7. Resistência e movimentos sociais
... pode-se demonstrar que no tocante ao período contemporâneo, as formas inovadoras, organizacionais e tecnológicas nascem da experiência de renovar as técnicas de controle do trabalho vivo, numa época em que o paradigma do trabalho parcializado e repetitivo mergulha em crise de eficácia. Tanto no caso das soluções organizacionais (grupos autônomos, círculos de qualidade, Kan-ban) quanto nas tecnologias, trata-se de aprofundar as técnicas de organização, visando renovar os métodos tradicionais de controle do trabalho.
Coriat (1988:58-61)
Só se vende força de trabalho, ou seja, horas de capacidade técnica, quando se tem a 'saúde suficiente' para executar o trabalho requerido. A relativização da saúde, isto é, ter a saúde suficiente ou mínima para o trabalho, é uma exigência e princípio de mercado. A produção não requer, obrigatoriamente, trabalhadores absolutamente saudáveis, mas que o sejam suficientemente para garantir a produtividade esperada. O que importa não é a saúde do trabalhador, mas a saúde necessária à produção.
Se a oferta de força de trabalho com a capacidade técnica exigida for grande, como de hábito, a preferência recairá sobre os que a vendem mais barato e têm, aparentemente, mais saúde, forma do capital se precaver contra possíveis ausências ao trabalho. Tal precaução é inviável se, ao contrário, houver escassez de mão-de-obra, eventualidade bem pouco comum.
Para o capital, a saúde — entenda-se a 'saúde suficiente' — é um simples e relativizado componente da mercadoria força de trabalho. Daí o fato habitual de se contratar menores, manter na produção trabalhadores doentes ou, menos freqüentemente, recrutar doentes para trabalhar.
Saúde e capacidade técnica são componentes até certo ponto indissociáveis da capacidade de trabalho. O que, por necessidade, o trabalhador coloca à venda no mercado não é sua capacidade de trabalho, nem seus componentes a capacidade técnica e a saúde -, mas horas-trabalho. Ao fim da jornada, dá-se como pressuposto que a capacidade de trabalho e seus elementos constitutivos se mantenham íntegros para que a venda de horas-trabalho continue. É dentro desses marcos, de preservar a capacidade de trabalho para continuar a venda de horas-trabalho pelo valor possível no mercado, que se estruturam as resistências dos trabalhadores.
Há, portanto, uma contradição nodal e histórica entre capital e trabalho. Para o primeiro, a força de trabalho, como qualquer mercadoria, embora indispensável à produção, é para ser consumida e substituída, à medida que se 'desgasta como qualquer outro elemento do processo de produção. Ele a tem, pois, como peça descartável. Um conceito e prática duros e extremamente materialistas. Em oposição, está incorporado historicamente à consciência do trabalhador, que sua experiência e saber, isto é, sua capacidade técnica, independente da qualificação, é irrenunciável. Tem consciência, também, que para exercitá-la precisa ter saúde. Por isso, a capacidade de trabalho, essencialmente constituída de experiência, saber e saúde, é um bem inalienável. Não é ela que ele põe à venda, mas horas de sua utilização. E resiste para mantê-la intacta.
O capital não contrata ninguém sem alguma experiência, saber e sem um mínimo de saúde. Mesmo o singelo Schmidt, personagem simbólico do texto de Frederick Taylor, The Principles of Scientif Management, escolhido segundo ele, por ser o menos inteligente dos trabalhadores com que lidava no seu exemplo, sabia fazer o que lhe foi proposto. A qualificação vai determinar, até certo ponto, o valor da hora-trabaIho, mas findo o trabalho, a capacidade de executá-lo e o seu portador deveriam permanecer íntegros. Este é, em tese, um dos princípios ou atributos do trabalho livre que o diferencia fundamentalmente do trabalho escravo.
A consciência sobre a indissolução da relação dos dois componentes da capacidade de trabalho — a saúde e a capacidade técnica — e a ênfase histórica que a classe trabalhadora tem dado em suas lutas pela redução da jornada de trabalho, que a ambas protege, revela uma política e prática coerentes, ao contrário da suposição de alguns que vêem na redução da jornada apenas a valorização econômica da hora-trabalho. Vejamos o porquê:
A patogênese do trabalho repousa essencialmente na intensidade e tempo de sujeição ao trabalho. A intensidade do trabalho deve ser entendida como o conjunto de condições que envolvem, se impõem e cobram, continuamente, trabalho ao trabalhador, enquanto trabalha. Nestas condições estão incluídas todos os elementos materiais, físico-químicos, ambientais, temporais e também as relações de trabalho e poder, vale dizer, os aspectos organizacionais da produção. Enfim, envolve simultaneamente:, no mesmo espaço e tempo, o coletivo de trabalhadores, os materiais, instrumentos, meios e processos de trabalho e o modo como esse processo e relações são gerenciados. Para coibir no todo ou em parte a patogenia do trabalho, ou se reduz sua intensidade, ou o seu tempo ou a ambos.
Como exige o comprador, só é possível o vendedor da mercadoria força de trabalho concretizar sua venda se tem, além da capacidade técnica requerida, saúde suficiente para exercitá-la. O trabalhador protege sua integridade corporal, não só por instinto de preservação, mas também por esse imperativo do mercado. A ameaça maior é a de não poder trabalhar, seja por estar doente ou pela falta de emprego, fenômeno cada vez mais presente, à medida que o modo de produção capitalista incorpora novas tecnologias e insiste, em proveito próprio, em manter a mesma jornada de trabalho, quando não se vale da conjuntura para aumentá-la.
Em qualquer das circunstâncias, não poder trabalhar é assustador, porque socialmente marginalizante e, se definitivo, pode destruir o trabalhador e o homem que há nele, profundamente identificado nos tempos modernos com a necessidade social, familiar e individual de trabalhar. Não se trata, pois, de apenas garantir um emprego ou os benefícios de uma aposentadoria futura, às vezes precocemente precipitada por uma invalidez que involuntariamente o despoja, com enorme sofrimento, de sua capacidade de trabalho. Essa ameaça onipresente o leva a elabotar, no cotidiano, maneiras particulares e silenciosas de insubmissão. Algumas chegam a ser grupais, outras individuais, mas qualquer delas tem como objetivo, em última instância, reduzir o tempo de trabalho e quebrar a sujeição, a rotina e a monotonia inerentes ao modo de produção capitalista.
São estratégias que percorrem um amplo espectro, indo das transgressões às normas prescritas pela empresa à ausência ao trabalho sob pretextos os mais diversos. São práticas de pessoas que convivem tempo e espaço de trabalho coletivos e que, apesar da subalternidade assumida contratualmente por força da relação desigual com o contratante, guardam a marca visceral da insubmissão, do não conformismo com a usurpação do seu tempo e do seu trabalho, insubmissão, diga-se que é um dos atributos da classe trabalhadora, tanto mais positivo quanto mais se torna consciente e coletivo.
Estratégias defensivas
Os níveis de consciência e inconformismo da força de trabalho contratada são variáveis e dependem da posição ocupada na hierarquia do poder da empresa. Os mais subalternos, certamente, serão os mais insubmissos e é do nível de solidariedade e organização horizontal que possuam que depende a eficácia, sem embargo relativa, das estratégias adotadas. Desde já fique claro que a empresa também tem as suas, para arrancar o máximo de trabalho nas horas contratadas e em outras horas extras, muitas vezes não pagas, estratégias, diga-se também, muito mais eficazes, que cobrem um amplo leque que vai da cooptação, passando pela coação mais ou menos explícita, à demissão, para isso utilizando os trabalhadores das hierarquias superiores, isto é, o poder da gerência. Vamos nos reportar a algumas experiências dos trabalhadores nesse sentido.
