4. LER: uma doença emblemática
Nada é maispunitivo do que atribuir um significado a uma doença quando esse significado é invariavelmente moralista. Qualquer moléstia importante cuja causa é obscura e cujo tratamento é ineficaz tende a ser sobrecarregada de significação. Primeiro, os objetos do medo mais profundo (corrupção, decadência, poluição, anomia, fraqueza) são identificados com a doença. A própria doença torna-se uma metáfora. Então, em nome da doença (isto é, usando-a como metáfora), aquele horror é imposto a outras coisas. A doençapassa a adjetivar. Diz-se que isto ou aquilo se parece com a doença, com o significado que é nojento ou feio.
Sontag (1984:76)
Os atuais transtornos e lesões das partes moles dos segmentos superiores do aparelho locomotor atribuídas aos esforços repetitivos do trabalho (LER)57 são um modo de adoecimento emblemático, revelador das contradições e da patogenia social e do trabalho desse novo ciclo do desenvolvimento e crise do modo de produção capitalista que Offe (1990) chama de "capitalismo desorganizado", Harvey (1994:115184) de "acumulação flexível" e vários outros, de "terceira revolução tecnológica" (Coutinho, 1992; Cardoso de Mello, 1992).
São características principais desse ciclo: a concentração e a acumulação maiores do capital financeiro, via transferências de dinheiro volátil mediante operações no mercado internacional de capitais; a formação de grandes oligopólios, cujos interesses transitam sem fronteiras, com a eliminação das barreiras fiscais e protecionistas dos países menos industrializados transformados em mercados abertos; a automação acelerada e a adoção de novas formas de racionalização da produção e organização do trabalho objetivando o fechamento dos 'poros' dos tempos de produção e trabalho e aumentando a exploração intensiva da força de trabalho; flexibilização e descentralização da produção e deslocamento da força de trabalho para áreas cinzentas do mercado, não regulamentadas e não fiscalizadas, eufemicamente chamadas de mercado informal; desemprego, subemprego e trabalhos sazonais; privatização dos bens públicos, mesmo daqueles admitidos antes como puros ou perfeitos, como saúde, educação, segurança, seguridade, ou imperfeitos, como energia elétrica, água, esgoto, transportes, meio ambiente etc., e sua transformação em produtos de mercado; redução do tamanho e do poder do Estado e maximização do discurso e práticas sobre a estabilidade da moeda, equilíbrio das contas e pagamento das dívidas públicas; contenção das políticas de redistribuição de renda e dos investimentos sociais e do Estado; esvaziamento das políticas e representações públicas e estabilização do formalismo democrático; culto exacerbado do individualismo e do hedonismo dos que podem consumir; forte estímulo para adoção de novos padrões de bens de consumo materiais, artístico-culturais e estéticos, rapidamente deterioráveis; incentivo indireto às práticas anti-sociais e às atividades econômicas subterrâneas e delinqüentes; violência urbana; comportamentos e valores sociais conservadores; perda de perspectivas de vida para os segmentos jovens da população, angústia e medo dos segmentos de meia idade e desesperança dos idosos; aumento das mortes por acidentes de veículos, por homicídios e suicídios; aumento das mortes súbitas por doenças cardiocirculatórias, elevação da morbidade por doenças mentais, digestivas, neoplásicas e osteomioarticulares, direta ou indiretamente relacionadas com o trabalho.
Não cabe aqui discutir a primazia da ciência e da tecnologia no desenvolvimento da sociedade, embora ordená-las assim possa induzir a que se lhes debitem os efeitos perversos decorrentes de sua apropriação privada e de sua incorporação e uso abusivos, como são exemplos recentes, no campo do trabalho, o desemprego, o subemprego, a informalidade crescente das inter-relações, o desassossego previdenciário. No campo da saúde, são exemplos o sofrimento mental e o crescimento das doenças do trabalho, como as LER e as doenças ditas 'psicossomáticas' e 'crônico-degenerativas'. Enfim, não creditese ou debite-se ao conhecimento e às máquinas, velhas ou novas, os problemas políticos, sociais e de saúde.
Um dos mitos que as LER estão ajudando a derrubar com seu explosivo crescimento é de que as novas tecnologias eliminariam o trabalho manual, uma vez que se está adoecendo, justamente das mãos, por excesso de trabalho. Com a automação crescente estaríamos prestes a viver em um mundo em que a produção, transporte e distribuição seriam inteiramente automatizados e os computadores 'inteligentes' determinariam o fim — por que não? — até do trabalho intelectual ou de concepção.58
De fato, nesses dois últimos séculos, principalmente no último e mais ainda na metade do presente, embora a massa global de horas/trabalho vivo despendida na produção tenha aumentado várias vezes, a produtividade em cada uma dessas horas cresceu a uma velocidade e volume muitas vezes maior. Ou seja, produz-se hoje várias centenas de vezes mais com um dispêndio relativamente menor de energia e trabalho humanos.59 Essa maior produtividade tem dois componentes principais: a incorporação de inovações tecnológicas em termos de materiais, instrumentos e processos e as mudanças das características do trabalho.
Os elementos causais mais perceptíveis ou emergentes desse processo é o primeiro componente, isto é, as transformações tecnológicas que parecem, às vezes, ocorrer em 'saltos para cima', como se fossem autônomas e configurassem por si mesmo sucessivas 'revoluções'. Sabemos que as coisas não se passam assim e que essa é uma representação da realidade, um modo de interpretar a história do desenvolvimento das sociedades e do conhecimento, desumanizando-a e mitificando a tecnologia. As técnicas, vale dizer, as práticas do trabalho, o homem as tem aperfeiçoado e as adotada para poupar-se e dar à sua ação sobre a natureza maior eficácia, ao menos até o advento da Revolução Industrial. Isso significa que o aumento da produtividade é inerente ao desenvolvimento do homem e da sociedade, não a expropriação do conhecimento e do trabalho.
Com a Revolução Industrial e burguesa houve a aceleração do processo de liberação das forças produtivas, acompanhada simultaneamente de uma apropriação maior do trabalho por parte do capital. Tal como as técnicas, as tecnologias industriais deveriam poupar trabalho se, utopicamente, pertencessem aos que o realizam por necessidade, isto é, para produzir bens de uso, mas que apropriadas pelo capital são transformados em bens de troca, em mercadorias. A medida que se sucedem os ciclos de desenvolvimento e crise do capitalismo, cresce a expropriação das tecnologias - cada vez mais automatizadas —, aumenta a massa de trabalho abstrato e alienado do trabalho.
