Capítulo 9

A República Romana

Nestas páginas introdutórias, não empreenderemos uma história da Roma republicana, mas sim uma breve análise da maneira pela qual a família, a religião e a disciplina moldaram o caráter romano; como os conflitos de classes e gerações moldaram o governo romano; e como a colaboração entre o caráter e o acaso permitiu que Roma dominasse o mundo mediterrâneo.

Então, em primeiro lugar, o povo.

O povo

Quem eram os romanos? Eles eram as tribos indígenas – úmbrios, sabinos, latinos... cultivando a terra e guerreando em Roma e nos arredores. Eram os ousados imigrantes vindos da Europa Central, galgando os Alpes e se espalhando pela região dos lagos Maggiore, Como, Garda, até o fértil vale do rio Pó. Alguns podem ter sido aventureiros da Ásia Menor que vieram se misturar aos nativos para formar os obscuros etruscos da antiga Toscana. Ademais, inúmeros descendentes de gregos desenvolveram animados assentamentos ao pé daquela bota mágica chamada Itália.

“Os melhores juízes do país registram que, quando ítalo se tornou rei de Enótria, o povo dali mudou o nome para italiano”, conta Aristóteles. Enótria era a ponta da bota italiana, tão abundante de uvas que essa palavra significava “terra do vinho”. Segundo Tucídides, Ítalo foi rei dos sículos, que conquistaram a Sicília. Do mesmo modo que os romanos chamaram todos os helenos de graeci, gregos, a partir de uns poucos graai que haviam migrado do norte da Ática para Nápoles, igualmente os gregos estenderam gradualmente o nome Itália a toda a península ao sul do rio Pó. A maior parte da população vivia da agricultura; uma parte mínima constituía a precária população das cidades. A competição com escravos diminuía o salário dos trabalhadores livres e forçou muitos a viverem em favelas. Havia poucas greves entre os trabalhadores livres que precisavam competir pelos empregos; mas, entre os escravos, os levantes eram frequentes. A “Primeira Guerra Servil” (139 a.C.) não foi a primeira, e Espártaco não foi o último escravo a morrer numa revolta (71 a.C.).

Aos escravos, somaram-se criminosos para construir as grandes estradas que estimularam o comércio, aceleraram o movimento dos exércitos e das ideias e finalmente unificaram a Itália. Em 312 a.C., Ápio Cláudio dirigiu a construção da Via Ápia, entre Roma e Cápua; ano após ano, ela foi ampliada até alcançar o Adriático, na atual Brindisi. Em 241 a.C., Aurélio Cota iniciou a Via Aurélia, que fez de Nice um posto avançado de Roma.

A ordem social, a qual era a fonte e o sustentáculo da civilização, era mantida pela família, clero, escola, leis e as variadas armas do estado. No início da República, a ordem familiar baseava-se num poder quase absoluto do pai; só ele tinha todo o direito perante a lei; até mesmo o dote da esposa lhe pertencia. Se fosse acusada de crime, a esposa era entregue ao marido para julgamento e punição; ele poderia condená-la à morte por infidelidade ou pelo roubo das chaves da adega. Sobre os filhos ele tinha poder de vida e morte, ou de vendê-los como escravos; sobre os escravos, o poder era ilimitado.

Aos poucos, a opinião pública, os costumes, o conselho dos clãs e o desenvolvimento da segurança e das leis refrearam esses direitos do pater familias. Se não fosse isso, esses direitos durariam até a morte do chefe. Provavelmente, os direitos refletiam as guerras frequentes e, por conseguinte, a necessidade de se instigar o hábito a uma disciplina rígida. Os direitos eram mais rígidos no papel do que na prática e não impediam uma profunda e natural pietas, ou afeto reverente, entre pais e filhos. A estatuária dos túmulos romanos é tão terna como a da Grécia e a nossa.

Como protetores, legisladores e forças morais, pairava sobre a família uma multidão de deuses concebidos sem forma humana, mas como espíritos que exerciam poder sobrenatural sobre todas as coisas e todas as fases e os períodos da vida. Assim, a deusa Vênus simbolizava a vida e a continuidade da família, pelo fogo da lareira; esse fogo jamais poderia morrer e deveria receber uma parcela de todas as refeições. Sobre as lareiras havia pequenos ícones representando os deuses da família: Lares, que guarda­vam os prédios e os campos, e Penates, ou deuses do interior, que prote­giam o que a família acumulara nos seus armários, depósitos e celeiros.