As empresas instaladas no Centro Industrial de Aratu, no Recôncavo Baiano, há tempos registravam, e é provável que ainda registrem, altas taxas de ausência ao trabalho nos meses de dezembro, janeiro e fevereiro, quando se desenrola o ciclo de festas populares que antecedem o carnaval. Os primeiros executivos dessas empresas, originários do sul do País, demoraram a assimilar o costume, com o qual empresas de atividades econômicas mais tradicionais e de raízes locais há longo tempo conviviam. Tais festas, caracterizadas pelo sincretismo religioso, misturam componentes da religião católica, trazida pelos colonizadores portugueses, com os de cultos africanos que acompanharam os escravos. Deuses cristãos e pa¬ gãos, com o passar do tempo e o convívio em espaços sociais próximos, acabaram se confundindo, ganhando novos nomes e atributos comuns, mais humanos, dados pela população submetida de crentes e profanos que faz as festas. O ciclo, que começa em dezembro com o festejo e procissão da Nossa Senhora da Conceição da Praia, rompe com a moral, costumes, hábitos e trabalho cotidianos. Desejos e fantasias marcados pela fé, por transgressões e pela sensualidade, tornam-se explícitos a tal ponto que segundo a percepção dos parteiros e pediatras das maternidades públicas da época, o número de abortamentos aumentava nos meses seguintes e o de partos nove meses depois. As diferenças de classe e cor, momentaneamente, se aplastam, envoltas nessa euforia urbana e coletiva de som, dança, liberdade e sexo, bastante álcool e violência. Uma catarse, uma explosão social representada e consentida, uma ruptura episódica que parece ajudar a manter em equilíbrio, pelo resto do ano, as heterogeneidades e desigualdades conhecidas. A festa que culmina o ciclo orgíaco — o carnaval —, de origem imemorial, ganha novos significados em Salvador. O apaziguamento das diferenças de classe, expresso pela tolerância com a presença maciça dos dominados nas ruas, antes escravos, hoje trabalhadores livres - operários, empregados no comércio, em bancos e outros serviços, estudantes, escriturários, comerciários e avulsos - é, porém, temporário. Afinal, as diferenças são muitas e têm raízes históricas, socioeconômicas e raciais antigas e muito fortes para serem apagadas por esses rituais, em que as antinomias não deixam de estar presentes.
O ciclo de festas populares da Bahia, no que pese a influência religiosa dos colonizadores, tem mais a ver com a origem predominantemente africana e escrava da população pobre do Recôncavo, com o esgotamento da lavoura da cana-de-açúcar de antes, assentada no trabalho escravo, com o trabalho autônomo da pesca em canoas liquidada pelos navios frigoríficos de alto mar, com a venda ambulante em barracas que se espraiam nesses festejos, com a industrialização tardia e com a exploração predatória do turismo desenfreado. Resquício de uma sazonalidade apagada, certamente originária das sociedades arcaicas referida por Eliade (1993:313331), os festejos retornam todos os anos, ciclicamente, mesclando crenças, orgias, tambores e negócios. São marcos temporais e culturais absorvidos e, afinal, apropriados pelo capital, a ausência ao trabalho, que não é apenas dos trabalhadores do pólo petroquímico, sugerindo um modo de insubmissão consentida contra a opressão do trabalho cotidiano regrado e o horário do capitalismo industrial.
Conteúdo simbólico parecido teriam as condutas dos trabalhadores observados por Roy, em I960, em uma usinagem, por Ditton, em 1979, em uma panificadora, por Cavendish, em 1982, junto às operárias de uma montagem e por Clark, também em 1982 em uma indústria de açúcar de beterraba, analisadas por Hassard (1992). Estariam eles, segundo esse autor, tentando, por meio de uma série de artifícios, quebrar a continuidade do tempo e ritmo de trabalho, estabelecendo regras próprias e intercalando certo entretenimento.
Os médicos brasileiros das unidades de terapia intensiva com jornadas habituais de trabalho de 12 horas corridas, graças à sua condição de especialistas tecnicamente mais qualificados e mais raros no mercado de trabalho, à sua posição de classe e ao seu poder de barganha, lograram quarto de dormir dentro dessas unidades, eufemicamente chamado de 'repouso médico'. Tal privilégio é vedado às enfermeiras e auxiliares que têm maior carga de serviço. No entanto, ao menos em hospitais públicos ou que servem aos trabalhadores de baixa renda, é comum auxiliares e atendentes de enfermagem e trabalhadores de serviços de apoio improvisarem, à noite, lugares de dormir em áreas de menor vigilância de suas chefias, acobertando-se uns aos outros, obtendo, às escondidas, uma redução do tempo de trabalho parecido com a daqueles médicos, oficialmente admitida.
Uma instituição bancária estatal brasileira, que apresentava elevado número de licenças médicas por distúrbios mentais, as teve bastante reduzidas quando tais diagnósticos e a emissão de autorizações de licença passaram para a competência de psiquiatras. Observaram seus autores ser bem mais freqüentes as licenças médicas de bancárias nos meses de julho e dezembro, coincidentes com as férias dos filhos.138
A ausência ao trabalho mediante atestado médico foi, aliás, presumidamente obtido mais facilmente em serviços de saúde públicos ou próprios das empresas que, entre outros motivos, as teria levado a estimular a criação e posterior contratação das chamadas empresas de 'medicina de grupo' para assumirem a tarefa. Essas, ao mesmo tempo em que restringem as ausências ao trabalho, controlam a saúde dos trabalhadores, apressam sua recuperação e retorno ao trabalho e seus serviços são vistos como um benefício social até pelos sindicatos de trabalhadores.
Comentando as experiências etnográficas de Roy, Ditton, Cavendish e Clark, que quando investigavam se fizeram passar por trabalhadores comuns, Hassard (1992) vê nas estratégias desses agrupamentos observados uma tentativa de retirar o caráter linear do tempo, imposto pelas organizações no capitalismo, quebrando, por períodos curtos, o tempo de trabalho e recuperando, em parte, o domínio do que fazem. Para Roy, no entanto, essa seria uma estratégia contra o tédio e a alienação, enquanto para Cavendish e Ditton, mais uma das explicitações do conflito entre capital e trabalho.
Ao referir-se a semelhante observação de Linhart, Dejours (1987:126-132) afirma que a virtude desses 'jogos' está no seu caráter simbólico, pretendendo desafiar cadências, dominar o tempo, ser mais forte que a organização, mas adverte que embora não se deva subestimar o benefício mental dessas estratégias, não se pode deixar passar em silêncio seu modesto valor funcional e sua dimensão estreita ante o sofrimento, afirmando que a realidade do trabalho 'taylorizado' não é tanto devido ao ritmo, mas à violência que a moderna organização do trabalho exerce sobre o funcionamento mental.
Todas essas estratégias grupais ou individuais de driblar a organização do trabalho têm para Dejours (1992) caráter 'defensivo'. Sem dúvida, reduzem o tempo de trabalho, principalmente no caso do absenteísmo, mas o que Hassard e Dejours chamam a atenção, por ângulos diferentes, é de que não se trata apenas de uma mera disputa quantitativa do tempo de trabalho, mas do significado simbólico que grupos sociais e indivíduos dão a seu próprio tempo, ou seja, às suas vidas, em parte expropriadas.
