3. Os sinais da violência
Três são as causas das afecções dos escreventes: primeira, contínua vida sedentária; segunda, contínuo e sempre o mesmo movimento da mão; e terceira, a atenção mental para não mancharem os livros e não prejudicarem seus empregadores nas somas, restos ou outras operações aritméticas. Conhecem-se facilmente as doenças acarretadas pela sedentariedade: obstrução das vísceras, como fígado e baço, indigestões do estômago, torpor nas pernas, demora do refluxo do sangue e mau estado de saúde. Em suma, carecem esses operários dos benefícios que um moderado exercício promove, mas a que não podem se dedicar, ainda que queiram, pois fizeram contrato e precisam cumprir sua jornada de escrita. A necessária posição da mão para fazer correr a pena sobre o papel, ocasiona não leve dano que se comunica a todo o braço, devido a constante tensão tônica dos músculos e tendões e, com o andar do tempo, diminui o vigor da mão. Conheci um homem, notário de profissão que ainda vive, o qual dedicou toda sua vida a escrever, lucrando bastante com isso; primeiro começou a sentir grande lassidão em todo o braço e não pode melhorar com remédio algum e, finalmente, contraiu uma completa paralisia do braço direito. A fim de reparar o dano, tentou escrever com a mão esquerda, porém, ao cabo de algum tempo, esta também apresentou a doença. Em verdade martiriza os operários o poderoso e tenaz esforço do ânimo, necessitando para o seu trabalho grande concentração do cérebro, contenção dos nervos e fibras; sobrevem as cefalalgias, corizas, rouquidões, lacrimejamento de tanto olharem fixamente o papel, conseqüências que afetam muito mais os contadores e mestres de cálculos, como assim se chamam os que se alugam aos comerciantes.
Ramazzini (1971:157-159)
A descrição de Ramazzini é uma síntese, escrita à moda e conhecimentos da época, dos vários distúrbios da saúde dos que trabalham sobre os códigos escritos da linguagem — palavras, números e sinais. Datada de 1700, é uma descrição mais do que processual do trabalho, notável e atual, resultado de uma observação indiciária, sensível e profunda, que não se detém apenas nos instrumentos e condições das operações, nem no exame do corpo biológico ou na horizontalidade do cotidiano dos que trabalham com a escrituração, indo além, detendo-se também sobre as relações sociais que estão por trás do modo de fazer e que podem resultar em adoecimento. A percepção sensorial está presente, mas aquele corpo, sendo igual a tantos outros, se diferencia pelo que faz e pelas circunstâncias sociais, temporais e do lugar impostas. É humano e social. E essa relação entre corpo e relações sociais marcam-no, e uma dessas marcas é o sofrimento físico e mental que pode se expressar em um modo de adoecer.
O sedentarismo que produz perturbações gastroentéricas e circulatórias não é aleatório, mas conflituoso e sujeito: os trabalhadores não fazem exercícios, "ainda que queiram, pois fizeram contrato e precisam cumprir a jornada da escrita". Também a atenção mental é uma exigência requerida aos contratados para "não prejudicarem seus empregadores nas somas, restos e outras operações aritméticas". São também exigências próprias à natureza desse trabalho que obrigam a um "poderoso e tenaz esforço de ânimo e grande concentração de todo o cérebro" e a "um contínuo movimento da mão" que pode levar à paralisia dos membros superiores. A patogenia é processual, mas socialmente determinada pelas relações de subordinação que se estabelece entre quem compra e quem vende trabalho. Nenhuma referência à naturalidade da doença, a qualquer predisposição ou susceptibilidade individual dos adoecidos.
Ao descrever os sintomas premonitórios do adoecimento dos escriturários, o paradigma semiótico vai além da clínica, é epistemológico, pois a observação empírica e indiciaria de Ramazzini transcende a causalidade próxima ou aparente. Ele não discursa tão somente sobre as doenças da escrituração ou das outras ocupações — dos mineiros, químicos, cardadores etc—, mas sobre o sofrimento e o adoecimento dos que as exercem em condições que, em se tratando de locais, são sociais e históricas.
No prefácio do seu livro, Ramazzini recomenda que, além de perguntar ao doente sobre o que sente, indague-se sobre o que faz, revelando que visitava as oficinas de trabalho para se aperceber dos "segredos" de suas artes, segredos que iam além da simples constatação fática, buscando conhecer não apenas com que e como as coisas são feitas, mas porque assim é determinado e se faz. Sua preocupação, portanto, não se circunscrevia ao processo de trabalho, mas às exigências sociais introjetadas subjetivamente. O universo que ele observa e onde estão seus doentes é o universo dentro e fora do trabalho. Os doentes são sempre trabalhadores, mesmo quando dispersos em oficinas e em suas casas, obrigados a realizar determinado trabalho impositivamente por necessidade sua e social e dentro de uma relação de subordinação, mesmo na ausência do empregador.
O sofrimento e as doenças que Ramazzini descreve são sempre de coletivos de trabalhadores, uma visão plural, a partir da observação singular que o exercício da clínica aguça, donde se pode presumir que ele não apenas via, mas 'ouvia' muito. O coletivo não estava, como nas fábricas e empresas atuais, necessariamente em um único lugar. Valendo-se da perambulação de médico, tão comum em sua época, ele conseguia ver esse plural. Há, portanto, implícita na sua construção conceptual e empírica, também a noção da observação repetida e de números, mas, sobretudo, a curiosidade com intenção da constituição de um saber que vai muito além das aparências mais visíveis. Sua procura não é diletante, porque, como cita Canguilhem (1978), "é melhor saber quando se quer agir", um saber que em sendo fatual, não deixa de ser histórico e social e nesses aspectos prescinde de provas e comprovações materiais.
