2. A violência oculta em uma atividade exemplar
... antes que a humanidade sufoque (ou se refesteie) na masmorra (ou no paraíso) de um império mundial pós-capitalista, ou de uma sociedade de mercado capitalista mundial, é bem possível que ela se inflame nos horrores (ou nas glórias) da escalada da violência que acompanhou a extinção da ordem mundial da Guerra Fria. Nesse caso, a história capitalista também chegaria ao fim, mas voltando deforma rigorosa ao caos sistêmico de que partiu a seiscentos anos, e que foi reproduzido em escala progressivamente maior a cada transição. Se isso significaria o fim apenas da história capitalista, ou de toda a história humana, é impossível saber.
Arrighi (1996:371)
Os bancos
A venda do dinheiro é um antigo comércio. Em seus primórdios, a usura era uma atividade individual malvista, reprimida e em muitas situações punida. No capitalismo mercantil, o volume e intensidade das trocas geraram notável entesouramento em mãos dos comerciantes e dos que intermediavam os negócios entre a produção e o consumo, acabando por tornar o aluguel do dinheiro acumulado uma atividade econômica em si e necessária à expansão de todos os ramos de atividades econômicas. Sempre era preciso dinheiro para comprar, construir e armar embarcações, contratar tripulações e exércitos, manter e povoar terras ocupadas.
Até então as casas bancárias, designação mais comum adotada na Europa antes do século XVII, guardavam um estilo discreto, como se as transações feitas fossem negócios em família. Afinal, familiares eram os seus donos, freqüentemente seus funcionários e, de certa maneira, os próprios fregueses. E assim foi por um longo período.
Trabalhando com sua teoria de ciclos sistêmicos de acumulação capitalista, Arrighi (1996) considera como ponto zero do desenvolvimento do capitalismo mercantil a expansão financeira do século XIII ao início do século XIV, indicando a aliança entre as classes e grupos que exerciam e queriam manter e expandir o poder nas cidades-Estados e os donos do dinheiro, que precisavam aplicar seus excedentes e multiplicá-los. Segundo ele, "o resultado foi uma alienação cada vez maior das cidades-Estados ao interesse monetário", mais cabal em Gênova, onde a receita e a administração pública passaram, em 1407, para os donos da Casa di San Giorgio e em Florença, cujo governo foi tomado pela Casa dos Medici. Segundo o autor, essa acumulação primitiva do capital teve na Europa, como fontes principais, a coleta de impostos papais combinada com o comércio da lã em Florença.35
A usura, tão estigmatizada ainda no presente enquanto prática individual, na medida em que se institucionalizou com o capitalismo, ganhou aura de respeito que nem as falências, razoavelmente freqüentes, conseguiram abalar. Essa institucionalização, iniciada no século XIII, se consolidou com o Estado moderno e centralizado, este também emergente. É o Estado que, a partir de sua conformação, vai estabelecer agora as novas regras e limites das atividades financeiras que deixavam de ser apenas prestamistas para se constituírem em um crescente e complicado número de operações, a envolver vultosos interesses, não apenas econômico-financeiros provinciais ou de cidades, mas de nações e de empresas que se internacionalizavam. Entre a prática de emprestar a juros e a formação do capital financeiro das modernas corporações bancárias passaram-se seis séculos.
O Brasil fez essa transição tardiamente e à distância. Os seus 300 anos de colônia de uma metrópole decadente e subalterna aos interesses econômicos e políticos ingleses fizeram-no uma praça comercial de menor importância, cujos negócios e empréstimos eram realizados pela coroa portuguesa. No fim do século XVIII, Portugal era um império endividado e caudatário dos interesses econômicos e políticos de outras nações européias, em particular do Reino Unido. Não por acaso eram inglesas as casas bancárias que negociavam seus empréstimos.36
Na ocasião, a população do Brasil-colônia era estimada em pouco mais de três milhões, metade dela escrava. Se os cidadãos livres eram consumidores modestos, que dizer desses outros que nem cidadãos eram? Essa população rarefeita, de baixo ou nenhum poder aquisitivo, estava concentrada em sua quase totalidade na faixa litorânea e, predominantemente, em fazendas e engenhos nos arredores de suas cinco cidades mais importantes: Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo, Recife e Vila Rica. Somente a última, que florescera, graças, principalmente à extração de ouro, não se situava no litoral. Quando o império finda, a população brasileira passara a 14 milhões, dois terços analfabeta, a maioria descendente de escravos, subempregada ou desempregada, com um operariado estimado em 70 mil pessoas e uma classe média extremamente rarefeita.37
Do descobrimento à República, a produção do Brasil passou da exportação de ouro, prata e pedras preciosas para a de produtos agrícolas de exportação, invariavelmente de monoculturas limitadas à faixa litorânea e que começaram a avançar para os planaltos das regiões do sul e sudeste do País em meados do século passado. O regime de propriedade da terra pouco se alterara nesse tempo e as técnicas agrárias continuavam bastante rudimentares, assentadas ainda na exploração do trabalho escravo. No final do século XIX , no entanto, a lavoura do café passara a ocupar uma posição cada vez mais importante em nossa pauta de exportações e por requerer uma maturidade raramente inferior a cinco anos, impunha a necessidade de grandes investimentos de capital, não só em terras, implementos agrícolas e transportes, como em força de trabalho livre, praticamente ainda inexistente por aqui.
