O VÍCIO AMERICANO DE WALTER WHITEJeffrey E. Stephenson |
Somos aquilo que fazemos repetidamente.
Aristóteles
Em Breaking Bad, os autores e diretores da série criaram, com maestria, um anti-herói simpático e de humor negro ocasional, Walter White. Os problemas dele são parecidos com os de qualquer pessoa e simpatizamos com sua situação.
Seu trabalho o deixa sem motivação e até um pouco deprimido; alguns de seus familiares não o compreendem e chegam a menosprezá-lo; até seu carro o deixa na mão no pior momento! Diagnosticado com câncer, ele enfrenta a probabilidade de uma dívida impagável, o que apenas piora sua péssima situação econômica, cercada por credores desde o início da primeira temporada. Esse último fato sobre a situação de Walt torna-se crucial não somente para entender a popularidade da série – todos conhecemos alguém que já contraiu uma dívida destruidora –, mas também a mensagem maior por trás de Breaking Bad e as escolhas de Walter White, um homem, no geral, comum e atual.
É claro, o que gera paixão pela série, além do interesse crescente em seus apuros, é o modo como ele enfrenta o diagnóstico de câncer e como escolhe lidar com o fardo financeiro de sua vida. Afinal, não é todo dia que um professor de química decide se transformar num produtor e traficante de metanfetamina. Mas não devemos nos esquecer de que Walt está fazendo coisas totalmente erradas e perigosas, parte do que torna a série atraente.
Todos sabemos que não é certo produzir e vender drogas, mas por quê? Há uma variedade de teorias por aí que nos dá razões para que nossas ações sejam consideradas morais ou imorais. Provavelmente, a teoria moral mais popular, por conta de sua aparente simplicidade de aplicação, é a deontologia. Seguindo os passos de Immanuel Kant (1724-1804), os deontologistas sustentam que existem modos absolutamente certos e errados de pensar e agir no mundo e que é nosso dever, enquanto criaturas racionais, pensar e agir do modo correto. O princípio mais fundamental para os deontologistas é a universalidade : deve-se agir supondo que todos agiriam do mesmo modo nas mesmas circunstâncias.
Os deontologistas, então, acreditam que certos tipos de atividades são absolutamente erradas, porque não podem ser universalizadas. Mentir, por exemplo, é estritamente proibido para eles, porque não se pode querer que todos mintam. Na verdade, se todos mentissem, não haveria verdade – e, consequentemente, nenhuma base para que o mentiroso se desse bem mentindo, visto que ele precisa que exista a verdade para que a mentira funcione, para começo de conversa! Matar é outro ato imoral, porque não se pode universalizá-lo: se todos matassem, não restaria ninguém para ser morto! O mesmo vale para o roubo, pois nada haveria para ser roubado.
Para os deontologistas, as consequências não entram na discussão moral. Por exemplo, pouco importa se contar uma mentirinha possa ajudar uma pessoa a se sentir melhor (dizendo-lhe que o corte de cabelo ficou bom, por exemplo), ou se contar a verdade possa resultar na morte de alguém. E não é o fato de alguém ser morto ou violentado o motivo pelo qual não matamos, roubamos ou estupramos. As consequências não importam; o que importa, ao agir, é ter a intenção correta que pode servir como lei universal.
No entanto, aderir ao conceito rígido da universalidade e não considerar as consequências fazem muitos terem dor de cabeça por causa da deontologia. A ideia de que sou obrigado a falar a verdade a investigadores nazistas, contando-lhes que tenho judeus escondidos no porão (um argumento clássico contra um deontologista), é considerada, no mínimo, problemática pelas pessoas mais razoáveis. Se considerarmos a situação de Walt com Krazy-8, o ponto de vista deontológico determina que matar o rapaz seria imoral; contudo, pelo ponto de vista de Walt é vantajoso e, de certo modo, ele tinha a obrigação de matar Krazy-8, porque o traficante teria matado a ele e a toda sua família se fosse libertado (consequências muito ruins). É meio maluquice pensar que não se pode considerar as consequências das ações, o que leva ao ceticismo de que a deontologia é uma teoria moralmente contraditória.
Uma teoria moral muito diferente é o utilitarismo, defendida por John Stuart Mill (1806-1873). O utilitarismo foca a atenção somente nas consequências das ações para a maioria das pessoas afetadas. Se o resultado de uma ação vai beneficiar a maioria, então ela é moral e deve ser executada. Por exemplo, o caminho escolhido por Walt – produzir metanfetamina de qualidade para dar estabilidade financeira para sua família – parece errado, no início, sem dúvida. Contudo, vendo pela perspectiva utilitarista, pode-se argumentar que produzir e vender metanfetamina é um modo eficiente de assegurar o futuro financeiro da família depois da morte dele. Um número maior de pessoas ficaria feliz caso ele fizesse isso do que se não fizesse.
