Prefácio
Escrever o Prefácio para um trabalho do dr. Herval não é tarefa simples. Tendo ao longo de sua vida acumulado uma das mais ricas experiências na área da saúde do trabalhador, tal estudo, embora não sendo a síntese de toda a sua longa experiência nesse campo, representa um ponto importante em sua carreira. Nele o autor expõe um dos temas mais atuais no campo das patologias do trabalho — as Lesões por Esforços Repetitivos - , mostrando não somente um apurado conhecimento sobre o assunto, mas revelando sua permanente militância e, especialmente, evidenciando sua crença de que o conhecimento compartilhado constitui parte integrante do movimento social. A tarefa do prefaciador somente não se torna mais difícil pelo fato de ter participado da banca examinadora do doutorado, acrescentado pela leitura de muitos dos seus trabalhos. Portanto, meus comentários seguem de perto o que apresentei quando da defesa desta tese.
Naquele momento, citei um trecho do Prefácio à edição brasileira de um conhecido livro de Umberto Ecco.1 A autora do Prefácio escreve: "Se fazer uma tese é uma imposição, norma ou lei, a tese é paradoxalmente uma atividade que acompanha diversas perspectivas em contraponto, exacerba dinamicamente, mas faz descobrir nova maneira de ler ou ver o já visto ou lido. Peculiar originalidade, lança-se mão dos dados para inventá-los, ganha-se precisão de pensamento na verticalização de um tema que se restringe para se tornar mais seguro, nuance da reflexão que incorpora, sem falsa modéstia, o imprevisto, o insólito, o dissociado, a capacidade dialética que apreende as vozes que se dispersam na compreensão e/ou interpretação dos fenômenos".
Na minha opinião, este trabalho tem tudo a ver com essas idéias. "O já visto ou lido" é o ponto de partida para um novo encontro com o objetivo desejado pelo investigador, que, na sua cotidianidade com o problema, terá necessariamente que fazer a sua primeira ruptura, como diria Boaventura de Souza Santos quando se refere ao rompimento com o senso comum (o nosso e o dos outros), pois, de outra forma, não encontraria condições para explicá-lo. A nova maneira de ver o objeto não se consuma no vivido pelos seus autores. Como escreve Santos, "o senso comum é um conhecimento evidente que pensa o que existe tal como existe e cuja função é a de reconciliar a todo custo a consciência comum consigo mesma".2 Mas como o conhecimento não se completa com essa primeira ruptura, é necessário o reencontro - a segunda ruptura, com a construção de uma nova relação da ciência com o senso comum. Essa ruptura transforma o senso comum com base na ciência — "um senso comum esclarecido e uma ciência prudente". Sua nova maneira de ler e falar sobre o tema foi exigida pelo enfoque que se pretendeu dar ao objeto, que, desde o início, coloca em discussão a objetividade versus a subjetividade, o quantitativo versus o qualitativo, o saber acadêmico versus o saber militante. Nesse sentido, a busca de referenciais torna-se um ponto importante do seu trabalho, basicamente assentado sobre o paradigma marxista de ciência que se tornou clássico — o real é dado na sua aparência imediata.
Ao tentar dar visibilidade ao seu objeto de estudo - portadores de LER - o autor vai em busca da metodologia qualitativa, pois tem consciência de que não será possível abordá-lo por meio de uma metodologia quantitativa, que, como salientado, será usada de forma auxiliar. Essa colocação situa-se, em realidade, como um assunto que vem preocupando os pesquisadores nas ciências sociais neste fim de século. Sem fazer uma longa digressão, mas para pontuar o essencial, a questão é a de que, citando Balandier, José Machado Pais, professor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, diz que as ciências sociais vivem atualmente um "estado de penitência".3 Prosseguindo, escreve: "Elas agitam-se, distanciam-se dos antigos sistemas de referências e modos explicativos, procuram novos objetos, interrogam o seu próprio saber. J á não existe nenhuma ciência social que alimente a vocação imperialista de unificar o social, como a sua sociologia". Hoje, a exploração tem como ponto de vista a desordem, de um lado, e, de outro, há um contínuo desdobramento de subuniversos quantitativos, marxistas, estruturalistas, hermenêuticos etc. Mas o que talvez melhor caracterize esse momento é o das investigações que se realizam em terrenos de fronteira. Como diz Pais: "nas fronteiras do indivíduo, as regiões, do próprio saber".
