O diálogo com as uruguaias
Ser una poeta es como ser una cocinera fabricando en la cocina de todos los días, un pan extravagante, extralimitado, ex- trafamiliar, extraterritorial, extravenado, extravasado, extralegal.
Un pan con fronteras y leyes propias, cuya harina es de molienda entre el yo solitario y personal, y el mundo y la so- ciedad que nos rodea, donde se trabajan integrados, las cáscaras más duras con el polen más ligero.
Ser poeta en el Uruguay, hoy es ser quien soy, o me parece ser, en un lugar determinado del planeta.
Amanda Berenguer
Conforme recorda Maria Lúcia Dal Farra (2003, p.4), é a partir de 1940 que a poetisa brasileira "começa sua saga de viagens", que significavam muito mais que percorrer terras estrangeiras, mas sim conhecer culturas diferentes:
experiências poéticas que redundaram em obras que, embora sendo versos de itinerância, são, antes, pura poesia contemplativa. Em verdade, os lugares visitados perfazem, para Cecília, "retratos de uma grande pátria transcendente", desejo de abolição das linhas demarcatórias, terras que ela habita na sua condição de "moradora de uma latitude própria", ela que, naquilo que escreve, exerce a condição de andarilha solitária e de exilada sem parada fixa. (Dal Farra, 2003, p.5)
Além de apreciar a diversidade dos lugares por onde passa, através de suas visitas a países como Argentina, Uruguai, França, Bélgica, Holanda, Índia, Itália, Israel, entre outros, Cecília acaba estabelecendo uma rede de amizades, além de estreitar os laços já existentes. O crítico uruguaio Cipriano Vitureira, com quem a es- critora irá se corresponder durante um longo período, ao comentar a passagem da poetisa pelo Uruguai, em 23 de junho de 1944, no Club Brasileiro revela:
Confieso que me unía a Cecília Meireles una lámina ancha de cariño, que era a la vez emotiva solicitud ante su fortaleza íntima y ante su absoluta tristeza fundamental, de la que tenía cierto pudor en sus ojos, tristeza que se posaba apenas en su extraña y dulcísima sonrisa sobreviviente. (Vitureira, 1965, p.9)
Nesse mesmo dia, mencionado por Cipriano, Cecília Meireles profere uma palestra no Instituto Cultural Brasileño-Uruguayo (Icub) a convite de Eduardo J. Couture, José Pereira Rodríguez e Albino Peixoto Jr., os quais teriam contribuído para o acolhimento da poetisa durante essa visita ao Uruguai. Sua ida ao Icub será bem rápida, praticamente apenas para o tempo de sua apresentação, segundo declarou1 Julieta Vitureira, esposa de Cipriano Vitureira e que na época trabalhava no Instituto.
Ainda em junho, mês em que permanece em Montevidéu, com a assistência de Maria V. de Muller, Esther de Cáceres e Nilda Muller, a escritora brasileira, no dia 20, ministra a conferência "Lirismo popular brasileño", no Salão de Atos da Universidade da República (Vitureira, 1965, p.10).
Assim, por meio de suas viagens, Cecília Meireles conhece outros grandes nomes da cultura uruguaia, como Gastón Figueira, Clara Zum Felde, esposa do crítico uruguaio Alberto Zum Felde, os pintores Torres-García, Figari, Arzádum, a família Vaz Ferreira, Esther de Cáceres, à qual a poetisa brasileira enviou muitos de seus livros.2 O vínculo ceciliano com o país vizinho pode ser observado nas suas crônicas presentes no livro Crônicas de viagem 1, editado pela Nova Fronteira em 1998, com organização de Leodegário A. de Azevedo Filho. Vale mencionar que cerca de quinze textos referem-se diretamente ao Uruguai e foram publicados pela primeira vez no jornal Folha Carioca durante o ano de 1944, período em que Cecília visitou Montevidéu. Em "Rumo: Sul (X)", por exemplo, ao falar sobre Gáston Figueira, tradutor de muitos de seus poemas para a língua espanhola, ela comenta:
Gastón Figueira é muito conhecido no Rio, e muito estimado, porque tem traduzido com carinho inúmeros poetas brasileiros, e até prepara edições resumidas de alguns, para uma editora dos Estados Unidos. Isso, pelo lado intelectual e interesseiro. Pelo lado desinteressado, Gastón Figueira é um poeta para quem a poesia parece ter uma finalidade moral de compreensão e solidariedade humana. (Meireles, 1998, p.109-10)
Ainda em Crônicas de viagem 1, no texto intitulado "Rumo: Sul (XIII)", outras grandes figuras no âmbito da pintura uruguaia são reconhecidas:
Há dois dias, ao entrar numa sala de conferências, avistei, numa peça contígua, o pintor Torres-García, que ia carregando um quadro, em direção a uma parede. Qualquer dia escreverei longamente sobre esse homem admirável que leva setenta anos de vida dura, realizando uma obra a que tem sido constantemente fiel. Quero deixar agora aqui apenas o perfil enérgico, de terra amarelada, com grandes ângulos agudos, e sua melena branca descendo para os ombros como na cabeça batalhadora de um profeta. A profissão encurvou-lhe o corpo magro: ele caminha como um pássaro, e o quadro que leva nas mãos é como um galho de flores, de geometrias alucinantes. (Meireles, 1998, p.122)
Logo em seguida a esse comentário, Cecília confessa estar impressionada com o trabalho do pintor Figari e também promete escrever sobre ele. Sobre a sua pintura, ela complementa: "Há uma ternura tão grande em tudo que pintou Figari que a admiração pelos seus quadros torna-se logo sentimental. Dá vontade de beijar. É uma infância imensa. Um jogo de coração. Um céu" (ibidem, p.123).
Já em "Rumo: Sul (XIV)", destaca-se a atuação do poeta Carlos Rodríguez Pintos:
Talvez o seu nome não seja muito conhecido no Brasil: mas é um dos grandes poetas uruguaios. Somos um grupo ávido de ouvir seus versos. Já surpreendemos um livro seu, em algum lugar da casa. Depois de várias tentativas de acomodação ao suplício, o poeta se decide a fazer a vontade aos amigos. Ao lado dele sorri sua mulher, tão linda, tão artista, para quem voam com tanta naturalidade aqueles versos:
Suave Señora, suave y placentera:
Bajo el cendal de tu mirada grave
(Sobre una mar sin puerta y sin ribera)
Heridas ambas y en la misma nave,
Mi espera en tu esperanza desespera,
Suave Señora, placentera y suave [...]
(Ibidem, p.126)
Ao mencionar nomes de importantes personalidades uruguaias em suas crônicas, a poetisa brasileira mostra-se uma grande divulgadora da cultura desse país, exercendo, assim, a atividade de intelectual que tem consciência do seu papel. Tal postura obstinada transparece em uma observação que Cecília faz sobre a falta de in- tercâmbio cultural entre o Brasil e o Uruguai, tocando em questões cruciais:
Aqui se recorda o Brasil com melancolia. Tanta gente estudando português. E nenhum livro brasileiro pelas livrarias. Todos nos tratam como vizinhos, amigos íntimos, pessoas de família...Todos sabem que o Brasil começa ali perto, entre Santa Rosa e Rivera, entre Jaguarão e Rio Branco... Sabem que falamos idiomas muito parecidos, embora tão pertubadores que a mesma palavra quase sempre significa as coisas mais diferentes...Temos em comum a cochilha, o cavalo, o mate, o poncho, – a doçura do coração, a cortesia do gesto, a coragem que ins- pira a nobre vida do campo, entre largos horizontes, na lida com o gado e a planta.
Mas falta alguma coisa, para unir-nos mais. Como nos comunicaremos, tanto quanto pede a vida humana, assim de um lado e de outro da fronteira?
Bebemos café, pensando nisso.
E o café é o nosso consolo. Raminhos verdes e amarelos... "Purodel Brasil..." Não os nossos livros são para a idade das letras... Por enquanto, o Brasil, visto daqui, é o país do café e das meias de seda...
(Meireles, 1998, p.142-3)
Diante dessas considerações feitas por Cecília em Crônicas deviagem 1, não resta dúvida de que ela tinha grande admiração pelopaís de Ibarbourou; ainda nesse livro, a poetisa revela seu encantamento por Montevidéu:
Agora estamos num bairro que conduz ao museu de Zorilla de San Martín. Cada rua tem o nome de um dos seus poemas. Não é uma doçura, ser poeta em Montevidéu?
[...]
A arte não é um luxo: é uma forma de comunicação. Parece que todos sabem disso. Que todos querem saber disso. É uma felicidade caminhar-se por um lugar assim.
[...]
Quero te dizer adeus, e não posso, Montevidéu – pois até o olhar dos teus cavalos me está prendendo a ti. Mas se eu ficar, talvez nunca mais os veja, porque o ofício humano é triste, e facilmente se vicia: os olhos deixam de ver o que estão vendo sempre, e o coração se acostuma – e esquece – aquilo que se faz maravilha constante... Assim, para te amar, é melhor que te deixe.
(Meireles, 1998, passim)
Para Cecília, os uruguaios e os brasileiros apresentam vários pontos em comum, o que explicaria, segundo a autora, a maior afinidade entre eles, já que compartilham de uma mesma essência lírica, diferentemente dos argentinos:
Direi rapidamente uma diferença que me ocorre entre argentinos e uruguaios: nos primeiros, parece pesar o sangue espanhol; nos segundos, o português. O sangue português é lírico; o espanhol, dramático. Nós brasileiros, não sentimos nenhuma estranheza entre a gente uruguaia: entre os argentinos sentimos uma diferença de índole. O argentino pode ser extremamente cortês; não consegue ser terno. Nada disto, porém, serve como documento: os tipos humanos são vários, móveis, inconstantes, e apenas anoto impressões, muito pessoais, sem preten- sões a definitivas. (Ibidem, p.158)
É interessante notar também a relação de reciprocidade, no que tange à difusão das literaturas brasileira e uruguaia. Cabe dizer que Cecília Meireles fez parte do folheto Manuel Bandeira, CecíliaMeireles e Carlos Drummond de Andrade, tres edades en la poesía brasileña actual (1952), publicado em Montevidéu, com seleção etradução de Cipriano S. Vitureira. Além disso, ela integra a Antología poética (1923-1945), editada em Montevidéu, em folhetos, pelos Cuadernos poesía de América, com tradução de Gastón Figueira. Nessa mesma publicação menciona-se:
Cecília Meireles es la máxima expresión de la poesía femenina del Brasil, y uno de los más altos valores de la lírica americana contemporánea. Caracteriza su obra una mágica y sutil espiritualidad, unida a la depuración de sus medios expresionales y a esa música de todos sus versos, plenos de agilidad, de gracilidad, de delicadeza suma. Ciertamente, la poesía femenina de su patria es muy rica: en ella fulgura con resplandor vehemente y suntuoso, la inspiración de Gilka Machado; se atenúa en recogimiento y dulzura la ensoñación de Henriqueta Lisboa y Lila Ripoll, y Adalgisa Nery da en sus versos una expresión casi sobrerrealista. Y aún quedan otros nombres, aunque no con la personalidad de los ya señalados. (Figueira apud Meireles, 1947, p.5)
Em relação às escritoras do Uruguai apontadas por Cecília em "Expressão feminina da poesia na América", percorre-se desde a produção de Delmira Agustini, da geração de 1900, à de Amanda Berenguer e de Ida Vitale, da geração de 1945 de seu país e que até hoje continuam na atividade literária. No que se refere à proporção das observações destinadas a essas poetisas, nota-se que algumas ganham maior dimensão no texto, como Juana de Ibarbourou, María Eugenia, Esther de Cáceres e Delmira Agustini. Esta última, inclusive, será retomada ao longo de toda a conferência. Cecília não esconde sua grande afeição pela autora de Los cálices vacíos. Nesse contexto, as considerações feitas no decorrer do ensaio são as mais diversas, variam de breves comentários biográficos a curtas análises sobre a poesia dessas autoras, como pode ser constatado nos fragmentos abaixo:
A data de morte de Delmira Agustini – na verdade, como catástrofe de uma deusa, bela, jovem, assassinada teatralmente.
[...]
A uruguaia Sara de Ibañez realiza, com sua conterrânea Clara Silva, um trabalho oposto ao do transbordamento emocional do romantismo. Cultas e finas, seu empenho é sugerir, sem dizer. (Meireles, 1959, passim)
Ainda sobre a produção das uruguaias, é ressaltado:
Grande é a riqueza do Uruguai em valores literários femininos. Aolado de Juana de Ibarbourou, Delmira Agustini e María Eugenia Vaz Ferreira, coloca-se o nome de Esther de Cáceres. De raiz mística seus versos sugerem mais do que dizem. Têm uma herança musical de estribilhos e paralelismos de canções medievais. (Ibidem, p.82, grifo meu)
Percebe-se, portanto, que essas dez poetisas do Uruguai citadas por Cecília na conferência, assim como a autora brasileira, têm importante papel em relação à escrita de autoria feminina, seja como inovadoras e grandes representantes da poesia produzida por mulheres na América, como Ibarbourou, seja como grandes divulgadoras e estudiosas da produção poética feminina, por exemplo, Esther de Cáceres e Sara Bollo. Tal premissa pode ser notada de maneira mais minuciosa a seguir.
Delmira Agustini
Delmira Agustini (1886-1914), pertencente à generación del 900 da literatura uruguaia, publicou em vida as obras El libro blanco (1907), Cantos de la mañana (1910), Los cálices vacíos (1913). A poetisa María Eugenia Vaz Ferreira teria sido uma das primeiras no Uruguai a reconhecer a genialidade de Agustini. Sobre o seu segundo livro, ela diz:
Si hubiera de expresar con un critério relativo, teniendo en cuenta su edad, etc., calificaría su libro sencillamente como un milagro. Como ha llegado usted, se a saber, sea a sentir, lo que ha expuesto en ciertas páginas, es algo completamente inexplicable. (Ferreira apud Borges et al., 1998, p.21)
Conforme enfatiza Cecília Meireles na conferência "Expressão feminina da poesia na América", Delmira representa um marco na produção lírica feminina latino-americana: "Delmira Agustini foi o primeiro grande caso feminino da Poesia da América, tanto literariamente como pela morte trágica – talvez mesmo a única morte com grandeza suficiente para a estranha paisagem de vida em que o destino a colocou" (Meireles, 1959, p.69). Tal comentário, bastante incisivo, não esconde a predileção de Cecília pela poetisa uruguaia. Ela dedica um número maior de páginas em seu texto a Delmira, aproximadamente sete páginas.
