1. Da violência explícita à oculta
Qual alquimia social por trás da transformação dessas invenções destinadas a poupar trabalho humano em máquinas de empobrecimento? Um fato bruto, como por exemplo, uma colheita ruim, pode parecer estar além do controle humano. Mas a forma com que os fatos se desenrolaram ocorreu sob um complexo particular de relações humanas: direito, propriedade, poder. Quando encontramos alguma frase sonora como 'os fortes fluxos e refluxos do ciclo econômico', temos que nos manter precavidos, pois, por trás desse ciclo, existe uma estrutura de relações sociais que fomenta certas formas de expropriação (renda, interesse e lucro) e descarta outras (roubo, direitos feudais), legitimando certas espécies de conflito (competições, guerras) e inibindo outras (sindicalismo, motins reivindicando pão, organização política popular) — uma estrutura que pode parecer, simultaneamente, bárbara e efêmera para um observador do futuro.
Thompson (1988:30)
Nessa "Era dos Extremos", como a chamou Hobsbawm (1995), não só emergiu em todo o mundo o movimento trabalhista, como aconteceram duas grandes guerras mundiais, guerras e lutas anticolonialistas na Ásia, África e América, revoluções socialistas na Rússia, China e Cuba que ultrapassaram a década de 50, todas com a utopia de liquidar com o sistema capitalista, a propriedade privada dos meios de produção e colocar no poder a classe trabalhadora. Se considerarmos como medida o extraordinário desenvolvimento do capitalismo, que nesse estertor de século parece mais firme do que nunca, essas revoluções — apesar dos seus insucessos — e o movimento trabalhista nos países capitalistas que elas influenciaram, tiveram enorme significado e conseqüências dificilmente escamoteáveis.25
Embora persistam formas de violência explícita e dolosa, como espancamentos, execuções sumárias e crimes de toda ordem perpetradas pelo Estado ou por seus agentes, algumas com caráter de genocídios francos, como massacres e bombardeios que fazem duvidar dos valores e da estabilidade da sociedade moderna, há uma consciência muito viva contra tais horrores e muito do ideário revolucionário e reformista foi transformado em direitos da classe trabalhadora e das camadas mais despossuídas das populações do mundo inteiro.
O Estado, principalmente nos países capitalistas da Europa, sobretudo os nórdicos, até a década de 80 fez largos e crescentes investimentos para garantir bens e direitos públicos no campo da educação, saúde, transporte, previdência e lazer, configurando uma política conhecida como de Bem-Estar Social. Tais investimentos chegaram a corresponder a 40 % do produto interno bruto em alguns desses países, graças a uma política fiscal e de taxação sobre o capital, apoiada pela classe trabalhadora.
Mesmo ocupando um papel historicamente secundário e tardio dentro do conjunto dos países capitalistas, o Brasil não deixou de assimilar alguns desses avanços. As legislações acidentaria e previdenciária brasileiras são conseqüência tanto do movimento revolucionário e trabalhista internacional contemporâneo, como do modo particular com que no País as forças sociais em jogo, principalmente o patronato e seus aliados de um lado, a classe trabalhadora do outro e o Estado de permeio, lidaram com o conflito permanente entre capital e trabalho.
O marco inicial mais expressivo do inconformismo da classe trabalhadora brasileira parece ter sido a greve geral de 1917 em São Paulo, que assinala para alguns a existência de uma população de trabalhadores agindo com consciência de classe social. Depois dessa greve, aparentemente derrotada, emerge a primeira lei acidentaria e, subseqüentemente, toda uma legislação infortunística, trabalhista e previdenciária.26
A discussão sobre as necessidades e bens comuns da população em diversas áreas e a criação de organismos com a finalidade de provê-las, a despeito de sua eficácia sempre relativa, espelham a evolução de conceitos e de direitos no campo da res publica, isto é, do reconhecimento sobre a existência, não necessariamente material, das coisas, bens e espaços públicos.27
O que caracteriza um bem público é o seu caráter abstrato, não apropriável, indivisível e invendável, não tendo o atributo de materialidade concreta do seu oposto, o bem de consumo ou mercadoria. Bens públicos são, entre outros, a educação, a saúde, a capacidade de trabalho, a segurança, a justiça, o meio ambiente e o lazer. Sua fruição pretende-se sempre coletiva e igual porque resulta de necessidades sociais fundamentais. Proteger, promover e recuperar esses bens quando perdidos é responsabilidade do Estado, por intermédio de meios e instrumentos adequados, alguns obrigatoriamente estatais, como os da administração da justiça e da segurança pública, outros não necessariamente, mas regulamentados, providos financeiramente e fiscalizados por ele. O Estado, em parte, existe para garantir esses bens e essencialmente por tais razões é que todo cidadão paga impostos.