Preocupação com a determinação e a causalidade das doenças e teorias explicativas a respeito sempre existiram, mesmo com relação às doenças do trabalho, e a de Ramazzini é apenas uma. O dogma da prova e da comprovação na medicina — e a crítica é ao dogma e não à prova e comprovação experimental ou estatística - surge na segunda metade do século XI X com a microbiologia. Os postulados metodológicos de investigação dessas ciências seriam logo apropriados pelo sistema de reparação das doenças e acidentes de trabalho da Revolução Industrial. Reduzida, a questão foi transferida do campo das relações sociais e do trabalho para o laboratório: doenças e acidentes, para serem considerados do trabalho, precisam ter sua causalidade provada e comprovada como sendo decorrência do processo de produção.
Esses são parâmetros conceituais do capital industrial, dentro dos quais a medicina ocupacional — melhor dizer medicina industrial —, que nasce com ele, vai estabelecer os seus paradigmas e operar. Objeto de uma legislação e normas específicas, fundamentadas no cientificismo positivo que impregnou todo o saber e prática médica, esta em particular, o reconhecimento das doenças e acidentes do trabalho passaram a carecer do aval do sistema, constituído pelas instituições seguradoras, previdenciárias e de assistência médica, sob controle do capital e do Estado capitalista. A vítima passa a ser considerada 'usuária' ou 'beneficiária' e, para fazer jus aos 'benefícios' correspondentes, terá que provar que o dano à sua integridade física -e tão-somente essa, objetiva — foi provocado pelo processo de trabalho, ou seja, é preciso que o trabalhador individualmente requeira e se submeta às provas, não apenas de que está efetivamente doente, como de que sua doença é efeito de uma causa gerada na produção. Surge assim a teoria do nexo causai em infortunística do trabalho, como extensão da teoria da monocausalidade das doenças infecciosas.
A presença da doença no corpo passa a precisar do crivo do médico, não do clínico indiciário, mas desse outro artífice normalizado pelo Estado, que por suas origens sociais e com um saber e práticas novos, fundamentados na propedêutica armada de tecnologias trazidas pela revolução científica, é formado e cooptado para atuar dentro daqueles parâmetros e paradigma, avalizando-os. É ele quem vai dar o nome, conceituar e medir o grau da lesão ou o estado da doença. É agora um técnico do sistema. E se há dúvidas quanto à presença do nexo causal e o requerido pelo trabalhador adoecido vai além da assistência médica, impõe-se que o agente do processo de produção incriminado de nocivo seja identificado e medido porque, diz a norma, para que a doença seja considerada do trabalho, é preciso que haja exposição ao risco específico e que ela e ele ultrapassem os níveis de tolerância normalizados, isto é, abaixo dos quais a doença não ocorreria, salvo, presume-se, em pessoas predispostas ou susceptíveis. O que prevalece, sequer, é a apreensão da realidade objetiva, das condições físico-materiais do trabalho, mas os padrões possíveis de conciliar a necessidade da produção com a administração das queixas e reparações.
O sistema reparador, porém, apesar de suas muitas impropriedades e desvios que o faz subalterno aos interesses do capital, historicamente é uma construção originária de necessidades e pressões dos trabalhadores e de exigências sociais, em face da tragédia das condições do processo de produção fabril, no qual a violência do trabalho fez-se explícita, catastrófica e uma ameaça social. Por isso, é compreensível que as políticas, as legislações previdenciárias e de acidentes, normas, instrumentos defiscalizaçãoe ações, sempre de caráter reparador e de abrangência restrita, centrados na teoria do nexo causal, estejam voltados, inteiramente, para o setor industrial, onde o número e a gravidade dos acidentes e doenças típicas do trabalho tornaram-se, desde a primeira metade do século XIX , nos países centrais, uma preocupação crescente.
Desse modo, as doenças do trabalho ficaram circunscritas a um pequeno número de doenças tipificadas como 'ocupacionais', quando a causalidade direta era impossível de ser negada e, por conseguinte, passível de alguma forma de reparação. Com isso, a determinação social das doenças foi soterrada e a patogenia das relações sociais do e no trabalho negada para todos, fossem ou não trabalhadores fabris.
Diante de tais circunstâncias, em que os trabalhadores da indústria, mais organizados, tiveram e têm negados ou ocultados até acidentes e doenças típicas, seria difícil que trabalhadores em escrituração, mais recentemente agrupados, no início em pequenas empresas — escritórios, casas comerciais, administradoras de serviços e bancos - viessem a ter reconhecidas e contempladas doenças como as descritas há quase 300 anos por Ramazzini, determinadas menos pelo processo de produção e muito mais pelas relações sociais e de subordinação, brutalizadas agora pela racionalidade moderna do trabalho no capitalismo industrial.
No entanto, apesar dessa negação normalizada e institucionalizada, a patogenia do 'trabalho de escritório', isto é, de codificação da linguagem, vai se fazer cada vez mais exuberante, na medida em que os que realizam esse tipo de trabalho, agora em várias categorias originadas da divisão do trabalho, são cada vez em maior número e mais sujeitos às exigências do trabalho.