Apesar da maior quantidade de massa de trabalho extensivo, medida em termos de horas/trabalho, e da maior intensidade do trabalho, o aumento extraordinário da produtividade nesses dois séculos se deveu, certamente, ao crescimento ainda maior do 'trabalho morto' executado pelas máquinas, acompanhado sempre de novas técnicas organizativas e administrativas de exploração 'do trabalho vivo', dentro da lógica inexorável e a incessante necessidade do capital de se multiplicar.60
Não é de estranhar, portanto, que apesar do fantástico aumento da produtividade em todos os setores da economia, a jornada formal de trabalho que nos países industrializados passara a ser de oito horas há um século continue a mesma, salvo algumas exceções, sem contar as habituais horas extras impostas, mesmo no mais industrializado e liberal desses países, os EUA.61
Determinação versus causalidade
Entre as significativas mudanças ocorridas com o trabalho vivo no atual ciclo de desenvolvimento e crise do modo de produção das sociedades capitalistas está a redução do uso da força, cujo dispêndio energético, medido em calorias e fundamentado na fisiologia alemã do fim do século XIX , servia para estabelecer a remuneração do trabalho, inclusive no Brasil.62
Mudaram de natureza as exigências do trabalho com o advento das novas máquinas automatizadas, entre elas os robôs e os computadores, e com a nova organização do trabalho. Tais exigências não têm mais o caráter antigo de deslocamento de carga ou peso dos ciclos anteriores da produção capitalista que exigia força bruta. O corpo continua sendo exigido, mas de outro modo. Os esforços são agora bem mais leves, mas contínuos, rápidos, dando a impressão de serem inócuos, tal a leveza no manuseio das máquinas industriais e dos escritórios. E quando se requer mais destreza, exige-se mais atenção. Agora, o corpo sai pouco do lugar. Nesses trabalhos atentos, tensos e intensos, a cabeça e os olhos seguem os passos rápidos da produção, as mãos se movimentam mais que o resto do corpo e os braços as acompanham ou se colocam em posturas mais ou menos rígidas para que elas executem as tarefas prescritas.
A baixa quantidade da força muscular exigida e a repetição dos movimentos são, entre outros, os elementos responsáveis pela intensidade e aceleração do ritmo do processo de produção e pelo aumento da produtividade. Ao lado da sobrecarga musculotendinosa estática, esses são os elementos físicos habitualmente presentes e mais responsabilizados por lesões de órgãos e tecidos do aparelho locomotor.
Nesse ciclo "pós-moderno" do capitalismo,63 a presença desses componentes que integram a materialidade do processo do trabalho e de outros menos perceptíveis que compõem sua organização e a concomitante e crescente ocorrência das LER em todo o mundo, as fizeram reconhecidas como doenças ou modos de adoecimento inequivocamente relacionados com o trabalho. Tratava-se de uma evidência empírica tornada consistente por uma associação positiva e significante. Haveria uma relação de causa e efeito, quase do tipo 'dose/resposta', cujos modelos explicativos, respeitadas as diferentes nuanças, tomam como referência o modelo clássico de Leavell & Clark (1976:37-98).64
O modelo de Kuorinka & Forcier (1995) foi construído a partir de três grupos de elementos: os designados fisiopatológicos ou individuais, correspondendo ao "hospedeiro" de Leavell & Clark; os fatores gerais de risco, concernentes ao "agente", no caso o trabalho em si; e as características do meio do trabalho ou "ambientais". Não obstante considerarem os fatores externos importantes, os autores admitem não os ter levado em conta. Apesar da interação dos fatores que propõem os autores, este é um modelo conceptual de causação linear e positiva, em que a doença é uma entre as possíveis e várias resultantes. É centrado na internalidade do trabalho e nas reações biológicas do trabalhador, como se produção, trabalho e trabalhador pudessem ser despojados de sua condição histórica e social e suas inter-relações fossem atemporais.65
Não se negue a importância da teoria da multicausalidade. Ela tem sido de extrema valia para a consolidação da medicina contemporânea, alicerçada sobre os primados do positivismo. É útil aos médicos quando buscam, no indivíduo, o diagnóstico dos seus males, relacionando-os com causas aparentes e próximas. Serve, também, à pessoa do doente quando na sua singularidade procura recuperar a saúde perdida e assegurar prerrogativas trabalhistas, previdenciárias e de cidadão adoecido do trabalho, com base no direito moderno igualmente positivo, que exige a comprovação da causalidade ou concausalidade do trabalho na doença. Pode embasar, também, algumas intervenções técnicas sobre as condições, ambientes e até sobre a organização e relações do trabalho, com alguma eficácia, embora sempre pontual. Enfim, a teoria da multicausalidade tem certa eficiência e praticabilidade e é sobre ela que se assenta o reconhecimento das LER como doença do trabalho. A insuficiência da teoria da multicausalidade para explicar esta ou qualquer outra doença não está no que ela permite identificar dentro da lógica formal, mas no que acaba ocultando e embaraçando.
O homem, em sua evolução, aprendeu a fazer outros usos de suas mãos, além daquele tão restrito de apreender os objetos. A sensibilidade, o contato, a percepção das formas e a projeção das mãos como instrumento de conhecimento e transformação do mundo têm sido um longo aprendizado que teve correspondência no córtex cerebral. Transformando-o, transformou-se. Nesse percurso, ela deixou de ser meramente um órgão motor para se fazer, também, um órgão de expressão e vontade. O uso ágil, sensível, preciso e coordenado das mãos é, talvez, a mais acabada construção social, histórica e biológica do homem.
Enquanto movimentos de flexão e extensão, manusear peças eletrônicas, teclas de um computador, cordas ou teclados de instrumentos musicais têm poucas diferenças. Variarão, certamente, de força, intensidade, ritmo e extensão do tempo de manuseio, mas as diferenças do trabalho de um operário da industria eletroeletrônica, de um bancário, de um instrumentista de orquestra sinfônica e de um músico de jazz não são apenas dos instrumentos e meios e da natureza quantitativa dos movimentos. Há muitas outras, além dos elementos constitutivos físicos de cada um desses trabalhos, que dizem respeito ao seu conteúdo intrínseco, à sua organização, natureza social e à sua história.
No entanto, é freqüente, embora pouco original, comparar as atividades de uma produção com elevado nível de tecnicidade e organização, que pode ser a de uma empresa industrial ou financeira, com uma orquestra sinfônica, onde cada trabalhador, sentado ou de pé, daria conta de uma partitura. Na realidade, essa aparente sintonia, longe de resultar em uma sinfonia carregada de sentimento, é uma seriação de tarefas simples, repetitivas, que têm a ver com a divisão racional do trabalho, muito diferente do trabalho coletivo dos instrumentistas de uma orquestra, concebido e exercido com razoável autonomia, embora preso, rigorosamente, a um texto e sob a batuta de um maestro. J á nas bandas de jazz, a liberdade de conceber e tocar é absoluta.