Após decidir ganhar dinheiro vendendo drogas, Walt mata duas pessoas logo no início da carreira – e matar pessoas é geralmente considerado imoral. Contudo, um utilitarista diria que as pessoas que Walt matou – Krazy-8 e seu primo, Emilio – eram traficantes durões que não possuíam nenhuma qualidade social para redimi-los. Walt fez, portanto, uma boa ação para um número maior de pessoas ao eliminar dois indivíduos que causam danos para a sociedade.
Para os utilitaristas, bons resultados = atos morais. Mas o utilitarismo tem deduções problemáticas. Costumamos considerar que matar é ruim, mas, segundo o cálculo utilitarista, matar algumas pessoas em determinadas circunstâncias é não apenas aceitável, mas é o que deveríamos fazer, com o intuito de gerar boas consequências ou fazer as pessoas felizes. E note que Walt faz o mesmo que os traficantes mortos, condenados por contribuírem com a miséria da sociedade, mas Walt é encorajado a fazê-lo porque contribui para o bem maior de sua família e da sociedade ao deixar dinheiro para a família e se livrar de personagens repugnantes. Como pode, perguntamos, uma mesma ação ser moralmente certa e errada? Deve haver algo errado com uma teoria que espera que aceitemos essa contradição óbvia.
A abordagem utilitarista baseia-se somente em ações e consequências, e não considera jamais a personalidade do indivíduo nem seu bem-estar psicológico. Na verdade, para o deontologista, também não se deve considerar a personalidade e o bem-estar psicológico, visto que agir de acordo com princípios que podem ser universalizados é o foco primário. O problema maior, então, é que as duas teorias, utilitarista e deontológica, essencialmente, ignoram os indivíduos e seu caráter, fazendo de nós meros condutores de ações corretas com boas consequências ou não. As ambições de Walt, seus pensamentos, crenças, desejos e intenções seriam de pouca importância para o julgamento moral que poderíamos fazer dele.
A ética da virtude – conduzida por Aristóteles (384-322 a.C.), entre outros filósofos – é uma teoria moral que não apenas analisa as consequências e intenções das ações de uma pessoa, mas também suas crenças, desejos e ambições. A ideia central dos éticos da virtude é que se você tem uma personalidade virtuosa, certa inclinação psicológica ou caráter (todos significando a mesma coisa aqui), então você será não somente mais propenso a tomar atitudes moralmente corretas, como também essas ações provavelmente terão boas consequências.
Nós queremos não somente executar ações que tenham boas consequências: também queremos ser pessoas virtuosas executando ações corretas que tenham boas consequências. Você pode obrigar um demônio a fazer a coisa certa (deontologia), gerando boas consequências (utilitarismo); contudo, ele continua sendo um demônio. Assim, a ética da virtude funciona como uma espécie de adendo das outras duas posições, completando nossas vidas morais.
Seguidores de Aristóteles veem a virtude como um bom hábito, por criar um equilíbrio no caráter. A ideia não é promover o “mais” e o “menos”, mas o “meio-termo” em nosso caráter, de modo que nossas ações e reações às situações reflitam um ponto central entre dois extremos. A pessoa virtuosa cultiva o tipo de caráter pelo qual ela sabe como agir e reagir do modo correto, no momento certo e pelos motivos certos em todo problema moral que encontra. Contudo, um caráter virtuoso se cultiva por meio da escolha de ações que conduzam à construção desse caráter. Então, por exemplo, se você quer cultivar a virtude da honestidade e ser, de fato, uma pessoa honesta, precisa agir honestamente várias vezes, para que a virtude seja “assimilada” por seu caráter. Quanto mais João fala a verdade quando lhe perguntam se ele fez algo errado, mais João cultiva a virtude da honestidade. Quanto mais Maria mente quando lhe perguntam se ela fez algo errado, mais ela cultiva o vício da desonestidade.
Os éticos da virtude têm uma lista geral de virtudes, incluindo honestidade, prudência, generosidade, integridade, afabilidade e respeito, para mencionar apenas alguns. O exemplo mais simples é o da coragem: a coragem é uma virtude moral cujo vício de deficiência é a covardia (medo demais) e cujo vício de excesso é a imprudência, ou precipitação (medo insuficiente). O florescer humano consiste, essencialmente, em cultivar virtudes como a coragem e evitar vícios como a covardia e a imprudência.