Nos transtornos das partes moles dos segmentos superiores do aparelho locomotor que vitimam os que trabalham em escrituração, os bancários entre eles, há um nexo presumido com duas de suas causas mais aparentes e próximas: os movimentos repetitivos da mão e dedos e o esforço musculotendinoso estático de toda a parte superior do aparelho locomotor. Não é o caso dos distúrbios gastroentéricos, cardiocirculatórios e mentais, em que não existe relação de causalidade tão objetiva.
Observe-se que o reconhecimento das lesões dos membros superiores como resultantes do trabalho se dá pelo crescimento do número de casos nessas categorias de trabalhadores. Sem contabilizar casos, nem medir o esforço muscular despendido, mas dando crédito às queixas e atento à sua freqüência, Ramazzini as reconheceu, lá atrás. Fez, em relação a essa e a outras doenças do trabalho, o que Snow viria a fazer 150 anos depois, indiciariamente, desvelando a origem e a trajetória da epidemia da cólera em Londres muito antes da identificação do seu agente causai próximo, o vibrião.
É a contabilização de casos, a começar pelo número de nascimentos e mortes, instituída primeiramente para o estudo das populações, que viria fundamentar uma nova disciplina ou ciência, a epidemiologia. São estudos de morbidade e mortalidade de recorte epidemiológico que virão provar e comprovar o que empiricamente se sabia: que o adoecer e morrer é desigual e se distribui geograficamente, segundo as classes, segmentos sociais, renda e trabalho.
Dos quatro grupos de distúrbios citados por Ramazzini como comuns entre escriturários, deterse-á antes nas perturbações e doenças dos aparelhos cardiocirculatório e digestivo que, como todas, fazem adoecer e matam, proporcionalmente, mais os que vendem força de trabalho do que os que a compram e mais os situados na hierarquia inferior que realizam concretamente o trabalho do que os que controlam o trabalho dos subalternos.
A positividade exigida pelo capitalismo e suas instituições reparadoras coíbe o médico de trazer o conhecimento oriundo da sua observação empírica para a prática normalizada, sob a alegação da falta do 'nexo de causalidade' ou prova objetiva. No entanto, há tempos que se sabe, por exemplo, que a úlcera péptica é mais habitual entre administradores e profissionais que exercem funções de responsabilidade e competitivas, todas sujeitas à tensão psíquica. E é bem provável que sua maior prevalência no gênero masculino, numa proporção de 4:1, estivesse50 relacionada menos ao gênero do que à freqüência maior com que os homens exercem tais funções. É possível que hoje essa diferença seja menor, na medida em que se tornou menos infreqüente mulheres exercê-las. Os sintomas iniciais da doença aparecem com mais freqüência entre a faixa compreendida entre 20 e 40 anos. A úlcera costuma aflorar, na maioria dos casos, na faixa etária de 45 a 55 anos. É, portanto, uma doença que ocorre no período da vida produtiva e eclode em uma idade em que pesam muitas ameaças.
Distúrbios emocionais são comuns em doentes com úlcera, e recaídas e complicações estão associadas com fases da vida de sustentada ansiedade, frustrações e outras dificuldades psicoafetivas, mais freqüentemente na úlcera duodenal que na gástrica. Nessas situações, a fisiopatologia indutora seria a produção excessiva de suco gástrico e hipercloridría conseqüente, por estímulo vagal, aliada à queda de resistência dos tecidos locais. Vale lembrar que as úlceras múltiplas do trato digestivo superior, subseqüentes a lesões do sistema nervoso central, infarto do miocárdio, infecções graves, estado de choque e internações hospitalares prolongadas, conhecidas como 'úlceras do estresse', têm origem nervosa e seu aparecimento é mediado por agentes químico-biológicos que provocam vaso-constricção circulatória local e conseqüente baixa oferta de oxigênio, aumentando a sensibilidade da mucosa à acidez gástrica.
Situações de adoecimento tão extremas cuja fisiopatologia tem sido reproduzida em ensaios clínicos, bioquímicos e anatomofisiopatológicos experimentais, mostram parte da complexidade dos fenômenos da digestão e de suas perturbações.
Na relação do capital com o trabalho a questão da digestão não é, porém, colocada nesses termos, de uma função totalizadora, biopsicossocial, mas ao ato simples do trabalhador ingerir os alimentos necessários à reposição da energia consumida pelo e durante o trabalho. Dentro dessa concepção militarista, os alimentos são o combustível lançado dentro de uma fornalha, a boca, para que a máquina/homem continue trabalhando ao menor custo possível e com perda mínima de tempo. Essa visão mecanicista originária da fisiologia alemã do fim do século passado prevalece no presente. Para a organização da produção, a preocupação é com o primeiro momento da digestão, o ato de alimentar, entendido como simples e maquinai, a ser cumprido em um tempo definido contratualmente.
Longe disso, a digestão é um processo extremamente complexo que, iniciando na boca, só em parte se realiza no tubo digestivo, envolvendo não somente os órgãos que o compõem - boca, esôfago, estômago, intestinos grosso e delgado -, mas outros relacionados diretamente com essa função, como o pancreas, o fígado, os vasos e nervos e, indiretamente, como o coração, os pulmões, os rins, a pele, a medula e os sistemas nervoso e endócrino.