A medição do tempo de trabalho está ligada ao conceito de mercadoria, estando alinhados a esse conceito o desenvolvimento da economia industrial e as inovações tecnológicas. Se há um tempo para produzir, o próprio tempo de trabalho, trabalho comprado em horas, passa a ter um valor, valor de mercadoria. Assim, quanto mais acelerada a produção, ou seja, realizada em menor tempo, mais tempo existe para produzir e maior é a acumulação do capital. Se o trabalhador que vende suas horas de trabalho é levado a produzir mais, maior ganho terá o capitalista que compra sua força de trabalho, pagando-lhe o mesmo valor. O tempo no modo de produção capitalista linear, uniforme e medido, adquire as características de mercadoria. Para Hassard, tal paradigma do tempo leva às seguintes metateorias: o tempo é mensurável, objetivo, homogêneo e divisível ao infinito; o passado não pode se repetir, o presente é efêmero e o futuro se presta a uma exploração infinita; o tempo é um recurso que se presta a uma infinidade de atividades; o tempo é vivido como uma sucessão, mas também como uma condição-limite.
Essas metateorias, para Hassard, conduzem ao paradigma de que o tempo de trabalho é um bem limitado, cujo valor aumenta à medida que se rarefaz e vice-versa. É dentro desses pressupostos que se situam as pesquisas sobre economia, processos de trabalho e as inovações tecnológicas. A fragmentação temporal e espacial dos produtos e processos era e continua sendo uma exigência do capital, a requerer a coordenação correspondente e suficientemente precisa, tanto no interior da empresa como no seu relacionamento com as demais, coordenação que pressupõe planejamento e a construção de um quadro temporal preciso. De fato, no segundo ciclo da Revolução Industrial, mais do que no primeiro, quando ainda era bastante comum o pagamento por produção, o controle do tempo de trabalho passou a ser uma questão fundamental para o capitalismo, em decorrência da forma de pagamento haver passado a ser por horas de trabalho. Conquanto essa forma de pagamento, hegemônica no atual período de desenvolvimento do capitalismo, não deva desaparecer, vêm surgindo ou ressurgindo outras formas de pagamento, mais próximas à compra por produção do que por horas trabalhadas. Essa seria uma das características do ciclo atual, designado por Harvey (1989) de "acumulação flexível". Flexibilizar a produção significaria, ao mesmo tempo, descentralização, terceirização, trabalho informal, trabalho 'autônomo', retorno ao trabalho doméstico, já bastante comum nos chamados tigres asiáticos. Um retorno, porém, muito diferente do trabalho artesanal que antecedeu a Revolução Industrial e mais parecido com as brutais exigências dos seus primórdios. O fato é que as novas tecnologias de instrumentos e as novas formas de organização do trabalho caminham, coerentemente, com o modo de produção capitalista, no sentido de fechar os 'poros' ou 'tempos mortos' da produção, quer dizer, das máquinas e dos que trabalham.
Se essas estratégias maiores, estruturais e mais dinâmicas do capital, superam as estratégias dos trabalhadores, defensivas ou não, tenham maior ou menor conteúdo simbólico no controle do trabalho e sobre suas conseqüências, elas também colocam em xeque a tese do desenvolvimento tecnológico enquanto meio de superação da patogenia intrínseca do trabalho no modo de produção capitalista.
O processo alienante do trabalho se mantém no curso do atual ciclo de desenvolvimento, mesmo que se queira dar adeus ao taylorismo e ao fordismo. Mudam, sem dúvida, vários aspectos de seu caráter, mas o conteúdo e as conseqüências do trabalho abstrato persistem. Saliente-se, no caso do Brasil, que o problema principal talvez não seja de transposição de modelos, até porque estamos fadados a incorporá-los, de uma ou outra maneira, independentemente de serem ou não adequados às peculiaridades do desenvolvimento do capitalismo brasileiro e às diferenças culturais entre nosso País e os outros, sejam eles precoce ou tardiamente industrializados.
Questionado o pressuposto das inovações tecnológicas atuarem como instrumento ou meio de resolver problemas para os quais nunca foram cogitadas, qual seja, o da eliminação da patogenia do trabalho; reconhecendo a baixa eficácia das insubmissões ou estratégias coletivas ou individuais de caráter 'defensivo', como apropriadamente identifica Dejours, forjadas espontaneamente dentro das organizações para reduzir seus efeitos; tomando-se como dado de realidade que o capitalismo parece estar longe de ter esgotado sua capacidade de expandir as forças produtivas, os trabalhadores, enquanto classe subalterna, terão que continuar elaborando movimentos de resistências para a preservação de sua capacidade de trabalho e de sua saúde. Esta é uma questão vital e é esse o seu destino.
Não se deve, contudo, acusar de omissão o movimento sindical e os trabalhadores. Além de haver uma cultura, em todas as camadas sociais — e não só no Brasil — de que saúde e assistência médica são sinônimos e que só se protege a primeira com a segunda, trata-se do desequilíbrio de poder entre capital e trabalho. Tal desequilíbrio pode ser atenuado com o conhecimento produzido e socializado dentro da classe trabalhadora, solidamente alicerçado nas ciências do homem, possibilitando que se forjem políticas e práticas autônomas em saúde que transcendam à assistência médica, às compensações previdenciárias e trabalhistas cobradas dentro do formalismo jurídico institucional e do populismo denunciatório.
Em circunstâncias ainda tão desfavoráveis não é de surpreender o ativismo, às vezes exagerado, cúmplice e talvez ingênuo, de técnicos de nível superior de dentro do aparelho do Estado ou contratados pelos sindicatos de trabalhadores, médicos em sua maioria, que se fazem ideólogos e até substitutos sindicais, com o impróprio beneplácito de dirigentes acomodados.
Agora, ante o estreito gargalo das possibilidades de negociação sobre uma pauta econômica, percebe-se uma discreta inflexão por parte do movimento sindical, quem sabe ilusória, para políticas e ações voltadas para a saúde no trabalho, que podem colocar melhor a questão no ranking das reivindicações junto ao patronato, justo quando alguns sociólogos — que não são poucos nem desconhecidos — vêm declínio e crise de representatividade do movimento sindical em todo o mundo, fragilizado, afirmam, nesse período de oligopolização e globalização.
A socialização do conhecimento e sua decodificação pela classe trabalhadora é, nos dias atuais, uma questão crucial, provavelmente mais que nos ciclos anteriores do desenvolvimento capitalista. Não se trata, porém, de apenas capacitar dirigentes sindicais e lideranças intermediárias para que assumam discursos e, quiçá, práticas 'politicamente corretas' que garantam a cadeia sucessória do seu grupo na entidade, procedimento bastante comum a todas as correntes sindicais, mas de socializar o saber para toda a classe trabalhadora, permitindo que as bases organizadas e conscientes das diversas categorias formulem propostas e negociem inclusive diretamente nos próprios locais de trabalho. Não se trata de propor o retorno à tese da 'ação direta' dos anarquistas, tentada no primeiro ciclo do desenvolvimento do capitalismo industrial no País, mas de estabelecer a unidade na ação entre base e representação sindical. Embora necessidade urgente, seus resultados não virão a curto prazo.
A dificuldade de uma política no campo do conhecimento e de uma socialização dessa ordem não se circunscreve, entretanto, às dificuldades materiais, sempre contornáveis, mas à contrapolítica de informação e dos meios de comunicação de massa, monopolizados pelo capital, que 'fazem a cabeça do trabalhador no sentido oposto.
Estratégias ofensivas
A opção histórica dos trabalhadores pela redução da jornada de trabalho como forma de defender, ao mesmo tempo, o valor do trabalho e preservar a capacidade técnica e a saúde faz sentido e é atual por várias razões.
