Introdução
Uma história de violência: adoecimento e morte na classe trabalhadora
Se um único fator dominava a vida dos trabalhadores do século XIX, este fator era a 'insegurança'. Eles não sabiam no principio da semana quanto iriam levar para casa na sexta- feira. Eles não sabiam quanto iriam durar no emprego presente, ou se viessem a perdê-lo, quando voltariam a encontrar um novo trabalho e em que condições. Eles não sabiam que acidentes ou doenças iriam afetá-los, e embora soubessem que algum dia no meio da vida — talvez 40 anos para os trabalhadores não especializados, talvez 50 anos para os especializados — iriam se tornar incapazes para o trabalho pleno e adulto, não sabiam o que iria acontecer então entre este momento e a morte.
Hobsbawm (1979:231)
Ciclos do capitalismo e morbi-mortalidade
Miséria, doenças e mortes prematuras não eram desconhecidas antes de Cristo, nem nos 17 séculos seguintes que precederam a Revolução Industrial. As guerras e as epidemias, sobretudo a peste, a varíola e cólera, costumavam deixar atrás de si um rastro largo e profundo de covas e vítimas em todas as classes e camadas sociais. Não eram, também, incomuns os acidentes de trabalho nas escavações de minas, canais e túneis, na construção de pontes e monumentos e na navegação.1
O que o modo de produção capitalista industrial trouxe de novo foi, ao mesmo tempo, a banalização e seletividade social maior das enfermidades e mortes prematuras por acidentes e doenças do trabalho, muitas então pouco ou nada conhecidas.
São inúmeras e pormenorizadas as descrições sobre as condições de vida da população que migrava em busca de trabalho, trabalhava nas fábricas, morava aos montes em cortiços, procriava em abundância e cujos filhos morriam de doenças infecto-contagiosas, subnutridos e raquíticos, nas infectas cidades industriais no fim do século XVIII e por quase todo o século XIX , ciclo de acumulação primitiva do capital industrial. Nesses aspectos a similaridade da situação e a coincidência de época são tão grandes entre a Grã-Bretanha, França, a então Prússia e os Estados Unidos da América que é impossível negar a paternidade e contemporaneidade de suas determinações.2
Essas e outras descrições coincidem, ainda, no registro sobre a presença maciça de mulheres e crianças nas fábricas, sobretudo as têxteis, também não incomum nas minas de carvão. Com a industrialização, milhões de mulheres e crianças, ao lado de homens adultos, passaram a estar sujeitos a acidentes e a inalar gases, vapores e poeiras orgânicas e minerais em jornadas de trabalho exaustivas e extensas, elevando extraordinariamente o número de acidentes e, especialmente, de doenças consumptíveis e respiratórias.
A silicose e as várias pneumoconioses tornaram-se extraordinariamente freqüentes nas indústrias carboníferas, de mineração de ferro e de outros metais, ao mesmo tempo em que se fizeram corriqueiras a bissinose e a asma provocadas pela inalação de poeiras orgânicas nas indústrias de algodão, linho e cânhamo.3
Já em meados do século XIX , o número de acidentes e doenças do trabalho crescera de tal modo nas indústrias de mineração, metalurgia e têxtil, que sistemas de reparação financeira às vítimas e familiares começaram a ser implantados. A primeira lei especial foi promulgada em 1884, na Prússia, com Bismarck, instituindo um sistema de compensação às vítimas de acidentes do trabalho sob administração do Estado, provindo os recursos da taxação das empresas. Nas décadas subseqüentes, leis similares foram adotadas na Áustria (1887), Noruega (1894), Inglaterra (1897), França, Dinamarca e Itália (1898), Espanha (1900). Nos Estados Unidos ò sistema foi implantado sob a forma de seguro privado com intervenção direta das indústrias, sobretudo das do setor metalúrgico e de aço.4
As intoxicações por metais pesados (chumbo, manganês, mercúrio, fósforo etc.) e por substâncias químicas haviam se tornado habituais entre os trabalhadores, obrigando progressivamente à criação de uma legislação específica que caminhou, a duras penas, para o estabelecimento de níveis máximos de tolerância permitidos, com permanente resistência patronal em alterar os processos de produção ou substituir materiais e agentes de nocividade reconhecida. Oposição maior fez e faz o capital à redução do 'tempo de exposição', melhor dir-se-á, 'tempo de sujeição', impondo por muitos anos, em pleno século XX , jornadas de trabalho acima de 12 horas ou mais.
