por produzir a droga, argumentando que os limites da legalidade são arbitrários e que o que é ilegal hoje pode ser legalizado no futuro. Talvez ele pense que a produção de metanfetamina será legalizada em pouco tempo. A realidade de Walt tenta justificar o prazer recém-descoberto de produzir a droga, uma tentativa de sua consciência de tornar-se mais ciente de seu verdadeiro eu como Heisenberg.
Essa justificativa é explorada adiante por Walt, numa conversa que ele tem com Skyler sobre o furto da cunhada, Marie. Ele pergunta o que ela faria se ele fosse acusado do mesmo crime. “As pessoas, às vezes, fazem coisas pela família”, diz Walt, numa tentativa de desculpar-se por suas atividades criminosas, muito piores do que um furto. Ele tenta explicar seu desejo pela criminalidade (consequência do impacto do Real em sua realidade) como uma vontade de ajudar a família. A resposta dela, desprezando claramente a sugestão dele, traz a realidade de Walt de volta com um baque.
Entretanto, a realidade de Walt é ainda bastante construída pela relação com a família, de acordo com sua justificativa consciente quanto à produção de metanfetamina como meio para conseguir o tratamento de que precisa para se recuperar. O trato com Tuco no ferro-velho vai lhe oferecer, ele espera, a certeza definitiva de que o Real não poderá irromper muito mais em sua realidade percebida. Mas quando Tuco mata seu sócio cruelmente no ferro-velho, Walt e Jesse assistem atônitos, assustados, a beligerância pura do criminoso e seu desprezo pela vida humana (“Crazy Handful of Nothin”, primeira temporada).
Que efeito isso exerce na realidade de Walt? Seu encontro com Tuco originalmente fora pensado para firmar um trato que lhe renderia o dinheiro de que precisava. Pensaríamos, então, que assim que conseguisse o dinheiro, ele voltaria a sua realidade previamente concebida, contudo construída. As ações brutas de Tuco mostram quão diferente da realidade anterior de Walt é o mundo das drogas no qual ele entrou – uma lembrança constante de que o deslize de sua realidade é contínuo, sua jornada para dentro do Deserto do Real não ocorre mais pelo seu desejo inconsciente pela ilegalidade, mas por algo além disso.
O Real, como argumentam filósofos e psicanalistas como Lacan, é indescritível e indecifrável. Ele existe além de nossas realidades construídas. A realidade de Walt está em constante ajuste, respondendo à presença do Real. Lacan argumenta que a realidade se ajusta pela variação de nossa linguagem e símbolos, de acordo com seu encontro com o Real.
Vemos isso claramente em Walt, conforme precisa contar mais mentiras para manter sua realidade intacta. A maior mentira que conta, em relação ao esforço necessário para manter a realidade de sua família, é seu “lapso de memória” (“Bit by a Dead Bee”, segunda temporada). Quando Tuco o sequestra, ele não consegue manter as mentiras que costumava contar à esposa sobre onde estava quando produzia metanfetamina, então ele é forçado a inventar uma mentira ainda maior, que o leva a passar algum tempo no hospital.
A mentira que ele conta sobre seu lapso de memória faz com que sua família também precise se ajustar a uma nova realidade, pois Walt pode sofrer outro lapso no futuro. A intensidade crescente da mudança de realidades (em outras palavras, o quão surreal ela parece, pois o que poderia ser mais surreal do que ser encontrado nu num supermercado?) é a evidência de que Walt está sendo afetado – ou transformado, se preferir – pelo Real.
Os filósofos que discutem o Real apontam que ele nunca é vivenciado diretamente. Isso, contudo, nem sempre procede. Conflitos traumáticos tendem a estilhaçar a realidade, sem dúvida. O Real tem um poder cru de transformar as realidades com as quais nos cercamos. Um trauma desses, em geral, é de grande escala.
Após os ataques de Onze de Setembro, muita gente falava sobre esse evento como uma exposição ao Real, visto que nossas realidades não conseguiam lidar com evento tão catastrófico. Eventos como esse realmente demonstram a dureza e a ausência de vida do Real.