As primeiras vivências do governo imperial com instituições financeiras, todas estrangeiras, foram desastrosas. Os juros, taxas de serviços e comissões sobre os empréstimos contraídos foram exorbitantes. Para justificá-los, as casas bancárias alegavam o alto risco do investimento, mas na realidade o que teria pesado para que as condições fossem tão desfavoráveis deveu-se à tibieza e à corrupção dos negociadores brasileiros. É bom lembrar que por força do tratado de paz entre o Brasil e Portugal para o reconhecimento da nossa independência, o País herdara uma dívida de três milhões de libras esterlinas, cujos maiores credores eram a Nathan Mayer Rotschild e a Thomas Wilson Company, sediadas no Reino Unido, que mediaram o tratado. Dois anos depois, em 1824, já como país independente, o Brasil faz seu primeiro empréstimo, no valor de 3,6 milhões de libras esterlinas, das quais recebeu em dinheiro 2,7 milhões. Um terço do total ficou com os próprios credores, a título de juros e comissões. Ao longo do império dos dois Pedros, o País jamais conseguiu pagar esse e outros empréstimos, sempre renovados mediante sucessivas amortizações e acréscimos de novos juros e comissões, antecipadamente descontados do principal.
Como se vê, as instituições financeiras internacionais marcaram de forma áspera e definitiva sua presença na economia e finanças nacionais desde a independência. Por todo o período do império, elas mantiveram e reforçaram seu papel de intermediadoras entre as praças estrangeiras e o Brasil, exercendo controle direto ou indireto sobre os produtos de exportação e o movimento dos portos, tomados como garantia. A situação não se alterou com a Proclamação da República e as crises políticas que a sucederam, em parte, geradas por essa dependência econômico-financeira e, em parte, por uma produção agrícola restrita, baseada nas lavouras do café e da cana-de-açúcar.
Após a Primeira Guerra Mundial muita coisa mudou. O capitalismo avançara no caminho da monopolização; o império britânico, alquebrado com os gastos bélicos, perdeu sua hegemonia política e econômica, cedendo-a aos Estados Unidos da América do Norte, agora seu credor. A Casa Rotschild foi substituída de sua condição de principal credor brasileiro para a National Bank of New York, que se instalara no País em 1915. Já então os empréstimos não se faziam somente entre credores externos e a República, mas também com os estados e o setor privado nacional, prática iniciada timidamente na metade do século anterior.38
A primeira instituição financeira nacional, o Banco do Brasil, de propriedade privada e de natureza estritamente comercial, foi criada em 1808. Suas principais finalidades eram o desconto de letras, captação de depósitos em conta-corrente, recebimentos e pagamentos, emissão de letras ou bilhetes pagáveis, comissões e saques por conta do Tesouro Nacional e de particulares, depósitos a juros, comércio de ouro e exclusividade de venda de gêneros do 'estanque real' (diamantes, paumarfim etc). Sua existência foi efêmera. Vinte anos depois de uma vida difícil, em que não faltou malversação do dinheiro, o Banco foi liquidado.
Em 1838 foi criado um novo Banco de propriedade nacional, o Banco Comercial do Rio de Janeiro, com finalidade também estritamente comercial, voltado para a realização de empréstimos sempre a curtíssimo prazo. Esse Banco, cujo alvará de funcionamento foi emitido em 1843, operava com depósitos em moeda, jóias, prata, adiantamentos sobre títulos de valores fixos, descontos, negociação de letras de câmbio e terras, cobranças de letras ou qualquer título, empréstimos sobre penhores de ouro, prata, diamantes, apólices de dívida pública, compra e venda de metais, movimentação de fundos próprios, emissão de letras, conta-corrente etc.
Sucessivamente vieram outros: O Banco da Bahia em 1845, o Banco do Maranhão em 1846, o Banco do Pará em 1847, o Banco ou Caixa de Socorro Provincial de Pernambuco em 1847. A característica nova desses Bancos era que suas atividades se inclinavam para empréstimos industriais e agrícolas, ou seja, para o financiamento da produção, com prazos de pagamento mais longos. A exceção do último, que se capitalizou com dinheiro público, os demais eram de capital privado. Quando o Banco do Brasil voltou a existir, em 1851, já havia 14 bancos particulares de brasileiros e três Caixas Econômicas. A guisa de comparação, em 1840 o Reino Unido tinha 473 bancos e 1.084 agências e os Estados Unidos da América tinham 901 bancos.39
Quando a República é proclamada, a cidade do Rio de Janeiro, sua capital, tinha 35 bancos. Uma aceleração de passo, mas no final do século passado, apenas o Banco do Brasil tinha abrangência nacional. Os depósitos, em sua maioria, continuavam sendo de transações comerciais e raros se originavam de particulares. Guardar dinheiro em casa continuava sendo a regra, antes que a desconfiança aos bancos cedesse. "Até o final do século XI X era comum o comércio a varejo pelo escambo, isto é, sem interferência do dinheiro nas transações. O vendeiro trocava o produto da produção agrícola por outros manufaturados que ele comercializava" (Schmitz, 1991). Ainda em 1957, testemunhava-se esse tipo de transação no sul da Bahia. O vendeiro comprava a produção do cacau ainda no pé, em troca de alimentos, vestuário e implementos agrícolas. Fazia, a seu modo, o papel de Banco, escriturando as transações em um sistema próprio de conta-corrente, à qual só ele tinha acesso e como diz esse autor, "a receita era o que o agricultor trazia (ou iria trazer) e a despesa o que levava em mercadorias". Não era incomum, descreve, vendeiros mais ricos emprestarem dinheiro a juros, sempre altos, para a construção de casas, aquisição de terras e animais de carga, cercando-se de grandes cuidados para resgatar a dívida. O sistema era largamente favorável ao vendeiro, que se beneficiava com o carreamento do excedente econômico para as suas mãos, propiciando acumulação de capital mercantil, ampliação dos seus negócios e transferência desse excedente para o setor industrial em formação. O agricultor era prejudicado de várias formas, a começar por se ver obrigado a vender na entressafra, a preços invariavelmente mais baixos. Não raro, pequenos agricultores, freqüentemente analfabetos, eram lesados ao assinar promissórias. Esse expediente desonesto ficou conhecido como 'caxixe', na zona cacaueira da Bahia.
