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O meu nome é Frank Bascombe e sou jornalista desportivo.
Há catorze anos que vivo aqui em Hoving Road, 19, Haddam, New Jersey, num casarão estilo Tudor comprado quando um livro de contos que escrevi foi vendido por muito dinheiro a um produtor cinematográfico, o que parecia abrir-nos caminho para uma vida melhor, à minha mulher, a mim e aos nossos três filhos – dois dos quais ainda não tinham nascido.
Neste momento, porém, não posso dizer com exatidão o que significou para mim essa vida melhor – aquela que eu esperava –, se bem que não possa dizer que não o fosse. Só que entretanto muita coisa aconteceu. Já não estou casado com a X, por exemplo. O filho que tivemos, quando tudo estava a começar, morreu, embora haja mais dois, como já disse, que estão vivos e são maravilhosos.
Escrevi metade de um pequeno romance quando nos mudámos de Nova Iorque para aqui, e depois meti-o na gaveta, onde ficou desde então e de onde não espero voltar a tirá-lo a menos que aconteça alguma coisa que neste momento não consigo imaginar.
Há doze anos, tinha eu vinte e seis e ainda tudo para aprender, o diretor de uma famosa revista desportiva de Nova Iorque de que já todos ouviram falar ofereceu-me um lugar de jornalista desportivo na sequência de um artigo que eu tinha escrito como jornalista independente e que lhe agradara particularmente. E, para surpresa minha e de toda a gente, desisti do meu romance e aceitei o lugar.
Desde então nunca mais trabalhei em mais lado nenhum, exceto nas férias e durante três meses após a morte do meu filho, quando ponderei começar uma nova vida e aceitei um lugar de professor numa universidade privada no Oeste do Massachusetts, onde acabei por não gostar do ambiente, mal podendo esperar para me vir embora e voltar para aqui, para New Jersey, e continuar a escrever sobre desporto.
Ao longo destes doze anos, a minha vida não tem sido, nem o é agora, de modo algum desagradável. Em muitos sentidos tem sido até fantástica. E embora, quanto mais velho vá ficando, mais as coisas me assustem e cada vez se torne mais evidente que nos podem acontecer coisas más, e que de facto acontecem, é muito pouco o que realmente me preocupa e me tira o sono. Continuo a acreditar que as paixões e o romance são possíveis, e não mudaria muita coisa, se é que mudava alguma coisa. Talvez optasse por não me divorciar. E o meu filho, o Ralph Bascombe, não morreria. Mas a bem dizer era tudo.
Por que razão, poderá perguntar-se, iria um homem desistir de uma carreira literária promissora – houve boas recensões – para ser jornalista desportivo?
Boa pergunta. Por agora, deixe que lhe diga apenas isto: se o jornalismo desportivo nos ensina alguma coisa, e há nele tanto de verdade como de mentira, é que, para a vida valer a pena, temos de enfrentar mais cedo ou mais tarde a possibilidade de um terrível e doloroso arrependimento. Devemos, porém, tentar evitá-lo, caso contrário ficaremos com a vida arruinada.
Acredito ter feito estas duas coisas. Dominei o arrependimento. Evitei a ruína. E ainda aqui estou para falar disso.
Saltei o gradeamento do cemitério, mesmo por trás da minha casa. São cinco da manhã de Sexta-Feira Santa. 20 de abril. Todas as outras casas em redor estão ainda às escuras e eu estou à espera da minha ex-mulher. Hoje é o aniversário do meu filho Ralph. Faria treze anos e passaria a ser um homenzinho. Temo-nos encontrado aqui nos últimos dois anos, muito cedo, antes do romper do dia, para lhe prestarmos a nossa homenagem. Anteriormente vínhamos simplesmente juntos, como marido e mulher.
Da relva do cemitério eleva-se uma neblina, como se fosse um espetro, e no ar pesado, sobre as nossas cabeças, oiço o bater sibilante das asas dos gansos. Um carro da polícia entrou murmurejante pelo portão, parou, apagou as luzes e colocou-me sob vigilância. Vi o fogacho breve de um fósforo dentro do carro e a cara do polícia a olhar para um bloco de notas.
