Cecília como estudiosa e conhecedora da América Latina
Ainda sobre a conferência, convém retomar outros aspectos fundamentais, mais especificamente no que diz respeito ao próprio conceito de América e integração latino-americana evidenciados nesse texto.
Segundo Ana Pizarro (1990, p.11), a chegada de Colombo e a conquista posterior são fatos que irão despertar a consciência latino-americana. Isto indica que o sentimento de aproximação entre as diferentes culturas manifesta-se em decorrência dos próprios acontecimentos históricos vivenciados no "novo" continente. A autora ainda complementa: "si hablamos de integración latinoamericana es porque hay algo que nos articula: los rasgos de una cultura que es una y diversa, una heterogénea, una cultura múltiple es donde, sin embargo, nos reconocemos en un mismo universo simbólico" (Pizarro, 1990, p.11).
Miguel Chevalier, em 1836, já havia expressado o conceito de América Latina, entretanto, faltou-lhe atribuir o nome a essa ideia: "América del Sur es como la Europa meridional, católica y latina. La América del Norte pertenece a una población protestante y anglosajona" (Chevalier apud Ardao, 1986, p.39). Sendo assim, um dos primeiros registros da expressão será utilizado, em Paris, em 1851, pelo colombiano Torres Gaicedo, que afirma: "Hay
América anglosajona, dinamarquesa, holandesa, etc.; la hay española, francesa, portuguesa; y a este grupo ¿que denominación científica aplicarle sino el de latina?" (apud Pizarro, 1990, p.13). Além de Gaicedo, o chileno Francisco Bilbao, também em 1851, declara: "Pero la América vive, la América Latina, sajona, e indígena protesta, y se encarga de representar la causa del hombre" (apud Pizarro, loc. cit.).
Cabe ressaltar, porém, que essa noção de América Latina ainda não englobava todos os povos do continente, restringindo-se basicamente à América hispânica. O Brasil fará parte desta noção efetivamente no começo do século XX (Pizarro, 1990, p.13) como pode ser observado no fragmento abaixo, em que o crítico literário José Enrique Rodó, um dos grandes estudiosos do americanismo, em 1905, ao tratar o conceito de América, irá englobar o Brasil:
Alta es la Idea de la pátria; pero en los pueblos de la América Latina, en esta viva armonía de naciones vinculadas por todos los lazos de la tradición, de la raza, de las instituciones, del idioma, como nunca las presentó juntas y abarcando tan vasto espacio la historia del mundo, bien podemos decir que hay algo aún más alto que la idea de la América; la idea de la América, concebida como una grande e imperecedora unidad, como una excelsa y máxima patria, con sus héroes, sus educadores, sus tribunos; desde el golfo de Méjico hasta los hielos sempiternos del Sur. (Rodó,1957, p.102-3)
É importante dizer que a ideia de integração dos povos indígenas e afro-americanos ao conceito de América Latina ganhará força a partir do pensamento de José Martí. Assim, nas primeiras décadas do século XX, serão gradativamente integradas a essa concepção culturas que "poco o nada tienen que ver con lo estrictamente latino como son las áreas indígenas y de origen africano de Caribe y la costa atlântica" (Pizarro, 1990, p.15).
Aos poucos, o termo latino-americano vai sendo utilizado e aceito no próprio continente; como ressalta Pizarro (1990, p.13), a expressão constrói-se de maneira paulatina, não se tratando de uma definição estática, mas que está sempre em evolução. É interessante notar também que o pensamento de distinção entre América Latina e América Anglo-saxônica vai se intensificando de acordo com a expansão política e econômica dos Estados Unidos.
El concepto de América Latina, que es la idea de nuestra integración, se va construyendo, pues, en una dialéctica de consolidación y defensa. La necesidad de conformación de un gran bloque cuya unidad cultural ya había sido observada por Bolívar, se orienta a la lucha descolonizadora frente a España primeramente y frente a lo que se percibe como el peligro de los Estados Unidos luego. (Ibidem, p.13)
A noção de pan-americanismo que engloba todos os países da América passa a ser refutada à medida que se percebe o risco representado pelo poder hegemônico dos Estados Unidos em relação aos outros povos do continente. Diante disso, a célebre expressão "Nuestra América" de José Martí irá delimitar bem esse afastamento da América Anglo-saxônica, pondo em destaque uma outra América, esta, por sua vez, Latina.