A escritora brasileira ainda fala da ruptura desempenhada pela poética da autora de Los cálices vacíos:
Quebrando o ritmo regular do verso tradicional, capturando imagens arrojadas, por vezes espantosas; criando em sua poesia um mundo mitológico de deuses, estátuas, aparições; desenrolando uma linguagem cheia de espontaneidade e bravura, com venenos talvez intencionais, como os poetas malditos. (Meireles, 1959, p.69, grifo meu)
O ensaio segue apontando o caráter "transgressor" da poesia de Delmira. Assim, por meio de alguns versos, mostra-se como a presença de temas recorrentes, como o amor, a maternidade, assume um tom que foge do tradicional:
Seu mundo era todo de proporções descomunais. O amor que projeta não pode caber na moldura do cotidiano [...] O amante que busca é um ser também fora da realidade conhecida [...] Com os seus cisnes, que são uns animais ambíguos, de expressões humanas e desígnios olímpicos, realiza uma vida sonhada de Leda entregue a Júpiter. Apaixona-se por estátuas, e conversa com Eros. Todos os seus delírios são nítidos. Todas as suas dimensões, excessivas [...] (Ibidem, p.70-1)
Tais considerações podem ser observadas claramente no poema "Otra estirpe" da poetisa uruguaia, em que o eu‑lírico suplica a Eros que ambos perpetuem uma outra linhagem, esta, por sua vez, elevada de loucura:
Otra estirpe
Eros, yo quiero guiarte, Padre ciego...
Pido a tus manos todopoderosas,
¡Su cuerpo excelso derramado en fuego
Sobre mi cuerpo desmayado en rosas!
La eléctrica corola que hoy desplego
Brinda el nectario de un jardín de Esposas;
Para sus buitres en mi carne entrego
Todo un enjambres de palomas rosas.
Da a las dos sierpes de su abrazo, crueles,
Mi gran tallo febril... Absintio, mieles,
Viérteme de sus venas, de su boca...
¡Así tendida, soy un surco ardiente
Donde puede nutrirse la simiente
De otra Estirpe sublimamente loca!
(Agustini, 1968, p.17)
Em contraponto à imagem sagrada e divinizada de Eros no poema, essa profana voz feminina invoca incessantemente uma outra estirpe que corresponderia ao fruto dessa união. A figura de Eros, inclusive, representa na poesia de Agustini a própria Vida, já que esta só é possível a partir da existência do deus grego do amor, conforme afirma Arturo Sergio Visca (1980).
Convém lembrar que é por meio desses versos de "Otra estirpe", da obra Los cálices vacíos (1913), que Cecília destaca a forma como o sentimento maternal em Delmira assume um caráter menos sublime e mais próximo da predestinação pagã. Esse enalteci- mento poeticamente erótico que tenta superar o humano também se faz presente em "Día nuestro":
Día nuestro
– La tienda de la noche se ha rasgado hacia Oriente, –
Tu espíritu amanece maravillosamente;
Su luz entra en mi alma como el sol a un vergel...
– Pleno sol. Llueve fuego. – Tu amor tienta, es la gruta
Afelpada de musgo, el arroyo, la fruta,
La deleitosa fruta madura a toda miel.
– El Ángelus. – Tus manos son dos alas tranquilas,
Mi espíritu se dobla como gajo de lilas,
Y mi cuerpo se envuelve... tan sutil como un velo.
– El triunfo de la Noche. – De tus manos, más bellas,
Fluyen todas las sombras y todas las estrellas,
¡ Y mi cuerpo se vuelve profundo como un cielo!
(Agustini, 1968, p.10)
Diante da proliferação de vocábulos que reiteram a ideia de fecundidade no poema, pode-se observar que, aqui, a vida se faz da mescla entre o profano e o sagrado. O momento de oração (el ángelus) ganha um duplo sentido, em que o corpo e o espírito são cultuados simultaneamente. Das mãos ostentadas por essa circunstância brotam sombras e estrelas que conseguem transformar o corpo desse eu‑lírico em um céu intenso de brilho e ao mesmo tempo, paradoxalmente, repleto de escuridão. De modo semelhante, o poema "Cavalgada", pertencente a Viagem (1939), de Cecília Meireles, apresenta esse embate entre "luz e trevas":
Cavalgada
Meu sangue corre como um rio num grande galope,
num ritmo bravio,
para onde acena a tua mão.
Pelas suas ondas revoltas,
seguem desesperadamente
todas as minhas estrelas soltas,
com a máxima cintilação.
Ouve, no tumulto sombrio,
passar a torrente fantástica!
E, na luta da luz com as trevas,
todos os sonhos que me levas,
dize, ao menos, para onde vão!
(Meireles, 2001, v. 1, p.283)
As mãos, que no poema de Agustini têm a capacidade de transfigurar, nos versos cecilianos são responsáveis por conduzir. É o aceno que direciona o andamento dessa "torrente fantástica" levada pelo ritmo, pelo movimento da seiva vital que nutre os seres humanos, o sangue. Assim como em "Día nuestro", observa-se a presença de palavras que contrastivamente remetem às trevas e à luz. Tal impasse entre os opostos reflete o mistério que está ligado ao grau máximo de excitação, alcançado aparentemente pelos eus‑líricos dos dois poemas. O corpo, que em Delmira torna-se um céucondecorado com estrelas, também será cantado por Cecília que, por sua vez, seguirá com sua torrente revolta. Ainda a respeito de "Cavalgada", Maria Lúcia Dal Farra (2003, p.19) atenta para o fato de esse texto poético mostrar talvez a face mais sensual e ao mesmo tempo mais discreta de Cecília Meireles, o que revela uma porção de erotismo e sensualidade presente em sua poesia.
Já em relação à "loucura poético-erótica", salientada por grande parte da crítica sobre a autora de Cantos de la mañana, a poetisa brasileira afirma que esse aspecto não interfere na posição que Agustini ocupa dentro da poesia de expressão feminina na América. "Todas as explicações e interpretações que se possam dar ao caso de Delmira Agustini, nessa espécie de loucura poético-erótica acesa em seus poemas, não perturbam a sua posição literária, que é ímpar, no Continente" (Meireles 1959, p.69).
Cecília, em seguida, discute a falta de "arte" e o excesso de "veia" na poética de Agustini. Para a escritora brasileira, sua poesia não apresenta uma grande preocupação com a forma, mostrando-se mais intuitiva:
Delmira nunca teve arte, ou raramente a atingiu, – mas o que tinha era veia – e tanta que, embora boa parte de sua obra tenha perdido o valor – e justamente por essa ausência de estrutura artística – ainda assim o que se salva é muito, e de tal imponência e densidade que, sentindo-lhe as fraquezas – em desacordo, talvez, com o seu tom declamatório; não lhe querendo aceitar as metáforas, e apesar de certas passagens de mau gosto, [...]. (Meireles, 1959, p.69)
Logo após esse trecho, ressalva-se: "[...] não podemos deixar de admirar esses poemas que nem parecem escritos, mas apenas inspirados" (ibidem, p.69). A inspiração, a "veia", não tornam a poesia de Agustini, no entanto, menos representativa, conforme afirma Cecília anteriormente.
Sarah Bollo também vê a espontaneidade como elemento determinante na obra da autora de Los cálices vacíos:
Esta poetisa dirige su inspiración hacia una doble vía de poesía amorosa y de poesía visionaria y de misterio, ansiando desentrañar el enigma de la vida y de la muerte, del tiempo y de la eternidad, del alma y del cuerpo, de la realidad y del sueño. (Bollo, 1965, p.194)
A própria Delmira, em uma nota presente na edição de 1913 de Los cálices vacíos, revela: "han sido sinceros y poco meditados, estos Cálices vacíos, surgidos en un bello momento hisperestésico, constituyen el más sincero y el menos meditado..." (Diccionario..., 1987, tomo 1, p.30). Talvez por conta dessa declaração da poetisa, grande parte da crítica tende a apontá-la com mais "veia" e menos "arte". Entretanto, é interessante observar que, embora Cecília Meireles indique a presença desse aspecto em sua obra, ela não pormenoriza sua produção.
Ainda sobre essa questão, vale destacar um comentário apresentado em uma extensa matéria em homenagem às escritoras Delmira Agustini e María Eugenia Vaz Ferreira:
Hay, seguramente, razones de tiempo en la creación de su obra que explican la falta de una depurada selección de poemas, o aun de ciertas imágenes o versos. El hecho es que Delmira Agustini escribió mucho en poco tiempo. Tal vez una certera premonición de la muerte temprana la urgió a componer com apresuramiento. Tal vez el ambiente familiar la estimuló y aun la empujó a ser primero niña precoz y luego poetisa de moda. Lo cierto es que a su obra total le falta el necesario rigor de la autocrítica que sabe sacrificar sin vacilaciones lo que el tiempo se encargará de aventajar y convertir el colgaje molesto. (Capítulo Oriental, [19 – ], p.217)
É por esse viés, almejando analisar Delmira como uma mulher do seu tempo, que Cecília prossegue com seus comentários:
Mulher nenhuma falara assim, até então, na América. Homem nenhum, tampouco. E o clamor dramático de Delmira Agustini, clamor patético de vozes roucas e gloriosas, deixa aberto um cenário em que outras mulheres poderão falar agora com uma liberdade que o século 19 não adivinharia. (Meireles, 1959, p.72, grifo meu)
Emilio Oribe, em contraposição a uma parte da crítica da escritora uruguaia que destaca o caráter transgressor de sua poesia, irá ressaltar o caráter lírico da poesia de Agustini; para ele, o fato de ela se expressar de maneira libertadora não é o aspecto mais notável da sua produção:
Aquella visión de la mujer libérrima cantando su intimidad peculiaríssima, y revelando su íntima naturaleza, ya no constituye el principal elemento de esta poesía. Lo más grave y difícil, lo más sorprendente, es lootro: la posibilidad maravillosa de manifestarse el genio lírico, poético enabstracto, de hombres y mujeres, el genio lírico, que es transparente porque se halla en trance de dejar de ser humano, y que en la Agustini se realiza en poesías que son de la belleza y nada más; son del tiempo, de la duración, y no de tal hombre o mujer, de tales pueblos o de tal época. (Oribe, 1945, não paginado, grifos meus)
Percebe-se no trecho acima que o autor assinala o cunho universalizante da expressão poética de Delmira. Embora Oribe aponte a importância desse elemento universal em sua poesia, ele não vê como relevante o período, nem o local onde os poemas foram escritos; nem sequer se a autoria dos poemas é feminina ou masculina. O que interessa é a capacidade de transcendência, a essência lírica presente na obra. Não resta dúvida da importância de se examinar o caráter de imanência do texto; entretanto, ignorar o contexto, a autoria, a cultura em que ele se insere, parece impossível diante do olhar da crítica atual.
O crítico uruguaio Alberto Zum Felde, assim como Oribe, mostra uma certa resistência em olhar para a poética de Agustini como manifestação de uma escrita de autoria feminina. Conforme aponta Felde, a autora de Los cálices vacíos apresenta uma "recia virilidad". Ele justifica a escolha pela palavra "virilidad" dizendo que, embora pareça contraditório ao se referir a uma mulher, foi a mais apropriada que encontrou, já que o idioma espanhol, segundo o crítico, apresenta um certo tipo de limitação para designar características tipicamente femininas:
ese poder de llegar al reino de la idea pura, que es proprio de la mentalidad masculina; o mejor dicho, que es principio masculino, en el plano de la conciencia. Por que es inegable que las dos maneras de abstración mental, la metafísica y la matemática, son característicamente del dominio de la mentalidad varonil; y cuando se dan, muy raramente, en la mujer [...] corresponden a temperamentos sin feminidad, a masculinidad de caracteres. (Felde, 1945, não paginado)
Essa postura falocêntrica revela mais uma vez aqui uma resistência em tentar compreender a produção de autoria feminina, procurando, ainda assim, estabelecer um certo padrão, este, por sua vez, dentro da concepção hegemônica masculina; ou seja, a genialidade da mulher só é reconhecida se comparável à do homem.
Como representantes da crítica tradicional, não é de se estranhar o posicionamento desses autores diante da poesia de Agustini. Entretanto, é por meio de comentários como os de Felde e Oribe que a crítica feminista tenta romper com a autolegitimação mascu- lina, desarticulando esse discurso que se coloca como superior e único. Convém lembrar ainda que os estudos sobre a literatura feita por mulheres na América Latina iniciam-se por volta da década de 1970. Nesse contexto, Cecília apresenta uma leitura mais atenta a essas questões, levando em conta a expressividade da mulher latino-americana. Ainda sobre Delmira, vale trazer à luz as palavras de Eduardo Galeano, que, em oposição à visão dos críticos uruguaios mencionados anteriormente, afirma:
Delmira Agustini escribía en trance. Había cantado a las fiebres del amor sin pacatos disimulos, y había sido condenada por quienes castigan en las mujeres lo que en los hombres aplauden, porque la castidad es un deber femenino y el deseo, como la razón, un privilegio masculino. Enel Uruguay marchan las leyes por delante da la gente, que todavía separa el alma del cuerpo como si fueran la Bella y la Bestia. De modo que ante el cadáver de Delmira se derraman lágrimas y frases a propósito de tan sensible pérdida de las letras nacionales, pero en el fondo los dolientes suspiran con alivio: la muerta muerta está, y más vale así. (Galeano, 1995, p.39, grifo meu)
As observações de Galeano colocam em evidência o quanto figuras femininas, como a autora de Los cálices vacíos, causam desconforto, ao se inserirem no universo dominado pelo discurso falocêntrico.