Ao fundo da «parte nova» um pequeno gamo observa-me enquanto espero. De vez em quando os seus tapeta lucida piscam na obscuridade para a parte antiga, onde as árvores são maiores e onde três subscritores da Declaração da Independência estão sepultados a curta distância da campa do meu filho.
Os Deffeyes, os meus vizinhos do lado, estão a jogar ténis e vão anunciando a pontuação com vozes matinais delicadamente contidas.
– Desculpa.
– Obrigada.
– Quarenta zero.
Poc. Poc. Poc.
– Vantagem para ti, meu amor.
– Sim, obrigado.
– Teu.
Poc. Poc.
Oiço-lhes a respiração profunda e acelerada, pelo nariz, e os pés a raspar no chão. Têm mais de oitenta anos e, como já não precisam de dormir, estão a pé a todas as horas. Instalaram lâmpadas fluorescentes de sulfato de bário, opacas, que não brilham no meu jardim nem me perturbam o sono. Tornámo-nos bons vizinhos, se bem que não amigos íntimos. Atualmente tenho muito pouco em comum com eles e raramente sou convidado para as suas festas ou para as dos outros vizinhos. As pessoas continuam a mostrar-se simpáticas, mas distantes, e considero-as pessoas de bem, conservadoras e honestas.
Como acabei por perceber, não é fácil ter um divorciado como vizinho. É um homem à beira do caos e o seu viável contrato social é posto em causa pelas nebulosas questões do sexo. A maioria das pessoas sente que tem de fazer uma escolha e é sempre mais fácil escolher a mulher; foi o que fez a maior parte dos meus vizinhos e dos meus amigos. E, apesar de algumas conversas breves junto à sebe do jardim e por cima do tejadilho dos nossos carros nos parques de estacionamento dos supermercados, trocando impressões sobre as condições dos nossos sofitos e do escoamento e sobre a probabilidade de um inverno antecipado, e de fazermos por vezes planos vagos para nos reunirmos, quase nunca os vejo, mas não deixo que isso me afete.
Hoje é Sexta-Feira Santa e um dia muito especial para mim, para além de ser já de si tão especial. Quando acordei esta manhã, ainda escuro, com o coração a bater como um tambor, tive a sensação de que uma mudança se aproximava, como se este misto de devaneio e expectativa em que tenho vivido nos últimos tempos estivesse prestes a abandonar-me para se perder na madrugada fria e tenebrosa.
Hoje vou partir para Detroit, para começar a traçar o perfil de um famoso ex-jogador de futebol americano que vive na cidade de Walled Lake, Michigan, e que está confinado a uma cadeira de rodas devido a um acidente de esqui, mas que se tornou numa inspiração para os seus antigos companheiros de equipa pela coragem e determinação demonstradas, pois voltou para a universidade para terminar o curso de comunicação, casou com a sua fisioterapeuta, uma negra, e por fim passou a ser capelão honorário da sua antiga equipa. «Dar um contributo» será o meu ângulo de abordagem, e este é o tipo de história que me agrada e considero fácil escrever.
Porém, o meu grau de ansiedade é muito elevado, pois levo comigo a minha nova namorada, Vicki Arcenault. Ela mudou-se há pouco tempo de Dallas para New Jersey, mas eu já tenho a certeza de que estou apaixonado (ainda não lhe disse nada com medo de que ela não acredite). Há dois meses, quando cortei o polegar ao afiar a lâmina de um cortador de relva na garagem, foi a enfermeira Arcenault que me coseu o dedo nas urgências do Doctors Hospital e foi aí que tudo começou. Ela tirou o curso na Baylor University, em Waco, e veio para aqui quando o seu casamento se desfez. Por sinal, a família dela vive em Barnegat Pines, não muito longe daqui, perto do mar, e há planos para eu ser exibido como Prova A no jantar de Páscoa, para lhes satisfazer a curiosidade e demonstrar que ela fez uma mudança bem-sucedida para o Nordeste, encontrou um homem honesto e de bom coração, e deixou definitivamente para trás os tempos infelizes, incluindo o cretino do marido, Everett. Wade, o pai dela, trabalha na portagem da Saída 9 da autoestrada e não me parece que a nossa diferença de idades lhe agrade. Vicki tem trinta anos, eu tenho trinta e oito, e ele ainda está nos cinquenta. Mas tenho esperança de granjear a sua simpatia e mal posso esperar por esse momento. Vicki é uma mulher pequenina, meiga e atrevida, de cabelo preto e feições delicadas, com um forte sotaque do Texas e uma desinibição na fruição do prazer capaz de fazer um homem como eu gritar à noite de desejo.
