5. As LER no Banco do Estado de São Paulo

A acumulação de certo número defatos, isto é, a pura coleção de dados da observação e da experiência não constitui uma ciência. Osfatos' têm de ser ordenados, interpretados, explicados. Em outraspalavras, só quando é submetido a um trabalho teórico é que o conhecimento dosfatos se torna uma ciência.

Koyré (1991:271)

O Banco

O Banco do Estado de São Paulo, o BANESPA, foi fundado em 1909, sob o nome de Banque de Credit Hipothecaire et Agricole de l'Etat de São Paulo, com capital e acionistas majoritariamente franceses. Sua primeira agência foi instalada na cidade de Santos com o objetivo central de beneficiar-se da circulação do mais importante produto de exportação do País, o café, comercializado pelas casas comissionárias encarregadas de sua venda para o exterior e localizadas na cidade. Quando o Banco passou para o controle acionário do estado de São Paulo em 1926, ganhando o nome atual, continuava com essa solitária agência que contava com 22 funcionários.99

A história do BANESPA faz parte da história do desenvolvimento econômico do estado de São Paulo. Ele está presente financiando a lavoura cafeeira na crise econômica mundial de 1929 e nos bons e maus momentos que se seguiram. As duas primeiras agências em outras cidades, no caso o interior paulista, foram inauguradas em 1935. Cinco anos mais tarde já eram 18, entre elas a primeira da Capital, situada no bairro do Brás, coração da indústria têxtil, e uma primeira no estado do Mato Grosso, com a qual inicia sua expansão para fora dos limites paulistas.

No transcorrer da Segunda Guerra Mundial, o Banco foi uma das 'alavancas' do desenvolvimento industrial do estado, estimulado pelas dificuldades na importação de produtos manufaturados, instalando mais 46 agências no interior, uma no Rio de Janeiro e uma em Minas Gerais. Suas fontes de depósitos continuavam sendo a produção agrícola, como se pode deduzir pela forte presença da instituição nas cidades do interior. Sua política de financiamento privilegiava os pequenos produtores rurais, possibilitando a importação de máquinas, a fabricação de implementos e a melhoria dos transportes. O BANESPA tem sido responsável pelo atendimento dos municípios pouco ou nada rentáveis e sem atrativos para os bancos comerciais privados.

Essa política, agora acusada de assistencialista, expressava uma divisão do mercado bancário, com retorno em termos de captação de recursos e fortalecimento da condição do banco como agente financeiro comprometido com o desenvolvimento das forças produtivas no estado. A inexistência de lucros imediatos e a presença de agências 'no vermelho' não deveriam, necessariamente, desqualificar a instituição que até aqui vinha cumprindo um papel definido dentro do sistema de produção e de acordo com uma política econômica preestabelecida. Ou seja, sem deixar de ser um banco igual a qualquer outro, que busca lucro e dividendos, por se tratar de um banco estatal tem tido ele outras missões e objetivos não definidos pelos critérios da competitividade e seletividade de mercado e clientela.

Historicamente, os investimentos mais vultosos e as operações de maior risco, de retorno mais lento do capital e lucratividade mais baixa, sempre foram financiados ou tiveram aval dos bancos estatais, dada a natureza de serem bancos voltados mais para o fomento da produção que para as atividades comerciais de curtíssimo prazo.

Nem por isso o Banco descuidou desse segundo aspecto, como revela o crescimento do número de suas agências na Capital. Em 1963, ela ganha mais três agências. Em 1964, outras quatro. Em 1976, a cidade conta com 73 agências, de onde provém metade dos seus depósitos. Em 1969, passa a atuar no exterior, começando por Nova York. Prossegue a instalação de agências em países da Europa e do Japão, introduzindo-o como intermediário de operações de alta lucratividade e custos operacionais baixos, colocando-se como instituição financeira internacional para a concessão de empréstimos a empresas brasileiras e para a execução de obras públicas fora do País. Ressalte-se que a vinculação do Banco com o capital internacional não se dá pela penetração como acionista, mas por sua "atuação como mediador e co-partícipe do capital internacional no País".100

Nos primeiros anos da década de 60, o BANESPA havia incorporado nove outras instituições financeiras e ampliado sua rede de atendimento. Em 1973, graças a mais uma incorporação, o Banco se torna um conglomerado, com múltiplas atividades: empresa de crédito, de corretagem, distribuidora de títulos e valores imobiliários e agência de passagens, turismo e serviços. No último relatório/balanço publicado em 1994, ele registra escritórios e agências em Amsterdã, Frankfurt, Londres, Madri, Milão, Moscou, Lisboa, Paris, Nova York, Washington, Miami, Grand Canyon, Tóquio, Buenos Aires, Santiago, Asuncion e Ciudad del Leste.

Até o final de 1994 ele contava, no território nacional, com 1.702 dependências, das quais 1.608 no estado de São Paulo - sendo 1.099 no interior e 509 na Região Metropolitana — e 94 em outros estados. Sua clientela se constituía de 3,1 milhões, entre pessoas físicas e jurídicas. O setor privado constituía 60 % dessa clientela, 55% sendo de pessoas físicas. Dos 40 % da clientela pública, 39% eram de pessoas físicas.

Segundo o mesmo relatório, dos seus 22.101 contratos de crédito rural, 52,3% foram com os mini e pequenos produtores, 36,5% com os médios e 11,2% com grandes produtores. Do capital votante, o estado de São Paulo detém 66,7%, os funcionários 13,9% e o setor privado 19,4%. Do capital total, 55,3% são do setor privado, 33,3% do governo do estado de São Paulo e 11,4% dos funcionários. O documento assinalava a existência de 129 mil acionistas e um ativo de 14,8 bilhões de dólares.

A participação do Banco no Produto Interno Bruto (PIB) nacional era de 1,7 bilhões. Esse montante correspondia a 4% , aproximadamente, do total do sistema financeiro, estimado em 42,4 bilhões de reais. Os depósitos do Banco em 1993 totalizaram 6,8 bilhões, com um incremento de 17% em relação ao ano anterior. Seus empréstimos no mesmo ano se destinaram majoritariamente para as atividades industriais (38,1%), seguindo-se o setor de serviços (18,2%), habitação (16,9%), rural/agro/industrial (16,3%), comércio (5,6%) e pessoas físicas (4,9%). Sua participação no mercado financeiro era de 11,5% para os depósitos à vista, 8,4% dos depósitos totais e 4,2 % de poupanças.

Em dezembro de 1994, o Banco Central interveio no BANESPA. A principal razão alegada era que o banco estava apresentando um débito crescente, na casa dos 7 bilhões de reais e estaria em situação pré-falimentar, ante a inadimplência, aliás contumaz, do seu maior devedor e principal acionista, o governo do estado de São Paulo. A solução proposta pelos interventores, na época, foi a de privatizar o Banco, absolutamente coerente com a atual política econômica do governo federal. Ou o estado de São Paulo vende o seu Banco ou vende outras empresas em que é acionista majoritário. O governo estadual resistiu, assumindo em parte a responsabilidade pelo desequilíbrio financeiro da instituição, mas creditando ao próprio governo federal a outra parte, em face de sua política de juros, de tal modo elevados que aquela dívida, decorridos nove meses, saltou para a casa dos 14 bilhões e, em agosto de 96, para 19 bilhões de reais. De início, o estado de São Paulo prontificou-se a renegociar a dívida, visto ser o maior devedor do Banco. Quis fazê-lo pela metade, com a venda de bens imobiliários, mas cobrou o aval da União para refinanciar o restante, mediante contração de empréstimos externos a longo prazo. O governo federal se recusou. A solução apontada - a federalização do banco para sua posterior privatização - está em andamento, com perdas de toda a ordem para o Banco e desgaste político das administrações federal e estadual, cujos principais titulares pertencem ao mesmo partido político, desgaste tanto maior porque o governo federal tem sido mais generoso com a rede bancária privada.

Os trabalhadores

Em 1929, dava-se como existente, na cidade de São Paulo, um total de 2.620 bancários, dos quais 132 eram do BANESPA, que tinha uma única agência, a de Santos. É nessa agência pioneira, em 1932, que eclode a primeira greve de bancários do País, motivada, entre razões econômicas, pela demissão de 10 funcionários portadores ou suspeitos de terem tuberculose, atribuída às condições de trabalho.

A obrigatoriedade do concurso público para a admissão no Banco passou a vigorar em 1934 e a estabilidade para toda a categoria foi conquistada após dois anos, com a greve nacional dos bancários.