Nos países que primeiro se industrializaram, no final do século XIX e nas primeiras décadas do atual, as doenças infecto-contagiosas e parasitárias, além das epidemias, declinaram. Para tal contribuíram a reforma urbana das cidades industriais e portuárias, a disponibilidade doméstica quase universal de água tratada e de rede de esgoto, a melhoria (discutível) do rendimento da classe trabalhadora, o provimento por parte do Estado de serviços públicos de saúde, com suas campanhas sanitárias de vacinação, expurgo e 'quarentenas' compulsórias e de higienização dos portos. Com a queda da mortalidade infantil e da natalidade, mudou o perfil da morbi-mortalidade da classe trabalhadora e transformou, conseqüentemente, o da população dos países que cedo se industrializaram, em ritmos e tempos diferentes, mas bastante parecidos e próximos.
A intensificação da industrialização, o aperfeiçoamento dos motores de combustão interna, o uso dos combustíveis fósseis, o crescimento da indústria pesada e da indústria química, a exploração intensiva de minérios e da natureza, as grandes obras de engenharia civil, a expansão e desenvolvimento dos transportes, o crescimento das cidades, a expansão do capitalismo para os países colonizados da África, Ásia e Américas, as guerras colonialistas e imperialistas, o crescimento do capital financeiro disponível antes da Primeira Guerra Mundial, que caracterizaram os primeiros 50 anos do segundo ciclo de acumulação capitalista, pré-monopolista, fizeram com que aumentassem extraordinariamente os acidentes e doenças do trabalho. À medida que o capitalismo se expandia para as colônias e países política e economicamente colonizados, em um primeiro momento levou junto as doenças infectocontagiosas, e ao se industrializarem, os acidentes e doenças do trabalho.5
Há muitos dogmas, equívocos e pouca discussão sobre a determinação social das doenças infecto-contagiosas e parasitárias, como a malária, a peste, a lepra, a tuberculose, a febre amarela, a varíola, trazidas pelos colonizadores e que acabaram aqui se tornando endêmicas e rotuladas de 'tropicais', fazendo dos índios, dos negros escravizados e dos trabalhadores brancos livres suas principais vítimas. Algumas, como a malária, a esquistossomose e a doença de Chagas são doenças que atingem trabalhadores rurais e suas famílias, que as contraem no trabalho ou porque são obrigados a viver da maneira como vivem e onde vivem. Mas para o sistema normalizador e discriminatório do seguro social e da medicina ocupacional, essas não são doenças do trabalho, mas 'doenças do meio'. Aliás, não faz muito tempo que nem mesmo as resultantes diretas do trabalho industrial mereciam aquela rubrica.
As teorias sobre 'exposição' e 'risco' que vão ganhar sistematização e chancela das correntes epidemiológicas e acadêmicas no decorrer do presente século tem suas origens aí, nos limites estabelecidos pelo capital, mediados pela medicina, sobre o que deve ou não ser considerado como doença e acidente do trabalho, para efeito de tributação e compensação e como devem ser entendidas as demais, tidas como doenças infecto-contagiosas, crônico-degenerativas, do meio ambiente, tropicais e, mais modernamente, do estresse, do estilo de vida etc.
Nesse meio tempo, à medida que o desenvolvimento capitalista prosseguiu e transpôs fronteiras e mares, no rastro foi deixando um número cada vez maior e freqüente de acidentes e doenças do trabalho a serem catalogados. E, porém, uma contagem individual, caso a caso, que começa entre muros de fábricas e empresas e continua assim, quase secretamente, nas repartições dos ministérios do trabalho e da previdência social ou das empresas de seguro.
De tragédia e problema social, os acidentes e doenças do trabalho passaram a ser questão burocrática de contagem e contabilidade, menos sobre o que fazer ante uma realidade tão dramática que os números de certa forma revelam, e mais sobre como proceder para reduzir seu registro e o pagamento de benefícios. Nem mesmo acidentes e doenças coletivos e catastróficos escaparam da regra de mascarar. Com o advento da indústria pesada que marca tecnologicamente a passagem para o segundo ciclo do desenvolvimento capitalista, os números oficiais ou oficiosos, ao menos dos acidentes típicos de trabalho, mais difíceis de negar ou esconder, se tornaram impressionantes, apesar das práticas de ocultação e subnotificação.
