Representações do feminino na poesia ceciliana

Prisão

Nesta cidade

quatro mulheres estão no cárcere. Apenas quatro.

Uma na cela que dá para o rio,

outra na cela que dá para o monte,

outra na cela que dá para a igreja

e a última na do cemitério

ali embaixo.

Apenas quatro.

 

Quarenta mulheres noutra cidade,

quarenta, ao menos,

estão no cárcere.

Dez voltadas para as espumas,

dez para a lua movediça,

dez para pedras sem resposta,

dez para espelhos enganosos.

Em celas de ar, de água, de vidro

estão presas quarenta mulheres,

quarenta ao menos, naquela cidade.

 

Quatrocentas mulheres,

quatrocentas, digo, estão presas:

cem por ódio, cem por amor,

cem por orgulho, cem por desprezo

em celas de ferro, em celas de fogo,

em celas sem ferro nem fogo, somente

de dor e silêncio,

quatrocentas mulheres, numa outra cidade,

quatrocentas, digo, estão presas.

 

Quatro mil mulheres, no cárcere,

e quatro milhões – e já nem sei a conta,

em lugares que ninguém sabe,

estão presas, estão para sempre

– sem janela e sem esperança,

umas voltadas para o presente,

outras para o passado, e as outras

para o futuro, e o resto – o resto,

sem futuro, passado ou presente,

presas em prisão giratória,

presas em delírio, na sombra,

presas por outros e por si mesmas,

tão presas que ninguém as solta,

e nem o rubro galo do sol

nem a andorinha azul da lua

podem levar qualquer recado

à prisão por onde as mulheres

se convertem em sal e muro.

1956

(Meireles, 2001, v.2, p.1759-60)

"Prisão", que integra os Dispersos de Cecília, foi publicado pela primeira vez, em 1973, em Poesias completas de Cecília Meireles, organizada por Darcy Damasceno (Meireles, 1973, v.7, p.149-50). Tal edição, composta por oito volumes, foi lançada durante os anos de 1973 e 1974.

O poema descreve o aprisionamento de mulheres cujo número aumenta gradativamente a cada estrofe. Primeiro, são quatro; depois, quarenta; em seguida, quatrocentas; quatro mil; quatro milhões; e o número de prisioneiras torna-se infinito.

Nota-se, ao longo do texto poético, uma perda da materialidade dos elementos descritos. Estes vão se tornando, também de maneira progressiva, menos palpáveis. É como se eles se dissipassem na mesma proporção que a quantidade de prisioneiras crescesse. No início, as celas dão para o rio, para o monte, para a igreja, para o cemitério. Já na segunda estrofe, as mulheres estão voltadas para o incerto: espumas, luas movediças, pedras sem respostas, espelhos enganosos. As celas que são de ferro, passam a ser de fogo; em seguida, nem de ferro e nem de fogo, tornam-se celas constituídas de dor e silêncio. Ao final, as mulheres estão presas em "prisão giratória, presas em delírio, na sombra". Incomunicáveis, elas são conde nadas ao mesmo destino trágico da mulher de Ló, converter-se em estátua de sal, símbolo da esterilidade. Esta ideia de confinamento aqui é retomada pelos termos "sal e muro" (Oliveira, 2007, p.125).

Parece evidente no poema a alusão que ele faz à opressão feminina. É interessante observar que apresenta a data de 1956 ao final, provavelmente o período em que foi escrito. Vale lembrar que é nesse ano que Cecília profere a conferência "Expressão feminina da poesia na América", objeto de estudo deste trabalho, que revela o cunho precursor ceciliano frente às questões do feminismo. Outro texto poético que também merece ser destacado, no que concerne à representação do universo feminino, é "Uma pequena aldeia", que também foi publicado inicialmente em Poesias completas, organizada por Darcy Damasceno (Meireles, 1973, v.8, p.60-1).

Uma pequena aldeia

No canto do galo há uma pequena aldeia

de mulheres risonhas e pobres

que trabalham em casas de pedra

com belos braços brancos e olhos cor de lágrima

 

São umas corajosas mulheres

que tecem em teares antigos,

são Penélopes obscuras

em suas casas de pedra

com fogões de pedra

nestes tempos de pedra.

 

Elas, porém, cantam com frescura,

a leveza, a graça, a alegria generosa

da água das cascatas,

que corre de dentro do mundo

pelo mundo

para fora do mundo.