Ainda que se possa argumentar, pelas perspectivas deontológica e utilitarista, que o que Walt faz está certo ou é bom, do ponto de vista da ética da virtude suas ações são claramente viciosas. Walt é um homem cuja bússola moral encontra-se alinhada de modo equivocado. Na verdade, qualquer um acha um absurdo ele ser elogiado por ter entrado num mundo violento de reis das drogas e traficantes. Por quê?
Primeiro de tudo, porque Walt coloca sua família diretamente em perigo. Não se trata de um nobre homem em busca do que há de melhor para sua família; ele coloca deliberadamente os membros inocentes de sua família em risco, sob a falsa premissa de querer salvar-lhes da dureza econômica que lhes caberá depois de sua morte. A razão de Walt foi danificada por anos de decisões ruins e pelas consequências a elas associadas. Ele afirma estar focado somente em sua situação financeira, em vez de focar-se, por exemplo, na família, como faria um homem que ama e se preocupa. Ele perde o nascimento da filha por ter de concluir uma lucrativa venda de drogas. No fim da segunda temporada, descobrimos como Skyler se sente quanto às constantes escapadas, mentiras e ausências inexplicáveis de Walt: ela o deixa.
Mas antes dos eventos chegarem a esse ponto, por que Walt não imaginou que a esposa ficaria irada caso descobrisse suas atividades? Por que ele não enxergou que o legado que deixaria à família seria, na verdade, um legado de violência, mentiras e engano? De vantagens financeiras alcançadas sacrificando o tempo limitado que ainda teria para aproveitar seus entes queridos, gasto produzindo drogas num deserto e vendendo-as para capangas violentos e repulsivos?
Walt também se habitua à persona viciosa de Heisenberg, um alter ego que aparece no fim de uma série de decisões perigosas. Por exemplo, depois que testemunha o envolvimento de Jesse numa operação de produção de metanfetamina, ele o chantageia para que os dois produzam e vendam a droga em estado mais puro e em quantidades maiores. A dominação mental que ele pratica contra o rapaz apenas cresce conforme a série segue, e os ataques violentos à incompetência do parceiro mostram o homem maldoso que Walt se tornou, voluntária e entusiasticamente. Walt também assiste à morte de Jane, namorada de Jesse, engasgada com seu vômito induzido pela heroína. Depois de já ter matado dois homens e participado da coerção de um subordinado menos capaz, deixa uma moça morrer. Finalmente, como é que Walter arranja o equipamento para começar seu empreendimento? Por ser professor de química numa escola pública, ele tem acesso a béqueres, frascos, máscaras e outros materiais comprados com dinheiro do contribuinte. Podemos, então, incluir fraude e roubo de patrimônio público em sua lista de imoralidades. Essas não podem ser as ações, consequências, atitudes, crenças e intenções de um homem virtuoso.
Walt também contribui e perpetua um mal social. Consideremos a droga em questão: metanfetamina em cristal. Ele produz quantidades maciças da droga no final da segunda temporada. Não se trata de uma droga como o LSD, que tem interessantes propriedades místicas ou alucinógenas e que contribui para impulsos criativos e artísticos. É uma droga perigosa em geral, daquelas que resultam em destruição de relacionamentos e da saúde (dentes podres e fossas nasais estouradas são apenas dois exemplos). Suas propriedades aditivas são muito documentadas: a sensação de uso da metanfetamina em cristal é de frenesi, de um excesso de energia motivada e indisciplinada. De fato, é a droga de uma sociedade obcecada pela atividade, pelo agir, pelo movimento, por chegar a lugares, fazer coisas, ter sucesso. É a droga da histeria e do capitalismo, da fúria desmedida da realização.
O criador da série, Vince Gilligan, diz, nos comentários contidos no primeiro DVD da série, que ele queria falar de “um homem bom que ama sua família e que decide se tornar um criminoso”. Mas Walt é mesmo um bom homem no começo da série? Não creio. Certamente, não é virtuoso. Ele não está cercado por amigos e familiares que pensam coisas boas dele, não tem sucesso na carreira, tem problemas financeiros e, portanto, não tem a liberdade que a responsabilidade financeira proporciona. Ele culpa os outros por seus infortúnios e cria justificativas para suas ações que não acompanham a realidade, muito menos a virtude. Walter é um homem confuso, no mínimo, e certamente vicioso.
Muitos de nós podemos facilmente nos identificar com Walt. Ele é um homem que vive no mesmo sistema econômico e político insensível em que vivemos e que viu lhe acontecerem coisas que estavam fora de seu controle. Até seu corpo, tomado por um câncer de pulmão em metástase, não está sob seu controle. Podemos pensar em Walt como uma peça inerte dentro de uma máquina que mói as pessoas até o nada. Ele não é responsável pelo o que lhe aconteceu, nós pensamos. Ou será que é? Esse é um dos elementos cruciais envolvidos nas teorias morais, em geral, e numa teoria moral em particular: até que ponto somos responsáveis pelo o que nos acontece?