Em 1940, somavam 539 os trabalhadores do Banco, distribuídos em 18 agências. Em 1950, esse número aumenta para 1.260, em 66 agências. Em I960, passa para 2.562 e as agências para 82. Em 1970 dá um salto para 10.755 e 230 agências, e em 1990 chega aos 36 mil.

A partir desse ano, a tendência do número de trabalhadores do Banco passa a ser decrescente. De 36.022, cai para 34.843 em 1994, distribuídos em 1.702 dependências, das quais, 509 situadas na Região Metropolitana do estado de São Paulo, 1.099 no interior e 94 em outros estados. Entre dezembro de 1994 e dezembro de 1996, houve uma redução de 8.044 empregos, ou seja, o BANESPA teria, em janeiro de 1997, 28 mil trabalhadores.

Em 1976, há pouco mais de 20 anos, dos 17.312 trabalhadores do Banco, 14.702 (81,3%) eram do gênero masculino e apenas 3.240 (18,7%) do feminino. Em 1994, dos 34.843 funcionários, 18.905 (54,3%) eram homens e 15.938 (45,7%) eram mulheres. A distribuição por nível hierárquico e gênero no Banco está na tabela a seguir.

Tabela 3 - Distribuição dos trabalhadores do BANESPA por gênero e nível hierárquico, 1994

Tabela 3 - Distribuição dos trabalhadores do BANESPA por gênero e nível hierárquico, 1994

Fonte: Relatório/Balanço BANESPA, 1994.101

Como se vê, em relação ao ano de 1976, aumentou muito a participação do gênero feminino na composição da força de trabalho do Banco, cuja diferença para o gênero oposto passou a ser de apenas 9%; mas essa participação se dá, notadamente, no nível mais inferior da escala hierárquica, em que as mulheres têm uma maioria de 8,8%. Nos cargos de chefia administrativa, porém, elas são minoritárias à medida que se eleva o nível de poder.

A distribuição por escolaridade e gênero dos trabalhadores do Banco se encontra na próxima tabela:

Tabela 4 - Distribuição dos trabalhadores do BANESPA por escolaridade e gênero, 1994

Tabela 4 - Distribuição dos trabalhadores do BANESPA por escolaridade e gênero, 1994

Fonte: Relatório/Balanço BANESPA, 1994.101

Analisando-se simultaneamente as duas tabelas, algumas conclusões com respeito ao nível de escolaridade, exercício de chefia e gênero podem ser tiradas. Existem, por exemplo, 6.400 mulheres com curso superior, no entanto, apenas 2.699 mulheres exercem cargos de chefia, o que não significa, obrigatoriamente, que todas as últimas tenham formação superior. Entretanto, apesar de só haver 6.266 homens com curso superior, 8.253 exercem cargos de chefia. Conclui-se que um elevado contingente de trabalhadores com nível superior exerce funções na escala mais baixa da hierarquia do Banco e, também, que trabalhadores que não têm essa qualificação - a grande maioria do gênero masculino - ocupam cargos de chefia. A desigualdade de oportunidade tão grande entre homens e mulheres, neste caso específico, pode se dever, em parte, ao ingresso tardio da mulher no Banco. A evidência mais flagrante da discriminação está nos percentuais de 89,1 % do total de mulheres e 53,3% do total de homens do Banco que ocupam o nível mais inferior na hierarquia da empresa, ou seja, entre caixas e escriturários. A ascensão funcional na instituição é regulamentada, mas condicionada à administração superior. Dada às limitações ou à rigidez da estrutura funcional da empresa, a ascensão se dá, presume-se, pelos critérios de antigüidade e competência técnica, mas como a estabilidade resulta em um número grande de funcionários antigos em pé de igualdade, a administração acaba tendo grande poder de arbítrio sobre o regime de promoção. Para a admissão, desde os anos 60 é obrigatório ter, ao menos, escolaridade do lº grau completo. Não há exigência quanto a experiência anterior em trabalho bancário, nem mesmo de trabalho em escritório, revelando não haver qualificação especial para o exercício das funções atuais de bancário. A exigência de nível superior fica restrita ao exercício de profissões que têm quadro especial e nada têm a ver com a atividade bancária em si, como médicos, engenheiros, advogados etc. Os critérios de seleção da empresa e o conhecimento sobre escolaridade, gênero e idade permitem, em termos quantitativos, perceber alguns traços importantes do perfil desses trabalhadores. Suas crenças, ideologias e inserções político-sociais que, aliás, não fazem parte das preocupações deste estudo, têm merecido pouca atenção. Romanelli (1978) estudou-os sob alguns desses aspectos, embora com o passar dos anos o perfil desenhado tenha, de vários modos, se modificado. Historicamente, os trabalhadores têm tido um papel relevante no movimento bancário do País e sua força de representação dentro da empresa não é pequena. Elegem um dos diretores do Banco, têm um Conselho de Representantes eleitos e, por meio do acordo coletivo, lograram a constituição de um Comitê de Relações Trabalhistas e de um Fórum de Saúde bipartites e permanentes.

Além de representações sindicais múltiplas, em face da extensão nacional da empresa, os trabalhadores têm uma associação própria de abrangência nacional, a AFUBESP, que funciona quase como um sindicato de empresa, realizando um congresso anual, além de vários encontros regionais com a participação de representantes por locais de trabalho.

Tal nível de organização tem permitido, ao longo dos anos, uma série de conquistas e benefícios sociais, além de meios e instrumentos para provê-los, entre eles, uma previdência social particular e uma caixa beneficente, a CABESP, responsável pela administração das necessidades em assistência médico-hospitalar comprada ao setor privado. Essa caixa, que detém 13% das ações do Banco, é mantida pela igual contribuição dos trabalhadores e da empresa e dirigida por quatro diretores, dois deles eleitos pelos trabalhadores.

Essa representação significativa e os benefícios sociais conquistados em grande parte em decorrência da estabilidade virtual no emprego, fazem dos trabalhadores do Banco do Estado de São Paulo um segmento da categoria dos bancários que, nesses aspectos, só encontram similaridade em empresas estatais congêneres.

A familiaridade que têm uns com os outros nos locais de trabalho e em espaços comuns de assistência e lazer, anos a fio, e a consciência de que trabalham em um banco estatal - que apesar de crescente comercialização guarda ainda traços públicos - fazem com que os conflitos com seu empregador e acionista principal, o governo do estado de São Paulo, sejam negociados até a exaustão.

A recente eclosão de um número crescente de trabalhadores do Banco com Lesões por Esforços Repetitivos (LER) é reveladora de que muita coisa mudou e está mudando, mas não para melhor nessa relação empregado/empregador esgarçada, talvez já num ponto crítico de ruptura. É um modo de adoecimento, para eles, inusitado, diferente daquelas doenças habitualmente vivenciadas. Lidam agora com uma forma de adoecer que lhes é estranha, ocasionada diretamente pelo trabalho, causalidade antes exclusivamente encontrada entre trabalhadores industriais que integram segmentos econômico-sociais e culturais menos diferenciados.

As LER no Banco

Embora casos de LER no BANESPA começassem a aparecer em fins dos anos 80, somente no início da atual década adquiriram a feição de uma doença coletiva do trabalho, fazendo com que, por insistência da representação dos trabalhadores, várias cláusulas dos sucessivos acordos coletivos de trabalho fizessem alusão à doença. Em 1992 duas de suas entidades representativas, a Associação dos Funcionários do Conglomerado BANESPA e CABESP (AFUBESP) e o Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos Bancários de Campinas e Região, que juntas representavam 46 mil trabalhadores bancários, 35 mil do conglomerado BANESPA e 11 mil dos diversos bancos da citada região, adotaram conjuntamente a estratégia de elaborar diretrizes para o desenvolvimento de políticas e ações que, ao menos, diminuíssem a freqüência e os efeitos das doenças relacionadas com o trabalho, com base em conhecimentos que viessem a ser produzidos, por meio da interação das experiências de dirigentes, trabalhadores e da assessoria contratada.

Definida pelas duas entidades que se deveria dar prioridade às LER, a segunda diretriz estratégica foi sair do campo da simples denúncia e, com o conjunto dos representados, partir para a construção de um movimento que quebrasse as resistências patronais e possibilitasse a reformulação das políticas e ações do Banco, nesse caso, de negação e ocultação da doença, de recalcitrância em não notificar a ocorrência de casos e de manter-se indiferente com relação à qualidade da assistência médica prestada aos adoecidos, mediante os serviços médicos contratados pela CABESP.