No escravagismo, a propriedade se estendia aos escravizados, mas na sociedade industrial ela se restringe aos bens materiais e nas empresas se circunscreve às instalações físicas, materiais, instrumentos de produção e objetos produzidos. Este é seu campo de posse, sejam elas estatais ou privadas.
A despeito da automação, o que faz da empresa uma unidade de produção de bens materiais ou de serviços é o trabalhador, cidadão livre mas sujeitado no trabalho e socialmente, que para viver precisa vender sua força de trabalho. Por isso, o capitalista compra e o trabalhador vende horas de sua capacidade de trabalho. Para vendê-las precisa ter alguma capacidade técnica de fazer e a saúde indispensável para que a coisa seja feita. Comprometer a saúde significa perder a possibilidade de vender horas de capacidade de trabalho com repercussões imediatas em sua vida, na dos seus familiares e na da sociedade que, de uma ou outra maneira, ajudou a construí-la e assume, previdenciária ou societariamente, sua perda. Daí porque a presença do trabalhador dentro de qualquer empresa cria, imperiosamente, um 'espaço público', pelos bens públicos que ele porta.
A presença de bens públicos dentro das empresas significa que processos de produção e organização de trabalho devem ser controlados socialmente e de modo permanente, sobretudo pelos que têm a responsabilidade maior de garanti-los e preservá-los: a própria empresa, o Estado, a sociedade e o trabalhador.
Toda a legislação internacional e nacional limitando a jornada de trabalho, restringindo o trabalho de homens, mulheres e crianças em condições e ambientes insalubres, proibindo o uso de determinados materiais e processos, fixando 'níveis de tolerância' para determinados agentes nocivos do trabalho, normalizando os tempos e períodos de trabalho e aposentadorias, obrigando a contagem de acidentados e adoecidos e impondo sistemas de taxação diferenciados e regimes de seguridade, em que pese a heterogeneidade — além de revelar o conflito entre o capital e o trabalho —, tem o mérito intrínseco de consagrar doutrinariamente a capacidade de trabalho como um bem público e conferir à sociedade, aos trabalhadores organizados e ao Estado o poder de intervenção na empresa para a preservação desse bem.
Quando nos últimos decênios os sindicatos operários japoneses negociaram a criação de coletivos de base, os franceses, as comissões de fábrica e no Brasil se legislou sobre a constituição dos serviços especializados de medicina e segurança do trabalho e das Correntes Internas de Acidentes (CIPAS), o princípio do contrário que gerou a construção desses instrumentos, independentemente de sua eficácia, foi o reconhecimento da sociedade sobre a existência de um espaço dentro da empresa que, por ser público, é passível de alguma forma de intervenção. É esse mesmo princípio que concede ao Estado o direito de taxação acidentária, de acordo com o risco de acidentes e doenças do trabalho, para prover-se de recursos financeiros que façam possível essa intervenção.
Obviamente, entre a doutrina do direito, o espírito da lei, o contexto político, a interpretação do texto jurídico e seu cumprimento, existem distâncias muito grandes, invariavelmente preenchidas pela parte que detém maior poder. A redução dessas distâncias é uma obra política e não é raro que os movimentos sociais invertam a ordem das coisas e direitos se antecipem às leis.