Invisível, porém forte, pairando sobre a soleira, ficava o deus Jano, dota­do de dois rostos não para enganar, mas para observar a entrada e a saí­da em todas as portas. Ensinava-se às crianças que a mãe trazia em si um Juno, como espírito da capacidade de gerar uma vida nova, e que o pai tinha um genius, como espírito do seu poder de procriar. A criança também tinha genius ou Juno, como anjo da guarda e como alma, uma semente divi­na num invólucro mortal. Por toda parte, havia Di Manes, ou sombras bon­dosas, máscaras mortuárias penduradas nas paredes, advertindo a criança para não se desviar dos caminhos dos antepassados e lembrando-lhe, como Burke lembrou aos revolucionários franceses, que a família é composta não só daqueles poucos indivíduos que ainda estão vivos, mas também dos que foram antes ou serão algum dia membros da sua carne, e que, portanto, fazem parte da multidão espiritual e da unidade eterna. Em Roma, a família governava o Estado.

Quando a criança saía de casa, achava-se mais uma vez e por toda parte na presença dos deuses. A própria terra era uma deidade, às vezes Tellus, ou Terra Mater, “Terra Mãe”; às vezes Bona Dea, ou “Boa Deusa”, que dava ventres férteis às mulheres e aos campos. No campo, havia um deus que ajudava em todas as tarefas ou estava em todos os lugares: Pomona para os pomares, Saturno para a semeadura, Ceres para a colheita, Vulcano para a feitura do fogo. Outras religiões podem ter olhado para o céu, e os romanos ad­mitiam que ali também havia deuses, porém a piedade mais profunda e as expiações mais sinceras voltavam-se para a terra como mãe da vida, morada dos mortos e força mágica da germinação da semente.

Até o ar e o solo da Itália estavam repletos de divindades: espíritos da estação, como Maia, deuses das águas, como Netuno, duendes da floresta, como Silvano, e deuses que habitavam as árvores. Havia espíritos de procriação: Tutumus era a divindade tutelar da concepção; Lucina protegia a menstruação e o parto; Príapo era um deus grego que rapidamente se incorporou à Itália; donzelas e matronas sentavam-se sobre o membro masculino dessa estátua para garantir gravidez; sem causar escândalo, figu­ras desse deus adornavam muitos jardins, usadas para trazer fertilidade ou boa sorte.

Sobre todos os deuses e homens reinava Júpiter, ou Jove, deus do céu, ou Sol, também chamado de Júpiter Tonante, quando representado por um raio de trovão, ou ainda de Júpiter Pluvioso, a chuva. Quase tão anti­go na consideração popular era Marte, o deus da guerra; todas as tribos da Itália denominavam um mês em sua homenagem. Esses deuses mais im­portantes eram identificados com divindades vin­das da Grécia: assim, Atena virou Minerva, Hera passou a Juno, Afrodite tornou-se Vênus, Vulcano, Marte, Ártemis transformou-se em Diana. Jamais uma religião tivera tantos deuses; Petrônio reclamou que em algumas cidades da Itália havia mais deuses do que homens.

Será que a religião ajudou a moral romana? Em alguns aspectos, ela nos parece imoral: os ri­tuais sugeriam que os deuses recompensavam não a bondade, mas sim presentes e fórmulas; as orações eram quase sempre para obter bens materiais ou vitória militar. Contudo, a reli­gião garantia a ordem e a força do indiví­duo, da família ou do Estado. Antes que a criança pudesse aprender a duvidar, a fé esculpia-lhe o caráter na disciplina, no de­ver e na decência. A religião aplicava sanções divinas e apoiava a família; instilava nos pais e nos filhos um respeito mútuo e uma piedade jamais superados. Investia de solenidade religiosa todas as fases da vida pública e misturava estado e intimidade com os deuses, de modo que piedade e patriotismo tornavam-se uma coisa só, enquanto o amor pelo país alcançou um sentimento mais forte do que em qualquer outra sociedade conhecida na his­tória. A religião compartilhou com a família o mérito de formar o caráter férreo que durante quinhentos anos ajudou Roma a governar o mundo clássico.

