Crítica feminista no Brasil

As mulheres da minha geração perambulam pelo castelo‑em‑ruínas do casamento. E se possuem a chave da liberdade conferida pela pílula, nada podem fazer com ela. Deram‑nos a chave, mas esqueceram de construir a porta.

Márcia Denser

Sabe-se que a presença da mulher brasileira na vida pública começa de maneira efetiva no início do século XX. No Brasil, até 1916 o Código Civil considerava as mulheres como "menores perpétuos sob Lei" (apud Pinto, 1990, p.34). Em outras palavras, elas ficavam sujeitas à vontade dos homens (marido ou pai).

Tal realidade também era comum em outros países da América Latina, como a Argentina, que se valerá de leis parecidas com essa para manter a autoridade masculina. Após a segunda metade do século XIX, entretanto, surgem no Brasil, assim como no Chile e em outros países latino-americanos, movimentos de mulheres descontentes com a situação à qual estavam condicionadas.

Ao tratar da história do feminismo brasileiro, Constância Lima Duarte (2003), em "Feminismo e literatura no Brasil", designa as décadas de 1830, 1870, 1920 e 1970 como "momentos-onda", em que o movimento feminista adquire maior destaque.

A primeira "onda" corresponderia ao período em que a mulher luta pelos direitos primários, como o acesso à educação. Busca-se a construção de uma identidade feminina. Além da presença das escritoras Beatriz Francisca de Assis Brandão (1779-1860), Clarinda da Costa Siqueira (1818-1867), Delfina Benigna da Cunha (1791-1857), destaca-se a atuação de Nísia Floresta (1809-1885), em especial o trabalho intitulado Direito das mulheres e injustiça doshomens, publicado em 1832. Trata-se de uma adaptação do livro

Vindication of the rights of woman, da inglesa Mary Wollstonecraft.Segundo Duarte, essa "tradução livre" representa um marco para o feminismo brasileiro:

Nísia Floresta não realiza, insisto, uma tradução no sentido convencional do texto feminista, ou de outros escritores europeus, como muitos acreditaram. Na verdade, ela empreende uma espécie de antropofagialibertária: assimila as concepções estrangeiras e devolve um produtopessoal, em que cada palavra é vivida e os conceitos surgem extraídos da própria experiência. (Duarte, 2003, p.154, grifo do original)

Convém ainda mencionar a representatividade de Teresa Margarida da Silva e Orta (1711 ou 1712-1793) apontada como precursora do romance brasileiro com a obra Aventura de Diófanes. Nesse período, conforme destaca Rita Terezinha Schmidt (1995, p.183), nota-se a presença de outras vozes significativas, dentre elas: Albertina Berta, Ana Luísa Berta, Maria Firmina dos Reis, Maria Benedita Bormann, Carmen Dolores, Ana Luísa de Azevedo e Castro, Ana Eurídice Eufrosina de Barandas.

Já o segundo "momento-onda" apontado por Constância Duarte apresenta um cunho mais feminista. Uma das principais reivindicações, nessa fase, será o direito ao voto. A imprensa será um veículo de suma importância. A autora também ressalta o caráter bastante reivindicativo do jornal A Família, de Josefina Álvares Azevedo (1851-?); além de O Corimbo, das irmãs Revocata Heloísa de Melo (1862-1944) e Julieta de Melo Monteiro (1855-1928), publicado na cidade de Porto Alegre durante os anos de 1884 a 1944.

Nota-se, portanto, no início do século XX, um notável aumento de publicações em jornais e revistas, desde ensaios, crônicas, poesias, contos de autoria feminina. Dentro desse periodismo feminino, segundo Dulcília S. Buitoni (apud Gotlib, 2003, p.32), o primeiro jornal que possibilitou a divulgação de textos, tanto de cunho político quanto literário, escritos por mulheres foi, provavelmente, O Espelho Diamantino, lançado em 1827 na cidade do Rio de Janeiro. Observam-se também outros periódicos pioneiros, como o Correio das Modas (1839-1841) e o Jornal das Senhoras (1852-1855).

Em 1873 aparece, de fato, o primeiro jornal feminista: O SexoFeminino, com a colaboração de Maria Amélia de Queiroz (séc.XIX-?). Nesse mesmo período, destaca-se a revista literária A Mensageira, publicada em São Paulo de 1897 a 1900, dirigida por Presciliana Duarte de Almeida (1867-1944). Autoras como Narcisa Amália (1852-1924) e Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) contribuíram efetivamente com seus textos para a revista. "A importância dessa revista deve-se, sobretudo, à preocupação com a formação de um grupo ativo de intelectuais e artistas preocupado com a construção de um contexto de cultura literária" (Gotlib, 2003, p.34).