Walt vivenciou um sucesso incrível no começo de sua carreira como pesquisador. Na verdade, parte da pesquisa que ele coordenava contribuiu para um prêmio Nobel. Mas agora ele é professor de química numa escola pública, cercado por alunos desinteressados, desrespeitosos e descontentes. Está insatisfeito com sua profissão, ainda que estejamos todos muito acostumados com o mantra que prega a importância dos professores para as vidas de seus alunos. O papel de Walt enquanto professor o faz sentir vazio, tosco, ofendido e insultado. Descobrimos que sua antiga namorada e outro colega de pesquisa, com quem ele começara um negócio, se casaram e continuaram o empreendimento depois que Walt, num aparente acesso de ciúme e orgulho, largou tudo.
Começamos a conhecer um jovem e ambicioso Walt que se tornara amargo e perdera a mão, que sente que sua vida como professor é desapontadora e fútil. Walt é um homem assombrado por sonhos perdidos; uma vez ambicioso, orgulhoso, dinâmico e até carismático, agora quase não tem respeito próprio e amigos intelectualmente semelhantes.
Entretanto, Walt fizera suas escolhas na vida – ninguém as fez por ele. Ele escolheu afastar-se da vida acadêmica e de pesquisador em uma grande empresa. Ele escolheu casar-se com Skyler, tornar-se professor de química, trabalhar no segundo emprego humilhante no lava-rápido para conseguir mais dinheiro e trazer outro filho ao mundo. Na verdade, ele escolheu cada aspecto da sua vida até o ponto em que é diagnosticado com câncer de pulmão. E escolheu, nessa crítica conjuntura, produzir e vender metanfetamina como meio de garantir o futuro financeiro da família.
Assumir a responsabilidade por nossas ações é uma das virtudes centrais que um adulto racional, com livre-arbítrio, deve cultivar. Se não assumimos a responsabilidade por aquilo que fazemos, não somos melhores do que animais ou máquinas, e ninguém quer ser assim!
Deveria nos deixar atônitos o fato de Breaking Bad e outros programas da TV americana elevarem e glorificarem personagens confusos e totalmente viciosos – o que talvez diga algo importante e perturbador sobre a sociedade americana e sobre o caráter de sua população. Séries como The Sopranos e Dexter, nas quais bandidos violentos e um assassino patológico são transformados em heróis cujas ações são em geral vistas como moralmente ambíguas, complexas, ou até mesmo moralmente virtuosas, são manifestações dessa patologia peculiarmente americana. Walter White é apenas o mais recente exemplo.
Walter White – cujo sobrenome (white significa branco, em inglês), com conotações de paz, fé, inocência e limpeza, imbui o personagem de características positivas antes mesmo de o termos conhecido – é um professor frustrado cuja compreensão do que constitui o sucesso é bastante limitada: dinheiro em primeiro lugar e, em seguida, o respeito profissional.
A influência corrupta da ética capitalista americana permeia a série Breaking Bad. Walt encontra-se num sistema no qual é pressionado constantemente (e por anos) a pensar em termos de sucesso financeiro; e o senso de compaixão com o qual nos aproximamos dele nos faz abraçar cegamente o fato de que nosso sistema econômico, em sua forma atual, é aceitável. Todos sofremos pela ilusão de que o sucesso, em termos de ganho material é a medida apropriada de uma boa vida; nós também somos obcecados pela riqueza material e pelo status a ela atrelado – o que nos leva a uma compreensão distorcida dos apuros passados por Walt e ao consequente julgamento deturpado de que esse homem vicioso é moralmente virtuoso. Mas há diversas razões para acreditar que ele não o é, como já mostramos. Breaking Bad oferece a oportunidade de criticarmos os tipos de valores que temos enquanto nação, e a ética da virtude nos ajuda a ver com clareza não apenas a virtude de cada um, mas também a virtude das sociedades.
Os Estados Unidos sofrem de falta de opinião sobre seus próprios valores, principalmente no que tange ao ethos do sucesso por quaisquer meios. Na esfera dos negócios, as pessoas são valorizadas pela quantidade de dinheiro que conseguem ganhar para os acionistas, ainda que o meio ambiente e a população sofram. É um sistema de valores deturpado. A dificuldade financeira de Walter White é símbolo desse sistema corrupto de valores e de uma sociedade esmagada pelos próprios compromissos descontrolados para o sonho americano de sucesso e consumismo, que agora cobra com o preço terrível de não somente sacrificar a virtude de seus cidadãos, mas também de encorajar e valorizar a crueldade.