A ameaça permanente e maior é a de não poder trabalhar. A estratégia do capital ao incorporar a mulher e o menor no mercado do trabalho, desde o primeiro ciclo da Revolução Industrial, fez dessa ameaça uma realidade candente. Os efeitos dessa incorporação sobre a vida e a saúde dos trabalhadores e, especialmente, dos filhos que permaneceram em casa, foram desastrosos, atestados pela elevada mortalidade infantil resultante. A classe trabalhadora inglesa resistiu e, afinal, obteve em 1833 uma primeira legislação específica regulamentando o trabalho da mulher e da criança, estabelecendo condições de trabalho, limites de idade e proibição de trabalho noturno para menores de 13 anos.139
Mane descreve, exemplificando, as condições de trabalho em vários ramos industriais da Inglaterra, Escócia, Irlanda e em outros países. Elas são caracterizadas sempre por jornadas acima de 12 horas que começavam de madrugada e varavam o dia e a noite. Depois de um período soturno que durou quase meio século, um primeiro esboço de legislação específica do trabalho foi feito, mas sua execução obstaculizada, seguramente porque tratou de regulamentar a parcela mais numerosa e lucrativa da força de trabalho, constituída de mulheres e menores mais recentemente ingressadas no mercado de trabalho. Foram fortes as pressões do patronato sobre os legisladores e sobre as autoridades do trabalho, e grande a desobediência.
A redução da jornada de trabalho por intermédio de uma regulamentação legislativa originalmente destinada à indústria têxtil e que em meados do século XI X se expandiu para todos os setores industriais, teve forte impacto favorável sobre a saúde dos trabalhadores, até para os "mais míopes", nas palavras de Marx, que fez uma advertência bem atual:
A história... e a luta... para se obter essa regulamentação demonstram palpavelmente que o trabalhador isolado, o trabalhador como vendedor livre de suaforçade trabalho sucumbe sem qualquer resistência a certo nívelde desenvolvimento da produção capitalista. A instituição de umajornada normal de trabalho é, por isso, o resultado de um guerra civil de longa duração, mais ou menos oculta, entre a classe capitalista e a classe trabalhadora. (Marx, 1975)
Em 1848, a França e a Alemanha foram palcos de revoltas e massacres de trabalhadores. Nos Estados Unidos, a campanha pela jornada de oito horas iniciada com uma greve em maio de 1886 teve, como saldo imediato, a prisão e enforcamento, em Chicago, dos seus principais organizadores, homenageados com a institucionalização do primeiro de maio como Dia dos Trabalhadores.
No Brasil, não foram os trabalhadores fabris que primeiro conquistaram a jornada de oito horas, mas outras categorias como as da construção civil, chapeleiros e graniteiros, após greves setoriais no decorrer de 1907. Esse aparente paradoxo se deve, principalmente, ao fato de tais categorias estarem organizadas em associações que incorporavam muitos mestres e artesãos, parte deles imigrada da Europa, e os patrões serem pequenos empreiteiros, muitos da mesma procedência e origem de classe, o que possibilitava diálogos e acordos. Maiores dificuldades tiveram as categorias fabris, como a têxtil, que lidavam com grandes, distantes e reacionários empresários, cujas empresas eram extremamente vigiadas e controladas e onde o nível de organização dos trabalhadores era baixo, em decorrência das perseguições, ameaças e prisões.140
O tema saúde subjaz nas reivindicações e lutas dos trabalhadores de todo o mundo, mas raramente teve primazia explícita nas políticas e ações sindicais. Ganhou mais presença nos períodos pré-monopolista e monopolista do capitalismo quando eles se fizeram "classe trabalhadora",141 isto é, adquiriram consciência de classe quando, paralelamente, o número e a gravidade dos acidentes e doenças do trabalho se tornaram crescentes e a sociedade começou a ficar sensibilizada com essa tragédia cotidiana, alertada por várias e freqüentes catástrofes. As doenças do trabalho, provavelmente mais numerosas, mesmo quando tipificadas como profissionais, permaneceram e ainda permanecem negadas e ocultadas.
A questão da saúde relacionada diretamente ao trabalho em nosso País tem tido uma trajetória parecida e, mais uma vez, retardada. Ela constava da pauta de reivindicações dos trabalhadores em muitas das suas greves nas duas primeiras décadas deste século século e esteve presente de modo mais ou menos recorrente na imprensa sindical, sem suscitar movimentos específicos, devido ao incipiente desenvolvimento industrial. Algumas associações de artesãos e organizações operárias começaram a prestar assistência médica e beneficente que parecem ter inspirado a criação de caixas de beneficência normalizadas pela Lei Eloy Chaves.
A greve geral de 1917 em São Paulo, da qual teriam participado 50 mil trabalhadores, de alguma maneira contribuiu com as condições de trabalho. Mas os primeiros movimentos dos trabalhadores inclinavam-se, com razão, para questões mais gerais, de sobrevivência, como salário, emprego e jornada de trabalho.142
Algumas reivindicações específicas sobre saúde aparecem nas pautas das negociações com o patronato no primeiro quarto do presente século. A primeira greve dos bancários, em Santos e no BANESPA, entre outras reivindicações, cobrava a reintegração de funcionários tuberculosos demitidos. Quando da greve nacional dos bancários em 1933, além da estabilidade no emprego após seis meses de trabalho, foi colocada a necessidade de um instituto de aposentadoria e pensões próprio, criado logo a seguir sob a denominação Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários (IAPB), sobre o qual o sindicato passou a ter forte influência.
Seguindo mais ou menos a trajetória do sindicalismo internacional, o movimento sindical brasileiro, que emergiu nos anos 30, priorizou a questão da saúde sob o ângulo da reparação, colocando à margem a questão da prevenção que colidia frontalmente com o capital industrial. Sem dúvida, a recuperação e compensação financeira da capacidade de trabalho perdida, temporária ou definitivamente, eram necessidades da classe trabalhadora, mas eram também, dentro de certos limites e por outras razões, preocupação do capital e do Estado. Os limites eram dados, justamente, pelo descompromisso com a prevenção de acidentes e doenças que requerem investimentos presumivelmente maiores do capital, como modificações profundas nos processos de produção que implicassem trocas de equipamentos, matérias-primas e regime de trabalho, e de uma intervenção fiscalizatória mais eficaz do Estado que colidisse com a doutrina liberal e os interesses do empresariado.
Todavia, o problema existia e se tornava cada vez mais grave e público, em que pese sua ocultação, até que começaram as pressões do movimento sindical mundial e nacional e das organizações internacionais relacionadas ao trabalho junto ao governo brasileiro, levando-o a normalizar a questão mediante a adoção de uma legislação específica e um aparelho próprio no âmbito do Ministério do Trabalho. Foi com base nessas pressões, tornadas exigências legais, que as Comissões Internas de Prevenção de Acidente (CIPAS) e os Serviços Especializados em Segurança e Medicina do Trabalho (SESMT) das empresas foram criados, ao mesmo tempo em que o mesmo ministério tomava para si a responsabilidade de especializar médicos do trabalho, engenheiros e técnicos de segurança. Os seguidos regimes de exceção vividos pelo País facilitaram o intervencionismo do Estado.
Durante o Estado Novo, entre 1937 e 1945, e as ditaduras militares pós-1964, a classe trabalhadora, sem representações fidedignas do ponto de vista político e sindical, passou um longo período em silêncio sobre suas condições, ambientes e relações e organização do trabalho, limitando-se a ouvir os discursos do Estado e patronais a respeito dos 'atos inseguros' e sobre a auto-responsabilidade do trabalhador quanto aos acidentes e doenças do trabalho.