A medicina, e mais particularmente a disciplina que surgiu para tratar da matéria, a medicina ocupacional, além dos vários ramos do direito que lidam com o assunto: o acidentado, previdenciário, criminal e civil, exigem a comprovação do nexo entre a causa — o trabalho — e seu efeito — o acidente ou a doença —, para que haja a geração de responsabilidades, direitos e benefícios. O reconhecimento da causalidade, tradicionalmente, diz respeito ao processo material da produção, isto é, ao manuseio de equipamentos, materiais e processos de transformação aos quais fica sujeito o trabalhador enquanto trabalha, conquanto o reconhecimento, por extensão, do acidente de trajeto como acidente do trabalho subverta em boa hora esse tradicionalismo.
Apesar de a legislação acidentaria discursar sobre a prevenção de doenças e acidentes do trabalho e sobre a prioridade que deve ser dada aos métodos de proteção coletiva que incidiriam sobre instalações, equipamentos e processos, ou seja, sobre os bens de produção e sua dinâmica, o que a empresa faz e a legislação legitima é que o próprio trabalhador se resguarde, usando Equipamentos de Proteção Individual (EPI), sempre incômodos, de eficácia duvidosa ou parcial. Em caso de doença ou acidente, se vivo estiver, deverá comprovar que o fez, sob o risco de não fazer jus aos direitos e 'benefícios', invariavelmente pecuniários, que a lei faculta. Apesar de vítima, cabe-lhe, como se vê, o ônus da prova. O reconhecimento da causalidade ou 'risco' diz respeito, segundo a legislação, ao processo de trabalho em si, à manipulação de equipamentos e materiais em determinado espaço e momento que comprovadamente provoque danos à saúde ou morte por acidente.
Processos de produção similares presume-se ter conseqüências idênticas sobre a saúde, mas serão menores ou maiores em decorrência da organização do trabalho. Não por acaso empresas do mesmo ramo apresentam freqüências e gravidade diferentes de acidentes e doenças do trabalho. Ou seja, a questão da doença, acidentes e mortes conseqüentes ao trabalho não se restringe, exclusivamente, à materialidade do processo, mas também à organização do trabalho, determinada por relações sociais dentro e fora do trabalho.
Historicamente, processo de produção e administração do trabalho caminham juntos, condicionadas pelo desenvolvimento industrial e tecnológico e pelos conflitos sociais do capitalismo em cada país. Nos limites dessa determinação maior e obedientes às conjunturas internas, cada um pode, no entanto, ter processos de produção e organização de trabalho diferentes dos outros. Mesmo dentro de um mesmo país, sempre sujeito às externalidades econômicas, políticas, sociais e científico-tecnológicas, empresas de um mesmo ramo podem ter flexibilidade diferente para incorporar e adequar tecnologias, a depender das próprias condições econômico-financeiras e da organização e resistência interna e externa dos trabalhadores. É a partir daí que são definidos os limites possíveis das mudanças nos processos de produção e organização do trabalho.
Embora processos de produção e organização de trabalho tenham correspondência entre si, essa associação recíproca, habitualmente presente, não significa interdependência absoluta. Em princípio, pode-se usar trabalho escravo, ou, como ocorreu na Segunda Guerra Mundial, trabalho de prisioneiros em indústrias com elevado nível de tecnologia e automação. Essas, porém, são situações francamente dolosas e, ainda bem, cada vez mais raras. As exceções citadas são para advertir sobre a tese do determinismo tecnológico, entendendo-o como capaz de eliminar relações sociais muito atrasadas e lesivas aos trabalhadores, dando-lhe um caráter revolucionário em si, cujas inovações tecnológicas não têm.
No Japão, antes de seu ingresso na era da informática, o capital fez uso do tradicionalismo sociocultural e da modernidade técnica para organizar a produção e o trabalho numa versão peculiar do taylorismo-fordismo tradicional, induzindo à polivalência e qualificação dos trabalhadores, lastreadas socialmente na vitaliciedade do emprego, o que facilitou uma incorporação tecnológica menos traumática, sem desemprego ou demissões em massa como viria a ocorrer nos países industrializados do Ocidente.28
De qualquer modo, em todos os países capitalistas, as mudanças dos processos de produção e da organização do trabalho nos diversos períodos de evolução e crise do capitalismo recortam, como sombras, os perfis de morbi-mortalidade do trabalho, a tal ponto que se pode, também, com as devidas reservas, periodizá-Ios:
Na fase de acumulação primitiva de capital, correspondente ao primeiro ciclo da Revolução Industrial, ocorrido nos países precocemente industrializados, mais ou menos entre 1780 e 1870, predominaram as doenças infecto-contagiosas, parasitárias e por subnutrição, seguidas por doenças típicas do trabalho, especialmente aquelas relacionadas a inalações de poeiras minerais e orgânicas e, menos freqüentemente, por 'acidentes tipo' de trabalho.