O governo

Na sua longa e vasta experiência, Roma experimentou muitas formas de governo e serviu de exemplo a outras tantas. Os conflitos familiares e os desvios sexuais dos reis, talvez lendários, fizeram os romanos se fartarem da monar­quia. Tarquínio, o Soberbo, o último rei, tinha um filho irresponsável que estuprou a virtuosa Lucrécia – Lívio e Shakespeare contaram essa história. Lucrécia tornou pública sua infelicidade e se matou. A classe patrícia à qual ela pertencia rebelou-se para vingá-la; depôs Tarquínio, estabeleceu uma re­pública e escolheu dois cônsules para governarem sob as ordens de um se­nado supremo, composto de anciãos que alegavam descender dos funda­dores do Estado.

Assim como os fundadores, ou patres, os patrícios romanos não pre­tendiam que a nova república fosse uma democracia. O direito de votar era limitado aos senhores de propriedades; a expressão res publica signifi­cava “riqueza comum”. Os chefes dos velhos clãs, ou famílias, formavam um senado de cerca de trezentos membros, reabastecido pela admissão automática de cônsules e tribunos que completassem os seus mandatos com distinção. Esses primeiros senadores não viviam no conforto e no luxo, como alguns dos seus descendentes; muitas vezes, punham as pró­prias mãos no machado ou no arado; eram vigorosos, alimentavam-se de comidas simples, usavam roupas tecidas em casa. A plebe admirava esses senadores mesmo quando eles a combatiam e referia-se a quase tudo o que lhes pertencia usando o termo classicus – “clássico, ou da classe mais elevada”.

Próximo a esses senadores em riqueza, porém bem abaixo em poder po­lítico, ficavam os equites – literalmente cavaleiros da ordem equestre, na verdade a classe dos negociantes. A palavra populus, “povo”, só incluía essas duas classes superiores. Abaixo ficavam os escravos e os plebeus. Quan­do Roma iniciou a sua carreira de conquistas, os prisioneiros de guerra eram vendidos em número crescente para aristocratas, homens de negó­cios e até mesmo para os plebeus prósperos.

Os plebeus eram o que sobrava dos romanos além de patrícios, homens de negócios e escravos. Consistiam de agricultores, trabalhadores, negociantes, profissionais, artistas, professores, banqueiros e outros. Alguns eram ricos, outros poderosos, a maioria, pobre; todos achavam que a lei romana não lhes fazia justiça; a maior parte da história romana antes de César é a história da luta dos plebeus por uma cota de participação no poder. Combateram a rígida lei que permitia a um credor manter em cárcere privado um devedor insolvente, vendê-lo como escravo e até mesmo matá-lo. Exigiram que as terras conquistadas em guerra fossem distribuídas entre os pobres, em vez de serem dadas ou vendidas aos ricos a preços simbólicos; que os plebeus fossem elegíveis para a magistratura e o sacerdócio e tivessem representantes da sua classe entre os funcionários mais graduados do governo. O senado tentou frustrar a agitação fomentan­do guerras, mas ficou chocado ao ver ignoradas as suas convocações para o serviço militar.

Em 494 a.C., grandes massas de plebeus “agruparam-se num certo Monte Sagrado” no rio Anio, a cinco quilômetros de Roma, e declararam que não lutariam nem trabalhariam em defesa de Roma até que suas rei­vindicações fossem atendidas. Temendo que um ataque externo pudesse coincidir com a revolta interna, o senado concordou com o cancelamento ou redução das dívidas e com o estabelecimento de dois tribunos eleitos como defensores da plebe. Foi a batalha inicial de uma guerra de classes, destruída pela república.

O passo seguinte na ascensão da plebe foi exigir leis definidas e escritas, livres da interpretação e do controle eclesiástico. Depois de longa resistên­cia, o senado (em 454 a.C.) enviou uma comissão de três patrícios à Gré­cia para estudar e relatar as leis de Sólon e de outros legisladores. Quando retornaram, a Assembleia dos Centuriões – isto é, do exército – escolheu dez homens para formularem um novo código. Essa comissão transfor­mou as antigas leis de Roma, baseadas nos costumes, nas famosas Doze Tábuas, e as exibiu no Fórum para que todos lessem. Foi a primeira forma escrita do conjunto de leis que constituiria uma das mais significativas contribuições de Roma à civilização.