Nunca se deve pensar que sair de um casamento nos deixa livres para namorarmos alegremente com muitas mulheres e levarmos uma vida extravagante que até então nos tinha passado despercebida. Nada mais longe da verdade. Ninguém consegue viver assim por muito tempo. O Clube dos Divorciados aqui da cidade, a que pertenço, provou-me, se nada mais, pelo menos isso – não falamos muito de mulheres quando nos reunimos e sentimos um grande alívio por sermos apenas homens. Ter saído de um casamento libertou-me antes – a mim e à maior parte de nós – para o celibato e para uma fidelidade maior do que alguma vez experimentara antes, se bem que ninguém esteja disposto a ser fiel ou celibatário. É só um longo vazio. No entanto, todos deveriam viver sozinhos em algum momento da vida. Não como fazemos no verão, quando somos pequenos, ou num quarto individual de uma qualquer residência universitária, mas como adultos. Vivermos sozinhos nessa altura. Pode ser benéfico. Podemos acabar por nos tornar mais introspetivos, como os melhores atletas, o que vale muito a pena. (Um jogador de basquetebol que se lança para o seu famoso encestamento de fora da linha dos 3 pontos mais não é do que a simples personificação do desejo de que a bola entre no cesto). Em todo o caso, fazer uma jogada dessas não é fácil nem se espera que seja. Eu faço o meu trabalho, faço-o bem feito e espero receber a recompensa devida, sem ter a menor ideia do que isso possa ser. E o prémio é aparecer a enfermeira Arcenault, um brinde caído do céu.
Há vários meses que não viajo, pois a revista encontrou muito trabalho para eu fazer em Nova Iorque. Foi declarado em tribunal por Alan, o charlatão do advogado da X, que a causa dos nossos problemas eram as minhas viagens, especialmente depois de Ralph ter morrido. E, embora isso não seja tecnicamente verdade, mas apenas uma justificação legal que a X e eu inventámos, sempre gostei das viagens que acompanham a minha profissão. Vicki só viu duas paisagens na vida inteira: as planuras atípicas das monótonas pradarias ao redor de Dallas, e New Jersey – um estranho desconhecimento do mundo nos tempos que correm. Mas eu irei mostrar-lhe em breve o Midwest, onde a antiga normalidade paira pesada no ar húmido e onde por acaso andei na universidade.
É verdade que muito do meu trabalho como jornalista desportivo é exatamente o que poderiam pensar: viajar de avião, aeroportos de chegada e de partida, entrar e sair de hotéis nos centros das cidades, esperar horas a fio em corredores e balneários, alugar carros, enfrentar bagageiros antipáticos. Bebidas a altas horas da noite em bares desconhecidos, levantar-me sempre antes do amanhecer, como fiz esta manhã, tentar colocar as coisas em perspetiva. Mas este trabalho também me dá uma autoconfiança sem a qual penso que não conseguiria ser feliz. Chegamos muito cedo à conclusão de que nada jamais nos poderá afastar de nós mesmos. Mas nestas cidades da nação, tão pragmáticas e anónimas, todas as Milwaukees, St. Louis, Seattles, Detroits e até New Jerseys, pode acontecer inesperadamente algo de positivo. Uma mulher que conheci na faculdade onde lecionei durante um breve período disse-me um dia que eu tinha um vasto leque de opções, que não era suficientemente pressionado por uma necessidade imperiosa. Mas isso não passa de uma ilusão, e foi esse o erro dela. Opções é aquilo de que todos precisamos. E, quando me aventuro no vórtex revestido de tijolo dessas cidades americanas, é exatamente isso que sinto. Uma abundância de opções. Coisas sobre as quais nada sei, mas que poderia gostar que aqui estivessem, se possível à minha espera, mesmo que não estejam. O entusiasmo da chegada. A boa iluminação de um restaurante que nos agrada particularmente. Um motorista de táxi com uma história de vida interessante para contar. A voz melodiosa e descontraída de uma mulher que não conhecemos, mas que podemos ouvir num bar onde nunca estivemos num momento em que de outro modo teríamos estado sozinhos. Todas estas coisas estão à nossa espera. E o que poderá haver de melhor? De mais misterioso? De mais prometedor? Nada. Absolutamente nada.