Na viagem inaugural do transatlântico Titanic, o drama dos ricos, que iam a passeio ou a negócios e que constituíram a maior parte dos que se salvaram ocupando os 1.178 lugares disponíveis nos escaleres, para uma necessidade mínima de 2.224 pessoas embarcadas, virou tema de filme, obscurecendo o fato de que a maioria dos 1.513 mortos no naufrágio em 14 de abril de 1912 era de tripulantes e trabalhadores pobres e familiares que migravam e viajavam na segunda e terceira classes. Estima-se haver morrido 10 mil trabalhadores na construção do túnel ferroviário de São Gottardo, que atravessa os Alpes, inaugurado em 1906.6 Em 25 de março de 1911, dos 500 trabalhadores de uma indústria têxtil que ocupava três dos 10 andares de um edifício na cidade de Nova York, 145 morreram no incêndio de suas instalações, entre outros motivos, pela falta de escadas de serviço. A maioria das vítimas era constituída de mulheres, crianças e migrantes judeus e italianos. Investigação realizada entre 1913-1915 pelo Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos, constatou que 60% dos 720 trabalhadores das minas de chumbo e zinco estavam com silicose e que a prevalência dessa doença era bastante elevada entre graniteiros de Vermont e escavadores de túneis do estado de Nova York. Em 1931, na escavação do túnel da Ponte de Gauley, em West Virginia, EUA, morreram 476 trabalhadores com silicose, de evolução extremamente rápida. Outros 1.500 ficaram incapacitados pela doença, a maioria, negra. Detalhe grotesco: para evitar a autópsia e processos indenizáveis por parte dos familiares, foi quase imediato o sepultamento das vítimas, com um tempo médio de três horas entre a ocorrência do óbito e o enterro.7 De 1919 a 1927, o Departamento de Trabalho dos Estados Unidos registrou números anuais com variações entre 1.277.220 a 1.687.957, de acidentes do trabalho e de mortes que variavam entre 9.392 a 12.531 óbitos. De 1950 a 1973, pelo menos 15.533 trabalhadores ingleses encontraram a morte no trabalho, numa média de duas a três por dia.8 De 1949 a 1978, na República Federal da Alemanha, foram registrados 72,7 milhões de acidentes e doenças do trabalho, com uma média anual de 2,4 milhões. Daquele total, 65 milhões (90%) foram por acidentes típicos do trabalho, 6 milhões (8,6%) por acidentes de trajeto e 1 milhão (1,4%) por doenças ditas ocupacionais. Dos acidentes típicos de trabalho, 151 mil resultaram em morte, com média anual de 5 mil óbitos. Em 1977, dos 1,8 milhões de acidentes típicos registrados, 2.970 mil (0,2%) resultaram em morte. No mesmo ano, a mortalidade por acidentes de trajeto foi 3,5 vezes maior, pois dos 186 mil ocorridos, 1.305 (0,7%) resultaram em óbito.9
As doenças e acidentes do trabalho no Brasil
A evolução histórica do adoecimento e da morte na classe trabalhadora dos países capitalistas semiperiféricos ou periféricos, guardadas as peculiaridades de cada um, não tem sido muito diferente da dos países precocemente industrializados, como registram vários autores.10
Obviamente, há de se observar, em primeiro lugar, a defasagem de tempo, ritmo e condições históricas e econômico-sociais, além das circunstâncias externas e internas do desenvolvimento capitalista desses países e de suas conseqüências sobre a saúde da população em geral e a dos trabalhadores, em particular.
Alguns assinalamentos quanto às similaridades e diferenças dessas evoluções parecem mais importantes à intenção principal deste texto, qual seja, a descrição da violência do trabalho no capitalismo industrial. De lado, portanto, ficará a questão do trabalho escravo, embora haja referências de que escravos trabalharam na indústria têxtil brasileira em seus primórdios.11 Mais relevante é apontar o papel do Estado brasileiro, já republicano, que em 1903 cria a Diretoria Geral de Saúde dentro do Ministério da Justiça e a entrega a um médico jovem e voluntarioso, Oswaldo Cruz, para implantar, manu militari, políticas estratégicas e ações sistemáticas no campo da saúde pública, restringindo-as a algumas áreas geopolíticas e econômicas críticas. Em 1920, essa diretoria é transformada em Departamento Nacional de Saúde, de alcance bem mais amplo, encarregando-se um brilhante discípulo daquele, Carlos Chagas, de redefinir e balizar estratégias e ações dentro de contextos nacionais e internacionais bem diferentes. J á se vivia o pós-Primeira Guerra Mundial, uma primeira e vitoriosa revolução socialista e caminhava-se celeremente no segundo ciclo de desenvolvimento e crise do capitalismo, para sua fase francamente monopolista, sob a hegemonia dos EUA.