Em "Expressão feminina da poesia na América", por exemplo, percebe-se que Cecília Meireles não engloba as escritoras anglo-saxônicas em seu rol de análise. Isto revela que o seu entendimento de América vai ao encontro da concepção defendida por Martí. Como foi mencionado anteriormente, o conceito de americanidade ou americanismo, ou melhor, "sentimento de pertença à América", conforme apontou Zilá Bernd (1995), modifica-se de acordo com o tempo. Ao tratar desses termos, cabe, primeiramente, questionar acerca do próprio conceito de América, que, por sua vez, é bastante complexo. Afinal, ser americano abrange todos os povos que habitam esse novo continente? Que sentimento de "latinidade" é este que une países com línguas e culturas distintas?
Na conferência ceciliana, esse sentimento de americanidade torna-se evidente. A autora ainda utiliza o termo "ibero-americano", usual naquela época, como correspondente a América Latina, pois este, como se sabe, torna-se recorrente a partir da década de 1970.
Sobre a utilização dos termos América hispânica e ibérica, Arturo Ardao (1986) chama a atenção para o fato de a expressão América Latina não suplantá-los, e sim complementá-los:
de que la supranacionalidad latinoamericana, lejos de negar la hispanoamericana, o, en su caso, la iberoamericana, es precisamente de ellas que saca su mayor fuerza [...] sólo al convertirse en latinoamericano el proceso integracionalista continental alcanza su culminación. (Ardao, 1986, p.47)
A ideia de integração também será refletida no âmbito literário. Ardao ressalta o fato de o conceito de literatura hispano-americana servir de modelo para o de ibero e latino-americana. Ainda acerca do uso dessas diferentes nomenclaturas, o autor acredita que se trata de um convencionalismo que revela a consciência literário-idiomática vivida de acordo com o momento histórico. Durante o período romântico e moderno, por exemplo, o uso de "literatura hispano-americana" será predominante na América. Só a partir da década de 1940 é que a expressão "literatura ibero-americana", difundida sobretudo por Pedro Henríquez Ureña, começa a ser utilizada com frequência, abrangendo, assim, outros países até então excluídos do conceito de "nação americana". Isto explicaria a predileção do adjetivo "ibero-americano", recorrente naquela época, em vez do "hispano-americano" no ensaio de Cecília Meireles, apesar de ela não mencionar nenhuma autora de língua portuguesa em seu texto. Quando se refere à escrita feminina ibero-americana, Cecília alude ao conceito que visa à integração entre os povos americanos de língua latina e não ao sentido lato que, no caso, englobaria a produção de autoras de línguas portuguesa e espanhola.
Para Arturo Ardao, a expressão América Latina é a mais apropriada, pois ela consegue abranger a diversidade do continente, não excluindo o entendimento que pressupõem as definições de América hispânica e Ibérica. Ele ainda esclarece:
Lo que la década del 40 fue al concepto de literatura iberoamericana, vino a serlo la del 70 al de literatura "latinoamericana". [...] Muy escaso empleo tuvo después, aun en toda la primera mitad del siglo XX; y cuando lo tuvo, fue – en general – para su aplicación, o sola literatura hispanoamericana, o, en su hora, a la iberoamericana. [...] El concepto de literatura latinoamericana en su significado cabal, en tanto que literatura comprensiva de las letras americanas meridionales de lenguas, no sólo española y portuguesa, sino también francesa, es ahora, tras variados antecedentes, que alcanza realmente su culminación. (Ardao, 1986, p.62)
Com base nos comentários expostos sobre o conceito de América Latina, percebe-se que, na conferência "Expressão feminina da poesia na América", de Cecília Meireles, o termo ibero-americano é usado como sinônimo de hispano-americano que, por sua vez, adquire no texto a ideia do que se entende atualmente como unidade latino-americana.