No ciclo seguinte, de acelerada acumulação de capital, pré-monopolista, entre os anos de 1870 e 1920 e monopolista entre 1920 a 1950, caracterizado tecnologicamente pela indústria pesada de bens de capital, passaram a prevalecer as doenças explícitas do trabalho - embora insuficientemente reconhecidas e contabilizadas e não necessariamente com a mesma causalidade do ciclo precedente - e, também, os 'acidentes tipo' de trabalho e os acidentes de ida e volta do trabalho. As doenças infecto-contagiosas, parasitárias e prevalentes no ciclo inicial, tiveram enorme declínio.
No atual, francamente oligopolista, iniciado em torno de 1950 e acelerado a partir de 1970, a prevalência maior continua sendo dos acidentes típicos do trabalho, mas sobretudo de doenças de causalidade não direta, com uma relação com o trabalho menos explícita e mais sutil. A tendência é o decréscimo das doenças e acidentes típicas do trabalho, o estacionamento dos acidentes de trajeto e a diminuição ainda maior das doenças infecto-contagiosas, parasitárias e por subnutrição.
Essa periodização nos países de desenvolvimento capitalista periférico e tardio, como o Brasil, não é tão nítida, começando pela defasagem e dependência econômica e tecnológica desse desenvolvimento, pela dificuldade de colocar seus produtos em um mercado monopolizado pelo capital internacional, passando por uma outra circunstância importante, a celeridade e poder invasivo desse capital e da tecnologia que ele controla e que penetra os países periféricos em determinados setores, mantendo o atraso em outros. Pode-se, porém, ensaiar essa periodização em termos de perfil de morbi-mortalidade determinada pelo capitalismo no país, considerando como primeiro período o compreendido entre 1890 a 1920, quando começa a industrialização com a indústria têxtil. Nesse intervalo de tempo, a prevalência absoluta é das doenças 'pestilenciais' e, a seguir, de outras infecto-contagiosas, parasitárias e por subnutrição de caráter mais crônico, ocupando lugar bem subalterno as doenças explícitas do trabalho, provocadas por poeiras orgânicas e inorgânicas e os 'acidentes tipo' do trabalho, então menos freqüentes e menos graves. Entre 1920 e 1950, esse perfil vai se alterando lentamente, decrescendo as primeiras, aumentando as segundas, e as do terceiro grupo diretamente vinculadas ao trabalho. Após 1960, as doenças 'pestilenciais' só têm aparecido em surtos, as infecto-contagiosas, parasitárias e carenciais, ainda bastante presentes, passaram a ocupar uma posição cada vez mais subalterna, os acidentes e doenças tipificadas como do trabalho se elevaram e, ainda, uma rápida ascensão começaram a ter as doenças sem relação direta com os processos de trabalho, tidas como 'crônicas' e 'degenerativas'.
As definições sobre o que seja acidente e doença do trabalho são ao mesmo tempo uma questão controvertida e permanentemente atual, porque envolve o conflito dinâmico entre capital e trabalho. Historicamente, por princípio, o capital os classifica de modo restritivo, prática que vem do próprio conceito que faz do trabalho e de coisificação da pessoa do trabalhador, inspirando as seguintes metateorias: há um risco de adoecer e morrer próprio à natureza de qualquer trabalho; o risco é sempre de natureza material, ambiental, físico ou químico e faz parte do processo de produção, do nível tecnológico em que se encontra a indústria e da necessidade concorrencial dela incorporar inovações tecnológicas; o risco tem um caráter ocupacional, implicando a auto-responsabilidade da escolha profissional; há uma predisposição ou susceptibilidade individual dos que adoecem ou se acidentam do/e no trabalho; a obediência às normas de segurança e o uso de equipamentos de proteção disponíveis são suficientes para evitar ou manter a freqüência de doenças e acidentes dentro dos limites social, moral e tecnicamente admissíveis. Essas metateorias conduziram aos postulados e práticas hegemônicos da medicina e engenharia ocupacionais e do direito positivos aplicados contemporaneamente.