O poder do senado manteve-se supremo, apesar desses avanços em direção à democracia. O custo de se conquistar e manter um cargo não remunerado desqualifica os pobres. Os plebeus mais ricos cooperavam com os patrícios, vigiando movimentos radicais. Os negociantes concor­davam com a política patrícia porque esta lhes proporcionava contratos para obras públicas, abertura para explorar colônias e províncias, além de os in­cumbir de receber impostos. O senado assumiu a liderança da legislação, e o costume deu-lhe autoridade bem maior do que ditava a lei.

Quando as relações exteriores se tornaram importantes, a administra­ção firme e habilidosa do senado aumentou-lhe o prestígio e o poder. Em 264 a.C., quando Roma entrou num século de lutas com Cartago pelo controle do Mediterrâneo, foi o senado que levou a nação à vitória, ape­sar de todos os desafios; o povo em risco submeteu-se com poucos pro­testos à sua liderança e ao seu domínio.

A conquista

Roma passou a potência militar porque se viu encurralada entre o mar e numerosos estados italianos totalmente independentes e que apreciavam a guerra. Com armas e diplomacia, Roma combateu ou comprou esses estados, absorvendo a maioria sob o seu domínio. Dois problemas subsistiram: a Itália, ao norte do Pó, ainda estava sob o controle dos gauleses. Até os romanos a chamavam de Gália Cisalpina – Gália aquém dos Alpes; ao sul de Roma ficavam Nápoles, Pesto, Crotona, Síbaris e Tarento – todas extremamente orgulhosas das suas origens e culturas gregas e da sua riqueza comercial.

Temendo que Roma ficasse poderosa devido às suas vitórias, essas cidades apelaram para Pirro, o brilhante rei jovem de Épiro, para que viesse auxiliá-las. Esperando dividir a Itália para sentir-se seguro, Pirro atraves­sou o Adriático e derrotou os romanos em Heracleia (280 a.C.) e Ásculo (279 a.C.); mas as suas perdas foram tão desencorajadoras que Pirro admitiu: “Outra vitória assim e seremos destruídos”. Assim surgiu a expressão “vi­tória de Pirro”. No entanto, ao ser informado de que os invasores cartagineses estavam sitiando Siracusa, Pirro conduziu o seu exército esgotado até a Sicília e expulsou os cartagineses de quase todos os postos que ocupavam na ilha. Porém, o governo dominador de Pirro ofendeu os gregos sicilianos, que pensavam poder ter liberdade sem ordem; Pirro retornou à Itália di­zendo: “Que prêmio eu deixo para ser disputado entre Cartago e Roma!”. Enfrentou os romanos fortalecidos em Benevento (275 a.C.) e sofreu uma derrota tão decisiva que se retirou para Épiro. Três anos depois foi morto numa batalha em Argos, aos 46 anos.

Agora Roma era senhora de toda a Itália, porém do outro lado daque­le mar estreito havia um poder mais antigo e rico. Mercadores fenícios, navegando entre o Oriente Próximo e a Espanha, estabeleceram postos de comércio intermediários no litoral norte da África. A lenda, assim como a Eneida de Virgílio, conta que Dido, filha do rei de Tiro, fundara perto de Ática um povoamento semita chamado Kart-hadasht, ou Cidade No­va, que os romanos modificaram para Cartago. Os povoadores contrata­ram ou escravizaram os nativos africanos, desenvolveram agricultura em larga escala, construíram uma esquadra mercante e transportaram merca­dorias entre Tiro e Sídon, Espanha e Bretanha. Por volta do século III a.C., Cartago transformara-se na mais rica cidade do mundo mediterrâneo, com uma população de 250 mil habitantes e uma receita vinte vezes maior do que a de Atenas no apogeu; tinha palácios e templos tão esplên­didos que inspiraram, dois mil anos depois, a prosa iluminada de Salambô, de Flaubert. O governo era conduzido por uma Assembleia popular, e os mercadores dominavam o senado. O orgulho secreto dessa cidade-estado era a sua marinha de quinhentos quinqueremes que controlavam todo o sudoeste do Mediterrâneo. Quando essa marinha transportou um exército para a Sicília, o senado romano decidiu que Cartago deve­ria ser destruída.