Nas diferenças qualitativas do trabalho, provavelmente mais do que nas de natureza quantitativa dos movimentos e posturas físicos, estariam as causas da desigualdade de prevalência das LER nas diversas categorias profissionais e até dentro de uma mesma categoria. Não é de estranhar, pois, que altas prevalências de LER sejam encontradas em trabalhadores da linha de montagem fabril, estas bem maiores que entre os escriturários-caixas de banco.66 Músicos também têm LER, mas conquanto elas sejam razoavelmente freqüentes entre os que integram orquestras sinfônicas, não têm expressão numérica entre instrumentistas de jazz.67
Criar e executar, sobretudo com a liberdade com que fazem os músicos de jazz, implica sentir o trabalho de um modo totalmente diferente do cumprimento de tarefas simples, esvaziadas de conteúdo e com escasso domínio sobre meios, instrumentos, processos e fins, como ocorre nas linhas de montagem industrial ou nos balcões de bancos.
O cumprimento de tarefas repetitivas, nem por isso despidas da exigência de atenção e realizadas sob permanentes pressões e tensões - que a experiência pode amenizar, mas não elimina —, faz o trabalho real e automatizado de hoje penoso e sofrido em qualquer setor.68
Nem mesmo entidades patronais nacionais, como a Federação Brasileira de Bancos (s.d.), nega uma dimensão do trabalho, senso estrito, na geração das LER, mas não se há de querer culpar por esses infortúnios as máquinas e os ambientes de trabalho, meros mediadores materiais e constitutivos da produção.
Não é a automação dos processos de produção que causa as LER, como não são as novas tecnologias que desempregam; que o digam as trabalhadoras da indústria de vestuário, remuneradas por peça confeccionada e que em grande número estão se tornando incapacitadas para trabalhar devido às LER.69 Esses são epifenômenos resultantes de uma situação que remete, inexoravelmente, à propriedade desses meios e instrumentos. A patogenia não está neles, mas na sua apropriação, incorporação e uso, e também na inerente reorganização do trabalho que o patronato impõe e as gerências e chefias administram, sem preocupação maior com as repercussões sociais e sobre a saúde dos que realizam o trabalho.70
Os conflitos entre os interesses do capital, beneficiário direto dessa incorporação tecnológica, e as necessidades dos que trabalham subalternamente sem poder interferir ou interferindo muito pouco nas políticas empresariais, podem emergir catastroficamente, sob várias formas, uma delas, de um adoecimento coletivo, exemplo das LER, cujas vítimas dessa violência oculta ou disfarçada, mais uma vez, são os trabalhadores hierarquicamente mais subordinados.
Evolução histórica
O conhecimento de que o trabalho braçal e os esforços brutais causam lesões osteomioarticulares dos membros superiores é muito antigo e 'atravessa' o tempo. O conhecimento mais contemporâneo e muito menos difundido de que os esforços leves e contínuos desses membros podem levar a lesões dos mesmos tecidos, também precede à Revolução Industrial. O sofrimento dos artesãos escriturários ao realizar seu trabalho, caracterizado por esforços leves, repetitivos e pela sobrecarga estática das estruturas do membro superior, em que a atenção e a tensão eram, também, uma exigência do trabalho, já tinha sido descrito por Ramazzini há 300 anos.
A exigência principal do trabalho na produção industrial, notadamente no segundo ciclo de desenvolvimento e crise do capitalismo, entre 1870 e 1950, foi a da força muscular bruta, resultando em doenças e acidentes do trabalho graves com lesões freqüentes, cruentas e não cruentas, que modularam de forma diferente e brutal o perfil da morbi-mortalidade da classe trabalhadora. Surge daí a legislação acidentaria específica, a primeira delas na Alemanha em 1884, seguindo-se as de outros países, acompanhando seu processo de industrialização.71
A aceleração da automação, agora eletroeletrônica, do processo de produção, uma das características do ciclo atual de desenvolvimento e crise do modo de produção capitalista que se inicia em torno de 1950, vem fazendo decrescer o número de lesões típicas dos acidentes, entre as quais sempre estiveram as osteomioarticulares dos membros superiores, umas mais e outras menos aparentes, com ou sem mutilações. Também as velhas e clássicas doenças ditas 'profissionais' ou 'ocupacionais' deverão se tornar menos freqüentes com a adoção de novos materiais, inovações de tecnologias e processos produtivos.
A mudança da infortunística do trabalho se deve, em grande parte, à redução dos movimentos de força, agora substituídos por movimentos leves, repetitivos, habitualmente de elevado ritmo, executado nas fábricas, mas, principalmente, no setor terciário (serviços, comércio, administração etc), no qual se concentram hoje, nos países industrializados, mais de 60 % da força de trabalho. A violência do trabalho, ainda bastante explícita nos países de economia dependente e de industrialização tardia, faz-se mais oculta em todo o mundo, mais sutil, sem uma causalidade material tão denunciadora.
Os sintomas descritos em 1700 por Ramazzini (1971:157-159), em artesãos escriturários, se assemelham aos que acompanham as lesões das partes moles do membros superiores atribuídas aos atuais 'trabalhadores de escritório', como os chama Braverman (1981:249-302); mas são muitas as diferenças entre o modo de adoecimento dos escribas descrito por aquele autor e o da sociedade de escribas que acabamos nos tomando. Talvez a mais significativa seja a de que, naquela época, as LER eram um modo mais raro de adoecer, visto ser a escrita uma atividade partilhada por um número bem pequeno de pessoas que usavam a pena de ave como principal instrumento de trabalho.
Este caráter ocupacional e restrito das LER permaneceu assim por um longo tempo em todo o curso do primeiro ciclo da Revolução Industrial, mesmo quando, a partir de 1830, o instrumento da escrita, a pena de ave, foi substituída por uma inovação tecnológica, a 'pena de aço'. A escrita se fez mais veloz e a sensação de peso, as dores e cãibras nas mãos e braços se fizeram mais freqüentes entre os que praticavam o ofício, que, de tão numerosos, haviam se tornado uma categoria, agora formalmente assalariada.
Com o desenvolvimento e expansão do telégrafo, após 1870, dos mesmos sintomas veio padecer a nova categoria profissional dos telegrafistas,72 sintomas reconhecidos na Grã-Bretanha, em 1908, como doença do trabalho {telegraphist' cramp). Nesse caso, o esforço repetitivo era sobre uma tecla e não mais sobre a pena. A expansão da doença dentro dessa categoria levou mais tarde a que uma comissão de peritos do Fundo de Compensação dos Trabalhadores revisse a questão, concluindo que se trataria de uma "predisposição individual" e que, portanto, dever-se-ia fazer uma seleção mais cuidadosa para o ingresso dos trabalhadores nesse tipo de trabalho.73 Duas outras novas categorias, a dos mecanógrafos-datilógrafos e a dos telefonistas, vieram a apresentar os mesmos sintomas e tiveram reconhecida sua doença como sendo decorrente do trabalho — na Suíça, em 1918. Suas vítimas foram indenizadas pelos empregadores.74
Apesar da freqüência cada vez maior das LER, a destreza das mãos permaneceu por um bom tempo como exigências restritas a alguns trabalhos e categorias, embora houvesse tendência crescente à sua generalização, com a incorporação da automação mecânica.