As lâmpadas de sulfato de bário apagam-se no court de ténis dos Deffeyes e a voz paciente e cordata de Delia Deffeyes, ainda contida, vai tranquilizando o marido, dizendo-lhe que jogou bem, enquanto se encaminham para a casa às escuras com os seus equipamentos brancos.
O céu parece um olho leitoso e, apesar de ser primavera e quase Páscoa, a alvorada veste-se de um tom invernoso, como se uma névoa alta lhe ofuscasse as estrelas da manhã. E não se vê a Lua.
O polícia já viu o que tinha a ver e sai calmamente pelo portão do cemitério para as ruas silenciosas. Oiço um jornal cair no passeio. Ao longe, oiço o comboio que vai para Nova Iorque parar na nossa estação com o silvo do costume, sempre um som reconfortante.
O Citation castanho da X para no semáforo vermelho em Constitution Street, em frente à nova biblioteca, e segue depois por Plum Road, ao longo do gradeamento do cemitério, com os máximos ligados. O gamo desapareceu e eu vou ao encontro dela.
A X é uma rapariga à moda antiga, típica do Michigan, mas oriunda de Birmingham, que conheci em Ann Arbor. O pai chama-se Henry e foi um dos liberais mais destacados da sua geração, ele que ainda possui uma fábrica de juntas de borracha para uma máquina gigante que produz para-choques; mas agora é do partido republicano e rico como Creso. Irma, a mãe, vive em Mission Viejo e estão os dois divorciados, embora ainda me escreva com regularidade e continue convencida de que a X e eu acabaremos por nos reconciliar, o que me parece tão possível como outra coisa qualquer.
A X podia, se assim quisesse, optar por regressar ao Michigan, comprar um apartamento num condomínio ou uma casa estilo rancho, ou mudar-se para a propriedade do pai. Discutimos isso na altura do divórcio e eu não levantei qualquer objeção. Mas ela é demasiado orgulhosa e independente para mudar de casa agora. Além disso, é uma firme defensora do conceito de família e quer que Paul e Clarissa estejam perto de mim. E eu fico feliz quando penso como ela se adaptou tão bem à sua nova vida. Às vezes só nos tornamos adultos quando sofremos uma perda brutal e a vida nos apanha e nos leva aos trambolhões, como uma onda.
Depois do divórcio, ela comprou uma casa numa zona de Haddam mais económica, mas em franco desenvolvimento, a que os locais chamam The Presidents, e arranjou emprego como instrutora de golfe no clube de campo de Cranbury Hills. Foi capitã das Lady Wolverines na faculdade e começou recentemente a participar em algumas das competições para profissionais e amadores, agora que a sua tacada curta se aperfeiçoou, e até ficou bem posicionada em dois torneios no verão passado. Estou convencido de que toda a vida desejou experimentar algo assim e de que o divórcio lhe deu essa oportunidade.
Como era a nossa vida? Agora já quase não me recordo. Embora me lembre dela, do tempo que ocupava. E lembro-me com afeto.