Pouco adianta invectivar o patronato por seus interesses, políticas e ações se não se fizer a exegese competente dos embasamentos teórico-ideológicos históricos do capital. O adoecimento e morte pelo trabalho faz parte da história do homem e algumas das doenças do trabalho são quase tão antigas quanto ele. Isso não os fazem um atributo natural do trabalho, mas uma conseqüência possível. Os instrumentos de trabalho que o homem dispunha nos seus primórdios para enfrentar a natureza e dela se apropriar implicava sérios riscos, responsáveis pela curta duração de vida. O conflito com a natureza subjaz nos dias atuais, mas não é ele, enquanto trabalho concreto, que determina hoje, hegemonicamente, as doenças e mortes na sociedade moderna, mas sim os conflitos sociais gerados pelo trabalho abstrato resultante do sistema produtor de mercadorias.
Antes da era cristã, nos impérios grego e romano, as doenças e mortes do trabalho ocorriam com escravos e servos, sobretudo na mineração. Na Idade Média e durante o mercantilismo, essas doenças e mortes vão se fazer mais freqüentes devido à expansão dos negócios, indo muito além daquelas que resultavam do embate com a natureza, determinadas, como passaram a ser, pela exploração do trabalho de escravos, servos e artesãos. Mas a explosão das doenças, acidentes e mortes do trabalho ocorre com a Revolução Industrial e burguesa, sobretudo a partir de 1870, como decorrência da universal, intensiva e extensiva exploração do homem no/e pelo trabalho. O que determina essas patologias não são a ocupação, a profissão ou o trabalho em si, mas sua expropriação, que impõe, necessariamente, a difusão e, muito freqüentemente, a intensificação da violência.
A prevalência do adoecimento e morte na classe trabalhadora dentro do trabalho é contemporânea à revolução médico-científica, quando a teoria da monocausalidade das doenças se sobrepôs, assentada na observação microscópica e na reprodução laboratorial de várias doenças infecto-contagiosas e parasitárias e na eficácia das vacinas. Ela fez submergir, ao mesmo tempo, as teorias miasmática e da determinação social das doenças. O princípio positivista de que todo efeito tem uma causa passou, soberanamente, a prevalecer, inclusive com relação às doenças do trabalho, reduzidas às doenças 'ocupacionais' e colocadas sob o signo da medicina ocupacional. Todo o conhecimento anterior sobre a patogenia das relações sociais e organização do trabalho foi soterrado, tal qual fizeram os colonizadores espanhóis com a civilização inca: construíram suas cidades em cima das cidades incaicas, suas igrejas sobre as igrejas dos escravizados.
Quem lê O Discurso sobre as Doenças dos Artífices, de Ramazzini, datado de 1700, percebe bem a diferença entre a teoria da causalidade e a teoria da determinação social da doença, a primeira extremamente fática e a segunda, histórico-social. Mesmo quando discute as doenças dos mineiros, Ramazzini não se prende ao 'pó de cada dia' desses trabalhadores, mas à sujeição no trabalho. Aliás, ele fala mesmo é disso: da sujeição ao/e no trabalho. Não há no seu escrito nada parecido à tirania do dogma positivista da causalidade da doença, muito menos única, mas sua determinação social, mais evidente quando discorre sobre as 'doenças dos intelectuais", os médicos entre eles, as 'doenças dos escribas e notários', as 'doenças dos alfaiates' e assim por diante. Nessas e em várias outros ofícios descritos pelo autor, tanto ou mais do que os materiais e instrumentos de trabalho, ressaltam as relações sociais e o modo como se organiza e se faz o trabalho na sociedade em que vivia.
Se há causa ou causas de doenças e acidentes do trabalho que guardam uma relação estreita com o processo de trabalho, esse não se concretiza sem uma organização que corresponda não só a uma tecnologia disponível, mas às relações sociais determinadas por um modo de produção que transcende os muros e portões em que a produção se realiza.