Após a metade do presente século esse caráter e as exigências do trabalho se tornaram universais, invadindo literalmente todas as atividades econômicas e sujeitando todas as categorias a essa doença.75 No que diz respeito à tecnologia, o que marca essa inflexão é a acelerada automação dos processos de produção, não mais mecânica, mas eletroeletrônica, simbolizada pelos robôs e computadores.
Assim, as LER perderam o caráter de um modo de adoecimento de umas poucas categorias, para se tornar de todas, ocorrendo com tal freqüência que se tornou um grave problema de saúde pública e do trabalho em todos os países industrializados após a década de 50. 76
O Japão, único país que viveu o horror de dois bombardeios atômicos e retirou-se em pânico e humilhado da Segunda Guerra Mundial, foi extraordinariamente favorecido pelos Estados Unidos para a recuperação veloz do seu parque industrial. Não se tratava de nenhum sentimento de culpa pelas catástrofes de Hiroshima e Nagasaki, mas de interesses geopolíticos e econômicos no Oriente, onde os americanos precisavam de um aliado fiel e grato que fizesse frente à União Soviética e à China.
O capital e o Estado japoneses traçaram acordos sobre algumas estratégias. Uma delas, a vitaliciedade no emprego para os trabalhadores das grandes empresas dos setores de ponta, apostando na qualificação e na polivalência de funções e tarefas dos operários, culturalmente pouco afeitos a embates frontais com o capital. A partir daí, concederam relativa autonomia aos grupos operários setoriais das fábricas para que definissem a incorporação ou não de certas tecnologias novas e os autorizaram também a solucionar problemas menores dos processos de produção, sem a interferência das chefias. Em troca, a jornada de trabalho foi expandida a limites quase insuportáveis e cobrou-se-lhes devoção absoluta à empresa. Célere, o país progrediu em termos de automação e racionalização da produção e de domesticação de sua força de trabalho.
Não surpreende que tenha tal país, o primeiro a se dar conta, no fim da década de 50, de que seus trabalhadores estavam adoecendo, com uma freqüência inusitada, de doenças osteomioarticulares dos membros superiores. A intensa busca da produtividade e as novas relações e organização do trabalho, paralelamente à automação florescente, foram logo identificadas como responsáveis pelo impacto negativo sobre a saúde dos trabalhadores das mais variadas categorias, tornando os distúrbios cervicobraquiais ocupacionais (Occupational Cervicobrachial Disorders — OCD) — nome dado às LER naquele país — um sério problema social e de saúde pública.77
Os que historiam a evolução da doença no Japão afirmam que sua expansão se deveu à elevada sobrecarga e intensidade do trabalho, alta velocidade nas operações com máquinas manuais, períodos muito alongados de trabalho contínuo, aumento individual das tarefas que requerem movimentação exagerada dos dedos e dos outros segmentos do membro superior, empobrecimento do conteúdo do trabalho, controle rígido das chefias e à redução do repouso e do lazer. Segundo eles, de 1 milhão e 691 mil trabalhadores, em média, 10% eram sintomáticos. A maior prevalência (20,9%) foi encontrada entre os trabalhadores da linha de montagem. A terceira categoria mais atingida, com uma prevalência de 9,4%, era a dos trabalhadores de escritórios.78
Nas décadas seguintes, no rastro da acelerada incorporação das novas tecnologias de automação, sempre associada às novas formas racionais de organizar o trabalho, as LER ganharam outros países industrializados, com os nomes de Occupational Cervicobrachial Disorders/OCD na Alemanha e países escandinavos, Cumulative Trauma Disorders/CTD, Occupational Overuse Syndrome/OOS, Repetitive Strain Injury/RSI e Work Related Musculoskeletal Disorders/WMSDs nos Estados Unidos da América do Norte, Repetitive Strain Injury/RSI na Austrália e lesions atribuibles au travail répétitif/LATR no Canadá.
Nos EUA, as LER alcançaram vulto nos primeiros anos da década de 80. Silverstein, em tese de 1985 (Couto, 1991), demonstrou que a prevalência em seis indústrias metalúrgicas mostrou-se próxima àquela dos trabalhadores da linha de montagem no Japão e que em 147 dos 574 adoecidos, os movimentos de força e elevado ritmo foram identificados como causas mais próximas. Sete anos mais tarde, uma revista americana de ampla circulação no mundo inteiro incumbiu-se de difundir alguns dados oficiais do governo: 50 % de todas as doenças do trabalho notificadas no país eram por Repetitive Strain Injury (RSI) provocadas pelo trabalho, sobretudo pelo uso de microcomputadores e tecnologias assemelhadas. Estariam ocorrendo anualmente 185 mil casos novos. Cerca de 45 milhões de trabalhadores americanos, ou seja, metade da força de trabalho do país, estaria sujeita a adoecer devido ao trabalho automatizado. Os custos estimados com perda de produtividade e assistência médica foram estimados em 7 bilhões de dólares naquele ano.79 Em 1998, o número total de ocorrências de LER subiu para 650 mil, sendo responsáveis por 1/3 das ausências anuais ao trabalho, a um custo estimado entre 15 a 20 bilhões de dólares (Jeffress, 1999).
Uma recente revisão sobre as doenças osteomioarticulares do pescoço e membros superiores em trabalhadores de escritório em 16 países (Japão, Austrália, EUA, Alemanha, Suíça, Suécia, Grã-Bretanha, Finlândia, França, índia, Itália, Noruega, Nova Zelândia, Holanda, Singapura e Rússia) descreve não só a identidade dos sintomas e causas imediatas, como também a expansão e as especificidades no encaminhamento dessas patologias em cada um.80
O reconhecimento da dimensão e transcendência das LER tem suscitado, nos últimos anos, inúmeros seminários, congressos e pesquisas, algumas multicêntricas, não pairando qualquer dúvida para os institutos, centros e grupos que pesquisam as inter-relações do trabalho com a saúde, de que o trabalho repetitivo, a sobrecarga musculoesquelética estática e a nova organização do trabalho, aliadas à automação, estão estreitamente associadas na causalidade das LER.81
Concordam os pesquisadores que embora os movimentos repetitivos leves estejam entre as principais causas imediatas das LER, o esforço musculoesquelético estático, aparentemente pequeno, porém permanente, de manter os membros superiores contraídos no curso do trabalho em pé ou sentado, explicaria a multiplicidade das partes e segmentos atingidos e a bilateralidade das lesões.82 Acordam ainda que a prevenção da doença está na dependência não só de medidas ergonômicas e físicas para melhorar as condições e ambientes do trabalho, mas de outras ligadas à sua organização, como redução da jornada, interrupção regular das tarefas ou pausas, revisão das relações do trabalho com a finalidade de reduzir as pressões e tensões do trabalho etc.83
Essa consensualidade sobre as causas próximas, no trabalho, relacionadas à ocorrência das LER, implica que uma intervenção, para ter eficácia, requer um conjunto de medidas simultâneas para evitar novos casos, detectar, diagnosticar e tratar precoce e adequadamente os casos em estados iniciais e dar também um tratamento especial aos casos crônicos, buscando resolver o difícil problema do retorno ao trabalho.84
A urgência dessas políticas e ações é óbvia: as vítimas de LER constituem uma população em plena fase produtiva, com idade prevalentemente abaixo dos 40 anos e, portanto, com expectativa de vida elevada, fato que acarreta enormes custos aos sistemas de saúde e seguridade.85 Alguns pesquisadores relatam êxitos com intervenções no campo da prevenção e diagnóstico, atestados pela redução de novos casos e de incapacidade e reabilitação.86
Mas mesmo em países onde o problema foi detectado precocemente, as LER se mantêm na ordem do dia e fora de controle. A razão parece clara: elas não têm muita vulnerabilidade às técnicas de prevenção conhecidas. Além disso, as técnicas de detecção e tratamento precoces da doença não têm sido compatibilizadas com sua magnitude e transcendência social.