Imagino que a nossa vida fosse genérica, como disse o poeta. A X era dona de casa e mãe, lia livros, jogava golfe e tinha amigas, enquanto eu escrevia sobre desporto e andava por aqui e por ali a recolher as minhas histórias, e depois voltava para casa para as escrever e passava dias a fio enfiado em casa e em roupas velhas, apanhando de vez em quando o comboio para ir a Nova Iorque e voltar no mesmo dia. A X parecia aceitar o melhor possível a minha profissão de jornalista desportivo. Achava bem, ou pelo menos dizia que sim, e parecia feliz. Julgava que tinha casado com um jovem Sherwood Anderson com possibilidade de fazer carreira cinematográfica, mas não se zangava por as coisas não terem tomado esse rumo, e nunca me incomodou por causa disso. Eu era feliz como uma andorinha. Íamos de férias com os nossos três filhos para Cape Cod (a que Ralph chamava Cape God), para Searsport, no Maine, para Yellowstone, e para os campos de batalha da Guerra Civil em Antietam e Bull Run. Pagávamos as nossas contas, íamos às compras, íamos ao cinema, comprávamos carros, máquinas fotográficas e fazíamos seguros, cozinhávamos no jardim, íamos a cocktails, visitávamos escolas e vivíamos a nossa relação com a terna desconfiança de adultos. Eu ia para a janela admirar a paisagem, ficava no jardim ao pôr do sol com um sentimento de aconchego e realização, limpava as goteiras, estava atento às vigas, protegia as janelas contra os temporais, fertilizava a terra com regularidade, controlava as finanças, falava com os vizinhos num tom interessado, ou seja, levava a vida normal e sem glória de todos nós.
No entanto, perto do fim do nosso casamento, comecei a perder-me em devaneios. Por vezes, quando acordava de manhã, abria os olhos e via a X deitada ao meu lado a respirar, não a reconhecia! Nem sequer sabia em que cidade estava ou quantos anos tinha ou que vida era aquela, de tão perdido que estava nos meus profundos devaneios. E deixava-me ficar deitado, tentando prolongar ao máximo esse estado de inconsciência, esse prazer de planar sem azimute nem atitude de que aprendi a gostar enquanto ele durava, à medida que vinte possibilidades de quem, onde, o quê me perpassavam a mente. Até que, de repente, caía em mim com aquela sensação de – de quê? De perda, penso eu, embora não saiba que perda. O meu filho tinha morrido, mas recuso-me a dizer que era essa a causa, ou que alguma coisa é alguma vez a única causa de outra coisa qualquer. Sei que podemos viver a sonhar com uma vida que, tirando isso, seja perfeita, e nunca mais acordarmos, e foi quase isso que eu fiz. Estou convencido de que sobrevivi a essa fase e quase consegui atirar os devaneios para trás das costas, apesar de haver uma inequívoca tristeza entre mim e a X por o nosso casamento ter terminado, uma tristeza que não se sente como tristeza. É mais o que se sente num encontro de antigos colegas de escola quando ouvimos uma velha canção de que costumávamos gostar quando tocada a altas horas da noite, com a diferença de que agora estamos completamente sozinhos.
A X aparece na luz agatina do cemitério, com passo incerto e ensonada, de sapatos de atacadores, calças de ganga largas e um velho impermeável que lhe ofereci há muitos anos. Cortou o cabelo curto num novo estilo que me agrada. É alta, robusta, de cabelo castanho e bonita, e parece nova para a idade que tem: apenas trinta e sete anos. Quando nos conhecemos há quinze anos em Nova Iorque, numa penosa sessão de autógrafos, ela passava modelos para uma loja de roupa da Quinta Avenida, e mesmo agora ainda tem por vezes tendência para andar com passo alongado, numa pose irreverente e descontraída, pés decididos e virados para fora, apesar de, quando se posiciona para uma tacada no campo de golfe, ser capaz de atirar a bola a um quilómetro de distância. De certo modo, tornou-se numa atleta tão genuína como todos os outros que conheço. E nem preciso de dizer que tenho por ela a maior admiração e que a amo de todas as maneiras menos a mais formal. Às vezes vejo-a passar na rua, na cidade, ou de carro, sem estar à espera e sem que ela saiba, e fico fascinado: o que poderá ela querer agora da vida? Como foi possível tê-la amado e deixá-la partir?
– Ainda está muito frio – diz ela com voz firme e contida, quando já está suficientemente perto para que eu possa ouvi-la, de mãos enfiadas nos bolsos do impermeável. Uma voz que eu amo. Em muitos sentidos, foi essa voz que eu comecei por amar, aquelas vogais aceradas, do Midwest, aquela sintaxe sucinta mas escorreita: Binton Herbor, himburg, Gren Repids. Uma voz que conhece o mínimo necessário e aposta nele. De um modo geral, sempre gostei mais de ouvir as mulheres a falar do que os homens.