Mas as intervenções do Estado no campo da saúde pública já haviam adquirido na Europa a feição de políticas e ações sistêmicas, no mínimo, há séculos. Inglaterra, França e Alemanha já as vinham praticando, cada uma a seu modo, dentro dos seus territórios, em bases empíricas e sem os conhecimentos e recursos tecnológicos disponíveis no fim do século XIX . À sua maneira, o Brasil Império não deixou de fazê-lo. A epidemia de febre amarela que aportou em 3 de dezembro de 1849 no Rio de Janeiro, com a barca norte-americana Navarre, e tirou a vida de 4.160 pessoas em menos de 10 meses, teve das autoridades e dos médicos as providências correspondentes ao conhecimento da época: sangrias, ventosas, purgativos. Cuidou, também, a posteriori, de legislar sobre a matéria.12 Mas como ressalta Rosen,13 os dois últimos decênios do século passado se constituíram em uma fase áurea para a bacteriologia, quando foram identificados os agentes etiológicos responsabilizados diretamente por uma série de doenças infecciosas e parasitárias, começando pelo do rifo em 1880 e findando com o da febre amarela em 1890. O conhecimento sobre a biologia e formas de transmissão desses microorganismos e das reações que provocavam, permitiram avanços tecnológicos importantes e novas formas de intervenção, algumas de elevada eficácia, como o combate à reprodução desses agentes e de seus vetores e a imunização por meio de vacinas específicas.
Apesar da relevância, não se tratará aqui dessa questão, apenas se indicando a não mera coincidência no Brasil entre a urbanização acelerada, a crescente predominância de doenças infecto-contagiosas e parasitárias e o processo, tardio em alguns decênios, da industrialização do País, igualmente iniciado com a indústria têxtil.
As medidas e campanhas sanitárias levadas a cabo na passagem do século nas cidades portuárias brasileiras, principalmente nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, visando conter várias dessas doenças, tinham como objetivos primordiais proteger o principal produto de exportação brasileiro, o café, e a importação de produtos manufaturados, controladas hegemonicamente pelo capital estrangeiro. Essas medidas e campanhas acabaram beneficiando, indistintamente, as atividades econômicas dos setores terciário e secundário, não diretamente ligadas ao setor cafeeiro e de importação, ao estabelecer em torno daquelas cidades e portos um 'cordão sanitário' protetor, de relativa eficácia, para a contenção de algumas doenças de comportamento epidêmico que estavam a prejudicar os investimentos de capital, mas que não cumpriam o mesmo papel em relação a outras endêmicas que, embora atingindo duramente a saúde dos trabalhadores, não provocavam o crescimento brusco da morbi-mortalidade, ausências ao trabalho e perturbações para a produção, menos visíveis que eram e mais passíveis de ocultação, como a tuberculose.14
A tuberculose permaneceu entre nós, ao menos nos três primeiros decênios do presente século, como uma das principais causas de morte entre todas as doenças transmissíveis sob o 'controle' das autoridades sanitárias, com taxas nunca inferiores a 2:1.000 mortes nas áreas urbanas e suburbanas da cidade do Rio de Janeiro, então capital da República. Medidas draconianas e repressivas foram adotadas com relação às doenças epidêmicas, fazendo-as de notificação compulsória, sem a inclusão da tuberculose, mesmo após ser criada, na década de 20, a Inspetoria de Profilaxia da Tuberculose. A recomendação feita expressamente aos fiscais e técnicos desse serviço estatal era para manter sob sigilo a identidade do adoecido, registrando apenas suas iniciais, permitindo-se-lhes permanecer trabalhando nas fábricas e oficinas, presumivelmente, mesmo quando seu estado era contagioso. As medidas oficiais, no entanto, estabeleciam a obrigatoriedade do exame bacteriológico do escarro quando da visita aos locais de trabalho, a proibição dos tuberculosos exercerem funções de ensino ou trabalharem em estabelecimento de comércio ou produção de alimentos.
As doenças e acidentes de trabalho sequer eram mencionados pelas autoridades sanitárias e, menos ainda, cogitara o Estado brasileiro de adotar medidas para preveni-los, puni-los ou compensá-los. Quatro tentativas para legislar a matéria foram abortadas, antes que a quinta se tornasse a primeira lei de acidentes, em 1919.