A criação das cooperativas agrícolas no começo deste século foi, em parte, resposta a essas relações comerciais abusivas, devendo-se sua introdução no Brasil a agricultores italianos e alemães que se instalaram no sul do País.40
As cooperativas agrícolas eram, em sua origem, associações que visavam substituir o intermediário e a usura. Os bancos, pelo contrário, visavam ocupar esse lugar e tornarem mais explícita e normalizada a missão. No entanto, as próprias cooperativas, mesmo quando predominantemente constituída por agricultores, preocupadas em controlar seus próprios créditos e débitos, ao gerarem capital excedente e de origem mercantil, além de impulsionar a produção e fortalecer o capitalismo no campo, terminavam possibilitando o financiamento de outros setores, inclusive o industrial e o das instituições financeiras de outro tipo. Não acidentalmente muitas cooperativas e bancos de crédito agrícola acabaram absorvidos por bancos maiores tipicamente comerciais, cuja atividade principal era e continua sendo a de emprestar dinheiro a juros e taxas de serviços capazes de multiplicar infinitamente o capital. Foi a cultura do café e suas crises freqüentes que fizeram dos agricultores assíduos usuários das instituições financeiras.
Os bancos comerciais representaram, desde sua origem, portanto, outro tipo de interesse, mais ligados que são ao capital industrial, com maior diversificação de serviços ou 'produtos' e maior abrangência geográfica, despidos do caráter local ou regional que alguns, no início, tiveram. Uma das maneiras de perder essas características provincianas e ganhar espaços mais amplos foi mediante a fusão com bancos maiores.
Na terceira década do presente século, o processo de monopolização do capital financeiro cresceu, à medida que a lucratividade aumentava. Na ocasião, a fixação por lei, da taxa anual de juros em 12%, não impediu que a lucratividade bancária continuasse a aumentar, por intermédio dos mesmos artifícios utilizados hoje, tais como o do aumento das taxas de serviços e outros expedientes que a inflação alta facilitava. Percebe-se que, no particular, a usura não renovou seus métodos.
Ém 1925, a rede bancária nacional continuava concentrada nas duas principais praças comerciais do País, as cidades do Rio de Janeiro com 41 bancos e a de São Paulo com 21. Ao todo, havia nesse ano, no País, 384 agências bancárias, incluindo as matrizes. Em 1957, as matrizes haviam passado para 357, com um total de 4.628 agências.
Evidenciando o processo de concentração do capital financeiro, 10 anos depois, enquanto o número de agências somava 7.026, as matrizes haviam caído para 272. Essas matrizes voltaram a crescer nos anos 80, mas retorna agora a concentração, por meio de fusões e da internacionalização do capital financeiro. Em 1995 existiam no País 246 bancos, com 17.255 agências e outros 15.057 postos de atendimento em empresas, havendo a previsão de que aquele número caísse para 70 em três anos.41
Cerca de 80 % dos empréstimos bancários hoje se destinam às operações industriais e comerciais, ficando o setor agrícola com 6%. Com o tempo e os novos rumos da economia nacional, a equação, portanto, foi invertida. Ao invés de cooperativas e bancos agrícolas regionais, os grandes bancos comerciais, de abrangência nacional, com crescente participação internacional, interessados em operações de menor risco, rentabilidade alta e empréstimos a prazos curtos.
Essas mudanças de perfil das atividades bancárias coincidem com as mudanças da economia e têm correspondência com mudanças das forças e grupos políticos no poder e na condução das políticas do Estado brasileiro. As antigas oligarquias rurais foram deslocadas ou se associaram a grupos de industriais e comerciantes recém-consolidados. As correntes e agremiações políticas que as representavam cederam lugar a outras correntes e agrupamentos mais novos, onde passaram a estar minoritariamente representadas as camadas e os setores médios e operários da população, com reivindicações marcadas pelo conteúdo urbano e moderno. Por trás dessas correntes e partidos, financiando as eleições de candidatos para todos os níveis e instâncias de governo, estão novas forças econômicas, entre elas os bancos, que plasmam as políticas nacionais, estaduais e locais.
Quando, em torno de 1930, essa virada se dá e o moderno Estado brasileiro se consolida, os bancos públicos estaduais maiores haviam acabado de se estruturar: o BANESPA em 1926, o Banco do Rio Grande do Sul e o BANESP em 1928. A eles se seguiram outros, cujos principais acionistas eram os governos estaduais.
Por esses bancos estatais vieram a transitar vultosos recursos financeiros procedentes da movimentação de dinheiro público. Sua missão original era dar suporte aos investimentos em setores produtivos ou sociais desinteressantes para os bancos privados, devido aos riscos, baixa rentabilidade e ressarcimento a longo e médio prazo. Complementavam assim a missão de outra instituição estatal de âmbito nacional, o Banco do Brasil, cujos recursos mais volumosos destinavam-se a empreendimentos em escala maior ou de natureza estratégica, como os setores de energia fóssil e hidroelétrica, ferroviário e rodoviário e agrícola, que requeriam aportes do Tesouro Nacional e empréstimos externos.
Os bancos públicos estaduais têm passado crises periódicas que levaram vários à situação falimentar ou pré-falimentar, com intervenções mais ou menos explícitas do governo federal, em face da malversação freqüente de seus recursos em empreendimentos de elevado risco sem garantias, com presença constante de clientelismo em muitas operações, a despeito da elevação das taxas de juros imposta pelo credor maior, o próprio governo federal. Mais recentemente, a debilidade dessa rede bancária estadual tem facilitado pressões para sua privatização. A alegação costumeira é de que essa rede estaria financiando os endividados cofres estaduais, transferindo depois o ônus para a União.