Diferentemente das epidemias que representam, potencialmente, uma ameaça a todas as classes e segmentos sociais, as LER, apesar de sua expansão, são seletivas, atingindo prevalentemente aqueles que realizam o trabalho real e cujo adoecimento parece, a essa altura, estar comprometendo a produção. Mas no ciclo atual do capitalismo, mais do que nos anteriores, a força de trabalho está aí, abundante, a um preço incrivelmente baixo. Ante a incapacidade temporária ou definitiva para o trabalho e aos custos previdenciários, médicos e sociais, a preocupação imediata e maior permanece com os próprios trabalhadores e seus sindicatos, com os órgãos previdenciários e securitários e as instituições de saúde, todos perplexos sobre o que se deve de imediato fazer.
A chegada ao Brasil
No início dos anos 80 as LER aportaram ao Brasil, com as mesmas características, agravadas aqui por uma negação e ocultação provavelmente maiores, vindo a se tornar, em pouco mais de 10 anos, um grave e, ainda assim, descuidado problema de saúde pública. Nos dias atuais, aqui e à semelhança dos outros países industrializados, elas constituem uma das mais freqüentes doenças do trabalho, de grande e crescente impacto sobre o sistema médico-assistencial e previdenciário, por vitimar todos os anos um grande contingente de trabalhadores jovens ameaçados com a perda definitiva de dois bens públicos essenciais que carregam: a saúde e a capacidade de trabalho.
Diferentemente, porém, dos países precocemente industrializados, onde emergiram primeiro no setor industrial, aqui elas começaram no setor de serviços, mais precisamente nos centros de processamento de dados de empresas estatais.87
No início de 1982, um representante dos funcionários da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (OPA) do Centro de Processamento de Dados (CPD) do Banco do Brasil em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, achou estranho o fato de nove digitadores aparecerem com o braço engessado com diagnóstico clínico de tenossinovite. Levou sua preocupação à gerência do banco, suspeitando que fosse uma decorrência do trabalho. A empresa, alegando que tal não vinha acontecendo em outros CPDs, atribuiu o fato a uma suposta simulação. No fim do mesmo ano, os casos somavam 24. Ainda assim, o Banco continuou a entendê-las como doenças não relacionadas com o trabalho e, desse modo, não emitia a Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT), escudando-se no fato de a tenossinovite não ser reconhecida como doença do trabalho pela legislação acidentaria brasileira.
O reconhecimento oficial da tenossinovite como doença do trabalho veio a acontecer cinco anos depois, em conseqüência do crescente aumento de casos entre digitadores e da pressão do Sindicato dos Empregados das Empresas em Processamento de Dados, a própria portaria do documento ministerial se refere à portaria do Ministério da Previdência e Assistência Social (1987).
O número de casos de LER não parou de crescer, passando a vitimar não apenas digitadores, como bancários em outras funções, trabalhadores fabris (metalúrgicos, eletroeletrônicos, têxteis etc.) e de outras atividades econômicas (telefonistas, teletipistas, operadoras de caixas de supermercados etc).
Nos primeiros anos da presente década, essas lesões, rotuladas de tenossinovite e de outros nomes, ou simplesmente de LER, tiveram um explosivo crescimento, acabando por ultrapassar, em termos de taxas, as doenças decorrentes do ruído e tornando-se a principal doença notificada à previdência social, apesar da relutância dos peritos em considerá-las mesmo como uma doença do trabalho.
Premidas por tais circunstâncias e com a interveniência direta do movimento sindical, o poder público, em várias instâncias e lugares, elaborou normas sobre as LER. Em 1991, o novamente unificado, por pouco tempo, Ministério do Trabalho e Previdência Social publica sua primeira norma sobre o assunto. Em 1992 é a vez de a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo fazer o mesmo, exemplo logo seguido pelo estado de Minas Gerais. Em 1993 é o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), da Previdência Social, que publica a sua, todas muito parecidas.88
Ainda assim, as resistências ao reconhecimento da doença e do seu vínculo com o trabalho persistem. Médicos não estabelecem o nexo causal, empresas se negam a emitir a CAT, documento insubstituível para a concessão dos 'benefícios' previdenciários, agentes e peritos médicos do INSS desmerecem os laudos dos médicos dos adoecidos e os centros de reabilitação profissional desse instituto protelam laudos e decisões, mesmo nos casos relacionados à incapacidade definitiva, em parte por desacreditar na doença e nos adoecidos, em parte por não saber o que fazer.
Provavelmente, em razão do seu nível de organização, poder de pressão e facilidade de acesso a serviços médicos mais diferenciados, os bancários e os metalúrgicos são as categorias em que tem havido mais registros de casos89. É previsível que o Brasil venha a ocupar um lugar indesejável e proeminente na casuística das LER no cenário internacional, apesar da contumaz subnotificação. Isso, devido às longas jornadas de trabalho e ao elevado nível de exploração a que estão submetidos os trabalhadores brasileiros.
O sistema bancário brasileiro tem tradição de vender no mercado nacional uma série de 'produtos' que fazem bastante densa e corrida a atividade e o trabalho bancários. Em face da concorrência dentro do setor, ao incorporar a informática e a telemática e, ainda, fazer da informação um novo e caro produto, ele não se desvencilhou dos anteriores. A reformulação da organização do trabalho e a simplificação de tarefas, trazidas com a automação e que se fizeram acompanhar de maciças demissões, sobrecarregou os bancários que permaneceram no emprego com tarefas antigas e novas, só que multiplicadas, numa versão piorada de polivalência funcional.