A insubmissão, porém, estava viva e a questão se tornou aberta com a publicação anual das estatísticas de acidentes, incapacitados e mortos pelo trabalho, a partir de 1970. Bastou um leve afrouxamento do regime militar no fim da mesma década, para que ela emergisse com força. É nesse momento e circunstância, em 1979, que 30 sindicatos e quatro federações de trabalhadores criam a Comissão Intersindical de Saúde e Trabalho (CISAT), que dá origem, no ano seguinte, ao Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas em Saúde e dos Ambientes do Trabalho (DIESAT). É esse órgão e sindicatos iiliados, principalmente, que na década de 80 vão elaborar os contradiscursos e contrapráticas não hegemônicas na área e do qual partem os estímulos para a constituição de comissões e núcleos de saúde e trabalho em várias entidades sindicais.
Com o fim gradual e lento do regime de exceção, são esses núcleos e comissões de saúde sindicais, com apoio técnico do DIESAT e a interveniência cada vez mais freqüente cie técnicos de órgãos estatais, alguns recém-criados com a finalidade específica de intervir nessa área - os centros de referência e/ou programas de saúde do trabalhador -, que começam a tornar menos encoberta a patogenia do trabalho.
A primeira greve deflagrada no Brasil tendo como único motivo uma questão de saúde foi em uma empresa química, em 1983, a Ferro-Enamel, situada em São Bernardo do Campo, São Paulo, que produz pigmentos corantes, onde ocorreu contaminação por vapores de chumbo em mais de uma centena de trabalhadores.143 Outros movimentos importantes conduzidos por sindicatos, mas sem o mesmo nível de organização e confronto, vieram a acontecer na mesma década em várias indústrias químicas e metalúrgicas.
Para melhor compreensão dessa heterogeneidade montou-se o Quadro 2, a seguir, sobre os mais documentados movimentos coletivos de trabalhadores em torno de doenças; do trabalho, todos, exceto um, ocorridos no estado de São Paulo, considerando-se como principais fontes dois livros da época produzidos no DIESAT.
Quadro 2 - Principais movimentos de trabalhadores pela saúde ocorridos em São Paulo e Rio de Janeiro, 1970-1994
Fontes: Ribeiro & Lacaz (1984); Diesat (1989)
Tais movimentos pela saúde tiveram eficácia e importância proporcionais ao nível de organização dos trabalhadores nesse campo específico e ao envolvimento de suas bases na ação. Não há registro de vitórias, se como tal quiser se entender a satisfação plena das reivindicações colocadas por cada um, privilegiando sempre as modificações dos processos de produção e trabalho. Algumas foram atendidas e é provável que nas empresas envolvidas os níveis de sujeição aos agentes diretamente incriminados tenham sido reduzidos. Muitos trabalhadores, porém, já estavam inativos e com sua capacidade de trabalho irreversivelmente comprometida. Outros, por temerem comprometê-la com a perda definitiva da saúde, se demitiram; mas, provavelmente, o ganho maior foi em termos de 'tomada de consciência' e de identidade como classe social, de solidariedade na ação, da certeza de que é possível dentro de conjunturas dadas, mesmo adversas, refazer muita coisa por intermédio da atividade política.
Os movimentos relacionados no quadro emergem no setor industrial, à exceção dos dois últimos, relacionados às LER. Começam na cidade de Jundiaí, onde estavam localizadas muitas das maiores empresas do ramo cerâmico e prosseguem na cidade de Pedreira, onde estavam concentradas outras menores. São indústrias de louças, vale dizer, bens de consumo, cujos processos de produção em muitas das suas fases, especialmente na mistura, eram abertos e manuais, liberando extraordinária quantidade de poeira rica em silica. Vivia-se em plena ditadura militar, os sindicatos ceramistas das duas cidades não eram grandes e um deles, o de Pedreira, estava longe de ser aguerrido. O respaldo técnico do movimento foi obtido junto aos profissionais que trabalhavam no Laboratório de Provas de Função Pulmonar da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, então único serviço credenciado pela Previdência Social para realizar exames sobre a capacidade respiratória e de trabalho em seus segurados. Foi do movimento dos ceramistas de Jundiaí que nasceu a idéia do DIESAT.
Os outros movimentos no setor industrial ocorreram todos na década de 80, em indústrias metalúrgicas e químicas, duas delas siderúrgicas e pesadas, a Companhia Siderúrgica Paulista (COSIPA) e a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). Estas têm em comum certa complementariedade e integração produtivas e são contemporâneas do processo de industrialização pesada capitaneado pelo Estado brasileiro em meados do século. A exceção do movimento na Volkswagen (VW) contra a surdez, os outros foram conseqüências de intoxicações por gases e vapores, invariavelmente de caráter crônico. No caso específico do benzeno,aforaa indústria Matarazzo, absolutamente obsolescente e que acabou fechando, as intoxicações ocorreram naquelas siderúrgicas paraestatais, de grande porte, responsáveis até hoje por uma significativa parte da produção nacional de aço e laminados.
As Semanas de Saúde do Trabalhador (SEMSAT), realizadas primeiro pela Comissão Intersindical de Saúde do Trabalhador (CISAT) e as demais pelo DIESAT, percebe-se que, ao analisar os temas propostos, os oito primeiros referem-se à precariedade das condições e ambientes físicos do trabalho, comum no setor fabril, cuja causalidade do adoecimento é material. As quatro últimas debruçam-se sobre as relações sociais e de trabalho, determinantes 'modernos' e difusos do modo de adoecer dos trabalhadores nos vários setores e categorias, sem nexo direto de causalidade.
Em fins da década de 80, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) criou um órgão de pesquisa próprio no mesmo campo, de vida efêmera, o Instituto Nacional de Saúde do Trabalhador (INST), com financiamento de uma central sindical italiana. A existência de dois órgãos intersindicais atuando na mesma área, em um momento especialmente difícil para o movimento sindical, preocupado com a recessão econômica e o desemprego, fragilizou o DIESAT e o desenvolvimento de políticas e estratégias de ações sindicais unificadas na área da saúde.
O movimento sobre as LER
Independentemente de sua origem, motivação e objetivos, os movimentos sociais transitam em tempos e espaços finitos, conduzidos por forças que os impulsionam ou poderão favorecê-los, em confronto com outras mais ou menos refratárias, conhecidas ou não, que precisarão ser vencidas ou contornadas. Por isso mesmo, o caráter desses movimentos é essencialmente conjuntural, inerentemente político e dinâmico, daí sua relativa imprevisibilidade. É o exercício da política que vai definir as ações, vale dizer, os meios e instrumentos para atingir os objetivos, cuja enunciação pode ser clara, mas os resultados não necessariamente lhe correspondem. Esses dependerão das forças em jogo, das estratégias e da competência política das partes e, ainda, das negociações possíveis e necessárias a qualquer conflito.
No caso do movimento dos bancários para a construção de uma intervenção coletiva sobre a questão LER, um dos objetivos é a redução do impacto negativo do processo e administração do trabalho sobre a saúde dos trabalhadores da categoria; mas, a despeito dos aspectos técnicos que envolvem a questão desse e de outros modos de adoecimento do trabalho, sua gênese, por ter uma determinação social e política, impõe saídas de igual teor.