 

No canto do galo há, de repente,

essa pequena aldeia,

com essas belas mulheres,

essas boas mulheres escondidas,

essas criaturas lendárias

que trabalham e cantam

e morrem.

 

O amor é uma roseira à sua porta,

o sonho é um barco no mar

a vida é uma brasa na lareira

um pano que nasce, fio a fio.

 

A morte é um dia santo

para sempre no céu.

1961

(Meireles, 2001, v.2, p.1893-4)

Escrito provavelmente em 1961, data apontada ao final do texto, "Uma pequena aldeia" apresenta uma figura feminina de "mulheres lendárias" que cumprem seu destino, o qual se resume em "trabalhar, cantar e morrer". Apesar dos tempos de pedra, essas mulheres não perdem a alegria e cantam a vida. Esse canto encontra-se representado aqui pela água das cascatas que "corre de dentro do mundo/ pelo mundo/ para fora do mundo". Ainda sobre esses versos é possível observar a dimensão que essas mulheres, mesmo morando em uma pequena aldeia, vão ganhando dentro do univer so do poema.

É interessante observar que a expressão "no canto do galo" assume um sentido ambíguo, podendo remeter ao espaço físico em que o masculino predomina ou ainda pode estar relacionado ao amanhecer do dia. Cabe lembrar que em "Prisão" aparece uma expressão bem parecida – rubro galo do sol – que se contrapõe à representação feminina de "a andorinha azul da lua".

Ao enfocar essas "belas e boas mulheres escondidas", pode-se dizer que o texto coloca em discussão a própria condição feminina que se centra nessa figura lendária de "Penélopes obscuras" que, confinadas em um ambiente árduo, tendem a cumprir o seu destino.

Assim, a pequena aldeia acaba ganhando proporções maiores ao simbolizar a situação feminina compartilhada em outros espaços e tempos. Esse mesmo questionamento em relação ao lugar que a mulher ocupa no mundo é abordado em "Mulher de leque"; porém, nesse último texto, a figura feminina apresenta-se silenciada em comparação a "Uma pequena aldeia", já que nem sequer o "cantar" aqui é permitido; não importa o que ela fala, pensa ou sonha, como pode ser observado logo na primeira estrofe:

Mulher de leque

Para longe o que falo:

o que sonho, o que penso.

Para o reino do vento.

 

Para longe o que calo:

para o único momento

que se há de ver imenso.

 

Entre o que falo e calo,

há um leque em movimento.

Mas eu, a quem pertenço?

Setembro, 1962

(Meireles, 2001, v.2, p.1915)

O poema, também publicado pela primeira vez na edição de 1973, organizada por Darcy Damasceno, traz anotada a data de "setembro, 1962" ao final do texto.

Não resta dúvida de que o leque remete a alguém pertencente à classe burguesa. É interessante notar que o movimento de "ir e vir" desse objeto assume nos verbos opostos "falar" e "calar" um contraponto essencial que revela o conflito desse eu‑lírico. Apesar da oposição entre esses verbos, eles se aproximam no poema, atingindo uma dimensão subjetiva que proporciona uma equivalência semântica entre os mesmos.

Tal deslocamento de "ir e vir" do leque também reitera a ideia de que nada que essa mulher "fala" importa. Pode-se inferir, então, que a falta de importância atribuída a essa voz feminina alude ao mito de Cassandra, profetisa troiana na mitologia grega e romana em quem ninguém acreditava, embora tivesse a capacidade de prever o futuro. Simbolicamente, ela representa uma "recusa patriarcal em confiar nas palavras das mulheres" (Macedo & Amaral, 2005, p.15).

Além disso, a pergunta que encerra o poema "Mas eu, a quem pertenço?" retoma o estado de impasse em que se encontra o eu‑lírico. Como não consegue ser dona de si mesma e identificar o seupróprio espaço, essa mulher de leque cujas ações são neutralizadas questiona-se sobre sua situação de pertença, mostrando, portanto, a relação de propriedade à qual ela está sujeita.

No que tange à representação do feminino na poética ceciliana, ainda vale destacar "Mulher ao espelho", publicado inicialmente em Mar absoluto e outros poemas1, no ano de 1945.

Mulher ao espelho

Hoje, que seja esta ou aquela,

pouco me importa.

Quero apenas parecer bela,

pois, seja qual for; estou morta.

 

Já fui loura, já fui morena,

já fui Margarida e Beatriz.

Já fui Maria e Madalena.