Desde o primeiro momento cobrou-se da administração do BANESPA que as negociações com relação à saúde fossem permanentes e que não se esgotasse nas discussões em seus colegiados bipartites formais - o Comitê de Relações de Trabalho e o Fórum de Saúde — mas se traduzisse em políticas e ações minimamente acordadas. A perspectiva era e continua sendo a de envolver, em momentos sucessivos, bancários adoecidos e não adoecidos do BANESPA e de outros bancos, a universidade, as instituições de saúde e outras categorias de trabalhadores.

No decurso dos dois anos seguidos, até o final de 1994, quando sobreveio a intervenção do Banco Central, foi assídua a troca de experiências entre dirigentes sindicais, trabalhadores e assessoria técnica, alimentando reflexões, estudos e propostas de ação apresentados nos colegiados internos, tornadas, invariavelmente, documentos oficiais das duas entidades, indo, em seguida, para a mesa de negociações com a administração do Banco.

Insistentemente cobrou-se da administração que modificasse suas políticas e ações com relação às LER, com base em sucessivas propostas para a prevenção, qualificação da assistência médica e relocação dos adoecidos quando do retorno ao trabalho; sem êxito, sugeriu-se que o Banco deixasse de agir pontualmente e 'trabalhasse os dados' que dispunha ou os abrisse para que a causalidade e a evolução das LER fossem devidamente investigadas.102

Pressionado, em fevereiro de 1993 o Banco divulgou os primeiros números oficiais sobre a ocorrência de LER. Entre junho de 1989 e novembro de 1992 teriam ocorridos 397 casos. Em abril de 1993, admitiu que o número subira para 551. Em junho, os casos notificados passaram para 606 e em julho do mesmo ano já eram 827. A partir daí nenhum outro dado foi oficialmente informado.

Em julho de 1994, um dos dois diretores da CABESP eleito pelos funcionários atendeu informalmente ao pedido da AFUBESP, fornecendo pela primeira vez uma relação nominal dos 1.223 trabalhadores do Banco que tinham tido diagnóstico da doença entre junho de 1989 a abril de 1994. A Tabela 5 traz a relação e períodos abrangidos pelos cinco informes.

Tabela 5 - Informes de casos notificados de LER, por período, no BANESPA

Tabela 5 - Informes de casos notificados de LER, por período, no BANESPA

Fonte: * Divisão de Saúde Ocupacional e Relações do Trabalho (DSORT) do BANESPA

** Caixa de Assistência e Benefícios do Banco do Estado de São Paulo (CABESP)

Dentre os informes, os quatro primeiros dão apenas os números 'secos', totalizando os casos de LER ocorridos entre junho de 1989 e julho de 1993. O primeiro abarcou os primeiros 40 meses, com uma média de 10 casos por mês ou um caso a cada três dias. O segundo compreendeu os 40 meses anteriores e mais os cinco meses de novembro de 1992 a abril de 1993, trazendo mais 154 casos novos, com média de 30 casos ao mês, ou seja, um caso a cada dia. O terceiro informe incluiu os 45 meses precedentes e mais os meses de abril e maio de 1993, acusando 55 casos novos, com média de 27 casos ao mês ou 0,9 caso por dia. O quarto informe, de junho de 1993, acrescentou 221 casos novos, com média de sete casos ao dia. O último informe, originário da CABESP, incluía os 54 meses precedentes e registrava mais 396 novos, notificados entre julho de 1993 a abril de 1994, isto é, nos oito meses seguintes, resultando um total de 1.223 casos, com média de 50 ao mês ou 1,7 por dia.

Perceba-se a diferença e a irregularidade da freqüência média mensal de casos: 10 nos primeiros 40 meses, 30 nos sete subseqüentes, 23 nos dois seguintes; 221 somente em junho de 1993 e 50 casos por mês nos meses posteriores. Uma lenta evolução por três anos e meio que depois salta para um patamar três vezes mais elevado, por sete meses, e logo em seguida um número sete vezes acima em um único mês e uma tendência à queda nos oito meses subseqüentes.

Devido às repercussões sobre a produção, comprometida pelo número ascendente de afastamentos do trabalho e pelo aumento de despesas com assistência médica, é difícil imaginar que a empresa não estivesse acompanhando com regularidade o crescimento do número de casos de LER. A doença adquirira uma dimensão impossível de não ser notada, elevando o tom das queixas, denúncias e cobrança por parte das entidades de representação dos trabalhadores.

Nesse sentido, a socialização de conhecimentos sobre as LER entre os trabalhadores foi um elemento importante e por aí o movimento progrediu entre os bancários, como se pode constatar graças, principalmente, ao trabalho das entidades representativas dos trabalhadores, como atesta o rápido aumento das notificações de casos de LER no BANESPA e nos vários bancos estatais na região de Campinas, conforme é mostrado na tabela a seguir.

Tabela 6 - Notificações anuais de casos de LER na região de Campinas/São Paulo, antes de 1992 até maio de 1996

Tabela 6 - Notificações anuais de casos de LER na região de Campinas/São Paulo, antes de 1992 até maio de 1996

Fonte: Sindicato dos Bancários de Campinas e Região/Comunicações de Acidentes de Trabalho (CAT)/INSS

A suposição é que as administrações dos bancos, que a princípio negavam a existência das LER como doença do trabalho, a partir de determinado momento, com o crescente número de casos, embora convencidos da existência do problema, optaram pela estratégia de ocultá-lo, somente produzindo informes e emitindo CATs por pressão das entidades, pressão esta bem mais presente nos bancos estatais.

A socialização de conhecimentos e o grau de liberdade e garantias trabalhistas, bem maiores no grupo dos bancos estatais, justificam as diferenças da curva ascencional das notificações de casos de LER entre esses e os bancos privados e dos primeiros entre si, como mostra a tabela seguinte.

Tabela 7 - Notificações anuais de casos de LER em bancos estatais na região de Campinas/São Paulo, antes de 1992 até maio de 1996

Tabela 7 - Notificações anuais de casos de LER em bancos estatais na região de Campinas/São Paulo, antes de 1992 até maio de 1996

Fonte: Sindicato dos Bancários de Campinas e Região.

A atitude da administração do BANESPA, especialmente do setor específico — a Divisão de Saúde Ocupacional e de Relações de Trabalho (DSORT) — foi sempre recalcitrante. Tinha e tem os dados que permitem elaborar os estudos necessários, ao menos sobre prevalência e incidência, mas se os fez ou faz, os mantém em sigilo.

Após intervenção direta do Banco Central, em dezembro de 1994, nenhum informe foi produzido e as discussões sobre saúde e LER, mesmo nas instâncias previstas no acordo coletivo de trabalho, como o Fórum de Saúde, foram suspensas.

Nesse Fórum, realizado mensalmente, tinham assento os órgãos técnicos da administração do setor e as entidades representativas dos trabalhadores. A representação patronal, sem se negar peremptoriamente a fornecer dados regulares e mais circunstanciados, na verdade nunca o fez, restringindo-se, por todo esse tempo, aos quatro acima referidos. No início, escudava-se em uma pretensa questão legal e ética sobre o 'sigilo médico'. Isto, apesar das advertências da representação da associação dos funcionários de que acidentes e doenças do trabalho eram matéria de notificação compulsória e o empregador está obrigado pela legislação a fornecer, no mínimo, cópia das Comunicações dos Acidentes de Trabalho (CATs) às entidades representativas dos trabalhadores. A administração alegava que já as fornecia aos sindicatos dos bancários, cerca de 150 dispersos em todo o País, 35 somente no estado de São Paulo.

Reunir dados sobre as LER, fundamentados na pretensa e pulverizada emissão de cópias de CAT nas muitas dezenas de cidades onde o BANESPA tinha agências, implicaria enorme esforço nacional por parte das duas entidades de trabalhadores mais envolvidas, inexeqüível ou pouco producente quando o Banco detém todas as informações, atualizando-as, analisando-as e manipulando-as a seu modo.

Bloqueada a possibilidade de investigar a doença com base nas informações oficiais do próprio Banco, restava abrir outros caminhos. A primeira intenção foi começar estudando a incidência e a prevalência das LER entre os trabalhadores do BANESPA; nesse sentido, as CATs poderiam ser um ponto de partida, mas os contatos com o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) foram francamente desestimulantes.

