Um breve recorte das traduções cecilianas

Cecília Meireles, como se sabe, apresenta um considerável número de textos traduzidos para língua portuguesa. Vale ressaltar Acanção de Amor e de Morte do porta‑estandarte Cristóvão Rilke

(1947), de Rainer Maria Rilke, feito a partir da versão francesa de Suzanne Kra, com a assistência de Paulo Rónai; Orlando (1948), de Virginia Woolf, publicado pela Editora Globo, de Porto Alegre; Bodas de sangue (1960) e Yerma (1963), de Federico García Lorca,publicados pela Agir, do Rio de Janeiro; os poemas "Sete poemas de Puravi", "Minha bela vizinha", "Conto", "Mashi" e "O carteiro do rei", de Tagore, publicados em edição comemorativa do centenário do autor (1961), bem como Çaturanga (1962), também do poeta indiano, publicado pela editora Delta, no Rio de Janeiro; além de alguns poemas israelenses, reunidos em Poesia de Israel (1962), com ilustrações de Portinari, em edição da Civilização Brasileira, do Rio de Janeiro. Acerca da sua atividade como tradutora, lembra Maria Lúcia Dal Farra:

Para tanto muito lhe vale a sua aplicação nas línguas que conhecia tão bem, a ponto de ter sido, pela vida afora, excelente tradutora de Rilke, Virginia Woolf, Lorca, Tagore, Maeterlinck, Anouilh, Ibsen, Pushkin, assim como antologias da literatura hebraica e de poetas de Israel, conhecedora que era Cecília da língua inglesa, francesa, italiana, espanhola, alemã, russa, hebraica e dos dialetos do grupo indo-irânico. (Dal Farra, 2006, p.3)

Essa notável quantidade de traduções1 realizadas pela poetisa nos mais diversos idiomas revela a preocupação da autora de Vagamúsica em divulgar a cultura de outros países através da literatura.Por outro lado, por necessidade financeira, ela também irá traduzir algumas obras de cunho comercial, como Os caminhos de Deus (1958), de Kathryn Hulme, Amado e glorioso médico (1960), de Taylor Caldwell, ambas publicadas por Seleções do Reader's Digest, além de outros livros. Como lembra Paulo Rónai, as dificuldades encontradas pelos tradutores não se limitam somente aos problemas com o texto: "Na prática, porém, a tradução se apresenta como uma operação de muitas faces, que envolvem aspectos comerciais, técnicos, psicológicos etc." (Rónai, 1976, p.56). Entretanto, o que se pretende aqui é matizar as versões que mostram o seu desempenho como divulgadora de outras culturas, principalmente as obras que tratam da condição feminina.

No que tange à temática das traduções realizadas por Cecília Meireles, em que o universo feminino é o foco da obra, destaco Orlando, de Virginia Woolf, e Yerma, de Federico García Lorca.Sobre este último livro, trata-se de uma peça teatral escrita por Lorca em 1934, dividida em três atos, que tem como personagem protagonista Yerma. Esta vive em constante conflito com seu marido e consigo mesma, uma vez que não tem filhos e sente-se na "obrigação" de tê-los.

Assistimos a esse triste caminhar de Yerma, dos seus desejos femininos, simples e naturais, para esse chão sem esperança onde se prostrará criminosa. Em meio a um mundo natural onde tudo parece estar em seu lugar certo, onde a vida se desenvolve com um ritmo que pareceria de coerência entre o céu e a terra, o pobre sonho de Yerma debate-se, atordoado, converte-se em castigo que ela nem entende nem aceita. (Meireles apud Lorca, 1963, orelha)

Assim, diante dos "desejos femininos, simples e naturais", como aponta Cecília, essa personagem lorquiana convive com a impossibilidade de ter filhos. Por conta disso, tanto Yerma quanto o seu marido são condenados pela sociedade, já que eles não conse guem "procriar". Nota-se que essa "função" está fortemente atrelada à imposição social do casamento. A protagonista, inclusive, alega não ser uma mulher de verdade, já que não tem filhos, o que reforça esse ideal que não desvincula a maternidade da condição feminina. Na concepção dela, ser mulher é ser mãe.