Promulgada em 15 de janeiro de 1919, essa lei responsabilizava os empregadores pela indenização das vítimas, atribuindo à instância policial o registro de tais ocorrências, convalidando as charges da época que diziam que as questões do trabalho eram 'caso de polícia'. De qualquer modo, ela inaugura uma nova postura do Estado em face do conflito entre o capital e o trabalho. Não só ela é regulamentada no mesmo ano, como a sucede uma série de leis e decretos na mesma década que configuram um arcabouço jurídico inédito no País. Em 1923 é promulgada a Lei Eloy Chaves, instituindo as caixas de beneficência e assistência médica para várias categorias. No mesmo ano é criado o Conselho Nacional do Trabalho. Em 24 de dezembro de 1925, o decreto legislativo nº 4.982 estabelece o regime de férias para trabalhadores fabris, do comércio e bancos. Em 20 de dezembro de 1926, um outro, de nº 5.109, estabelece o regime de estabilidade no emprego após 10 anos de trabalho. Em 1926, a reforma constitucional institui a competência do Estado de legislar e intervir nas questões do trabalho. Em 1927 é regulamentado o trabalho do menor. Em 1930 é criado o Ministério do Trabalho com a atribuição de, entre outras, fiscalizar os ambientes e condições de trabalho.15
Após anos de denúncias e reivindicações dos trabalhadores sobre as condições e ambientes de trabalho fabris, que apareciam somente na imprensa operária e em alguns relatórios do Departamento Estadual do Trabalho de São Paulo, começam a surgir relatos mais assíduos sobre as doenças do trabalho, agora realizados pelo Departamento Nacional de Trabalho, alguns alusivos a doenças respiratórias na indústria têxtil.16
O decreto de nº 24.637, de 10 de julho de 1934, é o segundo instrumento a legislar sobre os acidentes de trabalho e traz algumas inovações importantes: estende o conceito de acidente às doenças do trabalho, abole a exigência do trabalho como causa única do infortúnio, isto é, abre caminho para a aceitação do princípio da concausa e passa a obrigar o empregador a manter contrato de seguro para cobertura das despesas com indenizações aos trabalhadores acidentados. Dez anos mais tarde, o decreto-lei nº 7.036 de 10 de novembro de 1944 amplia substancialmente os direitos acidentários: obriga o médico que atender o acidentado do trabalho a emitir o atestado competente no início e no fim do tratamento; institui normas de prevenção e higiene do trabalho e de reabilitação profissional; torna mais severas as obrigações do empregador e da seguradora; consagra definitivamente o princípio da concausa do trabalho na ocorrência de acidentes e doenças; estabelece a obrigação de o empregador comunicar todo acidente ou doença profissional à autoridade judiciária etc. Novos instrumentos legais na área acidentaria só viriam a acontecer em 1967, portanto, 23 anos depois, em um cenário político nacional e internacional bastante diferente e desfavorável para a classe trabalhadora. Ao contrário daquele que ensejara o decreto anterior, em um período de afrouxamento da ditadura de Vargas e de participação do Brasil na guerra mundial contra o nazi-fascismo, passáramos, desde 1964, a viver sob uma ditadura militar francamente alinhada à 'guerra fria' dos países capitalistas centrais que haviam ingressado em pleno ciclo de desenvolvimento oligopólico e de intervenção política franca e, não raramente, armada nos países periféricos menos alinhados às suas políticas. Não seria, pois, surpreendente que os novos instrumentos legais objetivassem a retirada ou minimização de direitos e benefícios acidentários e trabalhistas. O caráter derrogatório e centralizador do primeiro dessa nova série de decretos-lei e decretos, de nº 5.316, de 14 de fevereiro de 1967, é bastante evidente. A competência do julgamento das demandas acidentárias passou da justiça estadual para a federal e tornou impositivo o recurso administrativo antes de pretensões em juízo.
Compelido pelas falências de duas seguradoras, a Segurança Industrial e a Protetora, uma nova lei estatiza o seguro acidentário que, assim, passa para a previdência social estatal, mas dentro da lógica da acumulação de capital os benefícios a serem pagos aos trabalhadores pela incapacidade provocada pelos acidentes de trabalho caem drasticamente de valor. Outro decreto, de nº 893, de 26 de setembro de 1969, entre outras perdas, restringe ainda mais a concessão de benefícios quanto à incapacidade de trabalho, subordinando-a ao estabelecimento da causalidade direta pelo trabalho e também revoga a obrigatoriedade de aproveitamento do acidentado pelo empregador.