Ela pode ser descrita como uma sucessão de eventos fisiológicos que têm como finalidade última transformar substâncias externas e de composição habitualmente complexa em seus elementos mais simples, de forma a possibilitar sua passagem por paredes celulares do tubo digestivo e, após ganharem a corrente sangüínea e linfática, se incorporarem, já dentro das células, à matéria viva. Mas mesmo sua primeira fase, desenvolvida no tubo digestivo e aparentemente local, requer grande dispêndio de energia, mobilização intensa de eletrólitos, vários litros de água que são ingeridos, secretados e eliminados, produção, atuação e consumo de enzimas e outros catalisadores, mediado tudo isso por estímulos nervosos, químicos, elétricos, hormonais e circulatórios. Significa que na digestão, desde seu início, há a participação de todos os órgãos e funções, objetivando dar conta da diversidade quantitativa e qualitativa dos alimentos necessários à reprodução do próprio corpo.
O ato de comer que inicia o processo é, assim, apenas um dos seus tempos e o único perceptível e público. O ritmo e intensidade da digestão são variáveis e em termos de trocas e intercâmbio metabólicos, é ininterrupta, mesmo quando o indivíduo despende pouca energia, ou seja, quando não trabalha, nada faz ou simplesmente dorme. Enquanto a musculatura estriada, presente no início e no final do tubo digestivo, preside os atos voluntários de mastigar, deglutir e evacuar, a musculatura lisa, situada no nível gastrointestinal, preside os atos involuntários, subordinados aos estímulos neurovagais. Isso significa que os regulamentos sociais podem reger os primeiros e o último, mais curtos, mas nunca os segundos, intermediários e mais longos, sujeitos a uma dinâmica própria e a perturbações neurovagais de difícil controle. Por isso, a par da garantia do tempo e das condições necessárias para os primeiros e o derradeiro, pressupõe-se que os segundos também os requerem. Não é, portanto, de estranhar a constatação de que o simples aumento do tempo de refeição, de 30 para 40 minutos, tenha feito cair de 54% para 40% a freqüência de distúrbios gastrointestinais em trabalhadores.51
Permanecer sentado ou de pé, atento e mentalmente tenso, trabalhando e com tempo de refeição encurtado, como fazem esses escriturários modernos, os bancários, têm efeitos diferentes — como descreve Ramazzini — do que andar sem estar trabalhando ou mesmo descansar sem as preocupações com o trabalho. O estômago, por exemplo, a depender da rapidez com que se enche ou do volume de bolo alimentar insuficientemente mastigado, sofre uma distensão variável de sua musculatura lisa que pode ser incompatível com seu tônus, levando a distúrbios digestivos em diferentes níveis e de intensidade e características diversas, porque essa musculatura envolve todo o trato digestivo e sua contração e relaxamento podem ser exacerbados, causando, eventualmente, sintomas leves, como espasmos dolorosos ou atonias e doenças gastrointestinais bem caracterizadas, se são constantes e envolvem tensão psíquica e emocional, habitualmente presente em atividades como a dos bancários.
Com a função circulatória sucede algo parecido. Uma analogia mecânica, muito comum, descreve o aparelho cardiocirculatório como constituído por uma bomba propulsora-receptora — o coração - e uma rede de dutos de fluxo - as artérias -e de refluxo - as veias —, responsável pelo transporte do sangue, regido por leis físico-químicas e biológicas. Sabem os clínicos, e mais que eles os fisiologistas e neurofisiologistas, que essa é uma analogia pobre que nada diz sobre as outras funções e relações fisiológicas e com a vida social desse aparelho, mediadas não apenas por percepções sensorials e receptores de diferentes níveis, mas também pelo psiquismo. Isto é, conquanto uma das funções biofísicas do aparelho cardiocirculatório seja a de carregar o sangue, que contém elementos de nutrição e oxigênio necessários ao metabolismo celular, e trazê-lo de volta com os subprodutos desse metabolismo, esse ato de transportar não se realiza sem a interação de outros órgãos e funções, vale dizer, do corpo biopsíquico como um todo que é parte de um espaço e tempo sociais. Seu funcionamento e estado, embora dependendo de condições morfofisiológicas e dinâmicas próprias e internas de todo o corpo, são determinados externamente pelo que o corpo faz socialmente. Daí, em parte, sua mutabilidade no tempo. As alterações do ritmo cardíaco, a vasoconstrição ou a vasodilatação e as mudanças das pressões sistodiastólicas são algumas manifestações comuns dos passos ou descompassos circulatórios com os passos e descompassos da vida. Não por acaso, as doenças hipertensivas, hipotensivas e coronarianas têm, sabidamente, relação com a tensão psíquica e emocional ocasionadas, também, direta ou indiretamente pelo trabalho e pela vida afetiva e social.52
Ramazzini refere-se, também, à existência de uma tensão mental no trabalho dos escriturários. As exigências psíquicas do trabalho atuariam na mediação de doenças em outros sistemas e aparelhos e causaria sofrimento mental. Muita coisa mudou para pior nos processos e relações sociais do trabalho moderno, talvez implicando maiores exigências para o aparelho psíquico do que as observadas por esse autor. As descrições de neuroses ditas ocupacionais em algumas categorias de trabalhadores, de uma psiconeurose traumática em soldados, motoristas e operadores de metrô ou de uma possível paranóia em pessoas que exercem suas atividades como processadores de dados não parecem, contudo, abalar a tese, ainda predominante, que neuroses e psicoses, afora situações-limite, não são determinadas pelo trabalho que, não obstante, poderia precipitá-las, como sugerem alguns estudos.53
A aceleração da automação e as mudanças da organização do trabalho nas instituições financeiras brasileiras suscitaram, nos dois últimos decênios, umas quatro dezenas de estudos sobre as relações entre trabalho, sofrimento e adoecimento bancários. Não é uma série muito extensa, mas significativa, se comparada às de outras categorias, particularmente aquelas do setor terciário da economia, em que a automação também vem ocorrendo e onde as preocupações com essas inter-relações parecem não ter se corporiflcado, nem mesmo dentro da classe trabalhadora. A preocupação com estudos dessa natureza, quase sempre patrocinadas, estimuladas ou apoiadas por entidades representativas dessa categoria se deve, entre outros motivos, ao fato de envolver trabalhadores originários de estratos sociais mais diferenciados, com elevada escolaridade e história de organização, tradição de luta e poder de representação e barganha acima da média, que a fizeram, nesses 60 últimos anos, uma das mais organizadas e combativas categorias do País.