Pergunto-me, de facto, como soará a minha própria voz. Será uma voz convincente e verdadeira? Ou uma voz pseudo-sincera e fingida, de ex-marido, das que geram problemas? Tenho uma voz que é realmente minha, uma voz franca e vagamente rural, mais ou menos como a de um vendedor de carros usados: uma voz sem artifícios que espera descobrir a verdade nua e crua através de uma aplicação direta dos factos. Costumava treiná-la quando andava na faculdade. «Bem, ora vejamos», dizia eu em voz alta. «Está bem, está bem.» «Sim, mas repare.» Mais do que qualquer outra, é esta a minha voz de jornalista desportivo, embora eu tenha deixado de praticar.
A X encosta-se à lápide de mármore de um homem chamado Craig, a uma distância segura de mim, de lábios contraídos. Até este momento não me apercebi do frio. Mas, agora que ela o mencionou, sinto-o nos ossos e arrependo-me de não ter vestido uma camisola.
Estes encontros na antemanhã foram ideia minha e, em teoria, parecem uma boa maneira de duas pessoas como nós partilharem a intimidade que lhes resta. Na prática, porém, são tão insuportáveis como um enforcamento, e imagino que não nos encontraremos no próximo ano, embora tenhamos sentido exatamente o mesmo o ano passado. Acontece simplesmente que eu não sei como fazer o luto e a X também não. E, como nenhum de nós possui o vocabulário nem o temperamento necessários para o fazermos, tendemos mais facilmente a passar o tempo a conversar, o que nem sempre é sensato.
– O Paul falou-te do nosso encontro a noite passada? – pergunto-lhe. Paul é o meu filho de dez anos. A noite passada tive um encontro inesperado com ele: vi-o parado na rua à porta de casa, já noite fechada, e a mãe, dentro de casa, não sabia de nada, e eu estava à espreita na rua. Falámos de Ralph e do sítio onde ele estava e de como seria possível chegar até ele, o que me fez sentir melhor quando me vim embora. A X e eu acordámos por princípio que eu não devia fazer visitas à socapa, mas este caso foi diferente.
– Ele disse-me que o papá estava sentado no carro às escuras a vigiar a casa como um polícia – diz ela, fitando-me intrigada.
– Tive um dia estranho. Mas acabou bem.
Foi de facto muito mais do que um dia estranho.
– Podias ter entrado. És sempre bem-vindo.
Sorrio-lhe com um sorriso vitorioso.
– Fica para outra vez.
(Por vezes fazemos coisas estranhas e dizemos que se trata de um acaso ou de uma coincidência, embora eu queira que ela pense que foi mesmo coincidência.)
– Só fiquei a pensar se alguma coisa não estaria bem – diz a X.
– Não. Eu amo-o muito.
– Que bom – diz a X com um suspiro.
Falei num tom de voz que me agrada, uma voz que é realmente a minha.
A X tira do bolso um saco de plástico, retira um ovo cozido e começa a descascá-lo para dentro do saco. Efetivamente temos muito pouco para dizer um ao outro. Falamos pelo telefone pelo menos duas vezes por semana, quase sempre sobre as crianças, que me vêm visitar depois da escola enquanto a X ainda anda por fora a dar aulas no campo de golfe. Uma vez por outra encontro-a na mercearia ou sento-me a uma mesa próxima da dela no restaurante da August Inn e trocamos meia dúzia de palavras desconexas. Temos tentado manter-nos uma família moderna, se bem que separada. O nosso encontro aqui no cemitério visa apenas prestar homenagem a uma vida perdida.