João

Não digo por ti: digo-o pelo povo.

Yerma

Um raio que parta o povo!

João

Não praguejes! É feio, numa mulher.

Yerma

Oxalá fosse eu uma mulher!

(Lorca,1963, p.49)

Esse peso vinculado à maternidade vai ser salientado durante todo o texto, por meio das diversas vozes femininas nele presentes:

4ª Lavadeira

Custa‑lhe muito estar em casa.

5ª Lavadeira

Essas machonas são assim. Preferem subir para o telhado ou andar descalças por esses rios, quando podiam estar em casa, fazendo renda ou compota de maçã.

1ª Lavadeira

Quem és tu para dizeres essas coisas? Ela não tem filhos, mas não é a culpa sua.

4ª Lavadeira

Quem quer ter filhos, tem‑nos. É que as mimosas, as preguiçosas, as melosas não são feitas para ter o ventre enrugado. (Riem-se)

3ª Lavadeira

E enchem-se de polvilhos e carmim e enfeitam-se com ramos de adelfa, à procura de outro que não seja o seu marido.

5ª Lavadeira

Essa é que é a verdade.

(Lorca, 1963, p.54, grifos meus)

Tais vozes (as lavadeiras) vão discutir a culpabilidade pelo fato de Yerma não ter filhos. O discurso dessas lavadeiras, na verdade, corresponde à opinião daquela sociedade que cobra um modelo tradicional familiar.

Yerma também irá fazer cobranças constantes a seu marido, exigindo que ele cumpra o papel "de homem" que o meio social lhe impõe:

Yerma

É certo. As mulheres dentro de suas casas. Quando as casas não são tumbas. Quando as cadeiras se quebram e os lençóis de linho se gastam com o uso. Mas aqui, não. Todas as noites, quando me deito, encontro aminha cama ainda mais nova, mais reluzente, como se acabasse de ser trazida da cidade.

João

Tu mesma reconheces que tenho razão de queixar-me. Que tenho motivos para estar alerta.

Yerma

Alerta? Por quê-? Em nada te ofendo. Vivo submissa a ti, e o que sofro, guardo pregado à minha carne. E cada dia que passa será pior. Não falemos nisso. Saberei levar a minha cruz como melhor puder, mas não meperguntes nada. Se pudesse, de repente, ficar velha e ter a boca como flor esmagada, poderia sorrir e ir levando a vida contigo. Agora, agora – deixa-me com os pregos da minha cruz.

[...] Yerma

Mas tu és tu, e eu sou eu. Os homens têm outra vida; o gado, as árvores, as conversas; e nós mulheres, não temos mais que a cria e o cuidado da cria.

(Ibidem, passim, grifos meus)

A protagonista sente-se completamente angustiada, pois lhe foi podada a condição de ser mulher, uma vez que para ela, sem filhos, não é possível cumprir seu papel de mulher/mãe.

Seu marido, por outro lado, receia ser traído, pois tem consciência de que não exerce o papel "de homem" que tanto lhe é cobrado. Nesse sentido, João se vê impossibilitado de exigir algo de Yerma, uma vez que ele não cumpre com a sua "função" de esposo. Ele também teme pela honra de sua família, o que mostra o quanto o poder das imposições e valores sociais se fazem presentes aqui.

Pode-se dizer que o casal sente-se completamente falido quanto aos seus respectivos papéis de esposo/a. Nenhum dos dois, na verdade, é culpado; ambos são vítimas de uma sociedade que obriga uma postura vinculada a valores tradicionais e, quando estes não são cumpridos, ela os pune.