Embora as LER, mesmo entre trabalhadores sedentários e de escritório, sejam velhas conhecidas, há alguns fatos novos e relevantes: sua elevada e crescente importância entre as doenças diretamente associadas ao processo e organização do trabalho; o fato de que suas causas mais próximas e freqüentes estejam deixando de ser os movimentos de força, substituídos pelos toques leves e rápidos dos dedos sobre teclados de microcomputadores e assemelhados, e pela sobrecarga muscular estática inerente a esses tipos de trabalho; a formidável eficiência dessas máquinas, elevando direta e indiretamente a produtividade em todas as atividades econômicas, inclusive as do setor terciário, no qual se concentra hoje mais da metade da força de trabalho; o aparente paradoxo de que a incorporação de novas tecnologias e o formidável crescimento de produtividade se traduziu em desemprego e adoecimento, ao invés de redução da jornada e em melhor repartição de renda; e o fato das LER terem se tornado um grave e complexo problema de saúde pública e social, deixando de ser uma doença episódica e restrita a poucas categorias e a poucos trabalhadores.
Essa não diferenciação de categorias vitimadas pelas LER, que as fizeram uma doença universal do trabalho, se deve à própria não diferenciação que caracteriza o trabalho atual, nivelador, por baixo, dos conteúdos, salários e tempos de trabalho, transformando diversas profissões e ocupações em uma imensa e amorfa categoria de 'escriturados'. São esses trabalhadores, dispostos em todos os setores e atividades econômicas, que cada vez menos se destinguem uns dos outros pelo que fazem e como vivem, que mais tendem a adoecer de LER, indicando uma aproximação de classe e categorias até no modo de sofrer.
Como explicar, ao longo desses anos, o desenvolvimento das LER em todos os países e nas diversas atividades econômicas sem que as autoridades, os sistemas reparadores de previdência social e assistência médica, as empresas e os seus sistemas de controle de segurança e medicina do trabalho, a classe trabalhadora e seus sindicatos lhes tenham dado a oportuna e merecida importância?
O enfoque médico
Tenossinovites, tendinites, sinovites, miosites, fascites, bursites, epicondilites e neurites periféricas são designações consagradas pela medicina das lesões inflamató¬ rias do sistema osteomioesquelético e conjuntivo e dos nervos periféricos. Apesar dessas designações se referirem, quase todas, aos tecidos de sustentação (ossos, músculos, tendões, fáscias e sinóvias), o processo inflamatório envolve sempre os tecidos vizinhos que integram nominalmente outros sistemas e aparelhos, como as artérias, veias e nervos locais.
Nos membros superiores, algumas dessas lesões ganharam nomes especiais, caracterizando ora os tecidos mais lesados e o presumido trajeto inflamatório síndrome do desfiladeiro torácico, síndrome do túnel do carpo, síndrome do canal de Guyon, síndrome cervicobraquial, síndrome do pronador redondo -, ora sinalizando a imagem da seqüela ('dedo em gatilho'), ora homenageando quem melhor as descreveu ou estudou (moléstia de Dupuytren, doença de De Quervain).
Essas lesões ou síndromes podem ter etiologias diversas: infecciosa, reumática ou traumática, mas só são consideradas como doenças do trabalho se por ele causadas ou agravadas. Além das lesões já consagradas e localizadas, as outras difusas e pluritissulares quando atribuídas ao trabalho são designadas no Brasil tão-somente sob o termo genérico de Lesões por Esforços Repetitivos (LER).
A última Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionadas à Saúde/CID 10/1993 (OMS, 1994) enquadra a maioria dessas perturbações e lesões no Capítulo XIII — Doenças do Sistema Osteomuscular e do Tecido Conjuntivo. No caso daquelas atribuídas ao trabalho, estão no item M.70.8 — Transtornos dos Tecidos Moles Relacionados com o Uso, Uso Excessivo e Pressão, Incluindo aqueles de Origem Ocupacional, ou quando não alusivas ao trabalho, como no item M. 70.9 — Transtornos não Especificados dos Tecidos Moles Relacionados com o Uso, Uso Excessivo e Pressão. As neurites e síndromes neurológicas compressivas estão no Capítulo VI - Doenças do Sistema Nervoso (G. 54;55 e 56), como mononeurites periféricas, transtornos do plexo braquial, síndrome do túnel do carpo etc, sendo pacífico que muitas resultam do trabalho.
A penúltima Classificação (CID-9/1975/OMS, 1978) também se referia a essas lesões, nos Capítulos XIII (727; 729) e VI (353; 354), mas sem atribuir causalidade explícita ao trabalho. Ao rever sua classificação, a Organização Mundial da Saúde evoluiu conceitualmente, admitindo que as doenças do trabalho não se restringem às de causalidade absolutamente demonstrável, sempre única e material, ditas 'profissionais' ou 'ocupacionais', mas inclui outras de causalidade múltipla e interativa no trabalho, certamente mais difíceis de se provar e comprovar.
Como se vê, além das lesões localizadas, também outros transtornos sem localização tecidual tão precisa, estão agora no CID-10 e foram sancionadas pela OMS como "perturbações pluritissulares anatômicas e ou fisiológicas, provocadas por fadiga neuromuscular consecutiva ao trabalho", tendo nos diversos países, como já se viu, designações bastante parecidas e sempre genéricas: Cumulative Trauma Disorders/ CTD, Repetitive Strain Injury/RSI, Occupational Overuse Syndrome/OOS, Occupational Cervicobrachial Disorders/OCD, Work Related Musculoskeletal Disorders/WMSDs, "Lesions Attribuables au Travail Répétitif/LATR" e Lesões por Esforços Repetitivos/LER, no Brasil.
Sob o ponto de vista etiopatogênico, na raiz desses processos estaria o trauma provocado por posturas e por movimentos voluntários ou não, variáveis quanto à intensidade, tempo e freqüência, em todo caso, desproporcionais à morfologia e à fisiologia dos tecidos submetidos às suas ações. Salvo nos traumas violentos, quando o movimento é sempre de impacto único e brusco, na maioria das situações as lesões resultam de microtraumas cumulativos, isto é, da sobrecarga estática prolongada e de movimentos de intensidade, tempo e freqüência mais ou menos regulares e cotidianos que se repetem meses e anos a fio. Movimentos de força ou de pressão contínua, movimentos de baixa força e elevado ritmo e contraturas prolongadas, desde que a somatória ganhe características traumáticas, ou seja, pouco toleráveis aos tecidos obrigados a suportálos no tempo, podem resultar em processos inflamatórios.90
As condições biomecânicas desfavoráveis do trabalho são potencializadas por outras características do trabalho moderno e automatizado, como a tensão sob a qual são realizadas as tarefas, a atenção requerida e as pressões múltiplas, algumas absorvidas, outras menos toleradas, causando franco sofrimento.