Juana de Ibarbourou
Após um célebre ato literário, presidido por Zorilla de San Martín, Alfonso Reyes e Juana Fernández Morales, no Palácio Legislativo de Montevidéu, em 1929, Juana de Ibarbourou (1895-1979) fica conhecida como "Juana de América", nome designado inicialmente pelo poeta peruano José Santos Chocano. A autora publicou muitos livros em vida, como Lenguas de diamante (1919), Cántarofresco (1920), Raiz salvaje (1922), La rosa de los vientos (1930), Perdida (1950), Dualismo (1953), Mensajes del escriba (1953), Azor (1953), in Obras completas (1953), Oro y tormenta (1955), Romancesdel destino (1955), Canto rodado (1958), La pasajera (1968); alémdas obras em prosa Loores a Nuestra Señora (1934), Estampas de labíblia (1934), Puck y Destino in Obras completas (1953), Chico Carlos (1944) e Los sueños de Natacha (1945), sendo estes dois últimosdestinados ao público infantil.
Juana, assim como Cecília, também é homenageada como representante das causas femininas na América. Em 1953, a poetisa uruguaia viaja para Nova York para receber o título de "Mujer de las Américas" pela Unión de Mujeres Americanas de Nueva York; dez anos antes, a autora de Viagem fora contemplada com o "Emblema da Vitória", entregue por Evangelina A. de Vaughan, que já havia sido presidente da Unión de Mujeres.
A grande estima que Cecília Meireles nutria por Ibarbourou parece não ser nenhum segredo. Em Crônicas de viagem 1, por exemplo, no texto intitulado "Rumo: Sul (X)", com um tom bastante nostálgico, a autora brasileira revela que, ao se reunir com al- gumas pessoas na casa de Coutoure, um dos diretores do Instituto de Cultura Uruguaio-Brasileiro, numa seção de chá, lembra-se de algumas personalidades, como Jules Supervielle e Juana de Ibarbourou: "Pensamos em Jules Supervielle, que eu gostava de rever.
Pensamos em Juana de Ibarbourou, que eu gostava de visitar" (Meireles, 1998, p.110, grifo meu).
Ainda sobre Juana, ela comenta:
Continuamos a pensar em Juana de Ibarbourou, a poetisa que um dia coroaram de "Juana de América". Hoje mesmo encontrei, na bela revista Alfar, um dos seus últimos poemas – "Media noche de la ausência". Que grande soluço amoroso, esse diz:
Amor que te has ido lejos.
Amor que ya no me ves,
Amor que me has elegido
Entre cien;
Amor que eres mi corona
Y mi bien!
Grande soluço, ainda cheio de ciúmes e desesperos, que assim expira:
Dile al viento y a la luna,
Dile a los hombres y al sol,
Dile al polvo y a la lluvia
Que soy tu amor!
Di a todos los que te escuchan
Que tuya soy!
(Meirelles, 1998, p.111)
O "soluço amoroso", bem como outros aspectos notáveis na poética da escritora uruguaia, será abordado atentamente por Cecília em "Expressão feminina da poesia da América". Ao falar de Juana Ibarbourou, o ensaio aponta o seu aparecimento juntamente com os de Gabriela Mistral e Alfonsina Storni:
O aparecimento da uruguaia Juana de Ibarbourou coincide quase com o dessas duas grandes poetisas: a chilena e a argentina. Sua voz, porém, é outra. Não tem amarguras nem ironias. É, principalmente,uma voz feliz. Uma voz agreste, de jovem deusa que passa pelos bosques, morde frutos vermelhos, brinca entre abelhas e águas, debruça-se para fontes de violetas, e quer ser amada antes que o tempo passe [...] (Meireles, 1959, p.76, grifo meu)
Essa mesma "voz feliz" presente em Lenguas de diamante também é destacada por Brígida Scaffo Vera (1990, p.39). Segundo ela, nessa obra aparece um "estremecimiento de esencial felicidad de vivir y de amar, un deseo de gozar sencillamente del mundo y de la vida". Ainda sobre essa questão, Cecília complementa:
Juana de Ibarbourou fala com muita naturalidade, às vezes em tom confidencial, com o sussurro que ensinam as brisas nos ramos e nos rios. Para os homens que ama, transforma-se em coisas dóceis e belas: cão, corça, estrela, flor... – outras vezes, planta, água, falena... tem impudores rústicos: banhos nos rios tempestuosos, e prazer da própria beleza [...] (Meireles, 1959, p.76-7)
Tal recorrência a imagens da natureza é lembrada por Juan Parra del Riego, ao descrever a sensação que teve ao se encontrar com "Juana de América":
Que es una geniecilla-mujer de las selvas. Y que se a poner a cantar y brincar, de repente, y se va a sacar nidos de la cabeza, que van a brotar hojas, hojas de todo su cuerpo, y que va a haber un olor tan intenso de arazá y vainilla a su alrededor que me voy a caer desmayado. (Riego apud Vitale, s.d., p.307)
As paisagens cantadas por Ibarbourou são colocadas por Cecília como uma espécie de "sentimento vegetal" enraizado em seus versos. Em Lenguas del diamante, Ida Vitale destaca a dimensão que esses elementos naturais assumem em seus poemas: "el paisaje se transforma en comprobación tenaz de lo natural, en búsqueda, de lo concreto, no del símbolo o del simulacro, sino de la suma de elementos verídicos y verificables" (Vitale, s.d., p.306).
Quanto à expressividade das imagens literárias, Cecília Meireles ressalta a falta de audácia apresentada nos primeiros livros da autora uruguaia. Como a escritora brasileira, Vitale também chama a atenção para a simplicidade no manuseio da linguagem. Ao falar sobre Cántaro fresco, ela assinala: "prolonga el mismo clima de intimidad tierna, de amor por las cosas nimias, por la naturaleza domesticada con un lenguaje claro, sencillo" (Vitale, s.d., p.307)
Cabe dizer que, diante do momento político conturbado que vivenciava o Uruguai, a publicação das obras de temas religiosos
Loores a Nuestra Señora (1934) e Estampas de la bíblia (1934) gerouum sentimento de repulsa em alguns escritores: "La generación del 45 no la perdonó; dejó caer un absoluto silencio sobre su obra" (Richero, 1998, p.147). Antes disso, por volta de 1921, o autor argentino Jorge Luis Borges, da geração vanguardista hispano-americana, já havia se pronunciado acerca da sua poética:
Se nos ha querido imponer la obsesión de un eterno y mustio universo, de ramaje agobiado bajo las grises telarañas y larvas de pretéritos símbolos. Y nosotros queremos descubrir la vida. Queremos ver con ojos nuevos. Por eso olvidamos la fastuosa fantasmagórica mitológica, que en toda hembra lúbrica quiere visualizar una faunesa [...] (Borges apud Vitale, s.d., p.309)
Ao se referir a Juana como uma "hembra lúbrica", Borges apresenta sua opinião em relação a um determinado tipo de produção, que, segundo ele, é tipicamente de fêmeas libidinosas. Percebe-se nas considerações do escritor argentino a mesma hostilidade presente nos versos do poeta satírico peruano do século XIX, o qual prefere que "Gerundia supiera hacer una tortilla". Mais uma vez, tem-se aqui a existência de um discurso falocêntrico que tenta se legitimar como verdade universal, a partir de conceitos preestabelecidos acerca da expressividade literária de autoria feminina. Suas observações revelam que não são levados em conta outros tipos de manifestações que se diferenciem dessa estrutura masculina, instituída como superior, a qual Borges integra.
Apesar dessa repercussão negativa entre os hispano-americanos, "Juana de América" será aclamada por escritores como Miguel de Unamuno, que em uma carta intitulada "Cabecera del valle", destinada à Juana, confessa:
He leído, señora mía, primero con desconfianza y luego con grandísimo interés y agrado su libro Lenguas de diamante. La desconfianza es en mi antigua por lo que hace la poesía de mujeres. [...] Y si una mujer, aquí, se sale de la hoja de parra de mistiquerías escribidoras es para caer en cosas ambiguas y malsanas. Por eso me ha sorprendido grantísimamente la castísima desnudez espiritual de las poesías de usted, tan frescas y tan ardorosas a la vez. Y al enviárselas, como me pide, a J.R. Jiménez y a los Machado, se las recomiendo. (Unamuno apud Vitale, s.d., p.314)
Nas palavras de Unamuno, fica clara a "desconfiança" por parte dos homens em relação à produção de autoria feminina, pois esta precisaria se "desnudar" espiritualmente para obter o reconhecimento masculino. O poeta finaliza a correspondência com uma ob- servação acerca do sobrenome de Juana, o qual ele diz ser de procedência vasca: "Veo por su apellido que tiene usted sangre vasca, pues su apellido, aunque usted lo escribe a la francesa, es vasco puro – 'cabecera del valle', significa –, y yo soy vasco puro" (ibidem, s.d., p.314). Diante desse comentário, é possível notar que, embora pertençam a culturas distintas, o autor espanhol consegue estabelecer um ponto de aproximação entre eles. A empatia parece evidente.
É importante frisar que, em "Expressão feminina da poesia na América", Cecília procurou analisar as transformações que a obra de Ibarbourou foi assumindo no decorrer da sua trajetória. "Pouco a pouco, os temas se vão tornando mais gerais: canta a noite e o dia, o tempo e a vida... Sua linguagem complica-se. Os versos perdem o ritmo curto e dançante, esquecem a forma tradicional. As imagens vão sendo mais elaboradas" (Meireles, 1959, p.78).
Ainda percorrendo a temática da autora de Raíz salvaje, Ida Vitale enfatiza:
A través de toda la obra poética, la autora es fiel a ciertos temas; algunos, aunque no sean exclusivamente privativos de ella emanan de una experiencia vivida, que no comparten necesariamente otros poetas: el ansia de libertad, como deseo de vida natural y como deseo de viajar, de cortar amarras, y a la vez el sacrificio de este impulso ante el amor; la rebeldía ante la astringente vida ciudadana, los temas de la vida doméstica. Otros temas son los grandes tópicos de la poesía universal: el amor, la muerte, el destino ultraterreno, la fugacidad de la vida. (Vitale, s.d., p.311)
A percepção de mortalidade, conforme menciona Cecília no ensaio, irá despertar o sentimento de falência perante o tempo que não cessa:
O pensamento da morte continua a incitar-lhe a urgência no tempo do amor. "Oh, amante, no ves que la enredadera crecerá ciprés?" Às vezes, aprofunda-se mais:
"No codicies mi boca. Mi boca es de ceniza.
Y es un hueco sonido de campanas mi risa."
(Meireles, 1959, p.77-8)
Essa mesma urgência também se fará presente na obra ceciliana, como pode ser notado no poema "Ponte", de Vaga música (1942):
Ponte
Frágil ponte:
arco-íris, teia
de aranha, gaze
de água, espuma,
nuvem, luar.
Quase nada:
quase
a morte.
Por ela passeia,
passeia,
sem esperança nenhuma,
meu desejo de te amar.
Céu que miro?
– alta neblina.
Longo horizonte
– mas só de mar.
E esta ponte
que se arqueia
como um suspiro
– tênue renda cristalina –
será possível que transporte
a algum lugar?
Por ela passeia,
passeia
meu desejo de te amar.
Em franjas de areia,
chegada do fundo
lânguido do mundo,
às vezes, uma sereia
vem cantar.
E em seu canto te nomeia.
Por isso, a ponte se alteia,
e para longe se lança,
nessa frágil teia
– invisível, fina
renda cristalina
que a morte balança,
torna a balançar...
(Por ela passeia
meu desejo de te amar.)
(Meireles, 2001, v.1, p.362-3)
Diante da consciência da mortalidade humana, o poema revela que não restam mais esperanças. Assim como a ponte, o desejo de amar torna-se frágil, o que remete ao mesmo sentimento de falência constatado anteriormente nos versos de Ibarbourou.
Isabel Sesto (1953, p.10), ao tratar da poética de Ibarbourou, questiona qual seria o aspecto presente em sua obra para o merecimento do título "Juana de América"? Ela mesma, em seguida, responde: "Leyendo sus versos encontramos la clave: es en sí misma, en su inmenso amor hacia todos los seres y las cosas que la rodean, que halló Juana de Ibarbourou una fuente inagotable de poesía". É dessa perspectiva, que tende a reconhecer uma poesia repleta de amor à terra e com uma sensualidade delicada, que Cecília analisa a produção de Juana.
María Eugenia Vaz Ferreira
María Eugenia Vaz Ferreira (1875-1924), pertencente à generación del 900 da literatura uruguaia, teve somente publicado La isla de los cánticos (1925), livro editado postumamente, fruto de umtrabalho de recopilação do seu irmão, o filósofo Carlos Vaz Ferreira, o qual Cecília Meireles teve oportunidade de conhecer pessoal- mente. Em Crônicas de viagem 1, mais especificamente no texto "Rumo: Sul (XX)", a escritora brasileira relembra, numa cabine de um barco em destino a Buenos Aires, uma visita à casa da família Vaz Ferreira e a boa música que ali se escutava: "Recordo as noites de quarta-feira na intimidade da casa de Vaz Ferreira, mestre de conferências da Universidade de Montevidéu, primeira figura do pensamento nacional, cujo nome é uma luz na história da filosofia e da pedagogia no Uruguai" (Meireles, 1998, p.149).
Vale lembrar que em 1959, após a morte de Carlos Vaz Ferreira, Emilio Oribe reúne os manuscritos inéditos de María Eugenia e publica a obra intitulada La otra isla de los cánticos.
Para Sarah Bollo, a poetisa uruguaia "fue en nuestra poesía de principios del siglo la primera voz femenina con verdadera transcendencia y altura que se expresó con auténticos acentos íntimos" (Bollo, 1965, tomo 1, p.184). Ela ainda destaca a representatividade de María Eugenia, no que concerne à produção moderna da poesia no Uruguai: "compleja expresión modernista que amalgamó gracia sentimental, dominio musical del verso y de la palabra" (Bollo, 1965, tomo 1, p.184).