A partir desse cenário, não causou surpresa a queda do número de ações de acidentes propostas em juízo. Em 1965, na comarca de São Paulo, tinha havido 21.853 ações propostas. Em 1975 elas caem para 6.414, justo no ano em que o número de acidentes do trabalho no País se colocara acima de 1,9 milhão.
O retrocesso da legislação de acidentes prosseguiu com a lei nº 6.367, de 19 de outubro de 1976. A reparação de até 25 % por incapacidade menor foi simplesmente eliminada, os auxílios acidentários reduzidos, as doenças relacionadas ao trabalho desclassificadas, restritas novamente às "doenças profissionais".17
O recuo da legislação pós-1967 parece traduzir uma tendência de se abolir a responsabilidade da previdência social estatal para com os acidentes do trabalho, igualando os benefícios acidentários aos benefícios previdenciários ordinários e remetendo os trabalhadores acidentados à justiça comum, para pleitearem dos seus empregadores as indenizações pelos acidentes de trabalho, retroagindo à legislação de acidentes de 1919, invocando, no caso, o ato culposo do empregador ou preposto, muito difícil de comprovação em juízo.
Em termos conceituais, ainda prevalece na legislação acidentaria brasileira a doutrina da responsabilidade objetiva, ou seja, a vítima deve ser ressarcida financeiramente do dano, independente da culpa e culpados. Para isso o empregador contribui para o seguro social, por meio, inclusive, de uma taxa acidentaria diferenciada e proporcional ao 'risco profissional' de o trabalhador se acidentar ou adoecer; mas ela caminha, parece que inexoravelmente, para a doutrina do 'risco social', em tese mais abrangente e generosa, difícil de vigorar em países periféricos de capitalismo tardio, onde os benefícios sociais de qualquer natureza são escassos e ainda mais escassos vêm se tornando. Tal retrocesso não foi interrompido com o fim do regime militar; ao contrário, a tendência parece haver se acentuado na presente década, com as políticas neoliberais vigentes. No entanto, nem a nova tendência, nem a anterior, apaga o significado e importância do fenômeno que as geraram, qual seja, o crescimento do número e gravidade dos acidentes e doenças do trabalho que acompanharam o segundo ciclo do desenvolvimento do capitalismo industrial no Brasil, que tem, também aqui, a instalação da indústria pesada como um dos seus marcos.
Na década de 30, o Estado brasileiro assumiu uma postura condizente com seu papel de agente promotor do desenvolvimento capitalista industrial e de 'mediador' do conflito entre o capital e trabalho. Uma das estratégias que adotou para reduzir a temperatura desse conflito, foi instituir um sistema de previdência social e assistência médica, criando os institutos de aposentadoria e previdência social por categoria, começando pelo dos marítimos em 1933 e dos bancários em 1934. Perfilava-se, assim, as imposições e necessidades similares àquelas dos países europeus industrializados, embora em conjunturas e contextos político-econômicos e sociais internacionais e nacionais outros. Esse sistema 'reparador' haveria, por isso, de ter características muito particulares. Superavitário desde a criação das caixas beneficentes previstas com a Lei Eloy Chaves, o sistema, após os anos 30, vai funcionar como instrumento de capitalização e investimentos para a criação de grandes empresas do Estado nos setores elétricos, siderúrgico e ferroviário. Em suma, o sistema, em sua origem reparador das agruras do trabalho, passou a financiar, via Estado, o desenvolvimento do capital.18
Percebe-se, tomando como referência os aspectos mais visíveis da morbi-mortalidade da classe trabalhadora, que ela tem uma evolução que acompanha o desenvolvimento capitalista e que os instrumentos de enfrentamento de suas mazelas são mais ou menos os mesmos. Parece evidente que na fase de acumulação primitiva do capitalismo industrial, também entre nós, predominavam as doenças originárias diretamente do baixo consumo de bens e serviços, das condições de vida e classe, ainda que estivessem presentes e em ascensão os acidentes e doenças do trabalho, entre essas, as respiratórias, provocadas por poeiras orgânicas e minerais. Na segunda fase, de acumulação mais acelerada e pré-monopolista, e na seguinte, de franca monopolização, os acidentes e doenças do trabalho ganharam a primazia e aquelas outras passaram a uma posição secundária. Esses ciclos são marcados pela 'violência explícita do trabalho'.