Conquanto boa parte dessas alegações sejam verdadeiras, a pressão recente para a privatização dos bancos estatais parece estar no âmbito da proposta de reduzir o papel do Estado nas atividades financeiras, segundo o modelo econômico neoliberal, permitindo que as instituições privadas controlem, de vez, os depósitos e dinheiro públicos. A resposta dos governos e bancos estaduais tem sido tímida, alicerçada no forte e tradicional espírito corporativo dos seus funcionários e em iniciativas de assumirem, com maior ênfase, funções de bancos comerciais, buscando uma modernização tecnológica e administrativa que os bancos privados já realizaram, cortando fundo, sem pudor e sem resistências maiores, seu pessoal, mantendo elevada rotatividade de sua força de trabalho e cobrando taxas de serviços elevadas.
Em busca de maior lucratividade, toda a rede bancária pública e privada vem diversificando seus 'produtos', expandindo sua territorialidade, reduzindo ao mínimo suas pretensas funções sociais, privilegiando operações de curto prazo e o empréstimo simples de dinheiro e aumentando suas taxas de juros e de serviços, acentuando seu caráter comercial e usurário. No que diz respeito aos bancos estatais, as pessoas comuns, depositantes ou meros usuários, às vezes, pelo simples fato de serem funcionários públicos, vêm se apercebendo dessas mudanças há algum tempo, esmaecendo as simpatias por essas organizações que se tornam ressonâncias de um passado cada vez mais distante.
O trabalho bancário
O trabalho bancário é uma técnica exercida, especialmente, sobre determinado objeto, o papel ou sucedâneo, mediante instrumentos com a finalidade de produzir operações e informações, enfim, serviços que têm valor de mercadoria.
Ele tem sua origem no ofício ou arte da escrita e, mais proximamente, da contabilidade, cuja característica, no passado, era de um trabalho mental vertido no papel sob a forma de símbolos lingüísticos, números ou outros modos de representação escrita.
Tanto como qualquer outro trabalho de escritório dos tempos modernos, com o qual têm estreita identidade, foi possível separar as atividades intelectuais ou de concepção, reservando-as para a administração das atividades de execução reduzidas a tarefas simples, deixadas aos quadros hierárquicos subalternos, tarefas que implicam operações manuais de utilizar máquinas de escrever e computar.42
Essa divisão do trabalho foi facilitada pela expansão e diferenciação dos 'produtos' oferecidos pelos bancos e pela progressiva automação. A divisão, em suas características basilares, não foi diferente da ocorrida em outras atividades econômicas, ou seja, o trabalho mental de concepção foi historicamente expropriado aos trabalhadores para os quais restou a execução de tarefas fragmentadas, cada vez com menor qualificação.
No entanto, apesar de simples, as tarefas bancárias requerem um elevado nível de atenção e um permanente estado de alerta. Tais exigências resultam do medo de errar e de suas conseqüências. Afinal, trata-se de manipular a mercadoria de maior valor simbólico no capitalismo, o dinheiro, no qual todas as coisas estão contidas. Dinheiro é sobrevivência, é emprego, é segurança, é casa, alimento, saúde, felicidade. E o bancário é o guardião simbólico de todas essas coisas dos outros.
Os elementos constitutivos do processo de trabalho bancário envolve as técnicas do trabalho em si, a operação dos seus instrumentos, meios e produtos, fundamentalmente, o tratamento das informações e a produção de outras, a formulação de hipóteses, a avaliação dos resultados e o acompanhamento dinâmico do processo, que conformam uma tecnologia e disciplina próprias.
Mais recentemente, todo trabalho de concepção foi centralizado na administração superior que, também à distância, detém o controle de produção de cada unidade, via integração por computadores (sistema on line). Cabe à gerência do nível médio da administração, por ela própria e por seus prepostos (subgerentes, chefes e supervisores), o controle físico da atividade de cada trabalhador situado nos diferentes níveis. Nesse aspecto, a verticalidade do mando, a hierarquia de competências, não difere a organização bancária de qualquer outra.
A gerência de banco, como as demais gerências de qualquer organização, tem, essencialmente, dois atributos: o da perícia técnica e o do poder sobre seus subordinados. A diferenciação de salário e outros 'benefícios', na verdade salários indiretos, obedece mais ao segundo dos atributos. Por ambos é que a força de trabalho gerencial, enquanto mercadoria, tem um valor diferente da força de trabalho subalterna. Mas ela não deixa de ter os atributos fundamentais, as "marcas da condição"43 da classe trabalhadora, certamente mais atenuadas. Apesar de diferenciada, ela também perde autonomia, parte de sua liberdade e se subordina à administração superior. A função maior dos gerentes quase se restringe ao controle dos seus subordinados, porque o conteúdo histórico anterior do seu trabalho — a perícia técnica e o poder de conceber — foi esvaziado e transferido para hierarquia acima, empobrecimento facilitado pelo sistema on line.
Assim, a incorporação de avanços científicos e tecnológicos nas várias atividades econômicas e, em particular, na bancária, embora elevando a tecnologia do trabalho em termos médios, de um modo geral não elevou a exigência de qualificação técnica do trabalho para a maior parte dos trabalhadores situados na hierarquia mais baixa, nem colocou ao seu alcance esses conhecimentos incorporados, privilégios resguardados para a administração.
A seleção de trabalhadores com nível de educação superior, ou mesmo média, não se dá, pois, pela necessidade dos seus conhecimentos teóricos, em geral pouco utilizados, mas pela disponibilidade no mercado. Há no mercado dos países industrializados, invariavelmente, excesso de médicos, engenheiros, advogados, odontólogos, administradores, economistas, contabilistas etc.