A CAT é um documento oficial, de preenchimento obrigatório pela empresa, para notificar a ocorrência de acidentes ou doenças do trabalho dos seus empregados à seguradora estatal, o Instituto Nacional de Seguro Social da Previdência Social. Trata-se de um documento antigo e valioso, embora rudimentar, cuja finalidade principal é fazer com que sua perícia médica inicie procedimentos de rotina, com vistas ao arbitramento de pedidos de 'benefícios' previdenciários. O Laudo do Exame Médico (LEM), contido no verso, resume-se a algumas linhas e traz o diagnóstico de um primeiro examinador, que pode ou não ser convalidado. É um documento-síntese que funciona como passaporte entre o trabalhador e o médico que o assiste, no caso, a empresa e o INSS.

Diante dos obstáculos institucionais para conhecer a realidade da questão das LER com base nas informações da empresa ou do INSS, a opção foi colher dados a partir dos próprios trabalhadores adoecidos. Nesse particular, a relação dos 1.223 adoecidos do trabalho, obtida da CABESP em julho de 1994, foi muito oportuna, pois nela constavam nomes, locais de trabalho e endereços.

A mobilização desses trabalhadores teve propósitos que iam muito além da coleta de informações para a realização de uma eventual pesquisa acadêmica. Dentro de uma hierarquia de objetivos, esta ficava em segundo plano, como forma de validar o conhecimento de uma realidade até aqui negada e ocultada. Os principais objetivos eram conhecer e discutir coletivamente sobre o que fazer com relação aos múltiplos problemas trazidos pelas LER e, com base nas experiências dos trabalhadores, elaborar propostas de ação que fossem ao encontro de suas demandas enquanto adoecidos, além de assentar as bases de um movimento coletivo capaz de obter amplo apoio e respaldo social.

A AFUBESP convidou então todos os 1.223 adoecidos de LER oficialmente notificados ao INSS para um Encontro dos Banespianos sobre LER, realizado em 26 de agosto de 1994 na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Compareceram 350, mais que o dobro da capacidade do maior anfiteatro da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, o Paula Souza, onde se realizou a plenária de abertura.

Impressionou o fato de aquele auditório ficar superlotado de pessoas jovens e adoecidas, predominantemente do sexo feminino, expressando publicamente a sua dor, medo, revolta e esperança, juntas pela primeira vez, percebendo como eram tantas e que o drama até agora individualmente vivido era, de fato, coletivo.

Foi nos grupos de trabalho do Encontro que foram aplicados os primeiros 200 questionários do estudo de caso sobre as LER no BANESPA. Outros 400 questionários foram recebidos posteriormente por mala postal.

Discorramos um pouco sobre o caminho aberto e percorrido para a concretização desse estudo, simultaneamente 'quantitativo' e 'qualitativo', referente aos 525 trabalhadores do BANESPA com LER que responderam o questionário.

Sob o ponto de vista estatístico, os casos estudados se definem como uma 'amostra não probabilística' do total de uma população de 1.223 casos notificados ao Instituto Nacionalde Seguro Social (INSS) até 08 de abril de 1994. Não significa que essa população fosse, nem mesmo na data, a do total dos adoecidos de LER no Banco, já se presumindo na ocasião haver considerável subnotificação. Até por isso, não se cogitou que as inferências a serem elaboradas com base nos dados da amostra pudessem ser transpostas para o conjunto dos adoecidos, cujo número, de antemão, assumia-se desconhecer. Estimou-se que compareceriam, no máximo, 200 deles. Para surpresa da organização do Encontro compareceu quase o dobro, conseqüentemente tornando insuficiente o número de questionários disponíveis. Nem mesmo quando se remeteu por via postal, em um segundo momento, conforme fora prometido aos que a ele não tiveram acesso, ainda assim não se tinha a pretensão de obter informações de uma 'amostra representativa' dos adoecidos, nem de construir médias sobre suas situações, sintomas, estados de sua doença e cuidados médicos, e extrapolá-las para o universo dos casos notificados.

Convidou-se-os, e a todos mais de uma vez, com a intenção, sim, de colher o máximo possível de informações e, simultaneamente, fazer da ocasião e do próprio instrumento assim distribuído e aplicado, um elemento a mais de reflexão; a partir daí procurou-se elaborar melhor o conhecimento sobre a realidade das LER no Banco, tão pouco conhecida de todos 'do lado de cá', com a intenção deliberada de dar suporte a possíveis ações, com base nas manifestações e propostas dos trabalhadores adoecidos e mobilizados, ou seja, em processo de 'tomada de consciência'.

A empresa, apesar dos dados que retém, também só conhece fragmentariamente a realidade sobre o adoecimento e os adoecidos, condenada a observar do seu ângulo e a interpretar a seu modo os dados que manipula, obviamente na perspectiva dos seus interesses, sendo oportuno lembrar sua condição irrenunciável de empresa capitalista, a despeito do controle acionário estatal e que, como qualquer outra, explora força de trabalho e persegue o lucro. Nessa perspectiva e circunstâncias, seu modo de ver a realidade, 'do lado de lá', é duplamente parcial porque a um só tempo restrito e ganancioso.

Também duplamente parcial é o 'modo de ver' dos trabalhadores, porém seus interesses são de outra natureza. Em primeiro lugar, porque se trata de garantir a sobrevivência, em segundo, porque precisam resguardar ou recuperar a saúde perdida para continuarem a vender sua força de trabalho.

Assim, as relações conflituosas entre capital e trabalho se projetam para o campo da investigação e passam a constituir, também, parte da própria realidade a ser investigada. Uma realidade social e inerentemente dinâmica, em que as circunstâncias têm sempre um peso muito grande na determinação dos métodos de investigação, sobretudo se ela, em si, pretende ser um instrumento assumidamente para ação.

Apesar dos inúmeros obstáculos e das limitações, a aplicação do questionário mostrou-se profícua e oportuna, ao permitir um estudo quantitativo103 da amostra, expressiva e importante sob muitos aspectos daquele universo, mas que em tempo algum, insiste-se, pretendeu representá-lo e que propiciou, por acaso,104 um estudo qualitativo com base em depoimentos inesperados contidos nos questionários; por último, abriu a possibilidade de outros estudos, em andamento, inclusive o preterido, de prevalência e incidência de LER entre bancários, com menor risco de distorções.

Os Adoecidos - estado civil, gênero e escolaridade

A tabela seguinte revela a distribuição da amostra por estado civil e gênero:

Tabela 8 - Estado civil e gênero dos trabalhadores adoecidos de LER no BANESPA, 1994

Tabela 8 - Estado civil e gênero dos trabalhadores adoecidos de LER no BANESPA, 1994

Fonte: Ribeiro (1995).

Como se percebe, trata-se de uma amostra predominantemente feminina (83,2%) e casada (64,4%). Nesse último particular as diferenças de gênero não são significativas. A tabela a seguir mostra a distribuição por gênero e escolaridade:

Tabela 9 - Escolaridade e gênero dos trabalhadores com LER da amostra no BANESPA, 1994

Tabela 9 - Escolaridade e gênero dos trabalhadores com LER da amostra no BANESPA, 1994

Fonte: Ribeiro (1995).

A escolaridade é elevada, 66 % tendo curso superior completo e incompleto, 29 % o 2° grau e 6% o 1º grau. A escolaridade feminina é um pouco mais elevada: 66 % com nível superior completo ou incompleto, 30 % com 2º grau e 4 % com lº grau. No gênero masculino, 62% tem curso superior completo ou incompleto, 25% tem o 2fl grau e 13% o 1° grau.

Há mais de 20 anos que os concursos de ingresso no BANESPA exigem, como escolaridade mínima, o 2º grau completo. Essa exigência, somada aos salários diretos até recentemente razoáveis e aos salários indiretos atrativos, como assistência médico-hospitalar diferenciada, previdência especial etc, atraíram, por sua vez, muitos trabalhadores com escolaridade de nível superior, estimulando a elevá-la, aos que ingressavam no Banco, na esperança de fazer carreira.

Há que se destacar, aqui, dois aspectos relevantes. É fato inédito que profissionais com esse nível de escolaridade sejam vítimas coletivas de doenças do trabalho de modo tão flagrante. Outro, é que em outras categorias de trabalhadores os que adoecem de enfermidades tipificadas como do trabalho, o fazem no exercício de suas profissões ou ocupações, mesmo no caso das LER. Não é o que ocorreu ao menos com 65,6% dos adoecidos da amostra. Embora tendo ou fazendo curso superior que não exercem, eles adoeceram no exercício de funções e tarefas que pouco têm a ver com profissões que escolheram. Se assim não fora, não estariam no no menor topo ou patamar da empresa, isto é, no seu nível hierárquico inferior. Até onde essa falta de perspectiva, que não deve ser confundida com o conceito genérico e impreciso de insatisfação, integra a patogenia da atividade dos trabalhadores do Banco?