Sobre a autora de La isla de los cánticos, Delmira com exaltação comenta:
Todo en ella es encantador – dice – desde su vigoroso talento poético, hasta sus deliciosas extravangancias de niña ligeramente voluntariosa; y pensar que tal vez hay personas lo bastante malignas para reprobárselas; ¡ignorantes! Quitad el fulgor a un astro y dejara de serlo [...] quitad María Eugenia sus caprichos, y dejará de ser María Eugenia. (Agustini apud Borges et al, 1998, p.20)
Em "Expressão feminina da poesia na América", Cecília refere-se à poetisa uruguaia como alguém que se sente "fora da vida, tal qual uma ilha". Segundo a autora brasileira, mesmo a solidão tem um encantamento em sua obra. Tais aspectos também serão apontados por Rosario Peyron:
Es cierto que fue la primera mujer en Uruguay que cantó sus sentimientos, sus deseos y sus angustias con la sinceridad y sin remilgos, y que su gesto abrió el camino a la intensa poesía erótica de Delmira Agustini y a toda una nueva tradición en castellano de poesía escrita por mujeres. (Peyron, 1998, p.201)
Peyron ainda menciona um aspecto interessante em relação à linguagem utilizada por María Eugenia cotidianamente:
Juntaba expresiones antigas olvidadas con localismos y usaba palavras cultas con tono de burlón, mezclando temas serios con giros populares llenos de humor. [...] Como pálida muestra, están las escasas cartas de María Eugenia que sobrevivieron al tiempo: un lenguaje fresco, desacartonado, que constrasta con el estilo retórico de las misivas llenas de frases grandilocuentes de muchos intelectuales de la época.
En una breve esquela a Orsini Bertani hablando de la postergación de la publicación de su libro Fuego y mármol a causa de una enfermedad, escribe: "Todavía no me animo a corregir pruebas porque mi enfermedades de una clase que ni sé escribir; el otro día intenté hacerlo y me salió un gato". (1998, p.202, grifo do original)
O trecho acima revela uma postura distinta dos intelectuais da época que, por sua vez, preocupavam-se em se expressar da maneira mais rebuscada possível. María Eugenia desde muito cedo já apresenta como traço peculiar o desdém pelos convencionalismos; prova disso é sua primeira aparição pública em um festival celebrado em 1893 no Club Católico, ao ler de maneira bem-humorada um monólogo em formato de testemunho. É interessante observar que nesse mesmo texto ela já demarca as dificuldades de ser uma mulher que se dedica à escrita literária:
A más de todo esto, mamá no quiere,/ pues me está reprimiendo todito el día/ que, por Dios, no haga versos, que eso es muy malo/ que me quedo soltera seguramente, si hago poesía. [...] Dicen que no es prudente, por otra parte,/ que nos aficionemos a la poesía,/ pues engendra en la mente quimeras, sueños,/ que nunca se realizan como pretende la fantasía. [...] Mas yo encuentro sin duda que es preferible/ a una dicha pequeña ya realizada/ una inmensa ventura, que nunca llega,/ pero cuya esperanza mantiene el alma siempre encantada. (Ferreira apud Peyron, 1998, p.199-200, grifo meu)
Diante desse fato, parece que a escritora uruguaia não seguia fielmente os modelos convencionais do seu tempo. Ainda sobre seu comportamento, declara o crítico Alberto Zum Felde:
Caprichosa en sus gustos, extravagante en sus actitudes, atrevida y desafiante en su conducta, se complacía en hacer lo contrario del señor "todo el mundo" y en "épater le bourgeois". Parecía convencida de que, a ella, por ser ella, todo lo estaba permitido. (Felde apud Diccionario de Literatura..., 1987, tomo 2, p.301)
Convém lembrar que, ainda muito jovem, a poetisa uruguaia começou a publicar nas principais revistas da época, como: La Revista y la Nueva Atlántida, de Herrera Reissig, Vida moderna, deMontero Bustamante, La Revista Nacional, de José Enrique Rodó, e Rojo y Blanco, de Samuel Blixen.
No que tange à poesia de María Eugenia, Cecília menciona, no ensaio, a recorrência de imagens transitórias em seus poemas:
Maria Eugenia fará seu brinde, que é uma delicada despedida. Brinda ao efêmero. Brinda à aparência fugaz deste mundo instantâneo:
"Por todo lo breve y frágil,
superficial, fugitivo,
por lo que no tiene bases,
argumentos ni principios;
por todo lo que es liviano,
veloz, mudable y finito;
por las volutas del humo,
por las rosas de los tirsos,
por la espuma de las olas,
y las brumas del olvido...
por lo que les carga poco
a los pobres peregrinos
de esta transhumante tierra
grave y lunática – brindo
con palabras transitórias
y con vaporosos vinos
de burbujas centelleantes
en cristales quebradizos..."
(Meireles, 1959, p.81-2)
Esse brinde ao efêmero produz um questionamento acerca da própria condição humana. Tal fugacidade será cantada também pela poetisa brasileira:
Epigrama nº 9
O vento voa,
a noite toda se atordoa,
a folha cai.
Haverá mesmo algum pensamento
sobre essa noite? sobre esse vento?
sobre essa folha que se vai?
(Meireles, 2001, v.1, p.289)
Nesses dois últimos poemas, é possível notar a recorrência de imagens que reforçam a ideia da transitoriedade do tempo. Em María Eugenia, brinda-se essa breve passagem que representa a vida. Já em Cecília, questiona-se a própria existência, posta em dúvida diante do condicionamento da natureza humana.
Na poesia de María Eugenia a morte e a vida são tratadas dialeticamente, como pode ser observado no poema a seguir:
Único poema
Mar sin nombre y sin orillas,
Soñé con un mar inmenso
Que era infinito y arcano
Como el espacio y los tiempos.
Daba máquina a sus olas,
Vieja madre de la vida,
La muerte, y ellas cesaban
A la vez que renacían.
Cúanto nacer y morir
Dentro la muerte inmortal!
Jugando a cunas y tumbas
Estaba la Soledad...
De pronto un pájaro errante
Cruzó la extensión marina;
"Chojé... Chojé..." repitiendo
Su quejosa mancha iba.
Sepultóse en lontananza
Goteando "Chojé... Chojé"...
Desperté y sobre las olas
Me eché a volar otra vez.
(Ferreira, 1968, p.70)
A solidão e o vazio contornam esses versos. O pássaro com seu voo contemplativo busca traçar uma trajetória em direção ao nada. A morte, a vida, o mar, as ondas, tudo segue o movimento circular, que representa o ciclo da natureza. A morte, "a velha mãe da vida", é representada aqui num jogo dialético em que o viver e o morrer simbolizam um único processo; eles se contrapõem, mas, por outro lado, se complementam. Nota-se, portanto, uma grande indagação sobre a existência e sua essência contraditória. Segundo Cecília, em "Único poema", o mundo é visto como uma "sucessão de nascimentos e mortes: não há paisagem concreta, em seus horizontes vastos e solenes" (Meireles, 1959, p.80).
Ainda sobre esse texto poético, Carlos Vaz Ferreira, no prólogo do livro La isla de los cânticos, revela:
había pruebas de cuarenta y tres poesías, de las cuales ella había determinado cuarenta para esta selección. Entre las tres eliminadas figuraba la titulada "Único poema", la cual me impresionó tanto que le pregunté la razón de la exclusión. "Nadie la entendió", me dijo, y accedió facilmente a mi pedido de que la volviera a incluir; por lo cual creído deber intercalarla. (Ferreira, C. V. apud Ferreira, M. E.,1968, p.21)
Não restam dúvidas de que nos versos da poetisa uruguaia há uma necessidade de se desprender da racionalidade do mundo, em busca de algo mais completo, metafísico: "en María Eugenia connotable relieve, ha de señalarse su tendencia a desvincularse del mundo objetivo, manteniendo las energías anímicas en un estado de anhelo ideal o de aspiración insaciable a lo absoluto" (Costa & Lockhart, 1995, p.32).
Esther de Cáceres
Esther de Cáceres (1903-1971) foi uma intelectual bastante ativa, preocupada com as questões culturais de seu país, que atuou também como ensaísta. "Su amistad personal y epistolar con grandes figuras de la intelectualidad de nuestro país y de América la hizo participar activamente en extensos círculos del movimiento cultural americano" (Diccionario de la Literatura..., 1987, tomo 1, p.125). A autora uruguaia apresenta uma vasta produção poética. Publicou mais de dez títulos, a saber: Las insulas extrañas (1929),
Canción de Esther de Cáceres (1931), Libro de la soledad (1933), Los cielos (1935), Cruz y éxtasis de la pasión (1937), El alma y el ángel (1938), Espejo sin muerte (1941), Concierto de amor (1944), Madrigales, trances, saetas (1947), Mar en el mar (1947), Paso de la noche (1957), Los cantos del destierro (1963), Tiempo y abismo (1965) e Canto destierro (1969).
Já em Los cielos, um dos seus primeiros livros, Cáceres declara acerca de sua proposta poética: "huye de la vida, y que alcanza a lasemociones y a las cosas vividas, cuando ya han llegado, de transformación en transformación a unirse con lo central del alma"(Cáceresapud Bordoli, 1966, tomo 1, p.312). Diante dessas observações feitas pela autora, é possível notar uma certa inquietação em apresentar elementos transcendentais em sua obra.
Sobre sua obra, fala o escritor uruguaio Alejandro Paternain:
iniciada en 1929 con Las ínsulas extrañas mantiene una unidad temática constante. En su libro Tiempo y abismo (1965), los temas religiosos ahondados y asumidos con un tono de crecido ardor y devoción intensa, aparecen tratados con su delicadísimo sentido de la musicalidad, con una pureza y una transparencia como no encontramos iguales en nuestra poesía femenina. (Paternain apud Diccionario de La Literatura..., 1987, tomo 1, p.126)
A autora de Tiempo y abismo, no prólogo da Antología (1965) de Delmira Agustini, revela seu inconformismo diante de um comentário feito por Giovanni Papini sobre a poesia de autoria feminina; ela comenta:
Recuerdo ahora un diálogo matinal con Giovanni Papini, en su casa, al pie de una colina romana. Era un diálogo inútil, entre dos personas que jámas podrían entenderse. En cierto momento él me habló dela "poesía femenina" con un acento despectivo que estaba muy en su modo. Inútiles mis protestas sobre tal caracterización de la Poesía... Luego,desde Ravena, sin poder librarme del malestar de tales desentendidos, junto a la silenciosa y bien custodiada tumba de Dante, le escribí discutiendo los diversos puntos obscuros del diálogo. Y entre otras cosas le decía que – previo el rechazo de la expresión "poesía femenina" – en mipaís algunas mujeres habían escrito poemas dignos de resplandecer en las mejores antologías del mundo. (Cáceres apud Agustini, 1965, p.XLIII,grifos meus)
Diante dessas observações, percebe-se que Cáceres tinha uma grande preocupação em divulgar a poesia feita pelas mulheres de seu país. Além disso, mostra não aceitar alguns rótulos destinados à produção feminina. É possível notar mais uma vez aqui a presença do discurso falocêntrico que tenta se legitimar e, sobretudo, o posicionamento da poetisa que o contesta, manifestando sua indignação, ao responder a Giovanni Papini um pequeno texto que, ironicamente, foi escrito próximo à sagrada tumba de Dante.
Sabe-se que Cecília Meireles nutria grande amizade por Esther de Cáceres. A escritora brasileira chegou a enviar, inclusive, alguns exemplares3 de seus livros à poetisa uruguaia, dedicando-lhe o poema "O ressuscitante", pertencente a Vaga música (1942), o qual parece abranger a própria essência poética que percorre a obra da uruguaia. Em outras palavras, corresponde ao canto, à poesia que persiste, que tenta sobreviver, cuja voz, repleta de musicalidade, quer permanecer ecoando mesmo diante do inevitável destino humano, a morte:
O ressuscitante
A Esther de Cáceres
Meus pés, minhas mãos,
meu rosto, meu flanco
– fogo de papoulas!
E hoje, lírio branco!
Pela minha boca,
por minhas olheiras
– arroios partidos!
E hoje, albas inteiras!
Eu era guardado
de sinistras covas!
E hoje visto nuvens,
cândidas e novas!
Vi apodrecendo,
com dor; sem lamento,
meu corpo, meu sonho
e meu pensamento!
E hoje, sou levado
por entre as caídas
coisas – transparente!
(Aroma sem nardo!
Fuga sem violência!)
E de cada lado
choram doloridas
mãos de antiga gente.
(Meireles, 2001, v. 1, p.343-4)
Para Cáceres, a musicalidade é um elemento intrínseco à poesia; compartilhando das ideias de Schopenhauer sobre a música, ela declara: "La música representa para todo lo físico del mundo lo metafísico y para todo fenómeno la cosa en sí" (Cáceres apud Bordoli, 1966, tomo 1, p.312). Ainda acerca desse aspecto, ao citar Schiller, a poetisa uruguaia revela a importância da música no seu processo de criação: "una disposición musical del espíritu precede, y a ésta sigue entonces en mí la idea poética" (ibidem, p.312). Diante dessa concepção de Esther de Cáceres a respeito da sua expressão poética, não é ao acaso que Cecília lhe oferece esse poema justamente em Vaga música.
É interessante observar que, apesar da afeição nutrida por ambas, os comentários acerca da poesia de Cáceres em "Expressão feminina da poesia na América" ocupam cerca de duas páginas, um pouco menos que a quantidade oferecida a María Eugenia e a Juana de Ibarbourou.
O misticismo e a religiosidade serão elementos bastante comentados pela crítica sobre a obra da autora uruguaia. Sarah Bollo, por exemplo, ao falar do caráter místico de sua poesia, afirma: "Su poesia es íntima, simbólica, muy personal [...] Sus poemas han sido definidos como místicos pero no creemos lírica esta caracterización" (Bollo, 1965, tomo 2, p.112). Ainda sobre essa temática recorrente nos poemas de Cáceres, a escritora brasileira afirma:
De raiz mística, seus versos sugerem mais do que dizem. Têm uma herança musical de estribilhos e paralelismos de canções medievais. [...] Em Delmira, o drama; em Gabriela, o rito; em María Eugenia, o pensamento; em Juana, o canto; em Esther, o sonho. (Meireles, 1959, p.82)
A influência da cultura oriental nos versos da poetisa uruguaia também será um elemento ressaltado por Cecília:
Como num desenho chinês, vemos apenas estes indícios:
"Escondidas,
mi primavera y tu voz van pasando a través del sueño...