Observa-se que a denominação de "Novo Mundo" assume no texto ceciliano uma acepção positiva sobre esse novo continente exuberante e repleto de diversidade: "trata-se do Novo Mundo: numa paisagem excitante, com raças e culturas que se encontram para retomar a vida desde o princípio. A mulher ibero-americana encara essa grande paisagem com a alma cheia de tesouros sigilosos" (Meireles, 1959, p.63). A concepção de América Latina, vista geralmente como uma relação desprestigiada com a tradição política e intelectual do Velho Mundo, apresenta aqui um outro sentido. É através dessa perspectiva que, ao falar de "mulher na América", "mulher americana", Cecília busca por uma identidade latino-americana.
Nesse sentido, "Expressão feminina da poesia na América", escrita em 1956, além de valorizar os textos de autoria feminina, também aborda a questão da identidade que é uma das preocupações atuais do discurso da crítica feminista latino-americana (Guerra, 1995, p.182), o que revela o caráter precursor de Cecília Meireles diante dessas discussões.
Esse trabalho da autora brasileira de reunir representantes da poesia escrita por mulheres de países como Cuba, Bolívia, Argentina, Uruguai, Colômbia, Peru, México e Chile mostra mais uma faceta de Cecília: a de conhecedora e estudiosa da América Latina.
Nota-se que as poetisas mencionadas no ensaio são de grande importância no âmbito da produção literária de seu país; entretanto, é de se estranhar que grande parte delas não integre a historiografia tradicional canônica. Portanto, ao compilar esses nomes, propõe-se aqui uma leitura além do cânone. Vale lembrar a obra Literatura hispano‑americana, do escritor Manuel Bandeira, publi-cada em 1949. Não resta dúvida da grandiosidade desse livro, no que tange aos estudos pioneiros de hispanismo no Brasil; sendo Bandeira um dos primeiros a reconhecer neste país a poesia de autoria feminina. O autor, porém, deixa de lado escritoras1 que, sete anos depois, Cecília irá recuperar em "Expressão feminina da poesia na América". A respeito desse "trabalho de resgate", Constancia Lima Duarte destaca:
O trabalho de resgate das escritoras antigas que começa a ser feito, não deve pretender apenas se constituir num arrolamento das "esquecidas", mas sim permitir o conhecimento das tradições literárias das mulheres, o percurso, as dificuldades e mesmo as estratégias utilizadas para romper o confinamento cultural em que se encontravam. (Duarte, 1990, p.21)
Ao considerar que a crítica feminista atual preocupa-se em quebrar essa invisibilidade a que os textos produzidos pelas mulheres foram submetidos durante muito tempo, assim como questionar as leituras e métodos sustentados pela crítica tradicional, pode-se afirmar que, por meio da referida conferência, Cecília apresenta uma postura precursora diante da crítica literária feminista na América Latina, elucidando e valorizando, portanto, uma produção duplamente "silenciada" – a escrita de autoria feminina de mulheres latino-americanas.
Convém lembrar que esse aspecto acerca da dupla marginalização será enfatizado, a partir dos anos 1970, sobretudo pelos estudos da crítica pós-colonialista que tendem a analisar a história de grupos subalternos. Estes estariam submetidos à supremacia da classe dominante, bem como da história oficial (Bonnici, 2005, p.230).