Essa violência atinge diretamente o corpo do trabalhador, obrigado a condições miseráveis de vida e trabalho. Ele e seus familiares adoecem e morrem de enfermidades determinadas pelo baixo consumo que seu salário impõe ou de doenças e acidentes típicos do trabalho. Não há sutileza nessa patogenia onipresente do trabalho, que determina os modos de viver e invade e impacta o corpo, por meio de poeiras, gases, vapores, ruídos, calor, atritos, queda, esforços, tensões e pressões, provocando lesões do ouvido, olhos, pele, músculos, tendões, articulações, nervos, vasos, cérebro e psiquismo.19
Agora, também com defasagem de tempo e sem concluir o ciclo anterior, o Brasil adentra em um outro ciclo de desenvolvimento capitalista, marcado sob o ponto de vista da produção, pela rápida incorporação de tecnologias de automação e informatização eletroeletrônica e nova organização do trabalho, com profundos reflexos sobre o trabalho e a vida das pessoas. Esta defasagem de desenvolvimento industrial, científico e tecnológico, talvez irrecuperável e estimada em algumas dezenas de anos, traz implícita a manutenção das mazelas precedentes expressas nos indicadores vitais, sociais e sanitários. As elevadas taxas de mortalidade infantil que em alguns estados brasileiros se aproximam daquelas da Inglaterra na primeira metade do século XIX , a persistência de doenças endoepidêmicas como a cólera, a tuberculose e a lepra, paralelamente ao número atual de acidentes e doenças incapacitantes ou mortais, evidenciam uma transição não apenas lenta, mas amarga e difícil, da morbi-mortalidade brasileira.
Vários autores vêm procurando analisar significados e tendências dos acidentes e doenças do trabalho no Brasil, com base nas estatísticas oficiais que passaram a ser publicadas com regularidade nos anuários estatísticos a partir de 1971. Para os que fazem essa análise partindo da tese da existência de uma flagrante desigualdade nas relações conflituosas entre o capital e o trabalho e dos grandes interesses econômicos e políticos em jogo, o corolário é que as empresas os ocultam e subnotificam e as seguradoras estatais e privadas os desqualificam. Assim, pressupostamente, há uma enorme e desconhecida subestimação desses infortúnios, mesmo para os mais típicos deles, os acidentes, quaisquer que sejam os números e variações anuais ou periódicos anunciados oficialmente.20
Seguramente, nesse grupo de analistas há mais consenso do que dissenso sobre as causas das presumidas diferenças e variações entre os números reais e os notificados de acidentes e doenças do trabalho nacionais.
Tabela 1 - Acidentes do trabalho urbanos registrados no Brasil, segundo a natureza - 1971-1995
Parece consensual que o número e a gravidade dos acidentes se elevam com o crescimento das atividades industriais de transformação, sobretudo metal-metalúrgica e da construção civil. Esse dois ramos juntos, ao menos em 1978, foram responsáveis por 56% dos 'acidentes tipo' no setor industrial e 37% de todos os 'acidentes tipo' ocorridos. Algumas das variações para cima e para baixo da série apresentada anteriormente decorreria de fases alternadas e irregulares de crescimento e recessão econômica e industrial. Eles seriam em maior número nas pequenas e médias empresas que nas grandes, provavelmente em decorrência da fadiga agravada pela extensão da jornada de trabalho21 e também pela obsolescência do maquinário. A informalidade das relações do trabalho no setor primário - bastante freqüente na construção civil, particularmente nas pequenas obras — e em vários ramos do setor terciário, como o trabalho doméstico, deixa esses eventos fora dos registros oficiais. A terceirização da produção por si mesma, e por favorecer a informalidade e o aumento da rotatividade do trabalho, contribui também para a subnotificação.22
A normalização promovida pela previdência social, com base na legislação saltitante, vem alterando os conceitos sobre o que seja ou não acidente de trabalho, quem deve, o que deve e quando deve notificar, favorecendo o sub-registro. Nas grandes e médias indústrias, seja pela incorporação de inovações tecnológicas, seja pela redução do número de trabalhadores ou por novos métodos de controle do trabalho, o número de acidentes pode estar decrescendo; mas a subnotificação é presumivelmente grande, facilitada pelo medo da perda do emprego, o que faz com que diminua a cobrança por parte do trabalhador para que a empresa emita a comunicação nos casos de acidentes leves - que não implicam afastamento prolongado —, como ocorre com 96% dos acidentes notificados numa média histórica de 20 anos, 82% implicando incapacidade temporária e 14% em simples assistência médica, como é demonstrada na Tabela 2.
