Introdução
É diante do quadro de desigualdade de status e poder gerado pela supremacia da cultura masculina que o movimento feminista, em linhas gerais, questionará a ordem estabelecida pela organização patriarcal, esse modelo único que nega a pluralidade representada pela voz feminina. Nesse sentido, não é de se estranhar que as reivindicações do movimento, inicialmente, irão enfocar as questões igualitárias. Isto, por sua vez, produzirá uma situação de impasse, já que as mulheres, ao mesmo tempo em que tentam romper com a representação que limita seu espaço, têm que dar conta tanto da esfera pública como privada: "as mulheres descobrem que o acesso às funções masculinas não basta para assentar a igualdade e que a igualdade, compreendida como integração unilateral no mundo dos homens, não é a liberdade" (Oliveira, 1999, p.47).
Esse mesmo embate proporcionará reflexões sobre o feminismo da diferença que serão latentes a partir da década de 1980:
Redefinir o feminino é não ter mais um passado nostálgico, já repudiado, ao qual se referir, nem tampouco um modelo masculino ao qual aderir. Reconstruir o feminino é o destino do movimento das mulheres. [...] porque a verdadeira igualdade é a aceitação da diferença sem hierarquias. (Ibidem, p.74)
Com base nessas questões que giram em torno da "diferença", a crítica feminista na América Latina irá enfatizar as particularidades das mulheres inseridas nesse contexto, atentando para a importância de olhar as especificidades existentes na produção de autoria feminina latino-americana, propondo, dessa forma, uma releitura das teorias vindas de outros países, em especial as discussões apresentadas pelas feministas francesas e anglo-americanas.
É nessa perspectiva de "dupla revisão" que esta pesquisa se circunscreve. Assim, por meio do ensaio "Expressão feminina da poesia na América", de Cecília Meireles, pretende-se mostrar a importância desse texto ceciliano no que se refere aos estudos feministas na América Latina, enfatizando o diálogo que se estabelece entre a autora brasileira e as poetisas hispano-americanas, mais especificamente as uruguaias. Cabe dizer que a escolha de realizar esse recorte a partir das escritoras do Uruguai fundamentou-se, a princípio, em um dado quantitativo presente no próprio ensaio, já que, das 28 autoras elencadas por Cecília, dez são uruguaias.
É importante esclarecer que "Expressão feminina da poesia na América", escrito em 1956, apresenta, de maneira bastante antecipada, considerações de grande valia no que tange às questões abordadas pela crítica literária latino-americana. Sob esse aspecto, torna-se fundamental analisar os enfoques e as interpretações realizadas por Cecília no referido ensaio, pelo viés que aponta para a maneira singular pela qual os textos produzidos por mulheres revelam as relações de gênero socialmente constituídas.
Diante dessas observações, este trabalho, inicialmente, apresenta um panorama da crítica literária feminista, pontuando seus principais objetivos, bem como sua contribuição para os estudos literários. Além disso, ressaltam-se as especificidades dessa crítica na América Latina, como forma de situar a atuação de Cecília Meireles nesse contexto. Assim, na tentativa de reexaminar essa prática, bem como o termo "feminista", pensou-se em trazer à luz a trajetória desse grupo, uma vez que ainda é notável uma certa ojeriza por parte de alguns pesquisadores que, por não conhecerem o surgimento ou, até mesmo, o que pretende essa vertente teórica, acabam, muitas vezes, desprestigiando esse discurso.
Num segundo momento, em contraponto a uma parte da crítica ceciliana, que insiste em cunhá-la como a "pastora de nuvens", que sempre transita pelo campo do etéreo, do efêmero e que não se envolve com assuntos relacionados ao contexto social da sua época, busca-se observar o comprometimento da escritora brasileira diante das questões do feminismo. Dessa forma, a partir de um breve recorte do que representa a obra de Cecília Meireles, mostra-se, por meio de alguns poemas, crônicas e traduções, como "o feminino" se manifesta em sua produção. Nesse sentido, tenta-se destacar que o ensaio "Expressão feminina da poesia na América" não se refere a um texto que discute isoladamente essa questão. Além disso, essas outras expressões textuais de Cecília ajudam a perceber melhor o que ela entende por "expressão feminina".
Salienta-se, em seguida, a sua atividade como ensaísta, através do referido texto, enfatizando como as considerações tecidas pela autora vão ao encontro da perspectiva da crítica feminista atual. Destaca-se também a leitura que Cecília Meireles faz em relação à produção das poetisas hispano-americanas, em especial as uruguaias, fato que revela mais um perfil ceciliano: a de estudiosa e conhecedora da América Latina. Procura-se, desse modo, destacar o diálogo existente entre essas vozes femininas da lírica latino-americana.
Ao levar em conta que grande parte dos estudos sobre a autora de Vaga música tende a explorar mais sua obra poética, pode-se dizer que este trabalho surge da necessidade de abordar outros aspectos da vasta produção ceciliana. Acredita-se, portanto, que, ao acentuar essa postura de Cecília Meireles diante das questões que permeiam a crítica literária feminista, seja possível ampliar a visão acerca da multiplicidade que representa a produção da escritora brasileira, reverberando outros perfis da poetisa que diferem do rótulo de "poeta do inefável".