Nas sociedades pós-coloniais, o sujeito e o objeto pertencem a uma hierarquia em que o oprimido é fixado pela superioridade moral do dominador. O colonizador, seja espanhol, português, inglês, se impõe como poderoso, civilizado, culto, forte, versado na ciência e na literatura. Por outro lado, o colonizado é descrito constantemente como sem roupa, sem religião, sem lar, sem tecnologia, ou seja, em nível bestial. (Ibidem, p.230, grifo do original)
Nas sociedades pós-coloniais, a cultura dominante irá sempre se colocar de maneira superior; o que não se inscreve nela ficará à margem. E ao sujeito "marginal" caberá o confinamento e o silêncio. Sobre isso, comenta Thomas Bonnici:
Os críticos tentam expor os processos que transformam o colonizado numa pessoa muda e as estratégias dele para sair dessa posição. Spivak (1995, p.28) discursa sobre a mudez do sujeito colonial e da mulher subalterna: "o sujeito subalterno não tem nenhum espaço a partir do qual ele possa falar". (Bonnici, op.cit., p.231)
Diante dessa situação de confinamento, não é de se estranhar que a mulher nas sociedades pós-coloniais seja "duplamente subalterna", uma vez que ela:
é o objeto da historiografia colonialista e da construção de gênero. [...] a mulher, nas sociedades pós-coloniais, foi duplamente colonizada. [...] O objetivo dos discursos pós-coloniais e do feminismo, nesse sentido, é a integração da mulher marginalizada à sociedade. (Bonnici, 2005, p.231)
Em face dessa tentativa de integrar a mulher à sociedade, os estudos literários pós-coloniais e feministas propõem uma releitura de obras canônicas que serviram de veículo para os interesses particulares de grupos restritos. Essa leitura contrapontual, conforme define Bonnici, equivaleria ao processo de descolonização, em que há o "desmascaramento e demolição do poder colonial em todos os aspectos" (2005, p.236). Olhar por esse viés é importante, já que nos deparamos constantemente com "resquícios poderosos, sempre latentes, das forças culturais e institucionais que sustentavam o poder colonial" (2005, p.236-7). Pode-se afirmar que os princípios da descolonização têm como objetivo desafiar "a centralidade, a universalização e as forças hegemônicas", bem como atentar para o fato de que "a marginalidade ou excentricidade (raça, gênero, normalidade psicológica, exclusão, distância social, hibridismo cultural) é uma fonte de energia criativa" (2005, p.237).
Ao tratar de vozes femininas que se inserem em sociedades pós-colonialistas, como é o caso da América Latina, as mulheres têm um duplo desafio pela frente, uma vez que estão confinadas numa situação de dupla marginalidade. Em vista disso, tornam-se importantes os estudos da crítica feminista latino-americana que analisem as particularidades presentes nesse contexto, as quais, com certeza, diferem da realidade dos países desenvolvidos.
Ao falar da poesia dessas mulheres latino-americanas, Cecília Meireles reconhece a diversidade de vozes presentes nesse contexto, admitindo também o número crescente de produções de autoria feminina no novo continente:
De todos os países nos chegam nomes, fragmentos de obras que estão sendo realizadas, – e apenas podemos adivinhar uma ou outra tendência que se acentua aqui e ali, no imenso mundo lírico onde tudo já está cantado das mais variadas maneiras. (Meireles, 1959, p.101-2)
Diante das colocações expostas em "Expressão feminina da poesia na América", fica evidente o conhecimento de Cecília Meireles da produção feminina hispano-americana. É notável a maneira como os conceitos aqui presentes se ligam à experiência intelectual da escritora, não sendo levados a um sentido restrito. Tal aspecto, conforme lembra Adorno, seria mais uma das qualidades do texto ensaístico, cujo pensamento:
não avança em um sentido único; em vez disso, os vários momentos se entrelaçam como num tapete. Da densidade dessa tessitura depende a fecundidade dos pensamentos. O pensador, na verdade, nem sequer pensa, mas sim faz de si mesmo o palco da experiência intelectual, sem desemaranhá-la. (Adorno, 2003, p.30)
Em vista disso, convém ainda destacar um dado significativo nessa conferência, no que se refere à amplitude dos comentários dedicados às escritoras do Uruguai. Das 28 autoras citadas, dez são uruguaias.2 Com o intuito de discutir o diálogo que se estabelece entre elas e a autora brasileira, pretende-se a seguir mostrar a leitura que Cecília faz acerca de suas respectivas obras, como também apontar que não é arbitrária essa predileção.