Várias das causas pressupostas têm sido objeto de mensuração, como a sobrecarga dinâmica e estática, o número e o ritmo dos movimentos, o tempo de trabalho etc. A atenção, tensão e pressões, conquanto perceptíveis, carecem de instrumentos de mensuração objetiva, restando as referências dos trabalhadores e vítimas. Kuorinka & Forcier (1995:06-11) fizeram uma revisão e análise criteriosas dos estudos editados em inglês, estabelecendo como premissas que os dados dos estudos fossem primários, que a relação com o trabalho fosse clara, que tivessem sido publicados após revisão dos editores, excluindo os estudos de caso e os artigos de síntese.
Algumas abordagens fazem do corpo que trabalha um campo experimental. Sem desmerecer os méritos possíveis na captação das respostas humanas às exigências do trabalho, historicamente elas têm caminhado para o estabelecimento de limites ou 'níveis de tolerância' acima dos quais o trabalho, nas condições postas, teriam repercussões fisiopatológicas detectáveis.
Conceitos e práticas originários dessas pesquisas podem resvalar para critérios de seleção da força de trabalho, em que presumíveis 'predispostos', 'susceptíveis' ou parcialmente incapazes poderão vir a ser excluídos sob o pretexto de evitar que adoeçam.
A necessidade ou possibilidade de conhecer e estabelecer os limites humanos ante as exigências do trabalho, sem que haja adoecimento explícito, está na ordem do dia nesses tempos de exclusão de pessoas do mercado de trabalho. É oportuno advertir que esse cientismo positivo pode ser ilusório e que a detecção de alterações fisiológicas ou psicológicas depende da escolha dos censores e sensores. A opção instrumental e metodológica nunca foi neutra; além de depender das condições materiais e objetivas para sua materialização, envolve, de antemão, a posição do pesquisador perante a pesquisa e ao objeto a ser pesquisado. E mais, envolve saber para que e quem se está pesquisando.91
De qualquer modo, o conjunto dinâmico de causas patogênicas do trabalho resulta em sofrimento físico que se exterioriza, no caso das LER, por distúrbios funcionais e lesões anatômicas localizados nos vários segmentos dos membros superiores,92 às quais se soma um crescente sofrimento psíquico, agravado pela progressiva dificuldade em fazer as coisas dentro e fora do trabalho e pelo medo da incapacidade. Assim, as LER acabam se tornando uma doença total, biopsíquica, do trabalho, mas, repita-se, socialmente determinada.
Respeitadas as diferenças de reações, típicas de cada um dos tecidos envolvidos, o traço fisiopatológico mais comum, embora não único, é o processo inflamatório, de início irritativo e assintomático, caracterizado por crescente, mas discreta exsudação, ou seja, pela presença de uma quantidade um pouco maior de líquido na região afetada, que não chega a sensibilizar as terminações nervosas e, dessa forma, não ultrapassa o limiar subjetivo e individual da dor, mediado pela produção de substâncias antálgicas, como as apomorfinas.
As percepções subjetivas (sintomas) ou objetivas (sinais clínicos) do processo vão depender de inúmeras variáveis. Além das características das estruturas orgânicas e das exigências do trabalho no tempo e lugar, a evolução para o estado de adoecimento está condicionado, dinamicamente, ao modo de cada um enfrentar essas exigências ou agressões, em suma, do modo de sentir e reagir em determinado momento e espaço. Particularmente, as LER não diferem de qualquer outra doença.
A localização das lesões nos segmentos do membro superior decorrem do seu envolvimento maior no processo de trabalho. Não por acaso, elas incidem, pela ordem, prevalentemente, nos segmentos distais, comprometendo menos freqüentemente o pescoço e o segmento cervical da coluna vertebral.93
Primordialmente, as mãos eram essencialmente órgãos de apreensão. Mesmo quando o homem primitivo passou a usar instrumentos manuais para o trabalho e com eles prolongar sua capacidade de intervenção e transformação da natureza e da sociedade, elas não perderam essa função essencial, resultante da oposição anatômica e funcional do polegar aos outros dedos. Os movimentos de extensão dos dedos e da própria mão sob o ponto de vista funcional estão subordinados filogeneticamente ao relaxamento prévio dos músculos flexores que se destinam ao ato de apreender e que são bem mais potentes que os seus antagonistas, os extensores. A alternância entre flexão e extensão e as tensões musculotendinosas não podem ultrapassar certos limites, quer em relação à força quer ao espaço de tempo entre os movimentos, sem colocar em risco a integridade funcional e morfológica dos tecidos.
São condições facilitadoras do trauma: a contigüidade de estruturas duras — como os ossos -, com outras de consistência menor e com flexibilidade, viscosidade, elasticidade e friabilidade diferentes entre si - como os músculos, fáscias, tendões, ligamentos, sinóvias, veias, artérias, sangue, linfa e nervos, todos obrigados a posições e movimentos com as características apontadas, em espaços, às vezes, estreitos, como as bainhas articulares, ou rígidos, como os percursos ósseos do ombro, cotovelo, mãos e dedos. É compreensível, pois, que os locais mais críticos sejam esses espaços, daí as lesões serem mais freqüentes exatamente nesses locais apontados. Os tendões, em particular, que dependem mais de sua visco-elasticidade que da elasticidade mais própria aos músculos, se ressentem de contraturas ou tensões prolongadas e dos movimentos rápidos e por tempo alargado, mesmo se leves, que impedem o repouso necessário à sua oxigenação e recomposição. O uso excessivo pode dar lugar à hipertrofia muscular em pontos críticos que podem constranger, progressivamente, vasos e nervos, provocando reações, sintomas e sinais mais ou menos patognomônicos.
Os sintomas mais precoces, variáveis conforme os tecidos envolvidos, são a sensação localizada de desconforto ou peso, anestesiamento, formigamento ou franca dor. Esta, de início leve, surda, inconstante, local e que aparece com os movimentos, pode se irradiar, se tornar difusa, despertada por pressões leves e acabar por se fazer espontânea e contínua. A dor é o mais freqüente, incômodo e limitativo dos sintomas.
Edemaciação, variações de calor ou cor locais, dor forte e persistente são sinais sugestivos do estado avançado das lesões, que se fazem acompanhar de redução maior ou menor dos movimentos e de incapacidade funcional temporária e até definitiva. Essa é uma conseqüência possível, acusando um grave e prolongado processo traumático.94
É esse processo traumático que provoca as lesões e é sua permanência que as agrava e pode levá-las à cronicidade e à irreversibilidade da doença. Por conseguinte, a reversibilidade depende, necessariamente, da eliminação do trauma em seu começo. Nesse momento, as alterações anatomopatológicas dos tecidos podem regredir e os tecidos se recomporem, dado o caráter predominantemente irritativo nos estados iniciais do dito processo.