A possibilidade de um trabalhador adquirir uma pneumoconiose trabalhando em mina de carvão, dentro de um mesmo processo de produção em uma jornada de trabalho fixa, aumenta se ela for maior. Se o processo de produção se intensifica e o trabalho o acompanha, a possibilidade de ter pneumoconiose cresce. Mas não são os mineiros que escolhem ser mineiros, nem estabelecem sua jornada de trabalho e condições e instrumentos de trabalho.
A metateoria da materialidade físico-química da 'exposição ao risco', da necessidade de comprovar o nexo (causa) com a doença (efeito), tão caros à medicina ocupacional e ao direito trabalhista, previdenciário e civil positivos, tem menos a ver com a ciência do que com o sistema de reparação financeira ou indenizatória, advindo na mesma época, em decorrência da enormidade do número de doenças e acidentes do trabalho e dos limites de ressarcimento que o capital impôs e o Estado capitalista normalizou.
O que determina a ocupação ou profissão é a necessidade de o trabalhador colocar-se no mercado de trabalho para prover a subsistência. Não há escolha, e se não há, a auto-responsabilização por 'expor-se' no exercício de determinado trabalho é um mito. Não se é mineiro, ceramista, operário da construção civil, metalúrgico e bancário porque se quer, mas porque se precisa e essas são as ocupações possíveis.29
Por seu caráter nocivo, uma série de substâncias manipuladas ou produzidas no trabalho têm efeito imediato e não poupam ninguém. Nem todas, porém, qualquer que seja a forma (gás, vapor, fumo, poeira, líquida ou sólida), a via de penetração (respiratória, gastroentérica, epidérmica), têm características de veneno, produzindo efeitos sobre a saúde a curto, médio ou longo prazo e até nem produzindo qualquer quadro clínico evidente.
De cada 100 trabalhadores sujeitos às poeiras de silica, um percentual variável adoece de silicose, percentual tanto maior quanto maiores forem o volume e a concentração de silica na poeira inalada - menores suas partículas, mais prolongada a jornada e os anos de trabalho.30
O fato é que em populações sujeitas a substâncias e agentes nocivos, mas não tóxicas, de natureza física, química e biológica ou a pressões e tensões emotivas e psicossociais, dentro ou fora do trabalho, o adoecimento não guarda, necessariamente, relação dose/resposta. Há muitas teorias para explicar o fenômeno e uma delas é a da predisposição ou susceptibilidade. Os que adoecem, enquanto grupo minoritário, seriam indivíduos 'predispostos' ou 'susceptíveis' e os outros, a maioria, seriam sadios. Os primeiros, portanto, seriam portadores de um handicap, isto é, de uma 'predisposição' patogênica endógena e individual, mais ou menos relacionada ao conceito genérico de 'resistência', no caso, baixa.
O conceito de resistência está ligado, quase sempre, ao funcionamento do sistema imunológico. É com ele que se opera quando se fazem vacinações em massa contra uma série de doenças infecciosas. A imunidade conferida aos que adoeciam e sobreviviam a algumas doenças 'pestilenciais' era conhecida muitos anos antes da revolução médico-científica e, ao menos, a vacinação antivariólica natural a precedeu e há séculos fazia parte dos usos e costumes populares. O conhecimento sobre o funcionamento do sistema imunológico e sobre a imunidade evoluiu muito, é um marco vitorioso e dos mais expressivos da ciência médica contemporânea. Seria banalizá-lo operar empiricamente o anverso do conceito de imunidade, afirmando que os que adoecem do trabalho são 'predispostos' ou 'susceptíveis' a essa ou aquela doença, devido a uma presumida baixa 'resistência', posto que a maioria, igualmente sujeita, não adoece, logo teria uma resistência maior e porque maioria, constituiria a população 'normal'. Em que se respaldam concepções tão vagas?
A gravidade das intoxicações sabe-se ter uma relação dose/efeito, mas não são as intoxicações que estão em discussão, porque é insustentável falar, nesse caso, em predisposição ou susceptibilidade individual dos que se envenenam e menos ainda em resistência individual às intoxicações.31
A inalação de mercúrio, de monóxido e dissulfeto de carbono, de oxido de chumbo e outras tantas substâncias presentes nos processos industriais nunca tornou imunes suas vítimas. Mesmo em doses insignificantes e aparentemente inócuas a curto ou médio prazo, é de se supor seus efeitos prejudiciais.