Em contraposição, no mesmo espaço de tempo as instituições financeiras lograram construir e cultivam uma imagem pública de empresas saudáveis até sob o ponto de vista da saúde dos seus empregados, sempre atenciosos e de boa aparência.
Essa disparidade de preocupações e condutas ante o mesmo objeto visto de ângulos diferentes, a par de representar uma feição particular da contradição entre o capital e o trabalho é, em si, reveladora da deterioração da saúde desses trabalhadores, impossível de ficar submersa. Fugiu ao controle das empresas e está gerando mal-estar, doenças e demandas coletivas. Estudos sobre a saúde dos bancários no País são uma das expressões dessa contradição e dessa deterioração.
Em estudo sobre mortalidade de trabalhadores do Banco do Brasil, Conceição et al. (1992) analisaram as causas de 5.955 mortes ocorridas entre 1977 a 1990 entre bancários ativos e aposentados dos dois gêneros em uma população de trabalhadores que, no período, variou de 78.058 a 160.056 pessoas-ano, com idades de 15 a 75 anos ou mais.
No mesmo período, a população de trabalhadores do sexo masculino do Banco correspondia a uma taxa situada entre 75% e 80% do total. Nela ocorreram 5.587 óbitos, dos quais 3.871 (69,3%) entre os aposentados e 1.716 (31,7%) entre os ativos. Das 3.871 mortes entre os aposentados, 1.346 (34,8%) aconteceram após os 70 anos; 1.283 (33,1%) entre 60 e 69 anos, 985 (25,5%) entre 50 a 59 anos e 252 (6,5%) entre 30 a 49 anos de idade. Em todas essas faixas etárias prevaleceram como causas de morte as doenças cardiocirculatórias (DCC), com uma média de 44% e variações pequenas para 40% , na faixa mais jovem, e 49 % na mais idosa. A segunda causa mais freqüente de morte entre os aposentados foram as neoplasias, com média de 21% e variações entre 15%, na faixa entre 30 a 39 anos, e 22% nas faixas acima dessa. A terceira causa de morte foram as doenças do aparelho respiratório, com média de 7,8%, com um percentual maior de 11,0% acima de 70 anos e progressivamente decrescente nas outras. As doenças do aparelho digestivo foram a quarta causa, com uma média de 6,6% e variações entre 3,7%, acima de 70 anos, e progressivamente crescente nas faixas etárias mais baixas, com um máximo de 11,3% entre 40 a 49 anos. Por último, as mortes por causas externas ou violentas, com taxa média de 5,0%, sendo a menor de 2,5% na faixa acima de 70 anos, crescendo progressivamente até 12,5%, entre 30 e 39 anos.
Nota-se que a distribuição das causas de morte na população aposentada do Banco do Brasil teve variações médias crescentes com a idade, nos casos das doenças cardiocirculatórias e respiratórias. Os números absolutos de morte por essas causas também foram crescentes, permitindo concluir haver uma associação estatística positiva entre essas e a idade, sem contudo se poder afirmar relação de dependência entre os dois grupos de doenças que causaram a morte e a idade. No caso das neoplasias, essa associação não é aparente, permanecendo as médias de óbitos mais ou menos estáveis, enquanto o número total de óbitos aumenta até os 69 anos. Menos ainda se pode afirmar sobre a existência de associação entre mortes por doenças digestivas, violências e idade — apesar daquelas médias -, uma vez que os números absolutos das mortes por tais causas crescem até valores máximos situados, coincidentemente, na faixa dos 50 a 59 anos e, a seguir, decrescem.
As 1.242 (32,0%) mortes antes dos 60 anos podem ser consideradas prematuras e é provável que as aposentadorias dos falecidos, também precoces, fossem determinadas por doenças preexistentes.
As causas das 1.717 mortes entre os bancários ativos são bem outras. As mortes por violência — acidentes, homicídios, suicídios e envenenamentos - somam 809 (47,1%), seguidas pelas doenças cardiocirculatórias, com 389 (22,6%), neoplasias, com 206 (12,0%) e doenças endócrinas, com 64 (3,7%). As médias por mortes violentas decrescem de acordo com as faixas etárias: 90,0% entre 15 a 19 anos; 81,8% entre 20 a 29 anos; 49,9% entre 30 a 39 anos; 29,1 % entre 40 a 49 anos; 14,0% entre 50 a 59 anos; 4,3% entre 60 a 69 anos. Em termos absolutos, o pico do número de acidentes se situa na faixa de 20 a 29 anos. Como se observa, há uma nítida associação negativa entre essas mortes e a idade. No caso das doenças cardiocirculatórias, houve um crescimento das médias de acordo com o avanço da idade: 5,0% entre 20 e 29 anos; 18,4% entre 30 e 39 anos; 34,3% entre 40 a 49 anos; 39,7% entre 50 a 59 anos; 43,5% entre 60 a 69 anos e 80% acima de 70 anos. Em termos absolutos, os números aumentam até a faixa dos 40 aos 49 anos. A partir daí, caem sensivelmente nas faixas seguintes. As médias das mortes por neoplasias por faixas etárias entre os funcionários ativos do Banco, nas mesmas faixas de idade, foram crescentes: 3,3%, 9,2%, 16,3%, 25,7%, 21,7% e 20,0%. Em termos absolutos, o número de casos cresceu até a faixa dos 40 aos 49 anos.