As técnicas de prevenção voltadas para as condições, ambientes e administração do trabalho e de cuidados médico-assistenciais são mediações que devem ser incorporadas ao processo de negociação política. Se assim não fosse historicamente em todos os ciclos de desenvolvimento e crise do capitalismo, não haveria carências de investimentos nos campos da medicina, engenharia, ergonomia e de outras ciências e disciplinas afins, para evitar acidentes e doenças do trabalho cujas medidas técnicas são razoavelmente conhecidas. Se as doenças do trabalho podem ser tecnicamente prevenidas e seus danos reparados, então por que a necessidade de movimentos sociais dessa ordem?
Medidas de caráter técnico quando não postas em execução, significam que o embargo é de outra natureza, em geral político-econômico e social, começando, concretamente, pelo desinteresse do capital pela saúde do trabalhador fora da contingência de ser um dos componentes da capacidade de trabalho, ou seja, a saúde só é lembrada quando sua perda ou a luta em sua defesa põe em risco a produção.
A subordinação da técnica à política não significa abdicar da primeira e dos seus anteparos científicos, indispensáveis a qualquer intervenção eficaz no campo da saúde e do trabalho; mas para torná-los disponíveis é preciso que o movimento social os preceda. Não fosse assim, inexistiriam razões para que a intervenção cogitada tivesse mais esse caráter, de ser coletiva, proposição sabidamente difícil por requerer uma ativa participação e negociações difíceis entre os sujeitos.
Depreendem-se, dessas premissas, outras duas: como movimento social, será sempre um processo condicional, passível de acontecer, como já vem acontecendo, mas que não se sabe até onde irá quanto aos seus objetivos, declarados ou não. Essa narrativa é pois sobre uma experiência inacabada, porque em curso. Ela se faz sobre o andamento da construção dessa experiência, iniciada em 1992, que toma como marco referencial principal o primeiro Encontro sobre LER dos trabalhadores do BANESPA, realizado em agosto de 1994, quando os adoecidos, suficientemente sensibilizados, passaram a responder o questionário sobre LER proposto e, dessa forma, contribuíram com depoimentos aqui analisados. Passados cinco anos é preciso relatar e comentar o que se seguiu.
A estreita convivência com os bancários adoecidos ao longo desses anos, e a análise dos depoimentos, permite-nos afirmar ter havido uma inflexão importante das perspectivas e comportamentos dos adoecidos do BANESPA no sentido de superar, ao menos em parte, a subjetividade do seu sofrimento, tendendo substituí-la pela intersubjetividade e por propostas que refletissem um conjunto de preocupações e demandas novas e coletivas. O conhecimento que passaram a ter de que são vítimas de um adoecimento coletivo e do trabalho, afora o alívio de despojá-los da autoculpa inculcada, aponta para modos de minimizar seus problemas e de, ativamente, antecipar-se ao adoecimento de outros, vale dizer, dos companheiros de trabalho que vivenciam a mesma ameaça. O desdobramento esperado e que vem acontecendo é o do envolvimento dos trabalhadores não adoecidos do Banco, de outros bancos e de segmentos sociais externos, inclusive de outras categorias de trabalhadores, ainda insuficientemente ou não sensibilizados e mobilizados.
Para os bancários adoecidos, a questão LER vem agora sendo vista sob outra ótica, como questão de todos, ou seja, de saúde pública. O desafio é como transformar esse conhecimento em ação. Saem da sua trincheira individual para uma outra, coletiva é verdade, mas ainda uma trincheira, ocupada quase unicamente por eles, os adoecidos. A preocupação agora é como deslocar-se dessa posição defensiva e quebrar o confinamento social a que têm sido levados.
Uma das ações está implícita na escolha dos locais dos dois referidos Encontros, a Faculdade de Saúde Pública e a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, explícita no passo seguinte, de obter da Universidade o reconhecimento institucional de que as LER são um sério e crescente problema de saúde pública, a demandar pesquisas e ações correspondentes à sua importância. Nos corredores da Faculdade de Saúde Pública, às vezes se falava da doença. Profissionais dos serviços de saúde do trabalhador que acorrem ao seus cursos comentavam que as LER, nos cinco últimos anos, passaram a ser responsáveis, no mínimo, por mais de um terço da demanda dos serviços onde trabalham. Começaram, então, a aflorar projetos de dissertação de mestrado e teses de doutorado sobre o tema; mas ainda não havia um compromisso maior da Universidade de se fazer sujeito e interferir nos limites de sua responsabilidade e competência.
A assunção de uma responsabilidade institucional começou com o convênio celebrado entre a Universidade de São Paulo (USP) e a Secretaria de Estado da Saúde, tendo como executor a Faculdade de Saúde Pública, para a realização de uma série de oficinas de trabalho sobre LER, em 1995, que resultou no livro intitulado LER: Conhecimento, Práticas e Movimentos Sociais,144 que foi largamente distribuído aos sindicatos de trabalhadores, empresas, serviços de saúde e bibliotecas.
Em 1996, a Universidade de São Paulo, ainda por intermédio da Faculdade de Saúde Pública, foi mais além. Juntamente com a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, com a Federação dos Bancários do Estado de São Paulo e a do Mato Grosso do Sul, o Sindicato dos Bancários de Campinas e Região e a AFUBESB, elaboraram o Programa para a Prevenção e Detecção, Diagnóstico e Tratamento Precoces e Seguimento das LER na Categoria Bancária. Em curso, ele merece alguns comentários pelo que inova em termos de estratégia de enfrentamento das LER no campo da saúde pública.
Em primeiro lugar, a prevalência das LER é desconhecida e o levantamento dos casos já diagnosticados, por categoria, uma necessidade. Sem isso é impossível conhecer a prevalência e incidência da doença. Outra dificuldade para o encaminhamento da questão LER, enquanto problema de saúde pública, é o diagnóstico tardio, que leva às conseqüências relatadas. No caso dos trabalhadores do BANESPA, que foram estudados, entre os primeiros sintomas e a ida ao médico, o tempo médio foi de 11 meses. Discutiu-se as razões dessa demora e não se retornará ao assunto. A necessidade de reduzi-la é impositiva. Provavelmente, a socialização de conhecimentos que as entidades representativas dos trabalhadores, principalmente, vêm promovendo, devem-na ter encurtada. Ainda assim, os diagnósticos continuam a ser tardios, até porque as causas da protelação da ida ao médico não foram suficientemente aclaradas e ainda persistem. Parece, portanto, bastante pertinente ir ativamente em busca de doentes ocultos ou ocultados, como faz o programa em curso da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e da Secretaria de Saúde do Estado, juntamente com aquela Federação e aquele sindicato.
Essa busca ativa deve surpreender a doença em seus estados iniciais, quando a reversão das lesões é possível. Independentemente desse objetivo, a aproximação com uma parcela considerável de bancários e a convocação da subpopulação suspeita, não necessariamente doente ou doente em estado incipiente, além de trazer novos conhecimentos, deverão alargar o movimento. Isso constitui um passo adiante na construção da intervenção social pretendida, envolvendo agora a Universidade e a principal gestora da saúde no estado, a Secretaria de Saúde.
Além de circunstâncias favoráveis e construídas no decurso do movimento, há, no entanto, muitos embargos, a começar pelas razões que fazem das LER uma doença emblemática.
Sabe-se que o sistema financeiro brasileiro vive momentos tumultuados, anunciados com uma intervenção que parecia exemplar no Banco do Estado de São Paulo, colocado na berlinda como símbolo da inépcia e corrupção, por ser, apregoava-se, uma instituição financeira sob controle administrativo e acionário estatal. Mal acontecera, sucederam-se os grandes escândalos do Banco Nacional, do Banco Econômico, do Bamerindus e outros, todos de propriedade privada. Outros, menores, foram à falência ou absorvidos. Nos bancos privados o Banco Central interval, injetando enormes quantias de dinheiro, ficando com sua parte 'podre', isto é, créditos de difícil ressarcimento e, após 'saneá-los', tem diligenciado a passagem do seu controle acionário para outros grupos econômicos maiores, aparentemente mais sólidos, alguns sob controle acionário internacional.