Não precisamos repetir o que nos contaram na escola: que Roma e Car­tago se digladiaram, de 264 a 146 a.C., para saber qual das duas ficaria com a Sicília, a Córsega e a Espanha, e chamaria o Mediterrâneo de Mare nostrum, “nosso mar”. Muitos heróis se projetaram na história dessas três Guerras Púnicas (ou seja, Fenícias): Régulo, Amílcar, Aníbal, Asdrúbal, Cipião, o Africano. Antes de partir de Cartago numa batalha final, Amílcar levou Aníbal, seu filho de nove anos, até o altar do deus Baal-hamen e o fez jurar que um dia vingaria o seu país contra Roma. Aníbal jurou.

As famosas conquistas de Aníbal foram possíveis graças ao intermitente conflito de Roma com os gauleses pelo controle da Itália ao norte do rio Pó. Para se garantir a oeste, a Itália assinou um tratado segundo o qual os cartagineses da Espanha concordavam em ficar ao sul do rio Ebro. Em 225 a.C., um exército gaulês de 50 mil homens a pé e 20 mil a cavalo desceu da Gália Cisalpina, numa tentativa de destruir Roma. Os habitantes da capital ficaram tão apavorados que o senado retomou o primitivo costume do sacrifício humano e queimou vivos dois prisioneiros gauleses. As legiões romanas enfrentaram os invasores perto de Telamão, mataram 40 mil (dizem) e seguiram adiante para subjugar a Gália Cisalpina. Agora senhora da Itália, Roma retomou o duelo com Cartago.

Em 221 a.C., o exército cartaginês da Espanha escolheu Aníbal para ser seu comandante. Ele estava com 26 anos, no apogeu do corpo e do espírito. Recebera certa instrução em história, línguas e literaturas da Fenícia e da Grécia e fora treinado como soldado em acampamentos e na guerra. Disciplinara o corpo às dificuldades, o apetite à necessidade, o pensamen­to aos fatos, a língua ao silêncio. Era “o primeiro a entrar em combate”, disse o hostil Lívio, “e o último a deixar o campo de batalha”. Os veteranos o amavam porque, na sua figura de comandante, viam o velho líder Amílcar retornando em plena juventude; os recrutas adoravam-no porque não descansava antes de prover o exército e com todos compartilhar os sofri­mentos e as conquistas. Os romanos não o perdoavam pelo fato de vencer mais batalhas com o cérebro do que com as vidas dos seus comandados.

Agora que os gauleses rivalizavam com ele em seu ódio a Roma, Aníbal teve a sua chance. Ele não podia invadir a Itália pelo mar, pois a marinha romana era poderosa demais; mas poderia marchar através da Gália e dos Alpes... Atravessou-os quase pela mesma rota que Napoleão tomaria dois mil anos mais tarde. Os habitantes da Gália Cisalpina o receberam bem; alguns se juntaram a ele, mas os 50 mil homens que liderara desde a Espanha estavam reduzidos a 26 mil. Enfrentou os exércitos romanos perto do rio Ticino (218 a.C.) e novamente perto do lago Transimene (217 a.C.) e esmagou-os com elefantes africanos e uma selvagem cavalaria númida. Aníbal liderou suas forças exaustas pelos Apeninos até a costa do Adriá­tico. O senado nomeou ditador Quinto Fábio Máximo e ordenou-lhe que perseguisse e combatesse o exército de Aníbal. Fábio achou mais pru­dente perseguir do que combater; assim como Pirro, propiciou um adje­tivo às línguas europeias. O senado substituiu esse Fábio por dois coman­dantes, e um deles, Caio Varro, insistiu na batalha.

As duas forças combateram em Canas, na Apúlia (216 a.C.). Os ro­manos tinham 80 mil soldados de infantaria e 6 mil de cavalaria; Aníbal dispunha de 19 mil veteranos, 16 mil gauleses não confiáveis e 10 mil cavalos; seduziu Varro a lutar numa planície ideal para a cava­laria. Arrumou os gauleses no centro, esperando que desistissem, o que eles fizeram. Quando os romanos os perseguiram até o centro, o pró­prio Aníbal, bem no interior do combate, ordenou que os seus vetera­nos cercassem os flancos romanos e comandou a cavalaria para romper a linha dos cavaleiros inimigos e atacar as legiões por trás. O exército romano, cercado, perdeu todas as chances de manobrar e quase foi ani­quilado; 44 mil romanos morreram ali, inclusive oitenta senadores. Aníbal perdeu 6 mil homens, dois terços dos quais gauleses. Esse exem­plo supremo de estratégia, raramente superado na história, aniquilou a confiança de Roma na infantaria e influenciou as diretrizes das táticas militares por 2 mil anos.