Uma questão de gênero?

A distribuição por gênero do total de casos de LER notificados pelo Banco e da amostra se encontra na tabela seguinte.

Tabela 10 - Distribuição dos casos de notificados de LER e da amostra por gênero no BANESPA, 1994

Tabela 10 - Distribuição dos casos de notificados de LER e da amostra por gênero no BANESPA, 1994

Fonte: Caixa de Assistência e Benefícios do Banco do Estado de São Paulo (CABESP), abril de 1994.

A predominância feminina de casos notificados e da amostra coincide e é absoluta. De uma população de 23.891 trabalhadores situados na escala hierárquica inferior do Banco, incluídos os supervisores, havia 13.239 (55,4%) mulheres e 10.652 (44,6%) homens (tabela 3), resultando em taxas de ocorrência de LER, respectivamente de 7,3% e 2,4%. Ao menos nesse Banco trata-se, portanto, de uma prevalência efetivamente maior no gênero feminino.

Existem algumas hipóteses explicativas para a diferença de prevalência de LER entre os dois gêneros, encontrada ou citada com freqüência por vários autores. Invariavelmente, elas se referem às especificidades biológicas, sexuais ou psicoafetivas da mulher, reais ou imaginárias.105 Ainda que venha a se comprovar que um ou vários desses componentes possam estar associados às LER, é pouco provável que justifiquem disparidade tão grande. Poderão, talvez, agravar os sintomas ou precipitar o processo de adoecimento, mas dificilmente causá-lo.

Pesquisas sobre causalidade biológica ou psíquica da prevalência de LER no gênero feminino devem ser estimuladas, mas a tese aqui é de que a patogenia geradora desse adoecimento está no trabalho. As LER são muito freqüentes em algumas ocupações predominantemente exercidas por homens, por requerer maior esforço físico. Portanto, é o trabalho que deve ter a prioridade das investigações e não a suposta fragilidade ou o gênero de suas vítimas. Meras especulações ou impressões podem ganhar contornos discriminatórios contra a mulher e a força de trabalho feminina, reduzindo ainda mais seu valor. Isto é preocupante, na medida em que as novas tecnologias, na forma em que estão sendo incorporadas e administradas, ao mesmo tempo em que dispensam o uso da força muscular restringem o mercado de trabalho para ambos os gêneros.

Tempo de sujeição e idade

O tempo médio de trabalho na atividade bancária ou similar, medida em anos - computando o tempo de trabalho no BANESPA - em outros bancos e em atividades correlatas, foi de 15,1 anos para o total da amostra. Para 468 (89,1 %) dos que haviam exercido atividades em outros bancos antes de entrar no BANESPA, a média cai para 13,5 anos. Para os 433 (82,5%) dos adoecidos que só trabalharam no mencionado banco, a média de tempo de serviço foi de 12,5 anos. Trata-se, portanto, de uma população que em sua grande maioria e por um tempo bastante longo esteve submetida ao mesmo tipo de trabalho.

Embora esses dados sugiram que a doença haja ocorrido após um extenso período de sujeição, o que poderia levar à conclusão precipitada de que se trata de um trabalho com baixa patogenia, é preciso levar em consideração que, na quase totalidade dos casos, ela adquiriu caráter explosivo depois de 1990. O simultâneo aparecimento da doença em tantos trabalhadores leva à hipótese de que, apesar de ser durante todo tempo o mesmo tipo de trabalho, isto é, o de ser um 'trabalho bancário', haja ocorrido mudanças em seus componentes internos e externos capazes de elevar sua patogenia. Que pode ser menor o tempo para o aparecimento dos primeiros sintomas de LER, dependendo da natureza e componentes do trabalho, outros autores já tinham assinalado.106

Um outro dado que reforça essa hipótese é a distribuição da doença por faixas de idade. A tabela seguinte permite a comparação dessa variável com uma disponível em 1990, em três faixas de idade.

Tabela 11 - Distribuição do total de trabalhadores do Banco em 1990 e dos adoecidos de LER na amostra referente ao período de 1989 a 1994, por faixa etária

Tabela 11 - Distribuição do total de trabalhadores do Banco em 1990 e dos adoecidos de LER na amostra referente ao período de 1989 a 1994, por faixa etária

Fonte: Ribeiro (1995)

Em 1990, pouco mais de 77% dos trabalhadores do BANESPA tinham menos de 40 anos e 26% menos de 30, distribuição muito semelhante a dos trabalhadores adoecidos, 74% tendo menos de 40 anos e 19% menos de 30. As taxas de-ocorrência de LER da amostra em relação ao total de trabalhadores nas três faixas etárias foram, respectivamente, de 1,1%, 1,6% e 1,6%.

Cada uma dessas populações certamente ingressou no Banco em épocas diferentes, a de maior faixa etária, acima dos 4 0 anos, tendo mais tempo de serviço no Banco. No entanto, a taxa de ocorrência de LER foi a mesma da faixa situada entre os 30 e os 39 anos, com menor tempo de Banco. Menos tempo de Banco ainda devem ter os trabalhadores abaixo dos 30 anos de idade, o que não impediu que tivessem LER, embora com uma taxa de ocorrência menor.

A população de 36.022 trabalhadores em 1990 é um dado momentâneo. Nos quatro anos que se seguiram ela decresceu para 34.795 (BANESPA, 1994), ou seja, houve nesse período uma redução de 1.365 (3,8%) trabalhadores, decorrente de falecimentos, demissões e, provavelmente em maior número, de aposentadorias. Desconhece-se como essa baixa se distribuiu, por faixa etária e por ano, e também a incidência de LER no período que nos proporcionariam análises e conclusões mais precisas. A despeito disso, a partir dos dados disponíveis, pode-se sustentar algumas hipóteses e levantar outras.

O 'tempo de sujeição', termo que se adotou em substituição à expressão 'tempo de exposição' — pretensamente neutra — é um componente importante, mas não único, da patogenia do trabalho bancário, aparentemente agravada nos últimos 14 anos e, provavelmente, mais ainda nos nove últimos anos. Pelos dados disponíveis, não há qualquer evidência empírica a se concluir, estatística ou não, de que as LER estejam relacionadas à idade, hipótese sempre lembrada, dada à presumida rigidez das articulações e ao enfraquecimento musculotendinoso, aliados a alterações endócrinas que acompanhariam a 'segunda idade'. Em aparente oposição a esta hipótese, entre os adoecidos 25% tinham mais de 40 anos e tempos de serviço invariavelmente superiores a 12 anos. Os 19% adoecidos com menos de 30 anos de idade tinham tempo de serviço, em média, menor que 10 anos. Os 56% dos adoecidos na faixa de 30 a 39 anos tinham tempo de serviço intermediário, entre mais 10 e menos de 15 anos. Entretanto, a ocorrência de LER nos últimos anos, em todas as faixas de idade e numa proporção importante na mais jovem, sugere que além do tempo de sujeição, alguma coisa mudou no trabalho, mais provavelmente em seu conteúdo e organização. A questão da não existência ou baixa ocorrência de LER antes de 1990, e agora tão elevada, indica que a hipótese se sustenta.

O adoecimento por uma doença potencialmente incapacitante em idades tão precoces remete o problema para o âmbito social, econômico-financeiro e previdenciário. As LER impõem afastamentos prolongados do trabalho, pagamento de 'benefícios' previdenciários por incapacidade permanente ou invalidez por longo período e pagamento de indenizações civis elevadas, exames complementares de alto custo e tratamento médico caro.

Função e hierarquia

A distribuição dos adoecidos por função se encontra na tabela a seguir.

Tabela 12 - Adoecidos de LER na amostra do BANESPA, segundo função, 1994

Tabela 12 - Adoecidos de LER na amostra do BANESPA, segundo função, 1994

Fonte: Ribeiro (1995)

Dos 525 adoecidos da amostra, 426 eram escriturários/caixas, 45 escriturários com outras funções (telefonistas, arquivistas, auxiliares de secretaria, digitadores etc.) e 24 eram supervisores, isto é, escriturários comissionados para a administração inferior, em geral ex-caixas que freqüentemente os substituíam e cujas tarefas não diferem muito entre si. Apenas um adoecido era da administração superior. Em suma, 95% dos adoecidos pertenciam à hierarquia inferior e apenas 0,2% à superior.