É, no entanto, uma boa altura para conversarmos. O ano passado, por exemplo, a X disse-me que, se pudesse voltar atrás no tempo, provavelmente só se casaria mais tarde e tentaria primeiro participar nos torneios da LPGA, a associação profissional de golfe feminino. Disse ainda que em 1966 o pai se tinha oferecido para a patrocinar, algo que nunca me dissera antes. Não disse se casaria comigo quando o momento chegasse, mas afirmou que desejava que eu tivesse acabado de escrever o meu romance, pois isso teria provavelmente contribuído para melhorar as coisas, o que me surpreendeu. (Mais tarde retirou o que disse.) Disse também, sem se mostrar particularmente crítica, que me considerava um homem solitário, o que igualmente me surpreendeu. Disse que era um erro eu ter feito ao longo da vida tantos amigos superficiais como tinha feito, e ter-me concentrado somente nas poucas coisas em que me concentrei – nela própria, para começar; nos meus filhos, também; no jornalismo desportivo; e em ser um cidadão comum. Na sua opinião, isso não me tinha deixado suficientemente protegido para os imprevistos. E acrescentou que tudo isso tinha acontecido por eu não conhecer muito bem os meus pais, ter ido para um colégio militar e ter crescido no Sul, que estava cheio de traidores, gente que ocultava segredos e pessoas que não eram dignas de confiança, com o que eu concordo, e acho que é verdade, embora nunca tivesse conhecido nenhuma dessas pessoas. Tudo isso começou, disse ela, com a Guerra Civil. Teria sido muito melhor, concluiu, se eu tivesse crescido, como ela cresceu, num lugar aparentemente sem um carácter demasiado marcado, onde não existissem ambiguidades para nos confundir ou nos complicar a vida, onde a única coisa que ocupava a sério a mente das pessoas fosse o tempo que fazia.
– Achas que te ris o suficiente hoje em dia? – pergunta-me ela enquanto acaba de descascar o ovo e volta a guardar o saco de plástico no bolso do casaco. Sabe da existência de Vicki, e eu ainda tive mais uma ou duas namoradas depois do divórcio de que estou certo que as crianças lhe falaram. Penso, no entanto, que não acha que isso tenha contribuído para alterar grandemente a minha situação. E talvez esteja certa. Seja como for, estou contente por estar a ter com ela esta conversa aparentemente íntima e confessional, algo que não faço muitas vezes e que um casamento pode realmente proporcionar.
– Podes apostar que sim – respondo eu. – Penso que estou bem, se é a isso que te referes.
– Suponho que sim – diz ela, olhando para o ovo cozido como se se tratasse de um problema pequeno mas bicudo. – Não estou propriamente preocupada contigo.
Ergue os olhos para mim como se me estivesse a avaliar. É possível que a minha conversa com o Paul ontem à noite a tenha levado a pensar que ando desorientado ou que comecei a beber.
– Vejo o programa do Johnny. É bom para nos fazer rir – digo eu. – Penso que, quanto mais velho estou, mais graça lhe acho. Mas obrigado por perguntares.
Tudo isto me faz sentir um idiota. Esboço um sorriso.
A X dá uma dentadinha de rato na clara do ovo.
– Desculpa por me estar a meter na tua vida – diz ela.
– Não faz mal.
Ela respira de forma audível e confidencia-me, baixando a voz:
– Esta manhã, quando acordei, ainda estava escuro e de repente veio-me à cabeça o Ralph a rir-se, e isso realmente pôs-me a chorar. Mas pensei para mim mesma que temos de lutar para viver a vida ao máximo e que o Ralph viveu toda a sua vida em nove anos, e é a rir que eu o recordo. Só queria ter a certeza de que tu também. E tens muito mais tempo para viver.
– Faço anos daqui a duas semanas.
– Pensas casar outra vez? – pergunta a X num tom extremamente formal, olhando-me nos olhos. E por instantes o que sinto no ar denso da manhã é um cheiro a piscina! Algures ali perto. Um aroma suburbano, fresco e aquoso, a cloro, que me recorda o verão que está a chegar e todos os outros verões bem melhores que guardo na memória. É apanágio destes subúrbios que eu amo que de vez em quando me chegue ao nariz, como uma provocação, uma piscina ou um churrasco ou uma fogueira de folhas que acabo por nunca ver.
– Acho que não sei – é a minha resposta.