Foi uma batalha imediatamente decisiva e definitivamente inútil. Durante algum tempo, o mundo mediterrâneo pensou que o poder de Roma fora abalado. Certo número de estados italianos aliou-se a Aníbal; Siracusa declarou-se favorável a Cartago; Filipe V da Macedônia, temendo a expansão romana na Grécia, abriu guerra contra Roma. Porém, em meio a esses triunfos, Aníbal percebeu que o seu exército, exaurido e farto de batalhas, precisava de tempo para curar as feridas. Apelou ao senado cartaginês para que lhe mandasse reforços; a resposta foi mínima; enquanto isso, Roma reunia e equipava um novo exército de 200 mil homens.

Em 208 a.C., Asdrúbal, o irmão mais novo de Aníbal, liderou um exér­cito cartaginês de Esparta atravessando a Gália e os Alpes; morreu numa derrota no rio Metauro (207 a.C.); sua cabeça decepada foi lançada no acampamento de Aníbal, por ordem de um general romano. Então, Públio Cornélio Cipião, que logo seria chamado o Africano, trouxe toda a Es­panha para o controle romano e depois liderou um exército rumo à África. Cartago, desorganizada e sitiada, implorou a Aníbal que viesse em seu auxílio. Ele voltou, formou um novo exército e enfrentou as forças de Cipião em Zama, a oitenta quilômetros da capital. Foi derrotado, e a definitiva submissão de Cartago terminou a Segunda Guerra Púnica (202 a.C.).

Agora, nada no Mediterrâneo poderia deter a expansão de Roma, que prosseguiu quase de imediato para dominar Filipe V da Macedônia. Em 200 a.C., uma força romana chefiada por Tito Quíncio Flaminino atravessou o Adriático e, depois de anos de manobra, dominou Filipe nas colinas Cinoscéfalas (197 a.C.). Agora toda a Grécia esperava se transformar em outro entrave nos intentos de Roma. Mas Flaminino crescera em meio ao liberal círculo helenístico da família Cipião; sua admiração pela herança acumulada da história, literatura, filosofia e arte gregas se compa­rava à admiração pelas cidades gregas, apaziguadas em suas disputas e sub­metidas à paz. Numa convocação memorável em Corinto, ele anunciou aos gregos que Roma não seria a dona, mas sim a protetora; eles ficariam livres dos impostos e até mesmo de uma guarnição, e governariam a si mesmos com a única condição de que terminassem as disputas internas e interestaduais. Diz Plutarco que uma animação tão grande brotou da multidão que os corvos que passavam sobre o local caíram mortos em ple­no voo. Flaminino retirou suas tropas para a Itália.

Os gregos cantavam odes à liberdade, mas estavam divididos demais para manter a paz; a guerra e a luta de classes recomeçaram. Em 146 a.C., enquanto Roma lutava a Terceira Guerra Púnica, a Liga Aqueia dos estados gregos deflagrou uma guerra para se libertar de Roma. Um exército romano sob o comando de Múmio capturou Corinto, matou quase todos os homens, vendeu as mulheres e as crianças como escravos e carregou para Roma toda a riqueza e arte que podia ser transportada. Atenas e Esparta tiveram permissão para manter as próprias leis, mas as outras cidades-estados foram reunidas numa província, com um governador romano.

Abriram-se estradas para transportar homens, bens e ideias entre a ve­lha e a nova civilização. Milhares de gregos atravessaram para a Itália, le­vando consigo fragmentos da sua herança. A conquista cultural grega de Roma seguiu-se lentamente à conquista militar romana da Grécia.

Assim unificada, a herança clássica cresceu, atravessou as estradas roma­nas e os Alpes até o norte da Europa e, com o passar do tempo, chegou a todos nós.

Lucrécio

Parte da rica herança que migrou lentamente para Roma no rastro dos conquistadores em retorno era constituída de literatura e arte, filosofia e ciência, credos religiosos e dúvidas, acumulados durante meio milênio nas dispersas cidades da Grécia continental e colonial.