Para Walt, o trauma não é um evento singular, mas um ataque contínuo do Real. Conforme a realidade dele falha momentaneamente, ele a reconstrói de outro jeito, alterando, assim, sua realidade e as realidades de sua família e amigos. O lapso de memória que ele inventa é apenas outro exemplo, embora significativo, de sua realidade tentando lidar com a investida do Real. Vimos como ele tenta explicar a produção de metanfetamina dizendo que é o único jeito de obter o dinheiro para pagar o tratamento e ajudar a família. Conforme o Real lança-se mais adiante, a realidade dele procura explicar os fatos por meio da racionalização da realidade. Com a intensificação da produção e o contrato oferecido a ele por Gus, a realidade de Walt vai ainda mais para dentro do Deserto do Real (“Mandala”, segunda temporada). Ele começa a ficar sem desculpas naturais.
Pensemos no assassinato de Krazy-8 e no arrependimento consciente que ele sofre por ter feito isso. Isso contradiz muito com o momento em que Walt entrega uma arma a Jesse e ordena: “Quero que você resolva isso”. Ele se refere a um dos distribuidores contratados por Jesse para vender metanfetamina, que foi roubado (“Breakage”, segunda temporada). Para não ser visto como fraco, Walt resolve que o crime deve ser punido. Do arrependimento por um assassinato em legítima defesa para a autorização de um assassinato para mostrar força, temos um grande salto de comportamento.
O Real alterou tanto a realidade de Walt que ele mudou irrevogavelmente. Sua realidade e tudo que a cerca – seus relacionamentos, seu comportamento, sua linguagem e experiências – mudaram para refletir o Real. Walt, pode-se dizer isso agora com alguma certeza, passou de homem de família para seu alter ego, Heisenberg. Estaria ele começando a perceber que o Real é inevitável? Talvez seja por isso que ele aconselha a Hank, após quase morrer na explosão da tartaruga: “Levante-se, vá para o mundo Real e lhe dê um chute, o mais forte que puder, bem nos dentes” (“Better Call Saul”, segunda temporada). A realidade construída de Walt mudou para sempre.
Pelo exemplo de Walt, vemos que o Real é um conceito filosófico, que significa mais do que um desejo inconsciente. Não chega nem a ser o que consideramos destino ou fatalidade. É uma existência que não pode ser vivenciada nem sentida; não pode nem ser referida como um objeto – embora isso seja o máximo que nossa linguagem alcance. Construímos nossa realidade com base em todo um espectro de emoções, experiências, memórias e idiossincrasias que perpassam nossa vida cotidiana. Quando eventos, traumas ou outras irrupções chacoalham nossa realidade, somos expostos à severidade e ausência de vida do Real – e é por isso que chamamos essa exposição de deserto. Mas a metáfora do deserto é somente isso – uma metáfora para uma realidade, definitivamente, não vivenciável.
As mudanças sísmicas que vivenciamos em nossas próprias realidades construídas são mais chocantes do que suas flutuações diárias, mas têm efeitos não menos transformadores. Breaking Bad nos mostra como as realidades mudam em resposta a uma exposição ao Real. A jornada de Walt para dentro do Deserto do Real é uma série de eventos traumáticos e perturbadores que, como um todo, transformam a realidade de um homem de família, com seu trabalho regular, num rei das drogas.
No episódio “Caballo sin Nombre”, da terceira temporada, quando Walt canta para si a letra de uma das mais esotéricas canções da banda America, “A horse with no name”, talvez o cavalo sem nome reflita o Real, que, em si, não tem nome. As formas com as quais realidades construídas são mostradas, mudando continuamente por meio de irrupções do Real – não apenas para Walt, mas também para os demais personagens –, é o que faz de Breaking Bad uma ótima série, que expressa essa ideia filosoficamente rica.
Construímos nossas próprias realidades em torno de nosso cotidiano e vivências, às vezes perturbados pelo Real. Quando o Real entra com tudo, será que vamos resolver, assim como Walt, seguir o mau caminho?