Daquele total de mortes na população ativa do Banco, 1.688 (98,4%) aconteceram antes dos 60 anos, ou seja, mortes prematuras, e 1.474 (85,9%) antes dos 50 anos, portanto, muito prematuras.
No gênero feminino, dos 368 óbitos, 277 (75,3%) ocorreram entre bancárias ativas e 91 (24,7%) entre aposentadas. Duas causas de morte se salientam nesse último grupo: as doenças cardiocirculatórias, com 30 casos (33,0%), e as neoplasias, com 22 (24,2%). Como são muito reduzidos os casos nas faixas etárias da população feminina aposentada, deixar-se-á de comentá-los.
Em relação às bancárias ativas, apesar de o número de mortes ser pequeno em comparação ao dos bancários ativos, em decorrência de a população ser maior, chama a atenção o fato de 134 (48,4%) mortes serem por violência, seguidas de longe pelas neoplasias, com 53 (19,1%), e pelas doenças cardiocirculatórias, com 35 (12,6%) mortes. Importante notar que todas as 277 mortes ocorreram antes dos 60 anos e 266 (96,0%) antes dos 50 anos, ou seja, foram mortes muito prematuras.
Os autores calcularam a Razão Padronizada de Mortalidade (RPM) considerando como padrão as taxas de mortalidade do estado de São Paulo e dos Estados Unidos, então concluindo: os trabalhadores do gênero masculino do Banco do Brasil morrem, em média, 26% mais de câncer do pulmão, 38% mais de câncer da próstata e 17% mais de diabetes que a população de São Paulo. Em comparação com os mesmos padrões americanos, eles morrem 36% mais de câncer de estômago, 46% mais de doenças do cérebro - vasculares -e 165% mais por violência. Quanto às trabalhadoras do Banco, morrem 128% mais por acidentes de transporte em relação à população de São Paulo e 156% mais que a população americana.
Até que ponto essa morbidade e essa mortalidade prematura têm a ver com o trabalho e com a forma de viver que o mesmo determina?
Analisando os diagnósticos das 2.109 mortes por doenças cardiocirculatórias entre os trabalhadores masculinos do Banco do Brasil, 960 (45,5%) foram por infarto agudo do miocárdio, 465 (22,0%) por doenças cerebrovasculares, 284 (13,5%) por doenças da circulação pulmonar e 187 (8,9%) por outras doenças isquêmicas.
Das 1.027 mortes por neoplasias entre esses mesmos trabalhadores, 301 (29,3%) estavam localizados no aparelho respiratório, 281 (27,4%) no digestivo, 142 (13,9%) no geniturinário. Os cânceres do tubo digestivo foram a segunda causa de morte por neoplasias.
Entre as 337 mortes por outras doenças do aparelho digestivo entre os homens, 185 (54,9%) foram por cirrose e 22 (6,5%) por úlceras. Das 282 mortes por doenças endócrinas, 224 (79,4 %) foram por diabete. A AIDS foi responsável por 45 mortes.
O total de 1.141 mortes violentas nos dois gêneros, 677 (59,3%) foram por veículos motorizados, 131 (11,5%) por homicídio, 121 (10,6%) por suicídio e 120 (10,6%) por efeitos tardios dessa violência explícita.
Perguntam os autores: até onde essas mortes e morbidade subjacente têm a ver com o trabalho e com a forma de viver que este acaba determinando?
Silva Filho et al. (1992) estudaram a população ativa e supostamente sadia do mesmo Banco, valendo-se de entrevistas gravadas, questionário padronizado e dados secundários do arquivo médico.
Salvo uma exceção, as entrevistas foram realizadas em grupo, com média de seis participantes que se reuniram de duas a três vezes, envolvendo 37 pessoas, 27 do gênero feminino. Dos grupos, cinco eram hierarquicamente homogêneos e apenas um heterogêneo, composto por gerentes, caixas, trabalhadores de suporte do Centro de Serviços e Comunicações (CESEC). AS entrevistas foram feitas com base em um conjunto de questões prévias, abertas para a livre manifestação dos entrevistados.
O questionário que incluía o Self Report Questionaire/SRQ-20, de Harding et al., usado para aferir a presença de distúrbios psíquicos menores - tendo sido aplicado em uma população de 1.200 bancários, 733 dos quais lotados nas agências e 467 no CESEC.
Nos prontuários existentes no Centro Médico de Assistência e Previdência do Banco (CEASP) foram apurados os afastamentos temporários e permanentes por adoecimento, sua causalidade por grupos de doenças, os diagnósticos psiquiátricos e as formas de utilização dos serviços.