Por essa razão, aumenta o número de cursos de extensão para essas profissões, cumprindo a função de retardar a entrada desses técnicos no mercado, onde não cabem todos. Proliferam os mestrados, doutorados, os cursos de aperfeiçoamento e estágios. Tal qual as escolas de primeiro e segundo grau, as universidades tornaram-se imensas organizações de 'indivíduos sentados' e, ao invés de se constituírem em instituições-meio, acabaram sendo instituições-fins.
Mas o controle do trabalho bancário não se dá hoje, apenas, pela coerção física e vertical das chefias. Há outro tipo de controle não hierárquico, mas horizontal. É um controle forte e sutil, que se naturaliza, a dos trabalhadores sobre os trabalhadores do mesmo nível, no 'rés do banco'. Ele se faz em razão da interdependência das tarefas que realizam, cuja continuidade, intensidade, ritmos e tempos são agora mediados pelo sistema automatizado. Os computadores não são sucedâneos das máquinas de escrever ou calcular, meros facilitadoras do trabalho; a integração on line os fazem censores rigorosos, olhar imperceptível e onipresente da administração superior distante sobre todos os que trabalham e se obrigam a cobrar entre si plena eficiência e produtividade.
Atualmente, a essência do processo de trabalho bancário está em seu produto final, a informação. É por intermédio dela que o dinheiro, mágica e velozmente, se reproduz. Para ter o atributo de um bom produto, sua obtenção, tratamento e uso devem ser rigorosos e pragmáticos. E os meios e instrumentos modernos que emprestam essas características à informação e lhe dá máxima eficiência são o computador e a telemática. São meios não originários da atividade bancária, mas certamente, de todos os serviços, foi onde ocuparam maior espaço.
A incorporação da automação e da telemática pareceu elevar a qualificação dos que trabalhavam em banco. Com os computadores vieram engenheiros, analistas, programadores e digitadores. Embora houvesse uma divisão de tarefas, tal incorporação, a princípio, tornou o trabalho mais complexo. Todavia, a seguir os técnicos mais categorizados foram substituídos por programas pré-elaborados, enquanto as tarefas ou trabalhos mais simples foram repassados aos níveis basais da hierarquia bancária, agora obrigados a digitar e acompanhar nos visores os resultados de cada operação. A instalação dos caixas eletrônicos que a cada dia aumenta o número de informações e operações disponíveis, fazem do usuário o próprio operador do sistema, dando bem a medida da divisão e automação do trabalho bancário.44
Como a automação continua e a periferização e integração do sistema bancário são uma estratégia em curso, os funcionários das agências cada vez acumulam mais tarefas simples. O que é tido como qualificação é, na verdade, um acúmulo de práticas elementares que requerem muita atenção, pouca elaboração mental e conhecimentos rudimentares, sob controle imediato da gerência e mediata da administração central. O passo previsível é o do crescimento da automação e a redução do 'trabalho vivo'.
Esse é um fato preocupante para essa categoria de trabalhadores, posto que a expansão horizontal da atividade bancária e o crescimento do número de agências não guarda correspondência com a ampliação do mercado de trabalho. Aliás, vale acrescentar que a externalidade ou face pública da atividade bancária — o atendimento direto aos usuários nos balcões — é hoje um aspecto secundário dentro do sistema financeiro. Mesmo o pagamento de contas dos serviços públicos e privados, o desconto e depósitos de cheques, caminham para a total automação.
Igual rumo trilham os serviços de apoio logístico e de retaguarda, como secretaria, telefonia, almoxarifado, arquivo e controle de pessoal. As secretárias estão se tornando simples recepcionistas, na medida em que são adotados programas com textos e expressões intercambiáveis de acordo com as diferentes situações, ao mesmo tempo em que outros programas de sintaxe e pontuação substituem as secretárias com 'redação própria' e conhecimento de línguas.
Passo a passo, a atividade bancária, talvez mais velozmente que qualquer outra, está convertendo a quase totalidade dos seus trabalhadores em meros auxiliares de um processo de produção cuja expansão horizontal da atividade requer, sobretudo, no nível hierárquico inferior, força de trabalho pouco qualificada.
Historicamente, essa atividade exigia um conhecimento específico. Seus mestres, os contadores, e pretendentes a mestre, os auxiliares de contabilidade, lidavam com a escrituração de livros, papéis e transações, cujos maiores interessados eram pessoas físicas das classes econômica e socialmente mais favorecidas e, secundariamente, empresas que estavam longe de ter a importância de agora.
Por isso, era obrigatório que se os recrutassem na classe média e letrada, impondo-se, obrigatoriamente, comportamentos e expectativas compatíveis com os depositantes e usuários. Daí o costume do paletó e da gravata. A origem de classe desses trabalhadores alimentou, por certo tempo, a ilusão de que a expansão dessa atividade e de outros serviços e do número crescente de trabalhadores que não precisavam sujar as mãos e as roupas enquanto trabalhavam, ao contrário dos operários, resultaria em garantia de ascensão econômica e social, mesmo para aqueles que provinham do outro segmento socialmente menos privilegiado, o dos trabalhadores industriais.
Nessa linha de raciocínio, Braverman (1981:298) assinala não ser de admirar que
...as duas variedades principais de trabalhadores, de escritório e fábrica, comecem a perder algumas das suas distinções de estratificação social, instrução, família e coisas semelhantes. Não apenas osfuncionáriosprovêm cada vez mais defamílias operárias e vice-versa, como cada vez mais misturam-se na mesmafamília. A principal distinçãoparece ser quanto ao sexo.
De fato, tomando como exemplo o próprio ramo bancário, a presença da força de trabalho feminina é crescente e, em alguns, já ultrapassa a masculina. Como habitualmente ocorre no mercado de trabalho, a mulher é recrutada para os trabalhos de menor qualificação e maior rotatividade.