Entre esses tesouros estavam os manuscritos e as tradições orais que transmitiram o materialismo de Demócrito e a ética de Epicuro. Um poeta romano, Tito Lucrécio Caro, entusiasmado com o que sobreviveu da carnificina e do atraso, dedicou-se à tarefa agradável e divertida de expres­sar em poesia latina, para uma nação ainda intelectualmente jovem, os problemas da filosofia e as fontes terrenas do prazer racional.

Lucrécio intitulou o seu épico filosófico de De rerum natura (Sobre a natureza das coisas), e escreveu em hexâmetros homéricos, tão sucintos, vi­vos e poderosos como se Aquiles tivesse composto os versos. Iniciou com uma ardorosa apóstrofe a Vênus como deusa da fertilidade e conquistadora do deus da guerra:

Mãe da raça do Eneias, deleite de homens e deuses, ó Vênus generosa! [...] através de ti toda a vida é concebida, nasce e vive sob o Sol; diante de ti, e à tua chegada, os ventos fogem e as nuvens do céu se afastam; para ti, a terra miraculosa se abre em flores suaves; para ti, sorriem as ondas do mar, e os céus tran­quilos brilham difundindo a luz. Pois tão logo surge a face primaveril do dia e o fertilizante vento sul refresca e enverdece todas as coisas, então os pássaros do ar proclamam o teu advento, tocados até o coração pelo teu poder, ó divi­na; então os rebanhos selvagens saltam nas pastagens alegres e cruzam riachos velozes; e, assim, presos ao teu encanto, todos te seguem aonde quer que os conduzas. Então, através de mares e montanhas e rios impetuosos, e nas copa­das moradias dos pássaros, e nos campos verdejantes, tu lanças o doce amor no seio de todas as criaturas e fazes com que se propaguem de geração em gera­ção segundo cada espécie. Assim, pois, só tu governas a natureza das coisas; pois sem ti nada se eleva para a luz, nada alegre ou belo nasce; anseio por ti como inspiradora destes versos [...] Concede às minhas palavras uma beleza imorredoura, ó deusa. Enquanto isso, adormece e acalma a selvagem atividade da guerra [...] Quando Marte se reclinar sobre a tua forma sagrada, envolve-o com o teu abraço, pronuncia suaves elogios e implora pa­ra os teus romanos o dom da paz.

Vênus é a única divindade que Lucrécio venera. Não considera os outros deuses romanos; podem existir, mas não têm influência nos as­suntos humanos. Lucrécio de­nuncia os rituais pagãos de sa­crifícios animais ou humanos; conta a história de Ifigênia, sa­crificada por um vento.

Ó miserável raça dos homens, que imputa aos atos como estes, e lhes atribui esta terrível ira! [...] Porque a piedade não consiste em voltar para as pedras um rosto velado, ...nem em se prostrar... diante dos templos, ...nem em borrifar altares com o sangue de animais, ...mas sim em ser capaz de olhar para todas as coisas com paz de espírito [...] O terror e o desânimo da mente não devem ser dissemina­dos pelos raios do sol, ...mas sim pelo aspecto e pela lei da natureza.

E assim, “tocando com o mel das musas” o rude materialismo de Demócrito, Lucrécio estabelece como teorema básico que “nada existe senão os átomos e o vazio”, isto é, matéria e espaço. Um dia tudo foi informe, porém o agru­pamento gradual de átomos em movimento, por tamanho e forma, produ­ziu, sem um plano, o ar, o fogo, a água e a terra; destes, nasceram o Sol e a Lua, os planetas e as estrelas. No espaço infinito, novos mundos estão sempre nascendo, e velhos mundos desaparecem. Uma parte da névoa primitiva se desprendeu da massa e esfriou, formando a Terra. Os terremotos não são roncos de divindades, mas a expansão de gases e rios subterrâneos. O trovão e o relâmpago não são a voz nem o sopro de um deus, mas o resul­tado natural da condensação e do choque de nuvens. A chuva não é uma dádiva intermitente de Jove, mas o retorno à terra da umidade que se evaporou pela ação do calor do sol.

Lucrécio foi um minucioso evolucionista.