– Ligeras sombras en el canto...
Solo a un cielo lejano Llega tu resonancia...
– Sombra de finas barcas
mi primavera y tu voz cantando..."
(Meireles, 1959, p.83)
O ensaio ceciliano salienta essa linguagem concisa e repleta de imagens, chamando atenção também para a presença de elementos oníricos que se mesclam a outros ligados ao universo concreto: "Esther de Cáceres cria um novo clima, alarga uma outra atmosfera, com seus poemas. Dela são os anjos, o fogo celeste [...] Não é uma poesia onírica, mas de sonho acordado, por onde se chega a um 'mar de gloriosos jaspes'" (Meireles, 1959, p.84).
Nota-se que "o canto" metaforizado em Esther de Cáceres, assim como em Cecília, representa o próprio sentido da criação poética, como pode ser observado no poema, abaixo presente na obra
Las insulas extrañas (1929):
He aquí mis manos:
han perdido el suave encanto.
He aquí mis ojos:
envejecidos de todos los llantos.
He aquí mi voz,
en donde están llorando mis primaveras muertas.
He aquí mi alma,
mi fino silencio,
mi libertad de las cosas terrenas.
(Cáceres, 1945, p.15-6)
Esse poema sem título apresenta a imagem de um eu‑lírico que se lamenta diante da perda do seu encanto, dos olhos envelhecidos, das primaveras mortas e do silêncio, o que remete ao texto poético "Apresentação", de Cecília Meireles, pertencente ao livro Retratonatural (1949):
Aqui está minha vida – esta areia tão clara
com desenhos de andar dedicados ao vento.
Aqui está minha voz – esta concha vazia,
sombra de som curtindo o seu próprio lamento.
Aqui está minha dor – este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.
Aqui está minha herança – este mar solitário,
que de um lado era o amor e, de outro, esquecimento.
(Meireles, 2001, v. 1, p.606)
Percebe-se que as quatro estrofes correspondem-se mutuamente. Nos dois textos, a presença do advérbio "aqui" cria uma proximidade, enfatizando a ideia de que o poema fala de si próprio, ou melhor, do seu ofício de "cantar". Apesar da areia clara e delicada, da concha vazia, do coral quebrado e do mar solitário, o canto persiste. A fragilidade a que remetem esses elementos reiterados a cada verso reforça a ideia de brevidade da vida. Assim, mediante essa consciência de que tudo é fugidio, o sentimento de fracasso com que se depara o eu‑lírico perdura, fazendo com que a concha vazia continue lamentando as primaveras mortas.
Sarah Bollo
Sarah Bollo (1904-1987) tem grande atuação no que concerne aos estudos da crítica literária uruguaia, publicando também uma quantidade notável de textos poéticos como Diálogos de las lucesperdidas (1927), Los nocturnos del fuego (1931), Las voces ancladas (1933), Regreso (1934), Baladas del corazón cercano (1935), Ciprésde púrpura (1944), a tragédia em verso Pola Salavarrieta (1945), Ariel prisionero, Ariel libertado (1948), Espirituales (1963), Tierra y cielos (1964), Diana transfigurada (1964), Mundo secreto (1977), Prados del sueño (1981).
Alberto Zum Felde, ao tratar de Diarios de luces perdidas, destaca que Bollo:
inicia en la poesía femenina del Uruguay una tendencia distinta a laque imperaba hasta el momento de su aparición.[...] Sarah Bollo aparece como una voz nueva, abriendo la nueva ruta. Reacciona contra la poesía erótica. Su primer libro es manifestación de una sensibilidad puramente espiritual. (Felde apud Bollo, 1965, p.114)
Sobre esse mesmo livro da uruguaia, indo ao encontro das palavras de Felde, Cecília enfatiza em "Expressão da lírica feminina na América":
dedicando-o a Juana de Ibarbourou, esta escreveu no prefácio que, nele não se encontrava nada relacionado com os sentidos: nem formas, nem cores, nem perfumes... Achava-o de sabor exótico, sem um átomo de América, como um fruto da Teosofia. O livro chamava-se "Diálogos de las luces perdidas". As luzes eram almas; os versos falavam de solidão e eternidade [...] (Meireles, 1959, p.84)
Diante dos comentários realizados pelo crítico uruguaio e pela poetisa brasileira, é possível notar que Bollo, assim como os poetas contemporâneos da sua geração que surgem entre 1925 a 1931, irão apresentar uma poesia de tendência metafísica em oposição ao caráter filosófico de Emilio Oribe (1893), ao panteísmo de Carlos Sábat Ercasty (1887), ao naturalismo de Juana de Ibarbourou (1895) e ao nativismo de Fernán Silva Valdés (1887).
Em seguida, o ensaio ceciliano destaca alguns excessos na linguagem da escritora uruguaia: "Tem uma linguagem copiosa, por vezes excessiva – precursora das belas palavras que torrencialmente se precipitarão, mais adiante, em outras poetisas" (Meireles, 1959, p.84-5). Ressalta também o exagero de técnica literária que, segundo Cecília, está presente na poética de Bollo: "Com uma grande riqueza de linguagem, Sarah Bollo fará versos de muitas sílabas e variados ritmos, com imagens que se superpõem, tornando o texto, por vezes, um pouco obscuro" (ibidem, p.85-6). Tal observação também é notada por Bordoli:
Podemos rechazar esta poesía por considerarla, en exceso, vaga; pero si somos capaces de gustarla nos daremos cuenta que esa vaguedad es su elemento esencial; aquél que confiere una eficacia sugeridora comparable a un dejo o a una atmosfera. (Bordoli, 1966, tomo 1, p.347)
Em "Balada de la Luciérnaga", pertencente à obra Diálogos delas luces perdidas (1921), é possível observar as considerações tecidas no fragmento acima:
Balada de la Luciérnaga
Prende tu pequeña lámpara,
Luciérnaga,
prende tu pequeña lámpara
sobre mi lóbrega puerta.
Soy una alma abandonada...
Luciérnaga,
soy una alma abandonada
en la tenebrosa selva.
¡Hebra de luna perdida!
Luciérnaga
hebra de luna, perdida
por la nocturna hilandera;
prende tu pequeña lámpara
sobre mi lóbrega puerta.
(Bollo apud Bordoli, 1966, tomo 2, p.350)
A presença de imagens indefinidas é um aspecto que, conforme destaca Bordoli (1966, p.347), confere à poesia de Sarah Bollo um tom peculiar. Nesse poema, por exemplo, essa ideia de elementos inconstantes é sugerida pela própria luciérnaga (vaga-lume) va- gueando pela noite, e que, por sua vez, é invocada pelo eu‑lírico que, solitário, almeja sua luz, seu brilho, ou seja, sua vitalidade. A luciérnaga, inclusive, será recorrente na poética da uruguaia, ganhando uma pluralidade de sentidos, como aponta Rubinstein Moreira:
Luego sus gradaciones de sensibilidad hacia el coleóptero de luz verdosa y suave van haciédonse más subjetivas y ricas, y hasta llegan a conformar una "Teoría de la Luciernága" que en cierto modo interpreta una "Teoría de la Luz" o "De la Luminosidad", a la que tanto propende su poesía. (Moreira, 1964, p.12)
Em "Expressão feminina da poesia na América", Cecília Meireles ainda chama a atenção para o misticismo e a religiosidade na obra de Bollo:
a poetisa não perderá o sentimento de religiosidade. Falará com Deus dizendo-lhe:
"Con muertes y con vidas has jugado
– un niño en la orilla del rio, destrozando juncos".
(Meireles, 1959, p.84)
O sonho também será abordado pela poetisa que, diante da imensidão do mar, espera por um barco desconhecido:
Canción del barco que llega
El barco que llega, volando con las alas de los remos.
El barco me trae clara flor o fresco astro.
¿Qué será lo que me llega?
Un vientezuelo liviano sonrié en el retamar.
Un vientezuelo, guedeja rubia
de la rizada mañana.
El barco llega, volando con las alas de los remos.
¿Que será lo que me trae?
(Flores de sal, astros de arena).
(Bollo, 1935, p.138)
Diante de imagens oníricas que contrastam com elementos ligados à realidade concreta, o poema apresenta palavras de campos semânticos distintos (mar, céu, flores) que se mesclam com naturalidade. O eu‑lírico, desse modo, permanece à espera desse barco misterioso. Pode-se dizer que tal expectativa remete ao sentimento humano perante o inesperado que representa a própria vida. Mesmo em face da imprecisão retratada pelo sonho, a esperança ainda perdura. Por outro lado, a solidão será cantada com inexorável angústia, unida ao acaso representado pela natureza e pela vida:
Nocturno de la soledad
¡Soledad, soledad!
Yo tiré la piedrezuela del recuerdo al río de la vida. Yo también tiré
los follajes claros de los sueños
antes que las gacelas del otoño los arrebataran.
Soledad, soledad...
Mi dolor ya no era mío;
como un astro,
derramó su abrasada cabellera de oro y sombra
sobre el mundo
donde cada ser cultiva su viñedo
de desesperanza.
Mi dolor ya no era mío.
Era de todos los que aman.
En la noche solitaria y honda
yo lo recogí.
Hoy lo miro
reclinado sobre mi hombro,
él mi hermano hasta la muerte.
Yo, su hermana.
¡Soledad, soledad!
Yo tiré la piedrezuela del recuerdo al río de la vida.
Mi dolor ya no era mío.
Ahora nunca, nunca más se perderá.
(Bollo apud Bordoli, 1966, p.349)
Soledad, que também corresponde a um nome próprio feminino, é um dos elementos notáveis na poética de Bollo, juntamente com os temas de amor, tempo, espaço, vida e morte (Moreira, 1964, p.20). Observa-se em "Nocturno de la soledad", que faz parte do livro Los nocturnos del fuego (1931), a presença de uma solidão desconsolada que de maneira arrebatadora destrói tudo o que encontra: recordações, amores, sonhos. Como na poesia de Cecília Meireles, essa condição de isolamento pode ser notada:
Solidão
Imensas noites de inverno,
com frias montanhas mudas,
é o mar negro, mais eterno,
mais terrível, mais profundo.
Este rugido das águas
é uma tristeza sem forma:
sobe rochas, desce fráguas,
vem para o mundo e retorna...
E a névoa desmancha os astros,
e o vento gira as areias:
nem pelo chão ficam rastros
nem, pelo silêncio, estrelas.
A noite fecha seus lábios
– terra e céu – guardado nome.
E os seus longos sonhos sábios
geram a vida dos homens.
Geram os olhos incertos,
por onde descem os rios
que andam nos campos abertos
da claridade do dia.
(Meireles, 2001, v. 1, p.240-1)
Assim como em "Nocturno de la soledad", nesse poema ceciliano que integra a obra Viagem (1939), a solidão ganha grandes proporções. Tal noção é reiterada pelos vocábulos noite, rio, mar, montanhas, céu, terra, que recuperam a ideia da extensão desmedida desse sentimento. Com um tom menos pessimista, é possível notar que em "Solidão" ainda aparecem os "longos sonhos sábios" que geram vida, em contraponto a "Nocturno", em que os sonhos são exterminados antes mesmo de começar a se manifestar. Assim, por meio dessa "tristeza sem forma", os dois textos poéticos atentam para a solitária sensação humana que constitui parte da natureza íntima dos indivíduos.
Sara de Ibáñez
Sara de Ibáñez (1909-1971) publicou em vida Canto (1940), que leva um prólogo de Pablo Neruda, Canto a Montevideo (1941), Hora ciega (1943), Pastoral (1948), Canto a Artigas (1952), Las estaciones (1957), La batalla (1967), Apocalipsis XX (1970). Além da obra Canto póstumo (1973), que, como o próprio título já antecipa, se trata de uma edição póstuma que reúne os livros, até então inéditos, Baladas y canciones e Diário de la muerte.
No prólogo de Canto póstumo, seu marido, o poeta Roberto de Ibáñez, declara:
Portentosa criatura, la más lírica y la más trágica en su lucidez y su grandeza, nunca eludió las humanas obligaciones, que supo enaltecer hasta el sacrificio. Pero hizo de la poesía – seña esencial de su destino y de sus deberes celestes y terrestres: en sucesivas y definitivas apariciones. Hoy se asiste la última. (Ibáñez, R. apud Ibáñez, S., 1973, p.LXIII)
Nesse mesmo prefácio em que comenta a vida e analisa a evidência de alguns elementos na poesia da autora de Pastoral, Roberto de Ibáñez destaca a oscilação da presença do eu feminino em seus poemas, salientando que, ao abordar temas profundos, a poetisa irá recorrer ao yo varonil:
Sara suele infligir un esgunce al yo inmediato para valerse de su yo más hondo. Pero cuando se asoma a la palabra – que es en ella espejo de esencias – no apela siempre al género de su sexo. Pocas mujeres hubo con tan delicada, tersa femineidad. Y como mujer se pronuncia en el verso la mayoría de las veces. Otras, no obstante, con posible desconcierto del contemplador común, posterga el género própio y acude al accidente opuesto, valiéndose del yo varonil [...] (Ibáñez, R. apud Ibáñez, S.,1973, p.XXXIX, grifos meus)
Nas palavras de Ibáñez percebe-se que a leitura apresentada sobre a poética de sua esposa vai ao encontro do discurso falocêntrico que, de alguma maneira, deslegitima o que provém do universo feminino. Para ele, Sara tem uma atitude transgressora quando se volta contra a natureza do seu próprio sexo e não quando se coloca como mulher. Deste modo, caberia ao yo varonil a tarefa de tratar de questões mais complexas. Diante dessa concepção, tem-se novamente aqui a visão masculina que se reconhece como autêntica e superior.