Historicamente, o recrutamento da força de trabalho feminina se fez acompanhar de redução de salários, em decorrência da duplicação da oferta de mão-de-obra, cuja queda é proporcional a esse ingresso. O fenômeno é genérico em todas as atividades que não requerem força muscular, vale dizer, em todas as ocupações burocráticas, a exemplo da bancária. A automação é um componente de agravamento da situação, na medida em que constrange o mercado de mão-de-obra e simplifica a qualidade do trabalho requerido.
O menor valor da força de trabalho feminino no mercado, entre outras causas, se deve às exigências e ao oportunismo dos seus compradores. As condições biossociais de uma maternidade envolve nove meses de gestação, idealmente um ano de aleitamento e de cuidados especiais permanentes com a criança menor de 12 meses e necessidades biopsíquicas recíprocas que se prolongam, ao menos, durante toda a primeira infância e pela vida afora. Além disso, a gestação pode se repetir em toda a fase reprodutiva da mulher. Tais papéis, insubstituíveis e vitais para a sociedade, não entram na consideração dos empregadores, que vêm a mulher exclusivamente como força de trabalho de menor valor por tais 'limitações'. As funções biológicas e sociais da mulher entram no cálculo das empresas com sinal trocado, de valor negativo, uma vez que favorece ausências ao trabalho e aumento dos custos da produção, logo, a redução do lucro. Pretextos anti-sociais dessa natureza servem para barganhar e puxar para baixo os salários de todos os trabalhadores femininos e masculinos.
A motivação que leva a mulher para o mercado de trabalho é, acima de qualquer outra, de ordem econômica, de subsistência, ou seja, de suprir com o trabalho as necessidades suas ou do seu grupo familiar. Nesse aspecto é idêntica a do homem. Essencialmente, não o fazem por necessidade de realização pessoal, mas de sobrevivência.45
No entanto, é impossível para a mulher, enquanto gênero, abdicar das condições biossociais próprias, renunciando totalmente à maternidade e ao papel central que ocupa no núcleo familiar. Essa impossibilidade aguçou as contradições das relações sociais e de produção e impôs negociações e soluções subseqüentes. Uma delas foi a regulamentação mínima do trabalho feminino, procurando compatibilizá-lo, ao menos em parte, com a condição feminina e suas funções biossociais. A licença gestação/maternidade, a aposentadoria invariavelmente mais precoce e a proibição de alocar a mulher em determinadas atividades, decorrem do reconhecimento das diferenças de gênero e papéis. A insuficiência, inadequação e a desobediência dessa regulamentação, resultantes da desigualdade das relações conflituosas entre capital e trabalho — maior nos países periféricos que nos centrais — são responsáveis no Brasil por abusos quanto ao processo admissional, às demissões injustificadas, ausências e abandono do trabalho ou da profissão. São fatos que exprimem, ao mesmo tempo, aspectos do conflito entre capital e trabalho e da insubmissão da mulher no resguardo de sua condição.
Uma outra solução negociada foi a normalização, pelo Estado, de algumas necessidades da família, criadas em decorrência da entrada da mulher no mercado de trabalho, como a instalação de creches, a antecipação da ida à escola com a criação dos cursos maternais e da pré-escola e a extensão da jornada e tempo escolares. A institucionalização dessas necessidades, via serviços prestados pelo Estado e particulares, libera a mulher, como força de trabalho, mas não satisfaz plenamente suas necessidades e a da criança, devido ao caráter substitutivo, à baixa afetividade e à rigidez dessas instituições normalizadas e normalizadoras.
Como se vê, a inserção da mulher no mercado de trabalho, certamente definitiva, ao mesmo tempo em que vem cumprindo, entre outras, uma importante função no desenvolvimento do capitalismo, rompe com sua submissão histórica ao homem e propicia um aumento duvidoso do rendimento do grupo que integra, fragiliza a estrutura do núcleo familiar e a sujeita, agora diretamente pelo trabalho, a relações sociais e de produção, em geral piores, em termos de submissão e salários, do que aquelas às quais o homem está submetido.
A imagem antiga do bancário, de pessoa letrada, oriunda de estratos sociais médios e que poderia ascender à posição do seu superior é, não obstante, ainda bastante forte. Não sem razão muitos deles cursam profissões de nível universitário, de algum modo ligadas à atividade que exercem, como economia, advocacia, administração e ciências contábeis. Em geral, essas expectativas se frustam, como sinaliza a redução real de salários e de empregos, a despeito desse esforço educacional próprio. Apesar, portanto, da eloqüência dos políticos da administração sobre a necessidade de capacitação dos 'recursos humanos', jargão que substituiu a velha e mais humana expressão 'pessoal', o discurso sobre a necessidade de qualificação do maior número de trabalhadores, bancários ou não, como elemento importante para a ascensão na profissão ou carreira, só faz sentido para o capital. A ascensão na hierarquia bancária é mínima.
A divisão e desqualificação do trabalho bancário é, pois, um processo histórico e parece irreversível. Os que o exerceram por um período acima de 15 ou 20 anos tiveram a oportunidade de vivenciar parte dessas transformações.46 Os novos trabalhadores bancários praticamente o encontraram com as feições e tendências atuais, poucos tendo ilusões com respeito a uma carreira. Percebem que se trata de um trabalho burocrático, pouco valorizado e menos ainda criativo, mesmo em bancos estatais, onde a rotatividade e as demissões estão longe de serem iguais às dos bancos privados, mesmo nesses tempos de crise e neoliberalismo. Até onde tais constatações e a dificuldade de encontrar saídas são condições de sofrimento?