Com as entrevistas, os autores objetivaram conhecer as representações dos trabalhadores sobre saúde, saúde mental e trabalho e de sua situação de trabalho, as possíveis relações de determinação entre organização do trabalho e saúde mental e a cultura organizacional. O que transpareceu, segundo eles, foi a falta de perspectiva com esse tipo de trabalho e o "desgaste", isto é, o sentimento de perdas e o sofrimento provocado pela "carga" ou exigência do trabalho e as 'estratégias individuais' elaboradas para esquecê-las, compensá-las, nunca vencê-las, aparecendo como principal valor positivo a camaradagem entre si.
Ao questionário padronizado aplicado aos trabalhadores das agências, a maioria (52%) revelou nervosismo, tensão ou preocupação, mas apenas 25% podem ser considerados suspeitos de distúrbio mental pelo SRQ-20, tomando-se como tal aqueles que tiveram oito ou mais perguntas positivas. As queixas de cansaço, tristeza, dores de cabeça, o assustar-se com facilidade, distúrbios do estômago e insatisfação com a atividade exercida foram muito freqüentes. No CESEC, OS resultados quanto ao nervosismo, tensão e preocupação foram maiores (62%), mas muito próximos quanto aos demais itens, com um nível de suspeição de distúrbio mental chegando à taxa de 24% .
Com base nos dados do Centro de Assistência Médica para os funcionários do Banco (CEASP), OS autores fizeram um estudo sobre absenteísmo-doença e sobre a participação dos transtornos mentais entre as causas de afastamento. Para isso consideraram dois períodos distintos: as licenças médicas registradas entre 01/03/1990 e 28/9/1990 e entre 30/01/1992 e 01/12/1992. Este último, além de mais extenso, para os autores era mais preciso. Por isso, far-se-á referência apenas a ele.
Os diagnósticos médicos determinantes do afastamento por grupos de causa foram: as doenças do aparelho respiratório (27,4%), do aparelho locomotor (13,6%), transtornos mentais (11,0%), doenças do aparelho digestivo (7,4%) e lesões por violência (7,3%). Em número de dias, os afastamentos mais prolongados tiveram como causas as doenças mentais (29%), cardiocirculatórias (14%), do aparelho locomotor (12%) e violência (8%).
Não era presumível, ainda que se tratasse de trabalhadores ativos do mesmo Banco, que viesse a acorrer superposição da distribuição das doenças que levaram ao afastamento do trabalho com aquela do estudo anterior, que levaram à morte, embora uma doença ou evento mórbido qualquer habitualmente a anteceda. Sucede que a morte dos que adoecem é uma possibilidade pouco freqüente, muitas vezes acontecendo subitamente sem sintomas, sinais ou doenças anteriores, como nos casos das mortes por violência e, bem mais raramente em outros casos, como em alguns infartos agudos do miocárdio. Acrescente-se que muitos dos que adoecem sequer são afastados do trabalho. Ou seja, esses dados referem-se a uma fração menor de adoecidos que precisaram ser afastados, a acreditar-se que os afastamentos foram criteriosos. Não se pode, a rigor, falar de gravidade, mas é razoável inferir que seriam mais sérios dos que os consultados e não afastados. Não se esperava, por exemplo, que as doenças mentais e as do aparelho locomotor - das mais freqüentes, mesmo quando graves —, tivessem expressão nas taxas de mortalidade, mas chama a atenção que elas, ao lado das do aparelho digestivo, sejam três entre os cinco grupos de doenças mais responsáveis por afastamentos do trabalho. É provável que a ausência das doenças gástricas nesse grupo se deva ao seu curso extremamente insidioso e a sintomas menos evidentes ou dramáticos.
Os registros de óbitos e de dados constantes nos prontuários médicos de ambulatórios e hospitais, certamente muito úteis, têm limitações conhecidas para aferir a morbidade de populações, mesmo quando se trabalha com uma categoria de trabalhadores supostamente homogênea. Supostamente porque em uma mesma categoria, como a bancária, temos trabalhadores que pertencem a diferentes níveis de sujeição ao trabalho e a gênero, duas características fundamentais a serem consideradas quando se estuda modos de adoecer e morrer entre trabalhadores.
De qualquer modo, os dois estudos sobre bancários comentados parecem fortalecer a descrição de Ramazzini sobre a patogenia de trabalhos desse tipo, fundamentada na observação empírica de que eles induzem, mais freqüentemente, a doenças cardiocirculatórias, digestivas e do aparelho locomotor, mais especificamente as LER, e que o sofrimento mental é uma presença recorrente.
Poder-se-á, sem dúvida, aclarar mais a causalidade direta do trabalho no adoecimento bancário, conquanto pareça melhor, ao invés de priorizar a busca de nexos causais objetivos, vale dizer, 'positivos', entre condições, ambientes e posturas corporais de/e no trabalho e doença, concentrar as investigações na patogenia da organização, sujeição por hierarquia e gênero, no conteúdo do trabalho bancário e em suas determinações externas, mesmo no caso das LER. A dificuldade maior, afora outras, é o obstáculo interposto pelas empresas para impedir o acesso aos dados disponíveis ou dificultar sua produção em primeira mão. Não é fácil contornar ou superar tal barreira, mas vale insistir, afim de que as investigações, quantitativas ou qualitativas, sejam cientificamente válidas e validadas.