Yerma questiona a diferença entre os homens e as mulheres; estas estariam sempre presas aos detalhes, sem contentar-se com pouco e, de certa forma, menos conformadas com a situação em que vivem:

Victor

Tudo é o mesmo. As mesmas ovelhas têm a mesma lã.

Yerma

Para os homens, sim; mas nós mulheres, somos outra coisa. Nunca ouvi dizer a um homem, comendo: como são boas as maçãs! Ides ao que é vosso, sem reparardes nas delicadezas. Por mim, posso dizer: detesto a água destes poços.

(Lorca, 1963, p.85, grifo meu)

O desenlace dessa tragédia culmina com a morte de João, assassinado pela fúria de Yerma, que o enforca com as próprias mãos. A tortura que vive a protagonista por não ter filhos e, consequentemente, por não desempenhar o papel "de mulher" imposto pela sociedade a ensandece.

Em Yerma, como também em outros dramas lorquianos, é possível notar o final trágico decorrente da repressão gerada pelos valores sociais que, por sua vez, submetem os instintos humanos (como o amor) aos códigos impostos pela sociedade. O convencionalismo é o gerador da frustração da felicidade humana. Não é ao acaso que Lorca escolhe, em grande parte de suas obras, as mulheres para desempenharem papéis fortes e de destaque, já que elas representam as maiores vítimas daquela sociedade repressora.

Pode-se afirmar que Yerma problematiza questões que permeiam a opressão, a cobrança social que tenta mascarar e prezar pela "honra" de valores falidos que são vividos hipocritamente pelos indivíduos. Discutem-se, desse modo, os papéis exercidos pelo homem e pela mulher dentro da sociedade. Assim, tanto Yerma quanto o marido duelam contra os próprios anseios individuais (João de não ser pai e Yerma de ser mãe). Eles também lutam contra as imposições que os obrigam a cumprir suas "funções" de acordo com os princípios da instituição Família.

Assim como essa peça dramática de Lorca, Orlando, de Virginia Woolf, também irá questionar a condição feminina na sociedade. Escrita em 1928, a obra tem como protagonista Orlando, que vive por quatro séculos em sua propriedade e, durante esse tempo, muda de sexo e transforma-se numa mulher. A personagem principal teria sido inspirada em Vita Sackeville-West, esposa de um diplomata e mãe de dois filhos, com quem a autora inglesa tem um relacionamento que perdura por cerca de oito anos, sem que ambas dissolvam com seus respectivos matrimônios; além disso, irão trocar inúmeras cartas. Sob o rótulo de uma "biografia ficcionalizada", Orlando é apontado/a por muitos estudiosos da obra de Woolf como um ser imaginário, uma espécie de ideal andrógino do ser humano. Também foi definida como a "más larga y fascinante carta deamor de la literatura" (Itzcovich, 1997). Não resta dúvida de que setrata de um texto aberto a muitas interpretações.

Ao longo da narrativa, o leitor depara-se com as mais diversas experiências de Orlando, desde a sua decepção amorosa por Sasha, a princesa russa, a quem ele dedica um poema satírico, até a sua experiência como cônsul na Turquia. Vale lembrar que neste mesmo lugar, após acordar de um sono de sete dias, ele descobre que seu corpo é agora o de uma mulher. A princípio, essa mudança a perturba, como pode ser observado no trecho a seguir:

"Cair de um mastro!", pensava "por ter visto os tornozelos de umamulher! Vestir-se como um Guy Fawkes e desfilar pelas ruas para queas mulheres o admirem; negar instrução à mulher para que ela não ridicularize; ser escravo das saias mais insignificantes, e, no entanto, jactar-se como rei da criação! Céus!", pensava "como nos enlouquecem! Como somos loucas!" E aqui pareceria, por certa ambiguidade das suasexpressões, que censurava igualmente ambos os sexos, como se não pertencesse a nenhum; e, na verdade, naquele momento vacilava; era homem; era mulher; conhecia os segredos, compartilhava das fraquezas de cada um. (Woolf, s.d., p.94, grifos meus)