Decorridos quase cinco anos, a intervenção do BANESPA se manteve. Sua dívida com a União - na verdade, dívida do governo do estado de São Paulo com o Banco — superou a casa dos 20 bilhões de reais e continua crescendo, tornando cada vez mais difícil uma solução sem traumas. Uma das medidas já em curso tem sido a demissão maciça de; trabalhadores. De dezembro de 1994 a dezembro de 1996 houve uma redução de 8.044 empregos no Banco, suspeitando-se que ela seja direcionada para os 'menos produtivos', entre os quais, presume-se, os adoecidos de LER.
A 'crise bancária' não tem impedido os bancos de obterem grandes lucros, substituindo o ganho inflacionário pré-adoção do Real com o aumento das taxas de serviços, responsáveis em nove dos maiores bancos privados pela fantástica receita de 4,3 bilhões de reais em 1996. No entanto, o desemprego dessa área aumenta: 127.647 empregos foram eliminados nas instituições bancárias entre dezembro de 1994 e dezembro de 1996. Certamente o temor do desemprego tem crescido, precipitado o retorno ao trabalho de adoecidos e inibido a revelação dos sintomáticos ainda sem diagnóstico médico. Provavelmente um número menor dos que ainda não hajam se revelado doentes estarão buscando o atendimento médico e o reconhecimento do seu estado, receosos da perda de presumidos direitos; outros continuarão a ocultá-lo, mantendo-se trabalhando, com receio de uma possível demissão.
Em maio de 1996 tomou posse uma nova diretoria na AFUBESP, de oposição à anterior. Suas prioridades políticas eram outras e a questão da saúde e sobre as LER foi arrefecida. Diante dessa mudança é compreensível que a mobilização dos trabalhadores do BANESPA entrasse em compasso de espera e a expansão do movimento se desse em outros bancos e lugares.
Fora desse espaço e lugar mais próximo e conhecido, quais as perspectivas e limites desse e de outros movimentos suscitados por essa doença?
Um dos fatos relevantes diz respeito à explosão das Lesões por Esforços Repetitivos nos primeiros anos da década. Pela primeira vez colocou-se no topo das doenças do trabalho uma sem agente causai imediato e definido, conferindo à questão nuanças muito particulares.
Negadas pelas empresas e com um número cada vez maior de vítimas, elas despertaram um movimento social para o seu reconhecimento como doença do trabalho que precisou, ao mesmo tempo, de convincente conteúdo denunciatório e de quem lhes desse ouvidos. Seu trânsito, no começo, foi facilitado por ocorrer em uma unidade vital - os centros de processamento de dados de grandes empresas estatais -, em uma subcategoria de trabalhadores, os processadores e analistas de dados, nova, pequena e valorizada no mercado de trabalho, no início de difícil reposição - parte empregada em instituições financeiras e vinculada à categoria bancária e aos seus sindicatos -, parte empregada em grandes organizações de serviços públicos e vinculada a um sindicato recente. Foi este sindicato que fez do reconhecimento oficial das LER uma das suas bandeiras de afirmação e luta. Não sem razão, a portaria ministerial designou a doença, restritamente, como 'tenossinovite em trabalhadores de processamento de dados' e fez tefetência explícita ao sindicato demandante. Observe-se que as LER emergiram em categorias de trabalhadores que pertencem a estratos médios da população, com nível de representação, organização e prestígio social acima da média.
Em um segundo momento, a ocorrência crescente de casos em outras categorias e ocupações tornaram flagrante o caráter restritivo da portaria ministerial, fazendo com que outros sindicatos dos trabalhadores, tendo à frente os citados, buscassem as instituições normalizadoras e médico-assistenciais, entre elas os serviços estatais especificamente voltados para a saúde do trabalhador. Muito do mérito pela rapidez do reconhecimento das LER por parte da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo se deve a essa afiança e, no nível central dessa secretaria, aos ouvidos acolhedores dos seus técnicos, que entenderam a legitimidade da demanda, resultando na publicação, em 1992, de uma portaria com uma norma técnica específica, de âmbito estadual.
As LER têm muitas outras características, além das descritas. Uma delas é ocorrerem, praticamente, em todas as categorias de trabalhadores nos três setores da economia, a grande maioria no industrial e de serviços, na qual se concentram 90 % da força de trabalho do País, ou seja, em torno de 60 milhões de trabalhadores. Há em tese, portanto, a possibilidade de o movimento se tomar mais amplo diante de ameaça tão onipresente.
Mas os sindicatos que representam as categorias mais sujeitas a adoecer de LER têm, particularmente no campo da saúde, níveis de organização, estratégias e perspectivas muito heterogêneas. Na categoria metalúrgica, em que se supõe que a prevalência seja das mais elevadas, uma vez que é a mais numerosa entre as categorias de trabalhadores das indústrias de transformação e várias vezes maior que a bancária, o conjunto dos seus sindicatos tem dado uma atenção muito aquém que a gravidade da questão merece.
Mesmo na categoria bancária, a primeira ou segunda em número de casos notificados e hegemônica no movimento, é visível a heterogeneidade quanto às preocupações dos sindicatos no campo da saúde, havendo desde sindicatos indiferentes ao tema saúde e LER, até os que o assumiram com maior decisão, colocando-se na vanguarda do movimento.
Tomando-se como referência os sindicatos bancários paulistas nos últimos cinco anos, seus jornais vêm aumentando a freqüência de notas sobre LER e têm sido editadas cartilhas e alguns textos mais densos, como monografias, revistas e livros. Além dessa ação no campo da informação, um número menor tem investido para a qualificação de dirigentes no campo da saúde, constituindo núcleos e contratando assessoria técnica em saúde. É assentada nessa organização incipiente que vêm sendo formuladas políticas e estratégias e executadas algumas ações. Apesar da escolaridade e da maior possibilidade de circulação de idéias na categoria bancária estar bem acima da maioria das demais categorias de trabalhadores, a concepção hegemônica que faz da saúde é de um bem que pode ser preservado ou recuperado, via prestação de serviços médico-assistenciais, no particular, não diferindo da dos demais trabalhadores e da população em geral, com a circunstância que logram obter essa assistência com maior liberalidade e, aparentemente, com melhor qualidade.
No entanto, embora alguns sindicatos bancários como o de Campinas - que há 15 anos já patrocinava um dos primeiros estudos sobre trabalho bancário e saúde mental - se coloquem numa posição avançada quando discutem as relações do trabalho com a saúde e, a par disso, seja do senso comum entre dirigentes e trabalhadores que c trabalho provoca, precipita ou agrava outras doenças não diretamente relacionadas com o trabalho, eles não haviam antes experimentado a situação de adoecerem coletivamente de uma doença do trabalho, fato tão corriqueiro para trabalhadores industriais. Além de inédita e muito recente, essa desagradável experiência não deixa de ser restrita aos que adoecem, não significando que os outros, minimamente informados, hajam tomado consciência que poderão adoecer de LER. Talvez pela falta de 'tomada de consciência', o sentimento de discriminação com relação aos companheiros adoecidos seja ainda tão forte.
Pretender, portanto, a partir de trabalhadores adoecidos das diversas categorias - estigmatizados, muitos deles inativos e desempregados, impropriamente chamados de 'portadores' — criar um movimento organizado sob a forma de associações autônomas parece ser um equívoco político, um desvio ideológico e uma estratégica de fôlego curto.