No caso específico do sofrimento mental, Dejours propõe abandonar a busca de relação explícita entre trabalho e adoecimento mental, substituindo-a pela identificação das razões da preservação do equilíbrio psíquico e da normalidade aparente.54
Marty (1993:12-46), por sua vez, insiste que a dualidade doença mental / doença somática só se sustenta para efeito de classificação, lastreada na predominância alternativa de sintomas e sinais do aparelho mental ou dos demais aparelhos e sintomas orgânicos, salientando que é impossível existir doenças somáticas sem a contingência psíquica e haver doenças mentais que não comprometam outros órgãos e funções. Independentemente da discussão de uma medicina psicossomática com esse caráter, a unicidade psicobiológica é irrecusável, mesmo que não se queira aceitar a tese do desenvolvimento da doença somática como manifestação da impossibilidade de o aparelho mental dar conta dos conflitos originados pela má formação da personalidade, como pretende os que assim propõem, todos integrantes de correntes psicanalíticas. A questão do envolvimento psíquico é bastante pertinente mesmo quando se discute uma doença em que há o reconhecimento oficial de algumas condições 'objetivas' ou causas imediatas, como no caso das LER.
Não se trata, porém, de admitir tão-somente uma mediação neuropsíquica de natureza farmacológica, por intermédio da produção aumentada ou diminuída de substâncias indutoras de respostas nervosas e vasculares periféricas, como as endomorfinas que, por exemplo, modificam o limiar da dor e retardam ou precipitam manifestações somáticas das LER. Essa é uma mediação ainda no campo biológico, razoavelmente tranqüila e que necessariamente não contraria a tese de que as LER são, apenas, lesões localizadas e puramente biológicas.
Sustenta-se tese diferente: as LER, conquanto tenham uma expressão morfobiológica localizada, constituem um adoecimento geral, do corpo inteiro, biopsicossocial. A localização decorre da existência de condições várias em que se incluem uma dimensão causal, objetiva e imediata, relacionada ao processo e à organização do trabalho e a uma dimensão individual, que diz do modo próprio 'de cada um andar com a vida', de elaborar as agressões físicas e psíquicas oriundas da realidade objetiva, construída não apenas por relações sociais intrínsecas ao trabalho, mas também extrínsecas a ele e por ele mediada. Ou seja, há, também, essa terceira dimensão social maior que não se expressa diretamente como causa, mediada que é pelas duas anteriores.
Não se está propondo dar a essas várias dimensões uma ordem seqüencial, tipo relação causa-efeito, nem se entendendo as LER como mais uma doença psicossomática, isto é, simples somatização de perturbações psíquicas preexistentes, o que minimizaria a importância do trabalho enquanto dimensão social e objetiva, sem o qual a doença não existiria. O que permanece como uma interrogação, igualmente presente em qualquer doença de populações, é o porquê de uns adoecerem e outros não, embora sujeitos ao mesmo trabalho. É nesse particular concorda-se sobre a necessidade de estudar, também, as populações de trabalhadores não adoecidos de LER mas a ela sujeitas, aparentemente, de modo igual.
Dejours, ao formular essa preocupação e propor o estudo de populações não adoecidas, parte de pressupostos teóricos e de instrumentos metodológicos declaradamente psicoanalistas, não necessariamente aceitos por todos, em que pese a incorporação de uma série de conceitos psicanalíticos ao cotidiano das pessoas. Afirma ele que a transposição do círculo familiar para o espaço do trabalho, socialmente mais alargado, implica a necessidade de uma correspondência que impeça rupturas significativas e permita a cada indivíduo perseguir seu questionamento interior e traçar uma história, engajando-se, pelo trabalho, em relações sociais mais espaçosas, para o qual transfere "as questões herdadas do seu passado e de sua história afetiva", correspondência que ele chama de "ressonância simbólica". Para a construção dessa ressonância simbólica e afetiva são necessárias, diz, a escolha de uma profissão, a possibilidade de concepção do que se faz e o julgamento dos outros, posto que o reconhecimento social é a retribuição fundamental para a sublimação. No entanto, admite, o entrave ao jogo da sublimação pode não resultar da incapacidade psíquica do sujeito, mas das condições do trabalho nas organizações. Na impossibilidade de elaborar dentro das organizações essas condições favoráveis, diz ainda, o indivíduo não se beneficia do trabalho para dominar seu sofrimento e transformá-lo em criatividade. A única saída possível é a doença. "Nesse caso falaremos de sofrimento patogênico", afirma. A possibilidade de ruptura desse círculo vicioso seria garantir aquela ressonância, articulando-a com a transformação das organizações em "espaços públicos".55
Sem descartar a necessidade de conformar os 'espaços públicos' dentro das organizações, certamente essencial à elaboração de formas de resistência ou de insubmissão não defensivas, a concretização do que o autor chama de ressonância simbólica, como admite, é contida pelas próprias organizações. Desgraçadamente, essa restrição não é inocente, mas uma estratégia em si, posto que a produtividade na sociedade industrial está associada historicamente à coerção.56
Gorz (1992) estima que apenas 5% da população trabalhadora das várias categorias, prevalentemente a dos intelectuais, poderiam estar satisfeitos com o trabalho que fazem e seriam capazes de escolher uma profissão, conhecer o que fazem e obter o reconhecimento social ou do outro, elementos, em tese, indispensáveis à sublimação a que se refere Dejours.
Se de fato inexiste, para a quase totalidade dos trabalhadores, a possibilidade de encontrar prazer no trabalho, restariam duas saídas possíveis: a doença sem causalidades reconhecíveis ou objetivas - como expressão sutil da patogenia essencial do trabalho moderno —, ou a formulação de modos de insubmissão eficazes, isto é, coletivos e socialmente válidos para enfrentá-la.