Somente depois de regressar à terra natal é que Lady Orlando se sente mulher e compreende as contingências dos dois sexos. No decorrer do romance, notam-se alguns comentários bastante irônicos sobre essa relação vivenciada pela protagonista em/e sua condição feminina:

Recordava como tinha insistido, nos seus tempos de rapaz, em que as mulheres devem ser obedientes, castas, perfumadas e caprichosamente enfeitadas. "Agora tenho que pagar com meu corpo por aquelasexigê-ncias", refletiu; "pois as mulheres não são (a julgar pela minha própria experiê-ncia do sexo) obedientes, castas, perfumosas e caprichosamente enfeitadas já por natureza. Só podem conseguir essas graças, sem as quais não lhe é dado desfrutar nenhuma das delícias da vida, mediante a mais enfadonha disciplina. Só o penteado", pensava, "me tomaráuma hora, todas as manhãs; outra hora para mirar-me ao espelho; há o espartilho, o banho, os pós, há que trocar a seda pela renda e a renda pelo brocado; há que ser casta o ano inteiro..." [...] Lorde Chesterfield murmurou-o a seu filho, sob as mais severas recomendações confidenciais: "As mulheres são apenas crianças grandes... Um homem inteligenteapenas se diverte com elas, agrada‑as, adula‑as". [...] As mulheres sabem muito bem disso; embora um homem de talento lhes mande seus poemas, elogie seu critério, solicite sua crítica e tome seu chá, isto de modo algum significa que respeite suas opiniões, admire sua compreensão ou recuse, à falta de espada, transpassá-la com sua pena. Tudo isso, por mais baixo que se murmure, pode transpirar [...]. (Woolf, s.d., passim, grifos meus)

Desse modo, Orlando, agora como mulher, vivencia várias aventuras amorosas, desde o conde romeno que a corteja insistentemente até o misterioso Shelmerdine de quem ela terá um filho.

É interessante observar que é na condição do sexo feminino que Orlando consegue terminar sua obra-prima, o poema "O carvalho". Por meio de uma linguagem metalinguística, o romance woolfiano denota a representatividade da literatura na vida dessa perso nagem, mostrando como se dá esse processo do "fazer literário":

Ao escrever, sentiu como uma força (lembrem-se de que estamos lidando com as mais obscuras manifestações do espírito humano).

[...] O amor, disse o poeta, é toda a vida da mulher. E, se olharmos por um momento Orlando a escrever, na sua mesa, temos de reconhecer que nunca houve mulher com mais aptidão para isso. [...] o que, naturalmente, constitui o verdadeiro tema da vida e o único tema possível da literatura. Na certa, Orlando deverá ter feito alguma dessas coisas? Ai de mim, mil vezes ai de mim, Orlando não fez nada disso.

[...] Mas o amor – como definem os novelistas do gê-nero masculino – equem realmente pode falar com mais autoridade? [...] O amor é despir assaias e... Mas todos sabemos o que é o amor. E Orlando fez isso? A verdade obriga-nos a dizer que não, que não o fez. Então, se a personagem da nossa biografia não ama nem mata, só pensa e imagina, podemos concluir que é um corpo morto e abandoná‑la. (Woolf, s.d., passim, grifos meus)

Ao falar da presença do amor como tema nos escritos de Orlando, o narrador esclarece que, apesar de ser mulher, essa temática não é recorrente em seus textos. Tais observações vão de encontro ao senso comum que vê a literatura "feminina" repleta de senti mentalismos. É através de comentários como esse que o romance questiona a condição da mulher como escritora.

Com base nessas considerações realizadas até o momento acerca da presença do feminino nas mais diversas expressões da produção de Cecília Meireles, seria possível afirmar que a escolha em traduzir esses livros de Lorca e Woolf foi aleatória?