Estas observações são, na minha opinião, estreitamente relacionadas a este trabalho. Um estudo sobre as LER não poderia ser visto sob um único ângulo: o tema é interdisciplinar, a forma de abordá-lo transcende o indivíduo doente, a metodologia a ser empregada não se esgota na somatória dos casos. Para analisar essa complexa temática, o autor amplia o quadro de referência traçando as relações entre sociedade/ doença/trabalho, relacionando violência e capitalismo e o conflito capital e trabalho. Estabelece, nessa direção, uma reflexão sobre as formas históricas de adoecimento, que se tornam balizadoras de um estudo dirigido a uma determinada forma de adoecimento - as Lesões por Esforços Repetitivos - de uma determinada população, os bancários. Ao focalizar o plano nacional, o estudo contextualiza a trajetória dos ciclos do capitalismo industrial e suas relações com o trabalho no Brasil.
O percurso deste estudo não se limita a caminhar do geral para o particular, mas procura, nesse particular, o vivido (o doloroso vivido) dos adoecidos de LER e retorna à luta dos adoecidos e os percalços do movimento dos trabalhadores ante as novas conjunturas do mundo do trabalho e das próprias características da doença. Ao concluir o estudo, o autor situa de forma clara que ela se encontra em um plano diferente das doenças pestilenciais, ou epidêmicas clássicas, que ameaçam a todos. É uma doença seletiva, atinge determinada categoria de trabalhadores, aqueles que estão nos níveis mais baixos da hierarquia das empresas.
Sinto haver necessidade de detalhar este trabalho. A apresentação do próprio autor oferece ao leitor a visão de conjunto que o encaminha a um texto seguro, claro e revelador. Porém, não posso me furtar, neste momento, a recordar algumas idéias que me parecem oportunas aos estudiosos da saúde-doença em seus diversos coletivos. Há uma forte idéia que o autor sintetiza, quando diz que a categoria trabalho "não se circunscreve ao processo de produção e à organização do trabalho dentro dos muros e paredes da empresa, mas se estende para fora, invade e modela a vida do trabalhador e suas relações com seus familiares, amigos e vizinhos". Vai além da dimensão exclusivamente socioeconômica. Huisman & Vergez,4 dois filósofos franceses, escrevendo sobre "A moral e a vida econômica", ao analisarem as várias formas de conceder o trabalho para seu alto significado metafísico, pois "o trabalho nos dá a chance das relações fundamentais entre o homem e a natureza", e perguntam: "Mas o eminente valor moral do trabalho não estará comprometido em certas formas de trabalho contemporâneo?". Para responderem à questão, esses autores retornam a discussão para o plano "da organização social do trabalho, da produção, da distribuição das riquezas", ou seja, o do trabalho como 'questão social'. Todavia, eu derivaria, ainda, da análise deste livro de Giannotti,5 quando aponta "a necessidade de tomar o processo de trabalho, desde logo, desdobrando-se ao mesmo tempo numa dimensão operante imbricada noutra representativa". Isso se torna importante para esta pesquisa, particulariza uma determinada forma de trabalho, no capitalismo avançado, com a incorporação crescente da ciência e da tecnologia. Segundo Giannotti (Ibid.), "torna-se possível frisar o caráter reflexionante da produção como um todo, a criatividade de seu circuito, notadamente a nova dimensão ontológica que nele adquire o instrumento, assim como a forma de temporalidade que seu exercício instala". A chamada em relação ao texto de Giannotti (Ibid.), "O ardil do trabalho", pareceu-me oportuna, pois, como indica o autor, se "a estrutura reflexionante da produção mostra que esta só existe como todo", o estudo realizado é exemplar para ilustrar uma forma específica de modalização, para usar expressão desse filósofo. Isso, sem dúvida, se expressa quando se verifica que, hoje, "a fundamentalidade do processo de trabalho bancário está em seu produto final, a informação", e esta, por sua vez, incorpora a automação e a telemática.
Escrever sobre este trabalho é incursionar em questões que constituem desafios e dilemas para o campo no qual ele se inclui: o da saúde coletiva. Não farei esses inúmeros desdobramentos. Deixarei para o leitor o prazer intelectual de, ao percorrer o texto, repensar questões tais como os conceitos de causalidade e determinação, os tipos de causalidade, os novos paradigmas para a epidemiologia, as possibilidades das pesquisas interdisciplinares etc.
Num momento em que as transformações do mundo do trabalho, particularmente referenciadas pela atual revolução tecnológica, na qual se impõe uma nova concepção da relação homem/máquina, essa análise é extremamente oportuna. Ao buscar a "constituição íntima" do fenômeno investigado, como diria Marx, o trabalho não somente revela as situações particulares — o adoecimento dos bancários —, mas as situações histórico-sociais relacionadas às situações particulares. Ao debater com os próprios sujeitos as suas vivências e ao trazer à tona a denúncia, não simplesmente como denúncia, mas como forma de conhecimento e de orientação para mudanças, o estudo não apenas abre campo para outras pesquisas, mas reafirma a vigência do potencial explicativo da categoria trabalho.
Everardo Duarte Nunes
Faculdade de Ciências Médicas / UNICAMP