É, pois, um equívoco imaginar que os Limites de Tolerância (LT) admitidos oficialmente protejam, de fato, a saúde do trabalhador. No mundo inteiro, as difíceis negociações entre empregadores, autoridades sanitárias e sindicatos, sobre esses limites, revelam que por trás do seu estabelecimento estão interesses econômicos e pressões políticas consideráveis que resultam em acordos que em si mesmo deixam transparecer a relação desigual de forças entre capital e trabalho. É comum que os LT fixados sejam, em momentos seguintes, diminuídos e que algumas substâncias sejam até proscritas. São exemplos recentes os casos do benzeno e do asbesto, banidos em vários países e tolerados em outros, inclusive no Brasil. Convenhamos que isso não é ciência, mas exercício de poder econômico e político às custas da saúde dos outros.
A metateoria da 'predisposição' ou 'susceptibilidade', obviamente, não é levantada para os casos de substâncias altamente tóxicas, mas para outras, cuja relação dose/resposta está longe de ser tão clara, como no caso de várias poeiras inorgânicas e orgânicas que causam, ao longo de meses ou anos de sujeição, sintomas e doenças em muitos, mas não necessariamente em todos. Algumas dessas doenças, como a silicose, a bissinose, a asbestose e a asma são bastante conhecidas e estudadas. Mas conquanto não devamos falar em relação dose/resposta, sabe-se que quanto maior a concentração de poeiras e maior o tempo de sujeição, a prevalência é maior e o tempo menor para o aparecimento dos sintomas.32
A intensidade e o 'tempo de exposição' - na verdade, 'tempo de sujeição' são dois elementos reconhecidos internacionalmente e convalidados na legislação acidentaria brasileira como envolvidos nas doenças do trabalho; a despeito das reservas quanto aos 'limites de tolerância', não só para substâncias químicas, mas para poeiras, ruído etc, eles expressam e consagram a tese de que as questões mais importantes relacionadas às doenças do trabalho são a intensidade e o tempo de sujeição. Essa validação se opõe à teoria da predisposição ou susceptibilidade individual e, por extensão, se aplica também aos acidentes de trabalho.
Há, no entanto, estudos que perseguem a identificação de 'fatores' ou atributos negativos de ordem individual de natureza genética, constitucional, comportamental, psicossomática, sexual ou mesmo de antecedentes patológicos que predisporiam a doenças e até a acidentes de trabalho.
No caso dos distúrbios e Lesões por Esforços Repetitivos devidos ao trabalho (LER), a partir desse enfoque empírico, investiga-se a estrutura musculoesquelética, a personalidade, os períodos biológicos da pessoa (síndrome pré-menstrual, da menopausa e andropausa), doenças anteriores osteomioarticulares, distúrbios hormonais, neurológicos e de conduta, neuroses e nas possíveis associações estatísticas. São buscas singulares, não necessariamente conclusivas, que retiradas do seu contexto são convertidas em evidências, pouco consistentes, sobre a existência de um 'fator individual' na geração de doenças e acidentes do trabalho que tanto pode ser uma mera 'predisposição' ou 'susceptibilidade', como uma doença anterior, 'síndrome de compensação' ou simples farsa para não trabalhar ou para obter vantagens. A patogênese do trabalho é esquecida e a responsabilidade por doenças e acidentes do trabalho passa a ser das próprias vítimas.