Já Cecília Meireles, ao se referir especificamente à obra Canto, de Ibáñez, no texto "Por canto", publicado inicialmente no jornal A Manhã em 20 de setembro de 1944, escrito no mesmo ano de sua viagem a Montevidéu, e posteriormente reunido em um Caderno de literatura em homenagem à poetisa uruguaia, comenta alguns aspectos recorrentes em sua poética:
essa estranha mulher tão sensível e dolorosa, nutre suas visões e seus presságios de imagens líricas poderosas e raras. Seus sonetos e suas liras são peças, ao mesmo tempo, de grande intensidade poética e admirável perfeição – formal. [...] tem um jeito de olhar para o mundo até o fundo, até o fim e o que recolhe nos seus olhos é de uma tristeza grande e inconsolável. (Meireles, 1971, p.21-2)
Tais observações serão retomadas em "Expressão feminina da poesia na América". Nessa conferência será destacada a ausência de transbordamento emocional na produção de Ibáñez, bem como na de Clara Silva:
Cultas e finas, seu empenho é sugerir, sem dizer. Mas de tal maneira se vai tornando a sugestão difícil, – retirados todos os pontos de apoio na estrutura verbal, e traduzidos os vocábulos uns pelos outros, oculto o fio da lógica – que embora se possa admirar frequentemente o engenho técnico de ambas, muitas vezes a comunicação deixa de existir entre o livro e o leitor. (Meireles, 1959, p.95-6)
Se, por um lado, aponta-se a escrita "culta e fina" das poetisas Clara Silva e Sara de Ibáñez, em contraposição, o trecho acima mostra também a ambiguidade que pode representar essa forma de "sugerir sem dizer". Tais considerações podem ser observadas no poema a seguir de Ibáñez que integra "Canciones" da obra Canto póstumo (1973). O mesmo traz anotada a data de 1954, provavelmente o ano em que foi escrito:
Sexta
Scherzando
SABÍA EL COLOR DEL FUEGO
y el sabor de mar sabía;
nadie como él lo sabía
con saber de mar y fuego.
Con tal sangre supo el fuego,
tal ciencia de mar sabía
que murió (se lo sabía)
de saberse el mar y el fuego.
1954
(Ibáñez, 1973, p.128)
O texto acima corresponde a um dos nove poemas que, assim como uma peça musical, compõem a grande melodia que representa "Canciones". Ibáñez, como Esther de Cáceres, apresenta em sua composição poética várias referências à música. A palavra scherzando, que significa "brincando", por exemplo, refere-se ao caráter expressivo pelo qual deve ser executada a canção. Essa maneira de conduzir a melodia como uma brincadeira, conforme sugere o movimento, é constatada no próprio conteúdo do poema, que joga com as palavras como uma espécie de trava-língua.
Sobre esse "oculto fio da lógica" na poesia de Ibáñez, como designou Cecília, que pode trazer imagens de difícil compreensão, para Anderson Imbert, trata-se de uma obscuridade que "proviene de las imágenes, se quintaesencian y, al final de un proceso mental muy trabajoso, acaban por ser símbolos herméticos" (apud Bordoli, 1966, p.75, tomo 2).
Sara Bollo também chama a atenção para o hermetismo de seus poemas: "En algunos momentos de su creación se ha mostrado muy barroca, a la vez original en su léxico, hermética en la expresión y rica en figuras" (Bollo, 1965, tomo 2, p.124).
O ensaio ceciliano também elogia as imagens e a elegância evidentes em sua poética: "No poema heroico sobre Artigas, Sara de Ibáñez, mantendo o verso decassílabo e a estrofe clássica da oitava, consegue traçar o panorama da ação e a vida do herói dentro da mesma linguagem ambígua, mas de grande beleza" (Meireles, 1959, p.95-6). Essas considerações tecidas pela escritora brasileira vão ao encontro dos comentários feitos por Imbert: "El poema ‘Artigas’ (1952) sale más al exterior, se apoya más en una matéria pública; pero no se aleja mucho, y el lirismo es, a fin de cuentas, más poderoso que lo épico" (Imbert apud Bordoli, 1966, p.74, tomo 2).
A poetisa uruguaia, em uma entrevista à BBC de Londres, ao realizar uma leitura comentada do seu livro Pastoral, editado próximo àquela ocasião, disse:
Se me pregunta cómo entiendo la poesía. Me apresuro a responder: como un ejercicio de misterio... Todas las definiciones resultan impotentes... Poesía es algo así como lo que nos queda en la voz después de haber estado a punto de morir de la presencia divina. O una flor de espuma con la que encubrimos el roce de la quemadura perdurable... (Ibáñez, 1973, p.XXXI, grifo do original)
Essa prática de mistério mencionada por Ibáñez será exercitada de diversos modos. Em forma de prece, por exemplo, o eu‑lírico do poema "Plegaria", pertencente à obra Las estaciones (1957), pede ao Ser infinito e eterno a capacidade de imortalizar-se, por meio de seu próprio "pensar":
Plegaria
Si tú estás allí, en lo oscuro,
señor sin rostro y sin pausa;
si tú eres toda la causa
y yo tu espejo inseguro.
Si soy tu sueño, y apuro
sombras de tu sueño andando
pronuncia un decreto blando;
líbrame de no pensar,
y echa mi polvo a vagar
eternamente pensando.
(Ibáñez apud Bordoli, 1966, p.78)
A voz presente no poema roga para que continue pensando eternamente. A existência humana aqui está atrelada à sabedoria, ao pensar. A imagem divina que soberanamente exerce o poder de livrar esse eu‑lírico do "não pensar" encontra na poética ceciliana um tom de humor, que, semelhante ao movimento scherzare, comenta- do anteriormente, "brinca" com a figura do Criador:
Deus dança
Seus curvos pés em movimento
eram luvas crescentes de ouro
sobre nuvens correndo ao vento.
Como nos jogos malabares,
ele atirava o seu tesouro
e apanhava-o com as mãos nos ares...
Era o seu tesouro de estrelas,
de planetas, de mundos, de almas...
Ele atirava-o rindo pelas
imensidões sem horizonte:
tinha todo o espaço nas palmas
e o zodíaco em torno à fronte.
Eu o vi dançando, ardente e mudo,
a dança cósmica do Encanto.
Unicamente abismos – tudo
Quanto no seu cenário existe!
Que vale o que valia tanto?
Eu o vi dançando e fiquei triste...
(Meireles, 2001, v.1, p.429-30)
Tanto nesse poema que compõe o livro Vaga música (1942) quanto em "Plegaria", nota-se a presença do poder divino. Entretanto, no de Cecília, a diversão desse Ser supremo é causa da tristeza do eu‑lírico. A soberania dessa figura ainda impera, porém, com descrença, em oposição aos mencionados versos de Ibáñez, em que se deposita com convicção o pedido da imortalidade do saber. A imagem que no texto da uruguaia é oculta e sem rosto aparece em "Deus dança" com ações nitidamente observáveis (correr, dançar, atirar, etc.). De maneira carnavalizada, esse Deus brinca com o cenário do universo, cujos "atores" infelizes parecem já não mais suplicar por sua ajuda.
Clara Silva
Clara Silva (1907-1976) colaborou em diversos periódicos de seu país e do continente. Foi bastante reverenciada por conta da sua produção em prosa. Seus livros de poesia publicados foram: La cabellera oscura (1945), Memoria de la nada (1948), Los delirios (1954), Preludio indiano y otros poemas (1960), Las bodas (1960), Guitarra en sombra (1964), Juicio final (1971), La astúcia mística (1974), Los juicios del sueño (1975). Já suas obras narrativas são La sobreviviente (1951), El alma y los perros (1962), Aviso a la población (1964), Habitación testigo (1967) e Prohibido pasar (1969).
Sua obra em prosa será bastante rememorada pelos críticos:
Clara Silva vuelca en estas trabazones un acento muy particular y muy propio de una tradición literaria de la que forma parte: esos "outsiders", femeninos en este caso, que recorren buena parte del siglo empapados de existencialismo filosófico, y que desembocan finalmente en un Camus, el primero que fue capaz de objetivarlos [...] (Clara Silva..., [19 – ], p.522-3)
Em Crônicas de viagem 1, no texto intitulado "Rumo: Sul (XII)", Cecília fala da sua impressão ao ver Clara Silva, cujo nome de casada a faz levar o sobrenome de seu marido Alberto Zum Felde:
Clara Zum Felde, casada com o conhecido crítico uruguaio: uns olhos cheios de fogo, que ora fluem ironia, ora se imobilizam em súbita reflexão. Ainda não li os seus poemas, que estão inéditos. Cúneo pintou um retrato seu, todo vermelho, com muito sortilégio e muita fatalidade. De repente, parece uma amazona. E quando sorri mostra uns dentes miudinhos como sementes de fruta. (Meireles, 1998, p.117)
Como foi mencionado anteriormente, em "Expressão feminina da poesia na América", Cecília, ao se referir à poética de Clara Silva e de Sara de Ibáñez, aponta alguns aspectos em relação à linguagem que, segundo a poetisa brasileira, podem causar uma falta de entendimento por parte do leitor.
Acerca da poesia de Silva, o ensaio ainda observa:
Clara Silva, mais inquieta, não se prende a ritmos certos, nem a estrofes, nem rimas. Sua arte poética, ela mesma o revela "extraer luz de espesas tenebrosas". Investiga suas origens humanas, diante de seu retrato, como outrora Sor Juana Inés de la Cruz, aponta a transitoriedade da vida, porém de outra maneira:
"Rostro definitivo, rescatado a la tierra
tu quedas
y yo paso".
(Meireles, 1959, p.97)
Fryda Schultz de Mantovani, ao analisar a obra Los delirios, chama a atenção para os elementos barrocos nos versos da uruguaia: "estos sonetos que parecen volver de los infiernos, de los que suele surgir un intento de angeologia diabólica" (Mantovani apud Bordoli, 1966, p.373). Diante dessas considerações, cabe dizer que, para Clara Silva, a busca por Deus está atrelada ao princípio de rebeldia, e não de entrega. Essa postura tipicamente da modernidade pode ser observada nas palavras da poetisa: "Tal búsqueda no sería verdadera si no cayese, en nuestro tiempo y existencia, en la rebeldía vital". A forma de seus poemas, como salienta Sarah Bollo (1965, p.205, tomo 2), também irá receber essa roupagem moderna: "una forma moderna de estructura cambiante, de ritmo libre, algo abstracta".
Em 1948, ao tratar do caráter lírico da poesia de Silva, Juan Ramón Jiménez comenta:
la veo en medio de este juego de estaciones encontradas, escamoteando siempre la luz de la llama, buscando su calor hondo. La veo bien compuesta entre ruinas proprias. La veo salvada en la única tabla de su naufragio. La veo egoísta y martilleante, de pie sobre las cosas y los seres. (Jiménez apud Diccionario de La Literatura..., 1987, tomo 2, p.258)
Conforme salienta Bordoli (1966), a agonia religiosa refere-se ao tema central da poesia de Clara Silva. O autor, porém, ressalva que outros assuntos também serão abordados com grandiosidade em sua poética:
El tema central de esta poesía y su verdadera originalidad en nuestras letras consiste en una agonía religiosa. Lo que no quiere decir que sólo en ella han de buscarse sus mejores logros. Así el último libro de versos publicado muestra los aciertos de Clara Silva en otro ámbito. (Bordoli, 1966, tomo 1, p.371)
Já em relação à temática de seus primeiros livros, trata basicamente sobre a vida, o amor, a morte, o tempo, a eternidade. Para Isabel Gilbert Pereda, amiga e grande estudiosa da obra de Clara Silva, a poetisa uruguaia "canta en lo personal lo genérico, en su angustia la angustia de la especie" (apud Bordoli, loc. cit.). Essa concepção também é indicada por Cecília no ensaio:
Todas as palavras, nestes poemas, têm de ser sentidas, entendidas; esta é uma poesia que exclui o lugar-comum. Descrevendo uma mulher coroada, diz Clara Silva:
"Del lugar y del tiempo desprendida,
el pie posando en el instante puro,
tu silencio es del alma,
tu soledad, – en cumbre de ejercicio."
(Meireles, 1959, p.98)
Em vista dessas considerações, cabe apontar outros versos da poetisa uruguaia que falam de uma mulher; porém, esta se encontra em conflito com sua própria imagem refletida no espelho, fato que a angustia:
Espejo de tortura
Habitante de oscura galería,
de improviso la vi, como un fantasma
de aquel jardín perdido.
Ya no esperaba a nadie en su desvelo
y dejaba a sus pies,
indiferente,
llorar la vieja niña...
Su antiguo cuerpo
solo,
de virgen sin promesa,
reconocí,
su carne
transitada de estériles veranos.
Y allí, junto a los rostros
que un desorden de sombras confundía,
ella trajo cual tímida invitada,
suspensa en los umbrales de una fiesta,
mi nublada paloma adolescente.
En el aire escribía los nombres del pasado
y levantaba entre las nieblas frías
los torvos monasterios del recuerdo.
¿Cómo rompí el espejo de tortura
en que por un azar
no reflejamos?...
La dejé en su vacía desventura;
Y ya por sin alma,
huí por el camino
de un misterioso anochecer de pájaros
llamándose a su sueño.
(Silva, 1966, p.23-4)
O poema pertencente à obra La cabellera oscura (1945), assim como "Mulher ao espelho", de Mar absoluto e outros poemas, também publicado no ano de 1945, utiliza-se de um objeto especular para tratar da inevitável passagem do tempo. Olhar para as mudanças físicas que indicam a perda da juventude para o eu‑lírico é uma tortura. Diante desse fato irrefutável, a única saída encontrada por essa mulher é quebrar o espelho e se evadir por caminhos que a façam esquecer sua imagem refletida. Ao encontro desse tema, os versos de "Epigrama do espelho infiel", de Cecília Meireles, publi- cados em Vaga música (1942), colocam em evidência mais uma vez o conflito entre o eu e a sua representação frente ao espelho:
Epigrama do espelho infiel
A João de Castro Osório
Entre o desenho do meu rosto
e o seu reflexo,
meu sonho agoniza, perplexo.