Ezra Pound, considerado um dos grandes inovadores nas discussões que giram em torno da função do tradutor e que exercerá forte influência sobre os irmãos Campos no Brasil, vê o "ato de traduzir" como um processo criativo, uma maneira de unir literaturas e culturas. Ao tratar dessa concepção de Pound, comenta John Milton:

O tradutor não segue os passos do original, aspirando a ser seu amigo; em vez disso, ele domina a tradução, colocando seu próprio ser dentro dele. [...] a melhor maneira de o poeta praticar e dominar a sua profissão é traduzir. A tradução está também no centro de mudanças e desenvolvimentos em literaturas. É impossível separar uma literatura de outra. As traduções sempre asseguram que estilos novos e ideias sejam transferidos de uma literatura para a outra. (Milton, 1993, p.97)

Tendo em mente esse conceito poundiano, pode-se dizer que, quando Cecília se propõe a traduzir Orlando e Yerma, por exemplo, ela traz à luz as ideias propagadas nessas obras, transmitindo-as para uma outra língua e cultura.

Segundo Paulo Rónai: "Traduzir é a maneira mais atenta de ler [...] Precisamente esse desejo de ler com atenção, de penetrar melhor as obras complexas e profundas, é que é responsável por muitas versões modernas [...]" (Rónai apud Campos, 1970, p.31). O trabalho do tradutor, portanto, não se resume simplesmente em difundir um texto de um idioma para outro, mas também em resgatar a essência de uma determinada obra. Essa importância atribuída à atuação do tradutor nem sempre foi reconhecida. Conforme destaca John Milton, especialmente durante os séculos XVI e XVII essa profissão era vista de maneira bastante desprivilegiada, igualada, na maioria das vezes, às funções servis; examinada de modo inferior, como "o avesso de uma tapeçaria, ou a luz da vela comparada à luz do sol" (Milton, 1993, p.10). Não se pode esquecer que essa atividade foi historicamente dominada pelas mulheres, o que aponta para uma relação entre tradução e gênero.

Sherry Simon (1996, p.46) lembra que, durante o período da Renascença, sobretudo na Inglaterra, a tradução era considerada uma modalidade intelectual apropriada para o sexo feminino. A autora ainda ressalta o duplo movimento gerado por essa atividade que irá condenar a mulher à margem do discurso, mas que também irá contribuir para libertá-la do próprio silêncio. Ela cita alguns exemplos, como Aphra Behn, Germaine de Stäel, Margaret Fuller, Eleanor Marx, Constance Garnnett, Jean Starr Untermeyer, Willa Muir e Helen Lowe-Porter que, por meio das traduções que realizaram, puderam difundir suas ideias sobre temas até então não per mitidos às mulheres. Nesse sentido, a transmissão do significado de textos literários será utilizada como importante veículo cultural e ideológico (ibidem, p.40).

É a partir dessa perspectiva que Douglas Robinson (1995 apud Simon, 1996, p.45) atenta para a "feminização" da tradução, que, segundo o autor, começa a ser percebida de maneira mais intensa a partir do século XVI. Trata-se de um processo do qual as mulheres passam a se valer a fim de garantir voz e espaço no universo da escrita.

Sob esse aspecto, as teorias feministas acerca da tradução irão enfocar a relação entre os conceitos que colocam à margem mulheres e tradutores. São questionados os processos que levaram essa atividade a ser "feminizada". Além disso, procura-se mostrar a preocupação das estruturas de poder em manter essa associação de maneira negativa:

Because they are necessarily "defective" all translations are "reputed females". In this neat equation, John Florio (1603) summarizes a heritage of double inferiority. Translators and women have historically been the weaker figures in their respective hierarchies: translators are handmaidens to authors, women inferior to men. […] Whether affirmed or denounced, the femininity of translation is a persistent historical trope. "Woman" and "translator" have been relegated to the same position of discursive inferiority. 2 (Simon, 1996, p.1)