Vale mencionar que, no campo literário, destacam-se as escritoras Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) e Francisca Júlia (1871-1920), consideradas marcos no que tange à produção literária de autoria feminina no Brasil. "É possível dizer, mesmo, que com essas duas escritoras inicia-se realmente uma tradição da literatura brasileira feminina no Brasil" (Pinto, 1990, p.43). Percebe-se que grande parte da crítica da época contribuiu para disseminar que elas supostamente representavam a imagem de mulher "perfeita", pois, além de atuar como escritoras, trabalhavam em seu lar, o que corroborou a ideia de que a produção feminina era uma espé cie de hobby e, portanto, uma atividade menor comparada à masculina. Tal aspecto será explorado pelo discurso crítico que, por sua vez, difundirá o conceito de que a literatura feita por mulheres corresponde somente à representação de suas respectivas emoções e sentimentos. É o que Sylvia Paixão (1990, p.54) designou como o "olhar condescendente" da crítica: "A atmosfera de fragilidade será acentuada por meio de uma atitude paternalista do crítico em relação à mulher que escreve, fazendo sobressair, muitas vezes, mais as qualidades físicas da mesma do que os seus dotes literários".

No que se refere à terceira "onda", definida por Constância Duarte, as exigências pelo direto ao voto continuam juntamente com as reivindicações de inserção da mulher no campo de trabalho, bem como no ensino superior. Destacam-se nomes como Bertha Lutz (1894-1976), Maria Lacerda de Moura (1887-1945), Leolinda Daltro (1860-1935), Ercília Nogueira Cobra (1891-1938), Adalzira Bittencourt (1904-1976), Mariana Coelho (1880-1953), Diva Nolf Nazário (séc. XX), entre outras.

É interessante observar que, a princípio, a ideia do desenvolvimento intelectual feminino estava vinculada à melhoria do desempenho da mulher como esposa e mãe, conforme aponta Cristina Ferreira Pinto:

a imprensa feminina brasileira, desde os seus primórdios, enfatiza a necessidade de melhorar-se a educação dada à mulher, como meio de elevá-la social e moralmente. As primeiras feministas brasileiras, no entanto, assim como políticos e educadores liberais, defendiam a melhora do ensino para as mulheres porque entendiam que assim elas poderiam desempenhar melhor seus deveres para com a família e a casa. [...] A partir da década de 1870, no entanto, observa‑se que vários jornais e revistas feministas e uns raros homens públicos assumem uma atitude diferente em relação à educação feminina. Defendia-se então a ideiade que a mulher deveria ser instruída e emancipada, não só para poder servir melhor à família e à sociedade, mas principalmente por um de sejo de realizar-se pessoalmente. (Pinto, 1990, passim, grifo meu)

Aos poucos, as reivindicações de acesso à educação assumem um caráter estritamente relacionado à emancipação feminina. "Dessa maneira, o foco desse movimento vai mudando progressivamente, e logo a questão central passa a ser o direito da mulher ao ensino superior" (ibidem, p.38). É somente a partir da década de 1930, entretanto, que é possível notar um número significativo de mulheres nas escolas superiores. Ainda no que se refere ao movimento feminista no Brasil, Cristina Ferreira Pinto menciona:

Embora não tivesse conseguido transformar radicalmente a atitude da sociedade brasileira em relação à mulher, o movimento feminista que se inicia em meados do século XIX consegue avanços consideráveis. O acesso da mulher à educação integral foi, sem dúvida, o primeiro passo para sua emancipação. A luta pelo sufrágio feminino também consegue uma vitória em 1932 [...]. (Ibidem, p.40)

Ainda acerca desse momento, no âmbito literário, cabe destacar a atuação de Rosalina Coelho Lisboa (1900-1975), com a obra Ritopagão, e Gilka Machado (1893-1980), que, diferentemente de Francisca Júlia, apresenta uma outra tendência poética, renovando com seus poemas de cunho erótico: "a poesia de Gilka Machado vai mais além: acusa os agentes opressores – os homens; e proclama a rejeição dessa forma reprimida de ser mulher" (Gotlib, 2003, p.41, grifo do original).