Há no trabalho bancário, também, aspectos físicos penalizadores. Essencialmente, ele se caracteriza por seu forte componente sedentário, impondo sempre a posição sentada ou de pé, com movimentos predominantes da parte superior do aparelho locomotor. As posições corporais acabam ganhando certa rigidez que induz a esforços neuromusculoesqueléticos para mantê-la assim, mais ou menos estática quanto aos outros segmentos desse aparelho. Diferentemente do conjunto do corpo, os membros superiores, particularmente, as mãos e dedos, em várias ocupações e postos, são muito exigidos e obrigados a uma movimentação repetitiva e contínua. Essa feição pouco ergonômica de trabalho bancário é agravada pela inadequação freqüente do ambiente: móveis e máquinas mal dimensionadas e instaladas, iluminação e calor desconfortantes, ruído exagerado etc.47
Essas condições desfavoráveis do ambiente e condições físicas têm repercussões sobre o corpo que trabalha, em especial sobre as estruturas morfoanatômicas mais exigidas. No que diz respeito aos segmentos musculoesqueléticos distais dos membros superiores, as mãos e os dedos, a movimentação contínua torna crítica a viscosidade dentro das bainhas e leitos naturais onde deslizam tendões, vasos e nervos, resultando em atritos entre as várias estruturas vizinhas e conseqüentes perturbações funcionais e até lesões dos múltiplos e delicados componentes envolvidos. Tais desfavores biomecânicos podem ser agravados pelas condições ergonômicas e ambientais, pela atenção requerida, intrínseca a essa espécie de trabalho e pelas relações opressivas, embora sutis, de subordinação.
A atenção requerida não se deve tão-somente ao ritmo acelerado das operações inerentes ao processo de trabalho automatizado, comandado pela onipotência das máquinas, mas também pelo medo do erro e de suas conseqüências. É esse medo que empresta ao trabalho bancário, notadamente o desempenhado por caixas e escriturários, uma patogenia peculiar, com provável repercussão sobre o psiquismo e a economia dos órgãos e funções mais exigidas, como a visão, as estruturas mioesqueléticas e tecidos adjacentes, influindo, também, negativamente sobre os processos de elaboração mental, escamoteados no decorrer desse trabalho tão impregnado de exigências externas pouco criativas.48 Até onde esse trabalho, na forma em que é processado, organizado, nas condições físicas em que se cumpre, contendo relações conflituosas, em geral ocultadas, pode levar à ruptura dos limites indefiníveis entre o fazer e o adoecer, entre o normal e o patológico?
A categoria
Em 1996, a categoria bancária do País passou a ser constituída por 488 mil trabalhadores, igualmente dividida entre bancos privados e estatais. Em 1985, era o dobro. Essa drástica redução nos primeiros seis anos se deu, em grande parte, na área privada, por meio de demissões; nos últimos oito anos, mais lentamente, os bancos estatais vêm trilhando o mesmo caminho, não realizando concursos de admissão, implantando programas de incentivo à demissão, demitindo e aposentando.
Como a rede privada é maior nas capitais e grandes cidades, o número de trabalhadores de bancos privados também o é. Nas cidades de porte médio, a população bancária se divide entre bancos estatais e privados. Nas pequenas, a situação se inverte, predominando os bancos e bancários estatais.
Diferenças substanciais com relação aos processos admissionais, estabilidade, carreira, salários e benefícios sociais entre os bancários dos setores privado e estatal acrescentam outras heterogeneidades dentro da categoria. Admitidos dentro dos padrões e necessidades tradicionais da área privada, regulamentada pela Consolidação das Leis do Trabalho, os trabalhadores dos bancos privados constituem uma força de trabalho com média de idade presumivelmente mais baixa do que a dos bancos estatais, em decorrência da alta rotatividade no emprego. Nesses últimos, o ingresso se dá por concurso público, com um longo período entre um e outro, realizados mais para fazer substituições em decorrência de aposentadorias, mortes e eventuais pedidos de demissão e menos pela abertura de novas agências e postos de trabalho. Esses fatores têm óbvias repercussões sobre a escolaridade, salários, comissões e benefícios sociais e perspectivas de carreira dos dois agrupamentos. Se, como dizia Romanelli, em 1978, apontando para a contínua desqualificação do trabalho bancário e a constrição progressiva do mercado de trabalho, os bancários estatais viviam uma condição 'provisória definitiva', os dos bancos privados vivem uma condição francamente provisória.
A expansão da rede bancária teve como resposta a criação de sindicatos regionais e de associações de trabalhadores por empresa. Essa multiplicidade de representações, em tese, facilita negociações por empresa e região, mas dificulta a formulação de propostas e ações unitárias, mesmo quanto às questões meramente salariais, em virtude das diferenças de concepções políticas e ideológicas dos grupos que assumem suas direções, agravadas pelas heterogeneidades referidas.
Em muitos aspectos, as atividades das associações de funcionários de um banco complementam a atuação do sindicato regional, em outras, porém, se superpõem ou concorrem. Por outro aspecto, a heterogeneidade da composição das diretorias sindicais em decorrência da existência de trabalhadores de bancos estatais e privados só pode ser superada por uma homogeneidade ideológica e política, difícil de existir ou de ser construída.
O patronato bancário joga com essas contradições internas da categoria dos trabalhadores e de suas representações e explora suas divergências, não sendo incomum prestigiar ora uma, ora outra corrente, na tentativa, não raro com êxito, de dividi-la.
Historicamente, a liderança do movimento bancário, em parte, por algumas das razões apontadas, sempre pertenceu aos trabalhadores dos bancos estatais. Não é por acaso, nem por benesse do Estado que eles lograram, dentro desses bancos, o nível de organização e representação que têm. Foram conquistas obtidas ao longo do tempo, em virtude, sobretudo, de serem trabalhadores 'de carreira' e com maior qualificação e experiência, dada a condição de estabilidade no emprego determinada, até agora, pela necessidade intrínseca das instituições bancárias estatais necessitarem de um quadro estável de servidores, com elevado espírito público e, por isso, com maior possibilidade de forjarem uma consciência de corporação.