Só não pude ser como quis.

 

Que mal faz, esta cor fingida

do meu cabelo, e do meu rosto,

se tudo é tinta: o mundo, a vida,

o contentamento, o desgosto?

 

Por fora, serei como queira

a moda, que me vai matando.

Que me levem pele e caveira

ao nada, não me importa quando.

 

Mas quem viu, tão dilacerados,

olhos, braços e sonhos seus,

e morreu pelos seus pecados,

falará com Deus.

 

Falará, coberta de luzes,

do alto penteado ao rubro artelho.

Porque uns expiram sobre cruzes,

outros buscando-se no espelho.

(Meireles, 2001, v. 1, p.533-4)

Mais de meio século se passou após a publicação desse poema e não é possível negar sua atualidade. Percebe-se aqui a busca de uma aparência física perfeita que, por sua vez, acaba escamoteando a própria essência do indivíduo.

Observa-se a presença de um eu‑lírico, representado por uma voz feminina, que se encontra em conflito. Essa mulher revela que a única coisa que ela quer é parecer bela, é o que lhe importa, visto que interiormente ela se encontra vazia, sem vida. Vale destacar aqui como as rimas alternadas, semelhante a um jogo de espelhos, reiteram o conteúdo de significação dos vocábulos que estão ligados por uma correspondência sonora (morta/importa; fingida/ vida; rosto/desgosto).

Essa voz feminina ainda declara que todas as "máscaras" que ela vestiu como loira, morena, Margarida, Beatriz, Maria, Madalena não a fizeram como ela sempre quis ser. Ao se referir a essas mulheres de grande importância na cultura ocidental, ela ressalta sua vulnerabilidade, pois não conseguiu se encontrar em nenhuma delas. Sobre esse aspecto, lembra Maria Lúcia Dal Farra:

Cecília usa o objeto especular para experimentar diversos estereótipos femininos. Assim, ela passará tanto por aqueles de origem literária, como é o caso da Margarida de Goethe e da Beatriz de Dante, quanto por aqueles de vertente mística, como é o caso de Maria e de Madalena. (Dal Farra, 2006, p.15)

Convém recordar que a imagem de Margarida remete tanto à personagem da obra Fausto, de Goethe, símbolo de pureza e de candura, quanto à cortesã francesa Marguerite Gautier, protago nista de Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho, que desempenha o papel da mulher sedutora que renuncia ao seu amor em prol da falsa moral burguesa. Beatriz, por sua vez, ficcionalizada por Dante na Divina Comédia, alude à imagem da mulher que se sacrifica em nome de sua paixão, enquanto Madalena representa a transgressora que se contrapõe à virtuosa Maria.

O eu‑lírico confessa que, embora a moda a esteja "matando", ela ainda seguirá suas respectivas exigências. Nesse sentido, o poema resvala numa questão que, principalmente para as mulheres, é um grande problema. Trata-se da imposição social de um padrão de beleza, em que "parecer" ou "fingir" é mais importante do que "ser". Essa voz do texto ainda aponta essa superficialidade exterior como algo muito pequeno perante o fingimento "do mundo, da vida, do contentamento, do desgosto".

De acordo com essas observações feitas em um pequeno recorte do que representa a poética ceciliana, é possível notar a ausência de questionamentos diante da condição feminina? A própria pergunta lançada pelo eu‑lírico do poema "Mulher de leque" – "Mas eu, a quem pertenço?" – estaria isenta de uma postura de se "colocar como mulher"?

Ao comentar sobre a presença do feminino em Cecília Meireles, Maria Lúcia Dal Farra (2006) ressalta:

há um olhar feminino em muitos poemas da autora, em que ela própria se identifica como mulher; há também poemas em que ela trata de mulheres; e há também outros poemas em que ela serve do masculino para fazer uma visão universal. [...] Contrariamente à poesia de Florbela, de Gilka e de Adalgisa, a de Cecília Meireles nunca teve a pretensão de erguer bandeira da mulher como sua causa [...] Mas isso não quer dizer que o olhar sobre a condição feminina esteja ausente em seus versos. (Dal Farra, 2006, passim)

A preocupação da autora de Viagem em trazer à luz questões relacionadas à condição feminina não se restringe somente a sua obra poética; ela também está presente em algumas das diferentes manifestações da prosa ceciliana, como o ensaio, as traduções e as crônicas. Vale, nesse momento, comentar brevemente sobre a atuação de Cecília como cronista.