Costuma-se enfatizar a década de 1930 como um período de maturidade da produção de autoria feminina, tanto pela qualidade dessa produção quanto pelo número de mulheres que atuam como escritoras. Desse período fazem parte as poetisas Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa, bem como as prosadoras Patrícia Galvão (Pagu) e Raquel de Queiroz, entre outras. No âmbito da crítica literária, porém, nota-se ainda uma certa lacuna, com exceção de Lúcia Miguel Pereira que, além de se dedicar à prosa literária, também exerce notavelmente a atividade de ensaísta e crítica, apesar de alguns estudiosos questionarem o fato da sua obra A história da literatura brasileira, publicada em 1950, só fazer referência a umaescritora, Júlia Lopes de Almeida. Para Lúcia Osana Zolin (2004, p.276), o motivo da única escolha feminina é explicado, "certamen te por não considerar que as demais escritoras da época tenham participação na formação da identidade nacional ou, simplesmente, por considerar suas obras inferiores em relação àquelas modelares dos 'homens letrados'". A atuação de Lúcia Miguel Pereira, entretanto, não se limita somente a essa obra. Dentre os seus estudos, vale ressaltar "As mulheres na literatura brasileira", de 1954, em que ela descreve a condição feminina na sociedade brasileira.

Sobre a quarta "onda", em que a mulher já consegue concretizar grande parte das exigências reivindicadas na fase anterior, Duarte complementa:

Enquanto nos outros países as mulheres estavam unidas contra a discriminação do sexo e pela igualdade de direitos, no Brasil o movimento feminista teve marcas distintas e definitivas, pois a conjuntura histórica impôs que elas se posicionassem também contra a ditadura militar e a censura, pela redemocratização do país, pela anistia e por melhores condições de vida. (Duarte, 2003, p.165)

É possível, portanto, notar nessa fase que o feminismo no Brasil apresenta algumas particularidades em decorrência da ditadura militar. As primeiras publicações feministas dos anos 1970, como os jornais Brasil Mulher e Nós, Mulheres, irão enfatizar o caráter de luta de classe e a condição repressora do regime ditatorial. Ainda sobre esse período, Miriam Pillar Grossi (2004) chama a atenção para a grande inquietação que girava em torno dos trabalhos acerca das especificidades da mulher brasileira:

Mas, se por um lado, o movimento feminista brasileiro que surge nos anos 70 se caracteriza por um intenso compromisso político, por outro, suas participantes – majoritariamente das camadas médias intelectualizadas – tiveram sempre uma forte preocupação com a pesquisa sobre a situação daquilo que se pensava ser "uma mulher brasileira". (Grossi, 2004, p.213)

Esse mesmo momento é apontado por Nelly Novaes Coelho, em A literatura feminina no Brasil contemporâneo (1993), como um período de amadurecimento das mulheres escritoras, ressaltando o que ela chama de consciê-ncia crítica. Esta, por sua vez, estaria presente de maneira mais nítida na produção de autoria feminina a partir da década de 1960, em que se sobressaem, na poesia, Hilda Hilst, Ana Cristina César, Adélia Prado, Cora Coralina; na prosa, Clarice Lispector, Nélida Piñon, Márcia Denser, Lygia Fagundes Telles, Lya Luft, entre outras.

Consciência que à força de tentar se posicionar, não só em relação à falência do modelo-de-comportamento feminino herdado da sociedade tradicional (a sociedade cristã/burguesa/liberal/patriarcal/capitalista que vem sendo questionada e abalada em seus alicerces desde o início do século), como também à interdependência existente entre as múltiplas formas de criação literária e os estímulos ou imposições do contexto sociocultural em que essa criação surge. (Coelho, 1993, p.16,grifo do original)

De acordo com as considerações tecidas por Constância Duarte em "Feminismo e literatura no Brasil", ainda não é possível afirmar a existência de uma quinta "onda" a partir dos anos de 1990. Ela conclui:

Com certeza vivemos outros e novos tempos, e o movimento feminista parece atravessar um necessário e importante período de amadurecimento e reflexão. O que não se sabe é como retornará na próxima onda, que formato e dimensões poderia ter. (Duarte, 2003, p.168)

Ao levar em conta a afirmação de Miriam Pillar Grossi (2004, p.212) que indica a defesa de tese de livre-docência de Heleieth Saffioti em 1967 na USP como marco dos estudos sobre a mulher no Brasil, pode-se dizer que esse campo de pesquisa tem apenas quarenta anos no Brasil.