Além de pertencerem ao nível hierárquico inferior, os adoecidos da amostra eram trabalhadores que em sua grande maioria exerciam funções de escriturário/caixa e assemelhadas há longo tempo. É mais do que plausível a hipótese de que a doença ocorra prevalentemente em trabalhadores situados na hierarquia mais inferior e muito raramente nos que exercem a administração superior ou média. Haveria, portanto, uma seletividade no adoecimento por LER que tem muito a ver com a diferença hierárquica funcional, com o conteúdo do trabalho e as relações de subordinação, com o tempo de sujeição e o gênero, e nada, ou muito pouco, com a idade. A partir daí fica mais fácil entender as razões da subnotificação e taxas de ocorrência e prevalência tão desiguais.

A subnotificação

A distribuição dos trabalhadores que exercem essas funções Hierárquicas Inferiores (HI) nos estados brasileiros onde o BANESPA tem agências é mostrada na Tabela 13. Na coluna do centro está a distribuição dos casos notificados de LER, na outra coluna as taxas de ocorrência, considerando como denominador a população hierarquicamente subordinada.

Tabela 13 - População de trabalhadores situados na Hierarquia Inferior (HI), casos notificados (LER) e taxas de ocorrência no BANESPA, por estado, 1994

Tabela 13 - População de trabalhadores situados na Hierarquia Inferior (HI), casos notificados (LER) e taxas de ocorrência no BANESPA, por estado, 1994

Fonte: CABESP, abril de 1994

Pode-se observar que as taxas de ocorrência são mais elevadas e próximas entre si nos estados de São Paulo, Santa Catarina e Minas Gerais, e que as taxas dos outros estados, muito mais baixas, estão próximas umas das outras. Observe-se que 17.963 (91%) dessa população estava no estado de São Paulo, distribuída desigualmente entre a Capital, Região Metropolitana e Interior, e que a distribuição e as taxas de ocorrência de LER são desiguais, conforme a tabela seguinte.

Tabela 14 - População de trabalhadores situados na Hierarquia Inferior (HI), casos notificados (LER) e taxas de ocorrência (%) no BANESPA da Capital, Região Metropolitana (RM) e Interior do estado de São Paulo, 1994

Tabela 14 - População de trabalhadores situados na Hierarquia Inferior (HI), casos notificados (LER) e taxas de ocorrência (%) no BANESPA da Capital, Região Metropolitana (RM) e Interior do estado de São Paulo, 1994

Fonte: CABESP, abril de 1994

Nota-se que a taxa de ocorrência é maior na Capital que na Região Metropolitana e quatro vezes superior à do Interior. São disparidades muito grandes entre os três primeiros estados e os demais, e entre a Capital, a Região Metropolitana e o Interior do estado de São Paulo para que se as atribuam causas externas ao circuito médico/empresa/INSS. Se atentarmos para a progressão dos registros ou notificações no período, poucas dúvidas restarão de que as causas dessas disparidades são endógenas ao circuito.

Fortalece a hipótese a distribuição anual e a taxa de ocorrência de casos notificados pelo Banco ao INSS na região de Campinas, São Paulo, única onde tivemos acesso às cópias das CAT, fornecidas pelas empresas ao sindicato, por força de lei. Nessa região o BANESPA tinha, em novembro de 1995, 1.554 trabalhadores situados nas diversas hierarquias, e até junho de 1996, 157 casos de LER notificados (Tabela 7), resultando em uma taxa de ocorrência de 10%, ligeiramente abaixo da taxa na Capital (ver Tabela 7). Isso, sem considerar o fato de que para esse exercício comparativo, utilizamos como denominador o número total dos trabalhadores e não aqueles situados na hierarquia inferior. Ou seja, ao menos na região de Campinas, a taxa de ocorrência de LER praticamente se iguala às da Capital e Região Metropolitana.

Dos 525 adoecidos, 337 (64%) anotaram no questionário que sabiam da existência de dois a quatro colegas de trabalho que tinham sintomas, mas não haviam ido ao médico. Ou seja, havia algumas centenas de trabalhadores com sintomas presumíveis de LER que não tinham procurado um médico. Ainda que ter sintomas dessa doença não signifique, necessariamente, tê-la adquirido, é provável que muitos as tivessem. Sem dúvida, é natural um intervalo de tempo entre os sintomas de qualquer doença e a ida a um médico. No caso da nossa amostra esse tempo foi, em média, de 11 meses. Uma extensa demora, se atentarmos que, no caso, a dor é onipresente e esses trabalhadores têm livre e amplo acesso aos serviços médicos credenciados por sua caixa beneficente e se submetem, ainda que apenas formalmente, a exames periódicos anuais.

A ida ou não ao médico pode não ser uma livre manifestação da vontade. Certamente não o é quando as queixas estão relacionadas ao trabalho. A obrigatoriedade legal dos exames periódicos deixa isso bem claro. O irrompimento de casos de LER no Banco após 1989, que atingiu seu ponto máximo em junho de 1993, e as médias mensais e diárias dos casos notificados dão a impressão de que essa fluência não é espontânea. Isto é, não acontece por conta apenas do aparecimento de 'casos novos', mas pela liberação da informação, assemelhando-se à alternância do fechamento-abertura-fechamento das comportas de uma represa, resultado de pressões e contrapressões, ora favorecendo a emergência e notificação de casos, ora as reprimindo. Esse comportamento pragmático da administração tem impedido que se conheça a prevalência e a incidência das LER dentro da empresa e um acompanhamento mais próximo de sua evolução como doença.

Os depoimentos dos trabalhadores adoecidos, transcritos e analisados a seguir, parecem conduzir à tese de que a 'negação' e 'ocultação' das LER é um fenômeno bilateral. Da parte dos trabalhadores, as LER estavam e estão represados pela desinformação, negação, ocultação e medo. Medo de ficar doente, de tornar-se incapacitado para o trabalho, de ser discriminado, de não ascender na empresa, de ser demitido. Esse mesmo medo é alimentado pelas práticas cotidianos de gerentes e administradores, instrumentos principais da política organizacional de negação/ ocultação. A medida que as informações sobre a natureza da doença fluem e os trabalhadores sentem-se respaldados por suas entidades, a ida ao médico acaba se concretizando, em fluxos ou ondas, bem diferentemente do fluxo das epidemias.

O não querer ir ao médico por parte de trabalhadores sintomáticos ou a ida tardia dos trabalhadores da amostra — em média, 11 meses entre os primeiros sintomas e o diagnóstico médico , fazem parte do mesmo fenômeno de negação e ocultação que diante das pressões e contrapressões se flexibiliza, levando à subnotificação maior ou menor, mas sempre presente. São cúmplices: o médico do adoecido que não estabelece o nexo entre trabalho e as LER, o administrador local que se nega ou retarda a emissão da CAT, o perito do INSS que recusa o diagnóstico do médico que assiste o doente e o técnico do serviço especializado da empresa que sonega a informação.

O diagnóstico

A próxima tabela se refere aos diagnósticos médicos.

Tabela 15 - Número e diagnósticos dos casos de LER na amostra do BANESPA, 1994

Tabela 15 - Número e diagnósticos dos casos de LER na amostra do BANESPA, 1994

Fonte: Ribeiro (1995).

Da amostra, 145 (16%) tinham o diagnóstico genérico de Lesões por Esforços Repetitivos. Os outros 380 diagnósticos eram específicos, em geral mais de um, resultando em um total de 744 diagnósticos. O mais freqüente era o de tenossinovite, que aparecia 303 vezes, seguindo-se, pela ordem de freqüência, o de miosite, tendinite e sinovite, e as compressões nervosas, que aparecia 91 vezes. Essas freqüências acompanham as referidas por autores de outros países.107

Quanto aos 145 diagnósticos genéricos de LER, vale discutir seu significado, começando por lembrar que todos esses diagnósticos são referidos pelos próprios adoecidos, que podem estar ou não suficientemente informados da própria doença, a depender da qualidade do relacionamento com seus médicos. Depende, também, da capacidade do profissional em fazer diagnósticos mais precisos. Mas não devemos esquecer que o termo Lesões por Esforços Repetitivos (LER) refere-se, justamente, a um conjunto de lesões pluritissulares atribuídas ao trabalho que provocam uma sintomatologia difusa, não necessariamente localizada, ou seja, é um diagnóstico, em si, a par dos outros de tenossinovite, sinovite, tendinite etc, causadas ou não pelo trabalho.108

A indicação sobre os segmentos e lado dos membros superiores atingidos pelos adoecidos da amostra se encontram na tabela seguinte.