Nada surge no corpo de modo que possamos usar, mas o que surge traz em si o seu próprio uso [...] Não foi o desenho dos átomos que os levou a se organizarem ordenadamente com aguda inteligência, ...mas porque no tempo infinito muitos átomos se moveram e se mesclaram de todas as maneiras, tentando todas as combinações. [...] Assim começaram as grandes coisas, ...e a geração dos seres vivos [...] Muitos foram os monstros que a terra tentou criar: ...alguns sem pés, outros sem mãos, ou boca ou rosto, ou com os membros presos à estrutura [...] Tudo em vão; a natureza negou-lhes o crescimento, eles também não conseguiram encontrar comida, nem se unir para fazer amor [...] Muitas espécies de animais devem ter perecido assim, incapazes de forjar as cadeias da procriação [...] Pois aqueles a quem a natureza não deu qualidades (de defesa) fizeram à mercê dos outros e logo foram destruídos.

A alma (anima) é um “sopro vital” que se espalha como matéria muito fina por todo o corpo e anima todas as partes. Cresce e envelhece com o corpo, e aparentemente os seus átomos se dispersam quando o corpo mor­re. A vida não nos é dada, mas emprestada para sempre, enquanto pudermos fazer bom uso. Quando tivermos esgotado as nossas forças, devemos deixar a mesa da vida com a mesma cortesia com que um con­vidado agradecido se retira de um banquete.

A morte, em si, não é terrível; só os nossos temores do além a deixam assim. Mas o além não existe. O inferno é aqui, no sofrimento que surge da ignorância, da paixão, da belicosidade e da cobiça; e o céu é aqui, nos sapientum templa serena, “serenos templos da sabedoria”.

A virtude não reside em temer os deuses nem em evitar timidamente o prazer; reside no funcionamento harmonioso dos sentidos e faculdades, guiados pela razão: “a verdadeira riqueza do homem consiste em viver com simplicidade e paz de espírito”. O casamento é bom, mas a paixão é uma loucura que priva a mente de clareza e raciocínio. Nenhum casamen­to, nenhuma sociedade, nenhuma civilização encontra base sólida nessa embriaguez erótica.

Num belo resumo da antiga antropologia, Lucrécio conta como se de­senvolveu a civilização. A organização social deu ao homem o poder de dominar animais mais fortes. Descobriu o fogo a partir da fricção de fo­lhas e galhos, desenvolveu a linguagem a partir de gestos e aprendeu a can­tar com os pássaros; domesticou animais para o seu uso e a si mesmo, com o casamento e as leis; observou o céu, mediu o tempo e aprendeu nave­gação. A história é uma sucessão de estados e civilizações que surgem, pros­peram, decaem e morrem; mas cada um, por sua vez, pode transmitir a herança civilizadora de costumes, morais, leis e artes; “como corredores de uma corrida, passando um ao outro as tochas da vida” (et quasi cursores vitai lampada tradunt).

Recapitulando essa “maravilhosa performance de toda a literatura antiga”, devemos, em primeiro lugar, reconhecer-lhe as imperfeições: o caos do conteúdo, deixado sem revisão pela morte prematura do poeta; a concepção do Sol, da Lua e das estrelas como não sendo maiores do que podemos vê-los; a dificuldade de explicar como átomos mortos se transformam em vida, consciência e percepção; certa ausência de sensibilidade para com os discernimentos, consolos e inspirações da fé, e para com a moral e a função social da religião.

Mas essas falhas pesam pouco na balança, se comparadas à corajosa ten­tativa de interpretar racionalmente o universo, a religião, as doenças (“Há muitas sementes de coisas que sustentam a nossa vida; e, por outro lado, deve haver muitas voando por aí e contribuindo para as doenças e a mor­te”); é o quadro da natureza enquanto mundo da lei, onde matéria e movimento jamais aumentam nem diminuem; é o poder ininterrupto da imaginação que percebe por toda parte “a majestade das coisas” e trans­forma as visões de Empédocles, a ciência de Demócrito e a ética de Epicuro numa das poesias mais grandiosas que se conhece.

Na interminável luta entre o Oriente e o Ocidente, entre as fés “ternas” e consoladoras versus a “áspera” ciência materialista, Lucrécio empreendeu quase sozinho a maior batalha da época. Naturalmente, trata-se do maior dos poetas filosóficos.

Com Lucrécio – e, logo depois, com Catulo, Cícero e Virgílio – a lite­ratura latina chegou à maioridade, fazendo com que a liderança nas letras passasse da Grécia para Roma.