A reversibilidade das lesões dos tecidos não significa, porém, que o indivíduo possa se submeter, novamente, a movimentos e sobrecargas musculoesqueléticas com características equivalentes aos anteriores. É, aliás, provável que movimentos amenos, se velozes ou contínuos, provoquem recidivas. Essas restrições impõem o reconhecimento de novos limites para essas pessoas, que podem levar ao equívoco de considerá-las cronicamente doentes, quando na realidade são pessoas sadias que não devem, como não deveriam antes, trabalhar por um tempo demasiadamente longo, acima dos limites que suportam. Se sobrevieram distúrbios e lesões é porque houve trauma e se eles retornam é porque há persistência da condição traumática.
O aparecimento de sinais clínicos e, sobretudo, de resultados positivos dos exames complementares, indicam que as lesões cursaram algum tempo e aí o prognóstico se torna mais sombrio quanto à reversão do quadro.
A Associação de Saúde Industrial do Japão, para efeito de diagnóstico do estado da doença, possibilidade de retorno ao trabalho e reconhecimento da incapacidade, classificou progressivamente as lesões pluritissulares das LER em cinco estados.95 A par da utilidade pragmática do enquadramento dos adoecidos em estados ou estádios, para efeito da possível delimitação dos seus limites e percepção de benefícios, elas podem sugerir, inadvertidamente, 'estágios', como se a doença tivesse um curso inexoravelmente evolutivo. No entanto, a reversibilidade das lesões e a involução de um estado mais avançado para outro menos grave é comum.96
O diagnóstico é sempre clínico. Na literatura internacional há poucas referências sobre exames complementares para o diagnóstico, salvo nas síndromes neurológicas compressivas em que a eletroneuromiografia é freqüentemente solicitada. Presume-se que o diagnóstico precoce torne-os desnecessários, pois nos estados iniciais os exames complementares - radiografia, ultra-sonografia, eletroneuromiografia, ressonância magnética, tomografía computadorizada —, ainda que solicitados, executados e interpretados judiciosamente, são pouco conclusivos. Quando positivos é porque as lesões são graves, só parcialmente reversíveis, ou irreversíveis.
Qualquer que seja o estado da doença, o afastamento do trabalho é uma prescrição terapêutica obrigatória. Nesse aspecto, há uma consensualidade internacional absoluta. A razão é óbvia: poupar o adoecido de continuar sujeito às agressões do trabalho que o fizeram adoecer.
O repouso forçado dos segmentos supostamente mais atingidos com o uso de próteses não goza da mesma unanimidade. As terapias físicas, conquanto prescritas com habitualidade e quase no varejo, são de duvidosa eficácia, em face da heterogeneidade das lesões, à multiplicidade dos tecidos atingidos, à localização múltipla e diferenciada, talvez pelo seu uso indiscriminado, em particular, porque pairam incertezas quanto ao estado da doença. A acupuntura ainda carece de avaliação.
Os medicamentos têm efeitos sintomáticos, voltados quase sempre para a dor. A cirurgia é uma necessidade rara e se destina, afora situações excepcionais, a reduzir a compressão nervosa ou a corrigir uma retração fibrosa. Dado ao sofrimento psíquico, o tratamento psicoterapêutico tem seu lugar.
O prognóstico está na dependência do diagnóstico e tratamento precoces e do afastamento do trabalho gerador do processo; nessas circunstâncias ele é bom. Nos estados avançados, as lesões são irreversíveis e incapacitantes e o sofrimento mental pode ser intenso.
Gênero e indivíduo
Há poucas dúvidas de que a maior prevalência das LER seja em trabalhadoras, fato denunciador, antes de mais nada, da precariedade do conceito de igualdade dos gêneros baseado na igual jornada de trabalho. As hipóteses para explicar essa prevalência desigual, habitualmente, têm se fundamentado nas diferenças biológicas e ou psicológicas entre o homem e a mulher.97
Há nessas teorias explicativas alguns elementos comuns. Além de privilegiarem o individual, constituído em 'fator', como no modelo clássico de Leavell & Clark, eles resvalam para o vago conceito de uma 'predisposição' ou 'susceptibilidade' que poderia estar ligada ao sexo. A mulher estaria mais 'predisposta' a ter LER por suas características genéticas, antropométricas, constitucionais e comportamentais. Haveria uma patogenia inata ao gênero.
É fácil perceber como essas teorias e estudos que sustentam tais hipóteses, intencionalmente ou não, podem alimentar preconceitos e discriminações e culpar os adoecidos dos dois gêneros por seu próprio adoecimento. Aliás, é corrente em empresas brasileiras onde ocorrem LER, dizer que isso é 'coisa' ou 'doença de mulher' e referir-se aos adoecidos com expressões chistosas e depreciativas.
Partem da percepção empírica e estatística de que a maioria que adoece é do sexo feminino, percepção ou constatação quantitativa que, mal elaborada, reforça o preconceito e incrimina, estimulando o sentimento de negação e ocultação do próprio adoecimento por parte dos trabalhadores sintomáticos dos dois gêneros. Os preconceitos sobre o trabalho da mulher são históricos e aqui realimentados, colaborando para que a tradicional e indesejável condição de subalternidade do gênero se mantenha e cale a dor.
Comportamentos dessa ordem costumam não respeitar as diferenças e as consideram, quando desfavoráveis à produção, como atributos negativos individuais dos grupos e populações submetidas, seja como decorrentes do gênero, cor ou raça. Com relação às exigências do trabalho, de patogênicas se fazem naturais. Inversamente, a sujeição dos que trabalham ameaçados de adoecer se converte em "fator individual de risco" para a produção.98
Entende-se que adoecer do trabalho, porém, não seja demérito ou atributo negativo. Os que assim reagem têm uma maior sensibilidade aos componentes patogênicos do trabalho e, certamente, um deles é a sujeição no trabalho. Ao adoecer, revelam a violência, mais oculta hoje do que ontem, a que estão sujeitos todos os que trabalham e se submetem, diante da necessidade e a uma condição histórica e social.
Se o gênero mulher for, de fato, o que mais adoece de LER, é porque sua sensibilidade e sua subordinação são maiores, expressando com clareza essa violência sutil do trabalho automatizado atual. A impropriedade do adoecimento não está na pessoa e muito menos no gênero, posto que a determinação lhe é externa; está no trabalho. Dada à subordinação de classe e hierárquica no trabalho, por não encontrarem outra forma de expressar o sofrimento senão com o próprio corpo, as pessoas mais sensíveis denunciam-na, adoecendo.
Mesmo que o trabalhador os tenha, o adoecimento do trabalho não é conseqüência de nenhum defeito ontogenético, nem de características de natureza biológica ou psíquica, mas, objetivamente, do trabalho. Não é, pois, acidental que, independentemente do gênero, adoeçam mais ou exclusivamente os que realizam o trabalho real e que se situam no nível hierárquico inferior das organizações, no patamar mais baixo, no 'chão' das empresas.