Em relação aos estudos de crítica literária, percebe-se que apenas por volta dos meados da década de 1980 começam a aparecer trabalhos que tentam se libertar dos conceitos importados das escolas francesa e anglo-americana (Funck, 1999, p.21). Nesse sentido, pode-se dizer que a crítica feminista no Brasil, consciente da influência exercida por essas tendências, volta-se para análises acerca da representação feminina na literatura, como também para discussões que giram em torno de uma possível linguagem da escritura feminina. Além disso, a historiografia feminista tem instaurado importantes debates que permeiam a questão da própria formação do cânone, uma vez que se propõe a resgatar obras "esque cidas" pela tradição canônica, contestando, dessa maneira, a ausência da literatura produzida por mulheres.

Outro aspecto que tem sido examinado cuidadosamente por algumas estudiosas do feminismo refere-se à noção de "sororidade" ou de irmandade, como intitula Suely Gomes Costa (2004, p.25). Trata-se de uma concepção que foi embutida de que as mulheres, sendo todas iguais, deveriam lutar contra a desigualdade em relação aos homens:

Essa forma de pensar a identidade biológica ganha revisões a partir dos anos 80, do século XX. Na noção de "sororidade", conformam-se a homogeneização e a ocultação das diferenças e desigualdades entre as mulheres. Essas revisões decorrem da crescente tomada de consciência das diferenças e desigualdades no que concerne ao enquadramento político; à posição de classe; às circunstâncias raciais/étnicas; às distâncias de geração ideológicas. No Brasil, esse debate, restrito a algunscírculos, mantém‑se lacunar no que tange à avaliação de impasses dosfeminismos, organizações sempre imaginadas como de defesa de dou trinas igualitárias. (Costa, loc. cit., grifo meu)

Miriam Pillar Grossi (2004, p.218) ainda atenta para a questão do atual objeto dos estudos feministas no Brasil, o qual ela prefere chamar de "estudos feministas, de mulheres e de gê-nero". Em uma pesquisa realizada juntamente com Sônia Malheiros Miguel em mais de mil instituições brasileiras em 1995, revelou-se que muitas pesquisadoras não se reconhecem dentro do "rótulo" feminista, ou por acharem que este está estritamente ligado à militância ou por considerarem que seus trabalhos se enquadram dentro dos estudos de ciências sociais, pois avaliam suas pesquisas como parte da teoria social contemporânea. Grossi considera esses resultados como um reflexo de um espaço permeado de pluralidades:

constatamos que não podíamos denominar de movimento feminista, grupos que se auto-denominavam como "de mulheres", ora se consideravam "feministas", ora se diziam trabalhar com "questões ou polí ticas de gênero". Partindo desses dados e analisando os trabalhos apresentados em diferentes eventos da área considero que há vários tipos de pesquisas sendo realizadas atualmente no Brasil: pesquisas sobre mulheres, pesquisa sobre homens, pesquisas que analisam as relações de gênero, pesquisas preocupadas com questões teóricas, pesquisas sobre o movimento feminista e de mulheres, etc... (Grossi, 2004, p.218)

Diante desse contexto, é importante frisar algumas pesquisadoras que têm desempenhado um papel fundamental no que tange às principais reflexões dos estudos sobre mulher e literatura, a saber: Suzana Funck, Marlyse Meyer, Nádia Gotlib, Heloisa Buarque de Hollanda, Constância Lima Duarte, Rosiska Darcy de Oliveira, Rita Schmidt, entre outras.

Ainda no que se refere às perspectivas do pensamento crítico feminista no Brasil, vale mencionar as considerações feitas por Heloisa Buarque de Hollanda:

É inegável que o pensamento crítico feminista no Brasil, em fase de expansão e formação de um corpus teórico próprio, pelo menos na área das letras, já mostra quantitativa e qualitativamente sinais de seu potencial crítico e político. É inegável também [...] que a atual voga dos estudos feministas não é apenas mais uma moda acadêmica, mas é um entre os muitos resultados da longa trajetória das mulheres, com idas e vindas, estratégias e lutas, em busca não só de seus direitos civis, mas também de seu inalienável direito de interpretação. (Hollanda, 1993, p.34)

Como forma de destacar a importância dos estudos relacionados à escrita de autoria feminina, espera-se que este conciso panorama tenha servido para situar os propósitos sustentados por algumas de suas representantes, embora se saiba que pontuar alguns nomes é sempre uma tarefa árdua, pois se corre o risco de excluir outros significativos.