As prerrogativas, benefícios sociais e políticas salariais praticadas pelos bancos estatais, parecidas entre si pelas mesmas razões, são muito diferentes das dos bancos privados, em que pese a tendência atual de nivelá-los por baixo. Fazem parte desse elenco os regimes especiais de aposentadoria, a assistência médico-hospitalar autogerida, a participação acionária, os empréstimos favorecidos, os clubes de recreação etc. Frise-se que os trabalhadores contribuem, de modos diferentes, para usufruí-los; por isso, respeitadas as peculiaridades de cada banco, eles têm assento nas organizações internas que gerenciam fundos e caixas e em alguns casos, como no BANESPA, na direção do próprio banco.
A mais antiga das entidades sindicais bancárias é o Sindicato dos Bancários de São Paulo. Criada em 1926, como Associação dos Bancários de São Paulo, com finalidades estritamente beneficentes e forte resistência dos banqueiros, em 1931 recebia sua carta sindical, valendo-se do decreto-lei nº 19.770 que inaugura a chamada 'era sindicalista' do Governo Vargas. O momento, a origem e funcionamento permitido e submisso ao patronato nos primeiros anos, explicam a omissão de seus dirigentes quando da primeira greve bancária do País, ocorrida no BANESPA em abril de 1932. O Banco tinha uma única agência, estrategicamente situada na cidade de Santos, escoadouro da produção de café. As causas da greve deveram-se às condições penosas de trabalho, inclusive o noturno compulsório, gerado pela necessidade dos exportadores liquidarem com o estoque de café. Na pauta dos grevistas havia outros itens, como um adicional maior ao salário e a readmissão de 10 colegas tuberculosos demitidos. No ano seguinte, uma oposição aguerrida politiza essa omissão e se propõe a executar uma política de classe, colocando em seu programa, entre outros pontos, a jornada de seis horas de trabalho, salário mínimo, estabilidade no emprego após seis meses de trabalho e um regime de aposentadoria e pensões mediante a criação de um instituto próprio. Foi essa diretoria eleita, mais o Sindicato dos Bancários de Santos e alguns outros mais novos que, em 1934, conduziram a primeira greve bancária de âmbito nacional com base nesse programa.49
A resistência a essa avançada plataforma não era apenas dos banqueiros. Havia outras, internas e fortes, dada à estratificação da categoria em cargos e funções diferenciados hierarquicamente, os gerentes e administradores fazendo coro com o patronato, alegando que em todo o mundo havia queda de negócios, recessão e desemprego. Essas resistências dificultaram a coesão do movimento liderado pelos caixas e escriturários e a conquista plena da pauta de reivindicações. Os funcionários mais graduados acabaram criando um sindicato paralelo, de curta existência, sob a designação de Sindicato dos Funcionários dos Bancos do Estado de São Paulo.
Mas, contrariamente ao que apregoava os graduados sobre a crise econômica mundial, a situação política interna evidenciou-se extremamente favorável às reivindicações do movimento grevista, com a emergência do projeto trabalhista do Governo Vargas, que estratégica e preventivamente absorveu, a seu modo, muitas das propostas democráticas das relações de trabalho que ocorriam nos países industrializados europeus. O apoio do governo foi, aliás, ostensivo, tanto que a figura politicamente mais importante depois do presidente, o ministro Oswaldo Aranha, numa atitude que seria inusitada para os dias de hoje, fez-se presente em um dos comícios dos grevistas, declarando-se favorável às suas pretensões, ao final, em grande parte atendidas, como a jornada de seis horas, estabilidade no emprego após dois anos de trabalho e a criação, no mesmo ano, do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários, em cuja diretoria a classe passou a ter assento, influindo em sua administração por quase todo o tempo de existência da autarquia, extinta em 1966.
Na década presente, a despeito do restabelecimento formal da democracia representativa, instaurou-se uma política sistemática de retirada de direitos e prerrogativas dos trabalhadores de diversas categorias, conduzida pelo governo federal e que logo se irradiou para os estados. Alegando que a estabilidade no emprego, tirada dos trabalhadores do setor privado após o golpe militar de 1964, é um privilégio corporativo dos trabalhadores da administração estatal direta e indireta, o governo lançou-se sobre estes e impôs uma política de achatamento de salários, de retirada de benefícios sociais, de estímulo remunerado às demissões voluntárias, quando não as força, transferindo os recalcitrantes para outro estado ou cidade, criando um forte ambiente de medo.
Ao que parece, do mesmo modo que Vargas e governos posteriores tiveram como estratégia ter a classe trabalhadora e determinados segmentos e movimentos sociais como aliados ou, no mínimo, não tê-los como adversários, dentro de uma atuação que se aproxima daquela que Arrighi (1996) identificaria como de um Estado capitalista "territorialista", ou seja, de um Estado nacional forte como necessidade do capital, a atuação do Estado brasileiro hoje é oposta, baseada na liberdade econômica e plena do mercado, vale dizer, de desregulamentação das relações entre capital e trabalho, deixadas à sorte dos próprios contratantes.
As teses neoliberais não são novas e nem surgiram aqui. Embora fazendo muito mal, não se trata de nenhuma idiossincrasia dos dirigentes políticos brasileiros à classe trabalhadora, mas de uma política econômica e social dependente que eles assumem, de um compromisso com diretrizes internacionais, cobrada sem pudor e insistentemente pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e credores externos, que exigem cortes nos gastos públicos, equilíbrio na balança de pagamentos, estabilidade da moeda e privatizações das empresas estatais siderúrgicas, elétricas e outras estratégicas, criadas a partir do Governo Vargas.