Tabela 16 - Segmentos e lados atingidos pelas LER dos membros superiores da amostra do BANESPA, 1994

Tabela 16 - Segmentos e lados atingidos pelas LER dos membros superiores da amostra do BANESPA, 1994

Fonte: Ribeiro (1995).

As lesões são mais freqüentes no lado direito do membro atingido, sempre acima de 43%, ou bilaterais, acima de 35%. Juntas, a lateralidade à direita e a bilateralidade representam mais de 90% , ou seja, a localização exclusivamente à esquerda está sempre abaixo de 10%. Os dados depõem a favor de que elas estão relacionadas ao "uso ou uso excessivo", como se refere o CID/OMS/1994 aos dois membros superiores, ou o do direito, no decurso do trabalho, etiopatopogenia atribuída também por autores anglo-saxões que chamam as LER de occupational overuse syndrome. Se elas não fossem conseqüência do uso abusivo de um determinado membro, sua localização seria aleatória, atingindo indiscriminadamente qualquer lado. Reforçam a tese o fato delas se localizarem, simultaneamente, em vários segmentos e predominarem naqueles mais exigidos, tanto que o punho é atingido em 91%, as mãos em 76%, o ombro em 75% e a coluna somente em 35 % dos casos.

A multiplicidade e a bilateralidade achadas colocam algumas questões importantes para a compreensão da doença e a impropriedade das abordagens terapêuticas tópicas, que privilegiam um ou outro segmento. Isso explica o fracasso de procedimentos fisioterápicos e cirúrgicos com enfoque localizado, descuidados da multivariedade das lesões e de sua causalidade principal, o trabalho.

O elevado comprometimento dos punhos e das mãos indica que os movimentos repetitivos impostos pelo trabalho são a causa mais próxima do aparecimento das LER, porém o elevado envolvimento dos outros segmentos, principalmente do ombro e braço sugere que a sobrecarga musculoesquelética estática, em conseqüência da postura dos membros superiores no trabalho é, também, uma causa imediata, simultânea e não desprezível, resultante da fadiga crônica, razão pela qual, no Japão, Alemanha e países escandinavos, a doença leva o nome de occupational cervicobrachial disorders.

Vejamos a tabela seguinte:

Tabela 17 - Tipos e resultados dos exames complementares realizados pelos adoecidos de LER na amostra do BANESPA, 1994

Tabela 17 - Tipos e resultados dos exames complementares realizados pelos adoecidos de LER na amostra do BANESPA, 1994

Fonte: Ribeiro (1995).

À exceção dos Raios X , com positividade referida de 47%, os demais exames complementares tiveram positividade acima de 50 % e a ultra-sonografia, positividade de 81% . Sabe-se, no entanto, que a negatividade desses exames não invalida o diagnóstico das LER, sobretudo nos primeiros estados da doença, quando eles são habitualmente negativos, porque as modificações teciduais provocadas pelo processo inflamatório não são captadas nem pelos mais sensíveis deles. A elevada positividade desses exames na amostra leva à suposição de que ela era constituída, predominantemente, de casos em estado avançado. Assim sendo, tais exames evidenciariam a gravidade da doença. Deve-se, no entanto, ter cautela para não transferir, automaticamente, essa presunção para o exercício da clínica e muito menos para classificar o estado da doença, particularmente quando se pretende arbitrar sobre incapacidade do trabalho, concessão de benefícios previdenciários e ações indenizatórias de outra natureza. Se da positividade desses exames pode-se, até certo ponto, inferir a gravidade ou o estado mais avançado das lesões, sua negatividade não as exclui, sendo possível encontrar casos graves que não tenham expressão em imagens ou traçados.

A eletroneuromiografia foi solicitada em pouco menos da metade dos casos e foi detectada positiva em um quarto deles, sugerindo envolvimento freqüente dos nervos periféricos, aliás, comum nas LER. Essa positividade, contudo, não permite concluir sobre a presença de síndromes neurológicas compressivas que careçam intervenções cirúrgicas.

Todos esses exames têm altos custos e um deles, a eletroneuromiografia, é bastante desagradável. Como as lesões atingem simultaneamente vários segmentos e são bilaterais, seus preços se elevam. A principal razão para sua utilização criteriosa não seria por tais objeções, mas por sua habitual negatividade nos estados iniciais das LER. Realizá-los ou exigir sua realização nesses estados vai de encontro ao interesse de descaracterizá-las como doença do trabalho. No entanto, dificultar sua realização quando necessária sob o pretexto de sua baixa sensibilidade, preços altos, abuso ou imperícia do médico solicitante e, ao mesmo tempo, apregoar fora do tempo e do lugar que 'a clínica é soberana, é desprezar toda a relevância do problema, especialmente as necessidades do adoecido. O que se deve querer desses exames não é convalidar ou invalidar diagnósticos, mas avaliar, quando for o caso, a estado da doença em benefício do doente.

É bom lembrar que a validação de qualquer exame complementar repousa em dois pré-requisitos: a qualidade técnica quando da sua realização e a capacidade de quem os interpreta e elabora os laudos, sobretudo quando se trata de exames de imagem. Em suma, em qualquer deles há forte componente de subjetividade. Isso tem suscitado muita discussão sobre a possibilidade, não desprezível, de erros diagnósticos nos dois sentidos, menos grave ao afirmar a existência de uma doença inexistente do que negá-la quando existe.

O sofrimento psíquico

No início de 1993, passamos a ter uma convivência assídua com os adoecidos de LER nos grupos constituídos dentro da AFUBESP e no Sindicato dos Bancários de Campinas. Essa convivência permitiu perceber a presença muito evidente de sofrimento psíquico, tal como a variação de sua intensidade. Não eram grupos terapêuticos, embora muitos dissessem, após algum tempo, que participar deles tinha tido esse efeito, provavelmente por romper com o isolamento e a discriminação sociais. A ansiedade e a vontade de cada um relatar seu caso era comum aos que ingressavam e a tolerância em ouvi-los fez-se grande, pois todos vivenciaram esses sentimentos antes de assumir uma postura mais coletiva. Conquanto houvesse sempre participantes mais ou menos permanentes, havia sempre saída de uns e entrada de novos, o grupo participativo era aberto. Se de um lado essa circunstância diminuiu o nível de coesão e de eficácia em termos de elaboração política, propiciou, de outro, o conhecimento de um contingente mais largo de adoecidos em diferentes momentos de sua experiência e a reflexão sobre alguns preconceitos e conceitos correntes.

Não se percebeu nesse espaço e em outros onde houve reuniões com os adoecidos o sentimento de fruição por 'estar encostado na caixa', ou seja, de ganhar sem trabalhar, condição vivida com grande angústia. A preocupação e insistência era quando se daria a 'volta ao trabalho', necessidade existencial muito presente. Os possíveis 'benefícios' previdenciários, como o auxílio vitalício por incapacidade definitiva, eram desconhecidos e raramente pleiteados, provavelmente porque seu pedido e gozo significariam, talvez, o reconhecimento público e irrecorrível da incapacidade, com conseqüências supostamente desfavoráveis na empresa em que trabalhavam. Eram, pois, flagrantes os sentimentos de perda e medo, que, somados à dor física, compunham os assentos do sofrimento mental.

Foi a percepção desses 'sinais' que levou a incluir as 20 questões propostas por Harding et al. (1980) no questionário respondido pelos adoecidos de LER para a detecção de distúrbios não psicóticos.109 A tese aqui defendida, que levou a se aplicar o Self Report Questionaire (SRQ-20) é a de que o sofrimento psíquico faz parte das LER e lhes dá a feição de uma 'doença total' e não local. Esse sofrimento, obviamente subjetivo, tem componentes orgânicos, como a dor física, mas tem também componentes sociais objetivos, como a incapacidade de trabalhar.

O SRQ-20 foi sugerido por seus autores para ser utilizado como instrumento de screening de populações em unidades de cuidados primários, dentro da proposta da Organização Mundial da Saúde de estudar a morbidade psiquiátrica em países em desenvolvimento. Os próprios autores o aplicaram naquele ano na Colômbia, Índia, Sudão, Filipinas e Senegal. Em Quênia e na China, em 1983.