Simon (1986, p.83) também chama a atenção para o fato de a tradução ser um ato da escrita e da comunicação que não se isenta de padrões, valores e ideias. Os objetivos, assim como o próprio trabalho do tradutor, são maneiras que este tem de interagir com o mundo. Trata-se de um procedimento que reflete uma intensa relação que se estabelece entre texto e cultura, entre autor e leitor. O discurso e a prática da tradução, segundo a autora, requerem, acima de tudo, um posicionamento diante da enunciação. Portanto, ao levar em conta a capacidade de circulação das traduções, torna-se importante analisar a sua contribuição para o enriquecimento cultural. Isto lhe atribui grande valor, uma vez que ela funciona como mediador de ideologias.

Já para Haroldo de Campos, a tradução representa um processo de recriação, bem como de exercício crítico. Assim, ao retomar as ideias de Albrecht Fabri, ele afirma que "toda a tradução é crítica", pois "nasce da deficiência da sentença", de sua insuficiência para valer por si mesma" (Campos, 1970, p.21). Campos, com base nos comentários de Ezra Pound, ainda observa:

Então, para nós, tradução de textos criativos será sempre recriação ou criação paralela, autônoma porém recíproca. Quanto mais inçado de dificuldades esse texto, mais recriável, mais sedutor enquanto possibilidade aberta de recriação. Numa tradução dessa natureza, não se traduz apenas o significado, traduz-se o próprio signo, ou seja, sua fisicalidade, sua materialidade mesma (propriedades sonoras, de imagética visual, enfim tudo aquilo que forma [...] (Campos, 1970, p.24)

Não há dúvidas de que traduzir é colocar-se perante o texto, com o tradutor compartilhando a sua bagagem de mundo, a sua perspectiva, os seus ideais; não se trata de um processo gratuito.

A tradução de poesia (ou prosa que a ela equivalha em problematicidade) é antes de tudo uma vivência interior do mundo e da técnica do traduzido. Como que se desmonta e se remonta a máquina de criação aquela fragílima beleza aparentemente intangível que nos oferece o produto acabado numa língua estranha. E que, no entanto, se revela suscetível de uma vivissecção implacável, que lhe revolve as entranhas, para trazê-la novamente à luz num corpo linguístico diverso. Por isso mesmo a tradução é crítica. (Campos, 1970, p.31)

Nesse contexto, pode-se afirmar que a seleção de uma tradução é sempre reveladora, e não um ato indiferente. Sobre esse assunto, Haroldo de Campos complementa:

Os móveis primeiros do tradutor, que seja também poeta ou prosador, são a configuração de uma tradição ativa (daí não ser indiferente a escolha do texto a traduzir, mas sempre reveladora), um exercício de intelecção e, através dele, uma operação de crítica ao vivo. (Campos, 1970, p.32)

Com base no que foi exposto acerca do papel do tradutor, não seria possível afirmar que as intenções de Cecília Meireles, ao traduzir obras de grandes valores literários como Yerma e Orlando, se limitassem a questões meramente comerciais. Essa seleção realizada por ela mostra mais uma vez seu comprometimento em tratar de assuntos relacionados ao universo feminino. É sob uma perspectiva empenhada que a autora brasileira torna possível a circulação desses livros em língua portuguesa, recuperando, dessa forma, as discussões problematizadas nesses textos que, por sua vez, vão ao encontro das funções desempenhadas por homens e mulheres na sociedade.

Após examinar sucintamente alguns textos poéticos, crônicas e traduções de Cecília Meireles que revelam seu comprometimento com as questões relacionadas ao feminismo, ainda cabe analisar um aspecto pouco explorado pelos estudiosos da obra ceciliana; trata-se da sua prática como ensaísta. Por isso, com o intuito de reiterar a presença da autora de Vaga música dentro dos estudos literários no Brasil e na América Latina, pretende-se, por meio do estudo da conferência "Expressão feminina da poesia na América", mostrar seu caráter precursor no que tange às discussões da crítica literária feminista latino-americana.