Ah! pobres linhas do meu rosto,
desmanchadas do lado oposto,
e sem nexo!
E a lágrima do seu desgosto
sumida no espelho convexo!
(Meireles, 2001, v. 1, p.340-1)
Percebe-se nesse texto poético que os sonhos encontram-se agonizados, presos em um espaço intermediário entre o rosto e a representação da sua própria imagem. O espelho aqui é infiel, já que não reflete o rosto marcado pelas linhas de expressão e nem sequer a tristeza experimentada por essa voz do poema, em decorrência do seu conhecimento acerca da inexorável passagem do tempo. A falta de exatidão proporcionada por esse objeto especular faz com que esse eu se sinta, como em "Espejo de tortura", um fantasma de "un jardín perdido".
Dora Isella Russell
Dora Isella Russell (1925-1990) escreveu para muitos jornais da época, como o suplemento dominical El Día, divulgando seus estudos de literatura. Além disso, exerceu a carreira de docente universitária em instituições públicas e privadas. Publicou El canto irremediable (1946), Oleaje (1949), El otro olvido (1952), Tríptico a Jean Aristeguieta (1952), Los barcos de la noche (1954), Elegía de junio (1963), Tiempo y memoria (1964), El tiempo de regreso (1967), Los sonetos de Simbad (1970), Poemas hispanoamericanos (1977), Memorial para Don Bruno Mauricio de Zabala (1977), Los sonetos de Carass Court (1983). Vale mencionar que a poetisa foi uma grande estudiosa da obra de Juana de Ibarbourou; aliás, ela manteve sob sua responsabilidade o arquivo pessoal da autora de Lenguas de diamante.
Para Sarah Bollo (1965, p.135), a poesia de Dora Isella é marcada por um acento moderno e uma linguagem rica de expressividade; além disso, a autora de Oleaje mostra uma predileção pelas formas clássicas, como o soneto. Tais aspectos também são comentados por Cecília em "Expressão feminina da poesia na América":
Em Dora Isella Russell, o verso, livre e clássico desliza principalmente sobre temas de amor, vida e pensamento. Pergunta a jovem poetisa:
"Por qué cantar la estrella ni la rosa
si hay en nosotros tema para el canto?!"
(Meireles, 1959, p.99)
Esse gosto pelos sonetos também será salientado por H. E. Pedemonte: "Su estilo que presenta una gran solidez formal ha dado ya algunos de los más hermosos sonetos de la nueva poesía: lo que Isella Russell no ha hecho aún es darse ella misma plenitud" (apud Bordoli, 1966, p.123)
Cecília ainda ressalta a maneira ambígua como a poetisa trata alguns temas como amor, vida e morte:
Assim, pois, amor, vida e morte, grandes temas essenciais, servem de base às suas construções poéticas, muitas vezes intencionalmente ambíguas, lembrando a linguagem dos elegantes enigmas do século 18, como, por exemplo, em "Biografia del suspiro":
"Nace con los comienzos del asombro.
Existe en la sonrisa y en el duelo.
Se empina en la comarca del desvelo.
Y aflora entre los labios, si te nombro."
(Meireles, 1959, p.99)
Esses temas em El otro olvido (1953) desprendem-se da linguagem "elegante" dos livros anteriores e, com um tom próximo ao coloquial, cantam a vida. Tal aspecto é apontado como um elemento inovador em sua poética: "Su mayor autenticidad la logra desli- garse de la retórica que acompaño mucho de sus libros y testimonia su falta de empuje vital, su dependencia para con un mundo pasado en el que quiere permanecer" (Diccionário de La Literatura..., tomo 2, 1987, p.232).
Sara Rey Alvarez, já em 1944, de maneira antecipada, salienta a produção de sonetos de Dora Isella que, na época, os publicava em diversos periódicos. Para ela, a mensagem presente em seus poemas consiste no:
canto juvenil sin exhuberantes sensualismos ni dóctiles sometimientos a la última moda literaria. Con innata elegancia cubre su poesía con el ropaje adecuado a sus modalidades íntimas; despierta a la lírica ágil de movimientos dejando caer sus labios la expresión pristina de sus voces internas. Raras dotes, a la verdad, en una poetisa novel. (Alvarez, 1944, não paginado)
Ainda no ensaio, Cecília chama a atenção para o tema do amor na obra de Russell:
Dá-nos Dora Isella Russell a confissão do seu cansaço diante do amor, como do verso:
"Ni si quiera las lágrimas son nuevas.
Y el llanto nos fatiga
por no saber llorar de otra manera."
(Meireles, 1959, p.99)
Esse mesmo cansaço irá gerar uma busca de um amor ou amado perfeito, como aponta Alberto Rusconi (1958, p.789, v. 2): "Toda la poesía de Dora Isella recorre una misteriosa comarca de anhelos truncos, de amores presentidos, de congoja anímica, en eterna bús- queda aflictiva del amado perfecto".
Cecília também faz uma pequena alusão à temática do tempo na obra da uruguaia: "Ao lado de uma descrição do relógio, que começa: ‘Ilimitada rosa de los límites,/ contorno hastiado de medir la vida...’" (Meireles, 1959, p.99). Tem-se aqui o relógio representando metaforicamente o tempo. Tais versos refletem a impossibilida- de dessa máquina criada pelos homens em medir os sentimentos humanos que, por sua vez, são ilimitados, infindáveis. O poema ceciliano "Epigrama nº 2", publicado em Viagem (1939), também toca nessa questão:
Epigrama nº 2
És precária e veloz, Felicidade.
Custas a vir, e quando vens, não te demoras.
Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo,
e, para te medir, se inventaram as horas.
Felicidade, és coisa estranha e dolorosa.
Fizeste para sempre a vida ficar triste:
porque um dia se vê que as horas todas passam,
E um tempo, despovoado e profundo, persiste.
(Meireles, 2001, v.1, p.234)
Além da questão da brevidade do tempo questionada no poema, mostra-se aqui, de maneira bastante dialética, a presença da tristeza como elemento que nutre a "Felicidade". Esta, por sua vez, não é sustentada simplesmente pelos bons e agradáveis momentos, mas sim pela efemeridade que ela representa. Tal concepção também é compartilhada por Dora Isella, que, na epígrafe do livro Los barcos de la noche (1954), anuncia: "Porque la vida es sólo una travesía/ cumplida a bordo de una nave anclada...". A rápida passagem que representa a vida nessa mesma obra será cantada em forma de soneto:
XVI
Soy barco inmóvil sobre el mar oscuro,
proa de tempestad y quilla quieta,
agresiva anteayer, hoy recoleta
muchacha triste del soñar maduro.
Yo sé que es limpio y cauteloso y puro
éste mi amor de dimensión secreta.
No sé decirlo, y es camino y meta.
No sé callarlo, y a callar me apuro.
De tanta estrella no me pertenece
ni el más exiguo resplandor rielado.
el barco inmóvil sobre el mar parece
un fantasma sin tiempo ni pasado
que en mitad de la noche permanece:
mi juventud también es barco anclado.
(Russell, [1954], p.39-40)
É com um barco estático que paira sobre um mar desconhecido e escuro que a voz do poema se identifica. A tristeza persiste nos sonhos já envelhecidos. Assim como em "Epigrama nº 2", a felicidade é "estranha e dolorosa". O eu‑lírico se compara a um fantasma que vagueia, sem tempo nem passado; como nos versos cecilianos citados anteriormente, nota-se aqui essa incapacidade de medir o tempo e a suposta felicidade proporcionada por ele, já que o oculto e o imóvel persistem. Águas, mares e ilhas, que na poesia de Dora Isella assumem um sentido alegórico da própria vida, irão refletir também acerca da própria solidão humana que tenta reconstruir-se a partir de um mundo à deriva. Para a poetisa uruguaia, toda ilha é "un barco iluminado/ que echó las anclas en mitad del viaje" (Russell, 1964, não paginado). Ela ainda complementa:
Porque isla y mar son una sola cosa. Deslinde imposible fuera robarle al mar su isla, aislar a la isla, con toda su redundancia, del mar. Aquélla se prolonga en éste, ensaya su hazaña marinera, como una deidad remota que aventurara su pie liviano entre las ondas. (Russell, 1964, não paginado)
Ida Vitale
Ida Vitale (1923) surge na literatura uruguaia com a publicação de quatro sonetos publicados na revista Clinanem, em 1947. Há uma notável quantidade de poemas, assim como estudos críticos da autora publicados em periódicos uruguaios e de outros países como El País (Buenos Aires), Asir y Clima (Buenos Aires), Crisis (Buenos Aires), Eco (Bogotá), Hueso Húmero (Lima), Textos en el Aire (Barcelona), Hispámerica (Washington), Escandalar (Nova York), Sin Nombre (Porto Rico), entre outros. Sua produção poética conta com o livros La luz de esta memória (1949), Palabra dada (1953), Cada uno en su noche (1960), Paso a paso (1963), Oidor andante (1972), Jardín de Sílice (1980), Elegías de otoño (1982), Entresaca (1984), Sueños de la constancia (1984), Serie del sinsonte (1992). Com uma vida intelectual bastante ativa, já realizou traduções, adaptações de obras teatrais, proferiu conferências em diversos lugares do mundo, além de ter se dedicado ao gênero narrativo.
Segundo Sarah Bollo (1965, tomo 2, p.216), "La poesía de Ida Vitale es sencilla, de fondo natural, expresiva; la forma que adopta preferentemente son los metros breves, musicales". Ainda sobre sua produção destaca-se:
Ensimismada y elegíaca, Ida Vitale cantó, en su primer libro, la soledad, el amor ausente, el inevitable pasaje del inapresable tiempo, la infancia perdida, la muerte implacable, a través de imágenes sin ostentación, diáfanas y al mismo tiempo llenas de oscuras sugerencias. (Diccionario de La Literatura..., 1987, tomo 2, p.319)
A poesia de Vitale encantará Juan Ramón Jiménez, que irá chamar a atenção para o fato de sua produção ser repleta de "mistério" e "encanto". O escritor espanhol, inclusive, seleciona alguns de seus poemas, juntamente com os de Idea Vilariño, para integrar Presentación de la poesia hispanoamericana joven, que ele preparou em Buenos Aires.
Sete anos após a publicação de Palabra dada, a poetisa lança Cada uno en su noche (1960), apontado como um dos mais transcendentes e autênticos livros escritos por um membro da geração de 45 da literatura uruguaia (Lucidez ..., [19 – ], p.506).
Em "Expressão feminina da poesia na América", Cecília Meireles dedica cerca de uma página de comentários a Ida Vitale, salientando a presença do cansaço perante o amor na sua poética, bem como na de Dora Isella Russell:
É, de certo modo, a mesma confissão de Ida Vitale, outra jovem poetisa uruguaia, quando diz:
"Ya todo ha sido dicho
y un resplandor de siglos
lo defiende del eco".
(Meireles, 1959, p.99)
Os versos acima fazem parte do poema "Canon" que abre a obra Palabra dada (1953). O próprio nome do texto já é bastante sugestivo, pois remete tanto à composição musical com a presença de diferentes vozes que se repetem sucessivamente quanto ao próprio modelo que incorpora a tradição literária. Discute-se aqui a impossibilidade de falar, de "cantar", de escrever diante de um mundo em que tudo está pronto de acordo com um modelo, o que revela um conflito típico da modernidade. O cansaço é a busca interminável de uma palavra que ainda não tenha sido "dada". Assim, prossegue:
¿Cómo decir cantar el confuso perfume de la noche,
el otoño que crece en mi costado,
la amistad, los oficios,
el día de hoy,
hermoso y muerto para siempre,
o los pájaros calmos de los atardeceres?
¿Cómo decir de amor,
su indomable regreso cotidiano,
si a tantos, tantas veces,
han helado papeles, madrugadas?
¿Cómo encerrarlo en una cifra
nueva, extrema y mía,
bajo un nombre hasta ahora inadvertido,
y único y necesario?
Tanto haría falta la inocencia total,
como en la rosa
que viene con su olor, sus destellos, sus dormidos rocíos repetidos,
del centro de jardines vueltos polvo
y de nuevo innumerablemente levantados.
(Vitale, 1988, p.157)
Tal angústia gerada pela impossibilidade de representar o próprio "cantar" é o que paralisa, mas, por outro lado, é o que faz mover essa busca de uma experiência poética.
Ainda sobre a poetisa uruguaia, Cecília complementa:
Grandes observadoras, com a sensibilidade afinada pela cultura e pelas experiências diárias, estas jovens escritoras chegam prontamente ao centro de todos os temas: a mentira do corpo; o presente que já é passado e recordação; a cada instante; o ar, inimigo que toma lugar dos ausentes, – assim recolhe Ida Vitale em breves poemas o que a vida lhe vai ensinando. (Meireles, 1959, p.100)
Esse questionamento em relação às experiências diárias para o qual a autora brasileira chama a atenção pode ser evidenciado no poema transcrito abaixo, da obra Cada uno en su noche (1960):
Obligaciones diarias
Acuérdate del pan,
no olvides aquella cera oscura
que hay que tender en las maderas
ni la canela guarneciente
ni otras especias necesarias.
Corre, corrige, vela,
verifica cada rito doméstico.
Atenida a la sal, a la miel,
a la harina, al vino inútil,
pisa sin más la inclinación ociosa,
la ardiente grita de tu cuerpo.
Pasa, por esta misma aguja enhebradora,
tarde tras tarde,
entre una tela y otra,
el agridulce sueño,
las porciones de cielo destrozado.
Y que siempre entre manos un ovillo
interminablemente se devane
como en las vueltas de otro laberinto.
Pero no pienses,
no procures,
teje.
De poco vale hacer memória,
buscar favor entre los mitos.
Ariadna eres sin rescate
y sin constelación que te corone.