Tabela 2 - Acidentes do trabalho liquidados pelo INSS, segundo a conseqüência - 1972-1989
Não há certeza, porém, se a somatória dessas causas explica inteiramente o divórcio entre o decréscimo tão grande dos acidentes tipo nestas duas décadas e o crescimento lento, mas contínuo, da massa absoluta de contribuintes da previdência social da União na década de 80, crescimento este maior no setor terciário, menos sujeito a acidentes dessa natureza, porém expressivo no setor industrial. Na presente década, com o aumento da informalidade das relações de emprego, do desemprego e da recessão, tal crescimento foi detido. Em 1996, a massa de contribuintes coberta pelo seguro-acidente era da ordem de 19,6 milhões, ou seja, um quarto da População Economicamente Ativa (PEA) do País.
Algumas palavras finais sobre as estatísticas referentes aos óbitos e doenças tipificadas como do trabalho. Os primeiros estiveram na ordem dos quatro mil em quase todos os anos após 1978, para caírem para o patamar dos três mil em 1992 e atingir os cinco mil em 1990. Quanto às segundas, a tendência verificada de 10 anos para cá, principalmente nos cinco últimos, é o de um franco aumento, possivelmente em razão da crescente notificação das Lesões por Esforços Repetitivos (LER). Os últimos dados do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), mesmo excluindo três estados menores, revelam ter ocorrido, em 1995, um total de 20.646 notificações de doenças do trabalho, acima do dobro das registradas em 1992 e quatro vezes maior que as comunicadas em 1990.
A difícil comprovação da concausa do trabalho e a recusa habitual por parte da previdência social em aceitá-la como explicação para o aparecimento ou recrudescimento de doenças não tipificadas como ocupacionais, com base na legislação acidentária, cada vez menos diferenciada, têm dificultado a notificação das doenças do trabalho e o reconhecimento da incapacidade, obtida agora quase unicamente em juízo.
Em 1975, quando a taxa de doenças incapacitantes em relação ao número de segurados era da ordem de 74:1.000, as neuroses, doenças hipertensivas, osteoartroses, epilepsia e tuberculose foram tidas como responsáveis por 33 % dos casos de incapacidade. Mas nunca, nem mesmo as doenças tipificadas como do trabalho, tiveram trânsito fácil na previdência social. Por exemplo, a bissinose e a asma provocadas pela aspiração de poeiras de algodão cru, sabidamente tão habituais na indústria têxtil e a asbestose, também freqüente no processamento do amianto, excepcionalmente têm sido diagnosticadas no Brasil.23
O atual ciclo de acumulação capitalista é caracterizado pela oligopolização e nítida predominância do capital financeiro e especulativo. Como os anteriores, ele tem desdobramentos e interações nos campos da ciência e da tecnologia, dos processos de produção, circulação e comércio das mercadorias, das políticas públicas, sociais, da cultura e dos costumes. Energia nuclear, automação acelerada, robótica, desenvolvimento da eletroeletrônica, informática e telemática, flexibilização da produção, fusão de empresas, globalização dos mercados e do capital, produção e comercialização de produtos voltados para o consumo rápido, sejam de bens, serviços, arte e lazer; redução dos impostos e cargas fiscais das empresas, diminuição do tamanho do Estado e dos investimentos e encargos públicos sociais e previdenciários, desregulamentação das relações do capital com o trabalho e afastamento do Estado da sua antiga condição de intermediador, desqualificação maior do trabalho para a maioria dos trabalhadores e um discurso consensual da mídia, também oligopolizada, sobre a excelência do "livre mercado", como doutrina e princípio de tudo, são algumas características do atual período.24
Como nos ciclos precedentes, também esse não ocorre de modo simultâneo e uniforme em todos os países desenvolvidos ou não. Há defasagens de tempo, de espaço, de qualidade, de estratégias e também de dificuldades, resistências e conflitos. Afinal, os oligopólios não eliminaram as contradições, nem mesmo no campo do capital. Existem outras, nos campos da política, das nacionalidades, etnias, religiões e culturas que estão irrompendo com uma força surpreendente. E essas não são poucas, principalmente nos países periféricos. Persistem muitos aspectos do velho' nesse mar de pós-modernidade e globalização. 'Velhos' são os princípios, os objetivos e as conseqüências do capitalismo, como a exploração do trabalho, o acúmulo do capital, o desemprego crescente, a doença e a morte antes do tempo, agora também por doenças menos visíveis, mais sutis, que atingem o corpo e a mente dos trabalhadores de outras maneiras. Mas isso nunca aconteceu sem resistências.