Apesar de ter havido uma sensível evolução conceptual em relação às doenças do trabalho, continua a prevalecer o conceito restrito de doenças 'ocupacionais' ou 'profissionais' provocadas por agentes físico-químicos nocivos, presentes no curso da produção. As relações de causalidade dessas doenças com seus agentes são estabelecidas com base nos 'níveis de exposição máxima' ou Níveis de Tolerância (NT) e 'níveis de poluição admissíveis'. Variando de um país para outro, são fixadas por pesquisadores e técnicos de órgãos dos ministérios da indústria, trabalho, previdência social e saúde, fundamentados em investigações realizadas em universidades e centros de pesquisa estatais e privados dos países mais industrializados. Acabam por ser compatibilizadas e validadas por organismos internacionais, como a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Organização Mundial da Saúde (OMS).33
Ao estabelecer esses parâmetros, a intenção é normalizar as relações conflituosas do capital e trabalho e diminuir os agravos mais conhecidos da produção e do trabalho à saúde do trabalhador, ao meio ambiente e à população de um modo geral. É um objetivo inalcançável, se pensarmos na rapidez da evolução tecnológica e científica que orienta a produção industrial moderna. Essas organizações terminam por estabelecer parâmetros e normas que norteiam a concessão de alguns direitos, 'benefícios' previdenciários, indenizações e seguros, razão porque, além do patronato e dos trabalhadores que têm assento eventual em suas reuniões periódicas, seguradoras e previdências privadas e estatais costumam fazer valer suas presenças, preocupações e interesses. No caso específico das doenças do trabalho, a contumaz insistência é sobre o nexo causal, ou seja, sobre a relação material e comprovável de causa e efeito.
A epidemiologia clássica, de certo modo, caminhou nesse sentido, o de estabelecer a causalidade da doença, mas entendendo-a como fenômeno, ao mesmo tempo biológico e social. Uma causalidade, portanto, múltipla, somente em parte verificável por métodos biológicos e experimentais. As outras causas seriam inferidas a partir da observação da doença tal qual ela ocorre e evolui nas populações. O instrumento de observação deixou de ser, em alguns casos, o microscópio, passando para a análise dos números e de suas correlações estatísticas. É um 'olhar armado com outras lentes', a das ciências matemáticas. Os elementos ou variáveis envolvidos na determinação em uma doença são muitos e é preciso, além de intuí-los, medir a força associativa positiva ou negativa de cada um e de vários deles agregados. São os conhecimentos empíricos do meio ambiente e da sociedade que permitem a formulação de hipóteses, mas a matemática e a estatística é que possibilitarão o estudo das associações, relações e correlações possíveis entre as causas possíveis, hoje muito mais facilitadas pelos modernos programas de computação.
A característica principal de uma epidemiologia crítica, porém, continua sendo a observação empírica que para ser profunda, como a de Snow, precisa ser indiciaria. Foi graças ao conhecimento fundamentado, embora empírico, que, algumas dezenas de anos antes que a teoria infecciosa e da monocausalidade fizesse esquecer a determinação social da doença e as suas múltiplas dimensões, Snow logrou explicar a epidemia de cólera de 1848 em Londres.34
Os estudos de morbi-mortalidade de populações, fundamentados na epidemiologia moderna, colocaram em xeque o princípio de causa/efeito, mas parece que a medicina ocupacional e o direito positivo não se deram conta disso.
Como as generalizações e o uso do senso comum não comprometem, diz-se que a vida urbana provoca tensões e doenças e nominam-se até algumas. É quase unânime a afirmação que a elevação do número de doenças cardiocirculatórias tem a ver com o modo de viver urbano atual gerado pelo industrialismo do desenvolvimento capitalista. Não é aceitável, porém, dar como certo que tal pessoa se tornou hipertensa por causa da aceleração do ritmo do seu trabalho. O grau de suspeição aumenta se outros que realizam o mesmo trabalho apresentam sintomas de adoecimento cardiocirculatório. A preocupação indiciaria não deve se circunscrever, porém, ao elemento mais perceptível da patogenia do trabalho, no exemplo citado, o ritmo, mas com a patogenia do trabalho que impõe o ritmo e no qual esse se inclui e costuma ser uma das suas expressões mais simples. O referencial invocado com insistência é a categoria trabalho, que não se circunscreve ao processo de produção, e a organização do trabalho dentro dos muros e paredes da empresa, mas se estende para fora, invade e modela a vida do trabalhador e suas relações com seus familiares, amigos e vizinhos. Trabalho que se realiza em uma fase e dentro de um modo de produção determinado e hegemônico, o capitalista, em que a empresa no qual se trabalha é apenas, e talvez, um mau exemplo.