(Vitale, 1988, p.144)
O poema trata das obrigações diárias referentes ao espaço doméstico, dirigindo-se a um leitor feminino: "Ariadna eres sin rescate/ y sin constelación que te corone". Os verbos no imperativo reforçam a ideia de obrigatoriedade diante dessas tarefas que devem ser desempenhadas supostamente pela mulher. A ela não é permitido pensar, nem sequer procurar uma outra alternativa; resta-lhe simplesmente tecer, o que indica o confinamento feminino que, assim como nos mitos de Ariadne e de Penélope, destina as mulheres a desenvolverem essas atividades atribuídas como tipicamente "femininas". Aliás, tais figuras mitológicas aparecem referenciadas no poema ("Y que siempre entre manos un ovillo/interminablemente se devane; Ariadna eres sin rescate"). O vocábulo "tecer", que também dá origem à palavra "texto", carrega aqui um sentido niilista. Percebe-se que pouco se espera dessa atividade construída fio a fio; ela basta-se por si, já que este "tecer" não se perpetua como na mitologia, conforme destaca o eu‑lírico do poema. Esse tom pessimista, por outro lado, não exclui a ideia de "tessitura", de entrelaçamento que se faz presente em "Obligaciones diárias". A agulha que perpassa constantemente cria sonhos "agridulces" e "cielos destrozados". Assim, como numa grande tela, ou melhor, num grande "texto" essas mulheres se circunscrevem.
É interessante observar que os questionamentos trazidos por esses versos colocam em discussão o condicionamento humano, especificamente, o confinamento a que muitas mulheres são submetidas. Essa imagem feminina que enreda fio a fio pode ser notada em "A dona contrariada", que integra a obra Vaga música (1942), de Cecília Meireles:
A dona contrariada
Ela estava ali sentada,
do lado que faz sol-posto,
com a cabeça curvada,
um véu de sombra no rosto.
Suas mãos indo e voltando
por sobre a tapeçaria,
paravam de vez em quando:
e, então, se acabava o dia.
Seu vestido era de linho,
cor da lua nas areias.
Em seus lábios cor de vinho
dormia a voz das sereias.
Ela bordava, cantando.
E a sua canção dizia
a história que ia ficando
por sobre a tapeçaria.
Veio um pássaro da altura
e a sombra pousou no pano,
como no mar da ventura
a vela do desengano.
Ela parou de cantar,
desfez a sombra com a mão,
depois, seguiu a bordar
na tela a sua canção.
Vieram os ventos do oceano,
roubadores de navios,
e desmancharam-lhe o pano,
remexendo-lhe nos fios.
Ela pôs as mãos por cima,
tudo compôs outra vez:
a canção pousou na rima,
e o bordado assim se fez.
Vieram as nuvens turvá-la.
Recomeçou de cantar.
No timbre da sua fala
havia um rumor de mar.
O sol dormia no fundo:
fez-se a voz, ele acordou.
Subiu para o alto do mundo.
E ela cantando, bordou.
(Meireles, 2001, v. 1, p.384-5)
O adjetivo "contrariada", atribuído a essa mulher que aparece no texto ceciliano, passa a ser compreendido na medida em que se percebe o modo como ela se recusa a seguir o percurso dos elementos da natureza que tentam se impor no seu bordado, o que revela uma postura oposta ao movimento habitual. Com sua canção sedutora, como uma sereia, ela conduz seu bordado. As imagens produzidas no poema projetam de maneira quase cinematográfica essa tela, essa tapeçaria, esse grande texto que é composto por sua voz. Assim como nos versos de Ida Vitale, "o tecer", "o bordar", é uma alternativa de perpetuar esse canto feminino. Tal representação pode ser observada com clareza no quadro de Diego Velázquez (1599-1660) intitulado Las hilanderas (1657), conhecido também por La fábula de aracne, em que mulheres de faixas etárias distintas simbolizam essa atividade feminina que é transmitida a cada geração. Nesse sentido, a pintura diante de uma linguagem metalinguística trata da atuação dessas mulheres tecelãs que, artesanal- mente, com sol, vento e sombras, enredam os seus bordados.
Amanda Berenguer
Amanda Berenguer (1921) apresenta uma grandiosa produção poética e ainda continua exercendo intensamente sua atividade de escritora. Já publicou mais de vinte livros de poesia, a saber: A través de los tiempos que llevan a la gran calma (1940), Canto hermético (1941), Elegia por la muerte de Paul Valéry (1945), El río (1952), Suficiente maravilla (1953-1954), publicado pela primeira vez em Poesías (1980); La invitación (1957), Contracanto (1957), Quehaceres e invenciones (1963), Declaración conjunta (1964), Matéria prima (1966), Tocando fondo (1966-1972), editado na íntegra em Constelación del navío (2002); Composición de lugar (1976), Conversación habilitante y derivados – Trazos y derivados (1976-1978), publicado pela primeira vez em Poesías (1980); El tigre alfabetario (1979), Identidad de ciertas frutas (1983), La dama de Elche (1987), Los signos sobre la mesa (1988), Con el tigre entre las cosas (1986-1994), editado na íntegra em Constelación del navío (2002); La botella verde (1995), El pescador de caña (1995), La estranguladora (1998), Escritos (2000), Poner la mesa del tercer milenio (2002), Las mil y una preguntas y propicios contextos (2005) e Casas donde viven criaturas del lenguaje y El diccionario (2005).
Sarah Bollo, ao se referir à produção da autora de El río, afirma: "La poesía de Amanda Berenguer es impersonal, de tonos apagados, de forma sencilla, moderna, sin figuras, apoyándose en las palabras y en el ritmo" (1965, p.207, tomo 2). Sobre essa observação, comenta Bordoli em sua Antología de la literatura uruguaya contemporánea:
no nos parece acertado el juicio de Sarah Bollo cuando juzga a esta poesía como de "tonos apagados". Además de los ejemplos en contrario aquí seleccionados, el último poema aparecido de Amanda Berenguer, la muestra, justamente, en un vertigionoso delirio surrealista. Y lo que sobra allí es temperatura. Temperatura, con todo – volvemos a lo mismo – que no identifica el autor, sino lo atomiza en el torbellino cósmico. Quizá ella, deliberadamente, lo ha preferido. (Bordoli, 1966, tomo 2, p.118)
O poema ao qual se refere Luis Domingos Bordoli é "Carestía", presente em Quehaceres e invenciones. Em relação à obra, comenta o crítico uruguaio Ángel Rama:
los once poemas que abren este libro, de los mejores que ha escrito Amanda Berenguer y de los momentos auténticos y audaces de la lírica uruguaya, presentan enigmáticos paisajes que son reales y a la vez son oníricos; que son ordenaciones abstractas y, a la vez, concretas, privadas aprehensiones del contorno; que son formas simbólicas y al mismo tiempo minuciosas descripciones de regiones verdaderas e ignotas del mundo. (Rama apud Diccionario de La Literatura..., 1987, tomo 1, p.94)
Vale dizer que Cecília Meireles, em "Expressão feminina da poesia na América", dedica a Amanda Berenguer cerca de uma página de comentários, assim como para Ida Vitale e Dora Isella Russell. Assim, ao se dirigir à obra Berenguer, mais especificamente, ao livro El río, ela destaca:
seu pequeno livro El río cujo título nos adverte do panorama instável, fluido, que o mundo oferece à poetisa, no encadeamento das suas ondas sem fim. Uns atrás dos outros passamos, nesta dócil marcha entre o nascimento e morte.
"Ellos vienen detrás como tormenta,
los jóvenes, los niños, los recientes,
Ayer yo era lo que son ahora,
y soy apenas hoy lo que otros fueron".
Para onde fluímos, não o sabemos com segurança total: e essa é a tragédia humana, assistirmos à própria marcha com os olhos e a alma dirigidos para um horizonte de graves silêncios.
(Meireles, 1959, p.100)
Percebe-se que as colocações feitas por Bollo anteriormente (1965) sobre a presença de "tons apagados" e "simples" na poesia de Berenguer contrapõem-se aos aspectos ressaltados no trecho citado. A autora brasileira ainda aponta:
Esta é a mesma artista que nos pode descrever, em profundidade, o simples fato – aparentemente banal – da chegada de uma carta:
"Letra a letra se deshoja el aire,
ciudadano, otoñal, junto a la puerta.
Caen palabras, frases entreabiertas,
besos escritos, hondos como llagas.
Me llegan los mensages, las palomas.
Yo vivo de su sangre, boca arriba,
esperando, callando, recordando,
entre azules, desiertas escaleras..."
(Meireles, 1959, p.101)
Como é possível observar nesse último fragmento, a poetisa uruguaia trata com grandiosidade de temas aparentemente comuns. Questões da "tragédia humana", conforme descreveu Cecília, como a fugacidade da vida e o sentimento de falência do indivíduo diante da morte também são abordados em outros poemas de El río:
Orillas
¡Qué breve y Dulce el aire que respiro,
qué breve el sitio donde me detengo,
qué ligero el andar, el movimiento
del alma que me sigue apresurada,
que es breve el tiempo y breve mi posada!
(Berenguer, 2002, p.79)
Os comentários destinados a Amanda no ensaio ceciliano se limitam basicamente à obra El río, já que, na época em que Cecília escreveu a conferência, Berenguer havia publicado poucos livros. Embora elas não tenham se conhecido pessoalmente, a poetisa brasileira chega a enviar-lhe o Pequeno oratório de Santa Clara (1955), que teve uma pequena tiragem de 320 exemplares, cada um deles acondicionado em uma pequena caixa de madeira que imita um oratório. Esse seria o único texto de Cecília Meireles ao qual Amanda teve acesso4 na íntegra.
Como Cecília, a escritora uruguaia prefere ser chamada de poeta, pois, segundo ela, a palavra "poetisa" lhe traz a sensação de algo menor; além disso, ela não acha que seja um vocábulo tão sonoro quanto poeta, por exemplo. Essas revelações não são de se estranhar, já que ambas estiveram inseridas num contexto, como foi mencionado anteriormente, em que o termo "poetisa" era visto de maneira pejorativa. Ao falar da existência de uma literatura feminina, Amanda compartilha da concepção apresentada pela autora de Vaga música em seu ensaio acerca desse assunto:
Existe una literatura de calidad variable, hecha por hombres, dirigida especialmente a las mujeres. También, otra literatura muy mala, hecha por mujeres para entretener a mujeres aburridas y solas. No existe una literatura femenina como tampoco existe una literatura masculina. Existe la literatura. La creación no tiene sexo, es más, diría que tiene todos los matices sexuales que van del infrarrojo masculino al ultravioleta femenino. El propósito de la rosa que se abre no está dirigido a otras determinadas rosas del jardín; está mostrando el amanecer, la gloria, la fugacidad al caracol, al chingolo, al árbol, a la nube [...] (Berenguer, 1990, p.59, grifo meu)
As observações do fragmento acima vão ao encontro do conceito de androginia que também está presente em "Expressão feminina da poesia na América", quando Cecília afirma, por exemplo:
O espírito – e a arte que é uma de suas manifestações – talvez seja essencialmente andrógino. [...] existe uma elaboração do espírito, uma inquietação e uma investigação de caminhos interiores, com recursos inerentes à Poesia [...] Não se pode dizer, porém, que isso seja um privilégio da mulher; é um privilégio dos verdadeiros poetas, apenas. (Meireles, 1959, p.102)
Embora afirme que não exista uma literatura feminina, é interessante notar que, assim como Cecília Meireles, também Amanda Berenguer acredita que haja particularidades nesse tipo de expressão:
Creo que los profundos pozos de la mujer, su vagina y su útero, se vuelven calderos mágicos, de transformación y metáfora. Son los lugares por donde penetra y nace el universo. Siempre se está dando a luz. Sin embargo para los ovarios, como para las constelaciones, o para los lechosos lagos seminales, toda fulguración es un encuentro aleatorio. Nacen organismos vivos, criaturas de palabra y voz, criaturas parecidas a hilanderas celestes donde cada vocablo como una estrella moviliza su sistema en el delicadísimo engranaje. (Berenguer, 1990, p.60, grifo meu)
Diante desses comentários, percebe-se uma tendência que se aproxima das teóricas francesas acerca da escrita do corpo, bem como da concepção que Cixous apresenta sobre essa questão. A autora ainda comenta, a respeito da visão predominantemente falocêntrica:
como la mayoría del campo cultural está integrado por hombres (aún hoy) esa censura o como la llamemos, toma la forma de una tácita prevención, o en mejor de los casos, simplesmente de mera curiosidad frente a la obra escrita por una mujer, como quien descubre un animal nuevo en el zoológico. (Berenguer, 1990, p.60)
O fato de Amanda Berenguer ainda continuar escrevendo ativamente colaborou para que ela incorporasse em sua poesia uma linguagem bastante atual, tipicamente contemporânea. Assim, de maneira bastante jocosa, ela brinca com expressões do cotidiano que se mesclam ao universo cibernético:
[...] ¿qué ocurre Bill Gates? tu nombre como palomo
que "arrulla" enamorado/ en las "puertas" de
Internet/ y tu "Venni, Vidi, Vinci"/ derrotados?/
¿quién es el vencedor de esta batalla inteligente?
"I love you"/ se oye incitante/ "te amo"/ "te amo"/
¡cuidado! Navegante/ tápate los oídos/
es la voz de la Sirena/ cubre la memoria/
la culpa/ el archivo central/ la madriguera/
se despliega entonces un vacío: suerte
de orgasmo en el placer de las computadoras:
inusitada cola de pavo real viola/ mortal
la impapable entretela/ donde una araña
teje la Net Word/ lugar ambiguo/ topológico
del goce y del olvido/
¡tan cerca están el amor y la muerte! [...]
(Berenguer, 2002, p.18-9)
O fragmento acima é parte do poema "Poner la mesa del tercer milenio" que integra a obra homônima da poetisa uruguaia, publicada em 2002. Os versos, com linguagem bastante atual, agregam informações de várias espécies, assim como a própria World Wide Web. O canto sedutor da sereia, como também a habilidade de tecelã de Ariadne também são referenciados no texto. Tudo se une a essa comunicação de "goce y olvido" que, embora se apresente de maneira frenética, não perde a ambiguidade representada pela tênue linha que separa el amor y la muerte.