É imperioso que as reivindicações dos adoecidos sejam conduzidas de forma coletiva e organizada, mas que transitem, obrigatoriamente, pelos sindicatos de cada categoria, em que pese a omissão e até a resistência ativa de alguns. De qualquer sorte, as formas coletivas de organizar necessidades precisam antes ter uma homogeneidade que transcenda, em vários quesitos, o fato de estar doente ou ter tido uma doença.
Mais de 70% dos casos de LER notificados estão nas categorias metalúrgica e bancária, que detêm a hegemonia do movimento sindical. Destas, a metalúrgica comanda as duas mais poderosas centrais de trabalhadores, a CUT e a Força Sindical. Não será, portanto, por falta de organização, nem por inexistência do problema que considera-se a mobilização tão incipiente em ambas e tão desigual entre elas, ainda que sindicatos de uma e outra estejam filiados à mesma Central.
O movimento sobre a questão LER se situa em um novo contexto e conjuntura, tanto que tiveram início em empresas estatais de serviços, começando nos centros de processamento de dados e se espraiando no ramo bancário, onde a doença apareceu com as características atuais. As entidades que o conduzem são, num primeiro momento, os sindicatos de processamento de dados e num segundo, os sindicatos e associações de bancários, respaldados em assessorias técnicas próprias.
Em síntese, com relação às LER, as organizações de trabalhadores industriais que têm uma história recente e uma presença hegemônica na construção de movimentos coletivos sobre as doenças do trabalho provocadas por agentes físicos e químicos, vêm se comportando de maneira excessivamente tímida, se comparada a dos 'trabalhadores de escritório'.
Crê-se que essa timidez não se deva à comentada desmobilização diante do desemprego e da redução de postos de trabalho e ocupações, que tanto perseguem metalúrgicos e químicos como bancários. A dificuldade, parece, está na assimilação da patogenia do trabalho que não esteja vinculada a uma materialidade inescusável, como a das poeiras, do ruído, das substâncias químicas e dos riscos de acidentes típicos, aliás, ainda à espera de soluções. Tal assimilação requer maior capacidade de abstração e elaboração teórica. Essa dificuldade existe para os bancários também, mas em menor grau, entre outras razões, pelo fato deles se confrontarem com uma única doença tipificada como do trabalho, ainda que pela primeira vez em sua história.
A superação dessa dificuldade teórica é necessária e possível e terá de ocorrer, primeiramente, nas diversas categorias de trabalhadores atingidas para que o movimento sobre as LER, em cada uma, guardando sua homogeneidade e peculiaridades próprias, inclusive quanto à especificidade de suas demandas, encontre espaço para crescer, antes de desaguar em um estuário comum.
Já se disse que a socialização do conhecimento é um elemento importante e que o movimento dos bancários sobre as LER progrediu, tanto no BANESPA como nos vários bancos na região de Campinas, graças à ação, no primeiro caso da AFUBESP e, no segundo, do Sindicato de Campinas, como atesta o aumento de casos notificados demonstrado nas tabelas apresentadas.
Se o movimento sobre a questão LER nas outras categorias de trabalhadores, em que a subnotificação deve ser muito elevada, ganhar uma organização mínima, é bem provável que o movimento se expanda para outros ramos da produção industrial, como o metalúrgico, químico, têxtil, o de calçados, o de marcenaria e para os do setor terciário, como o das comunicações, telefonia, supermercados, controladoras de cartão de crédito etc.
No entanto, em que pese a abrangência das LER, que as torna um problema de saúde pública, não se constituem presença ameaçadora a todos as classes e categorias, como as epidemias. São doença seletiva que se estende horizontalmente, atingindo, prevalentemente, os trabalhadores que ocupam o nível mais baixo da hierarquia das empresas e que executam tarefas manuais. Não têm, pois, expansão vertical, poupando os que se situam nas escalas hierárquicas superiores. Fogem, portanto, aos padrões das doenças pestilenciais ou epidêmicas clássicas, que crescem nos dois sentidos e ameaçam a todos. Apesar de vitimar dezenas de milhares de trabalhadores jovens, também não carregam consigo a necessidade de intervenções drásticas e investimentos em tecnologia específica para as conter ou fazê-las desaparecer, pois não colocam em risco imediato a produção e à reprodução do capital, em decorrência do excesso de força de trabalho disponível no momento do atual ciclo de desenvolvimento do capitalismo. Mas é uma bomba de efeito retardado, diante do crescente número de adoecidos e incapacitados. Essas são outras razões para considerar as LER uma doença emblemática desse ciclo, embora não nos inclinemos a consigná-las como uma epidemia.
As perspectivas de um movimento social dessa ordem estão condicionadas a conjunturas econômico-políticas e sociais muito dinâmicas que não se alteram, apenas, em uma única direção. Para que ele ganhe vida e força é necessário, pois, vontade e organização dos trabalhadores e um amplo apoio social.
Os componentes internos e conjunturais do movimento dos trabalhadores sobre a questão LER apontam para algumas perspectivas favoráveis, mas há outros elementos externos que se contrapõem a seu crescimento, subordinados ao ciclo atual do capitalismo e seu avanço no País. Assim sendo, até onde movimentos dessa ordem terão espaço para evoluir?
Abstraindo o desinteresse ou incúria do patronato que sempre se beneficia com o excedente da força de trabalho, talvez em quantidade nunca vista e por um tempo que ninguém prevê até onde possa ir, é fato que as agências governamentais, previdenciárias e as seguradoras dos países industrializados, além de várias empresas, estão preocupadas com as LER, diante de seus crescentes custos e da elevada expectativa de sobrevida dos incapacitados, quase invariavelmente pessoas abaixo de 45 anos de idade.
Atentando que a negação, ocultação e subnotificação, artifícios tradicionalmente usados, não foram suficientes para dar conta do problema, os sistemas reparadores previdenciários e de assistência médica e o próprio Estado têm interesse na questão e terão de atuar e participar de negociações da classe trabalhadora com a patronal, afim de tornar a situação menos vexatória e explosiva. As medidas preconizadas no Japão e nos países escandinavos, abstraindo as diferenças históricas dos seus movimentos sociais e de trabalhadores, caminham nessa direção, até o momento com resultados parcimoniosos. Esperança maior talvez seja a redução da jornada de trabalho, que acabaria cumprindo vários objetivos, como diminuir acidentes e doenças do trabalho de qualquer ordem, reduzir o número de desempregados e evitar maiores tensões e turbulências sociais.
Em países periféricos ou semiperiféricos, como o Brasil, as dificuldades são maiores por várias razões, entre as quais a desigualdade de forças no conflito entre o capital e o trabalho e a falta de tradição de negociação entre patronato e classe trabalhadora na área da saúde e do trabalho, sempre barganhada por cláusulas econômicas nos acordos coletivos. A tentativa mais recente do INSS de descaracterizar as LER percorre o caminho tradicional de eximir-se. A expectativa de que os 'selos de qualidade' das ISOs venham a ser instrumentos para a melhoria das relações e organização do trabalho parece excessiva, mesmo para aquelas doenças atribuídas às condições e ambientes materiais de trabalho.
No entanto, o avanço da tese do Estado mínimo, das propostas de desregulamentação das relações do trabalho e sociais e a doutrinação sobre a maximização dos princípios do mercado fazem parte de uma conjuntura pouco alentadora, ainda que as ações do Estado nunca tenham ido muito além de um comportamento burocrático e de baixa eficácia em questões dessa natureza, apesar da legislação e das normas regulamentadoras vigentes.