Dos 20 sintomas suscitados pelo SRQ, quatro - dor de cabeça, falta de apetite, má digestão e sensações desagradáveis no estômago — são de ordem somática. Os demais dizem respeito mais estritamente à área psíquica. Desses, o 'sentir-se triste ultimamente', 'chorar mais do costume', 'perder o interesse nas coisas', 'realizar suas atividades diárias sem satisfação', 'não acreditar poder desempenhar um papel útil na vida', 'sentir-se uma pessoa inútil e ter idéias de acabar com a vida' são sintomas depressivos, os três últimos, sobretudo o último, severos. 'Dormir mal', 'tremores nas mãos', 'sentir-se nervoso, tenso, preocupado', 'dificuldade de pensar com clareza, de ter que tomar decisões, sentir-se cansado o tempo todo', 'cansar-se com facilidade', 'sofrer com o trabalho', 'assustar-se com facilidade' são sintomas leves que dizem mais respeito à ansiedade.

Busnello, em 1983, foi quem primeiro aplicou o SRQ-20 no Brasil, e em 1985, Mari & Williams o fizeram, avaliando sua 'sensibilidade', isto é, a capacidade de identificar os "casos verdadeiros", e sua 'especificidade', ou seja, a capacidade de identificar os "casos normais" comparando com um outro instrumento, o General Health Questionaire (GHQ-12).

O estudo de Mari & Williams foi conduzido em três unidades primárias de saúde na capital de São Paulo, envolvendo uma amostra com 875 pessoas, das quais 260 foram entrevistadas posteriormente por psiquiatras. A sensibilidade, especificidade, valor preditivo positivo, valor preditivo negativo do SRQ-20, no "ponto de corte" (cut-offpoint) entre sete e oito respostas positivas, estiveram acima de 80% e muito próximas ao GHQ-12. Constataram os autores que o instrumento se prestava para avaliar a severidade do sofrimento, posto que quanto maior o número de respostas positivas, mais severos eram os casos relacionados a exame psiquiátrico.

Pitta (1994:151-157) aplicou o SRQ-20 em uma população de 1.181 trabalhadores de um hospital geral, encontrando 20,8% de casos suspeitos e adotando como ponto de corte aquele proposto por Mari & Williams. Também o fizeram Silva Filho et al. (1992), no estudo com 1.200 bancários, já comentado neste texto, achando taxas de 25% entre os 733 que trabalhavam em agências e de 23,6% entre os que trabalhavam em uma das suas unidades administrativas e controladoras centrais do Centro de Serviços e Comunicações (CESEC) do Banco do Brasil.

Com base nas freqüências simples de respostas positivas do estudo de Silva Filho et al. com a população de bancários supostamente sadios e as da nossa amostra de adoecidos de LER, construímos a Tabela 18, obedecendo a ordem decrescente das freqüências.

Tabela 18 - Freqüências simples dos sintomas do SRQ-20 da amostra de adoecidos do BANESPA, por ordem decrescente, e da população de bancários de agências do CESEC110 do Banco do Brasil, supostamente sadios, estudados por Silva Filho et al.

Tabela 18 - Freqüências simples dos sintomas do SRQ-20 da amostra de adoecidos do BANESPA, por ordem decrescente, e da população de bancários de agências do CESEC110 do Banco do Brasil, supostamente sadios, estudados por Silva Filho et al.

Todos os sintomas dos adoecidos de LER do BANESPA têm freqüências, em geral, duas vezes maiores que a dos bancários sadios do Banco do Brasil, inclusive em relação aos mais severos, de fundo depressivo. A tabela seguinte demonstra a estatística relatada:

Tabela 19 - Freqüências e taxas acumuladas do SRQ-20 na amostra de adoecidos do BANESPA, 1994

Tabela 19 - Freqüências e taxas acumuladas do SRQ-20 na amostra de adoecidos do BANESPA, 1994

Adotando o mesmo "ponto de corte" (cut off point) de 7/8 proposto pelos autores citados, constata-se, pela Tabela 19, que 318 (60,3%) dos adoecidos da amostra apresentam oito ou mais sintomas psiquiátricos, ou seja, são suspeitos de terem problemas psíquicos; para 161 (30,6%), esta suspeita é mais forte, uma vez que acusaram a presença de 11 ou mais sintomas, e muito maior ainda para 62 (11%), que registraram 15 ou mais sintomas. Trata-se, portanto, de um contingente de adoecidos de LER que não apenas apresenta um número elevado de problemas psíquicos, como parte desse parece padecer de um sofrimento psíquico franco.

Um total de 225 (42%) desses doentes tiveram indicação de psicoterapia e 128 (24%) a estariam fazendo ou a teriam feito. Tratar-se-ia de um sofrimento produzido pela doença, tanto maior quanto sua gravidade e da perda da capacidade de trabalhar e de cuidar de si. Esse sofrimento confere às LER o caráter de um adoecimento total, do corpo e da mente, físico e psicossocial.

As terapias

Chamava a atenção o elevado número de quimioterápicos que os adoecidos tinham usado ou ainda estavam usando. Os mais prescritos foram os do grupo de analgésicos e antiinflamatórios, invariavelmente mais de três ao longo do tratamento. A diversidade e o tempo sabidamente prolongado da doença faz supor a ocorrência de efeitos colaterais, notadamente os distúrbios gástricos e, com menor freqüência, discrasias sangüíneas, que indicam os limites e as poucas alternativas da quimioterapia. Corticóides e analgésicos foram injetados localmente algumas vezes, apesar do quase consenso de que essa é uma prática pouco recomendável.

Os adoecidos da amostra foram pacientes de uma série de terapias físicas convencionais (Tabela 20), havendo razões para suspeitar de excessiva e aleatória utilização, dada a escassa experiência de médicos e flsioterapeutas em lidar com uma doença que, sem ser nova, é de eclosão recente com as características atuais, entre elas, as da multiplicidade, bilateralidade e multivariedade das lesões.

Tabela 20 - Práticas fisioterápicas convencionais realizada pelos adoecidos de LER da amostra no BANESPA, 1994

Tabela 20 - Práticas fisioterápicas convencionais realizada pelos adoecidos de LER da amostra no BANESPA, 1994

Fonte: Ribeiro (1995).

Reforça a hipótese a recorrência a terapias não muito convencionais ou mesmos alternativas, algumas absolutamente inaceitáveis pelos cânones da medicina científica. Da amostra, 245 (40%) doentes haviam feito ou estavam fazendo acupuntura e 109 (18%) Reeducação Postural Global (RPG), enquanto 41 (8%) apelaram para 'passes mágicos' ou espirituais.

No uso dessa parafernália terapêutica, o que fica evidente é sua baixa eficácia que não sabemos se dever à má indicação, ao uso desqualificado ou à inerente impropriedade. Mais grave, porém, é que 172 (32,7%) adoecidos tiveram prescrição de cirurgia e 71 (13,5%) a ela se submeteram. Sabendo que tal prática deveria ser exceção, reservada quase exclusivamente para as síndromes neurológicas compressivas irreversíveis e para as retrações fibróticas, pode-se afirmar que as indicações e cirurgias ocorreram de forma excessiva.

Incapacidade e invalidez

As LER podem levar à incapacidade temporária e, até, à invalidez. Os adoecidos da amostra ficaram, em média, 336 dias afastados do trabalho, portanto, quase um ano. Desses, 87 (19%) tiveram incapacidade permanente parcial reconhecida pelo INSS e apenas 141 (32%) haviam conseguido 'alta' previdenciária. Provavelmente porque a amostra era constituída de casos referentes a estados mais graves, somente 28 (5%) haviam se tornado assintomáticos, enquanto 156 (31%) obtiveram franca melhora, 262 (52%) alguma melhora e 58 (12%) pioraram.

Apesar de 95 % permanecerem sintomáticos, isto é, com a doença em curso, 276 (53%) retornaram ao trabalho, sendo 205 para outra função, 45 para a mesma e apenas 26 tiveram suas atividades laborais diminuídas. Se por um lado esses dados sugerem que a empresa, de algum modo — ainda que de forma confusa e aleatória e, provavelmente, com pouco êxito —, tentou relocar essas pessoas em funções e atividades que as sujeitassem menos às exigências do trabalho, por outro, é preocupante

o fato de pessoas sintomáticas, portanto doentes, estivessem trabalhando - contrariando todos os princípios legais e éticos, obrigadas a abrir mãos de direitos — com risco de piorarem e, mais ainda, de comprometerem sua saúde e sua capacidade de trabalho. Conscientes, inconformados com as perdas e por medo, porém subordinados, os adoecidos acabam se curvando à situação, voltando ao trabalho logo que podem ou, ainda, recebendo 'alta' previdenciária.