Na verdade, contudo, adorava poder dizer Não vai acontecer, não há hipótese, não comigo. Só que o que realmente digo está mais perto da verdade. E, com a mesma rapidez com que chegou, o cheiro macio a verão desaparece e dá lugar ao cheiro a terra e a pesados monumentos de pedra. Na madrugada cinzenta e tremulante, uma janela ilumina-se por trás da sebe no segundo andar da minha casa. Bosobolo, o meu hóspede africano, acordou. O seu dia está a começar e vejo a sua silhueta escura passar diante da janela. Do outro lado do cemitério vejo luzes amarelas na casa do agente funerário, ao lado da qual está a retroescavadora verde John Deere usada para abrir as sepulturas. Os sinos da Igreja de St. Leo the Great começam a tocar para a oração de Sexta-Feira Santa. «Cristo Morreu Hoje, Cristo Morreu Hoje» (embora eu creia que seja efetivamente «Stabat Mater Dolorosa»).
– Pois eu acho que vou casar outra vez – diz a X com toda a naturalidade. Com quem é o que eu gostaria de saber.
– Com quem?
Que não seja, por favor, com nenhum dos sócios do clube do buraco 19, de carteira bem recheada e a vender saúde, aqueles tipos de impermeável verde que estão sempre a convidá-la para passar fins de semana na Estalagem Família Trapp e para escapadinhas até às montanhas Poconos, onde assistem a espetáculos de stand-up comedy tipicamente judaica – Borscht Belt – e fazem amor em colchões de água. Espero que não. Conheço bem esses tipos. Os miúdos contam-me tudo. Todos eles conduzem Oldsmobiles e usam sapatos com borlas. Mas reconheço que há muitas e boas razões para ela sair com eles. Deixá-los gastar o seu dinheiro e gozar à vontade os tempos de lazer. São tipos decentes, tenho a certeza. Mas não para ela casar com eles.
– Bem, talvez com um vendedor de software, ou com um agente imobiliário. Alguém que eu possa derrotar no golfe e dominar – diz ela, sorrindo intimamente com um sorriso descendente e forçado, de infelicidade, e encolhendo os ombros para logo os sacudir. Inesperadamente, porém, o sorriso transforma-se em choro e aponta para mim, a menear a cabeça, como se ambos soubéssemos e devêssemos esperar que isto fosse acontecer, e que de algum modo a culpa é minha, o que de algum modo até é.
A última vez que vi a X chorar foi na noite em que a nossa casa foi assaltada, quando, andando ela a ver o que tinha sido roubado, encontrou umas cartas que eu tinha recebido de uma mulher de Blanding, Texas. Não sei porque as guardei, pois realmente não significavam nada para mim. Havia meses que não via essa mulher e depois disso só a vi uma vez. Mas nessa altura eu andava perdido nas profundezas do meu devaneio e precisava – ou pensava que precisava – de alguma coisa que me tirasse do ramerrame da existência, mesmo que não tivesse quaisquer planos para voltar a vê-la e tencionasse deitar as cartas fora. Os ladrões tinham deixado polaroides do interior da nossa casa vazia espalhadas por aqui e por ali, para que nós as encontrássemos quando regressássemos do cineteatro aonde tínhamos ido ver Os Trinta e Nove Degraus, e deixaram também a frase «Nós somos os homens empalhados» pintada com spray na parede da casa de jantar. Ralph tinha morrido havia dois anos. As crianças estavam com o avô no Huron Mountain Club e eu tinha acabado de abandonar o meu lugar de professor no Berkshire College e passava o tempo em casa a sentir-me estúpido como uma porta, mas fora isso muito bem-disposto. A X encontrou as cartas numa gaveta da minha secretária quando procurava uma meia cheia de dólares de prata que a minha mãe me tinha deixado. Sentou-se no chão a lê-las e depois entregou-mas quando eu apareci com uma lista das máquinas fotográficas, dos rádios e do equipamento de pesca que eles tinham roubado. Perguntou-me se eu tinha alguma coisa a dizer e, como não respondi, foi para o quarto e começou a destruir a arca do enxoval com um machado e um pé de cabra. Fê-la em pedaços, levou-a para a lareira e deixou-a arder enquanto eu estava no jardim a contemplar as estrelas – Cassiopeia e Gémeos – e a sentir-me invulnerável devido ao estado de devaneio em que me encontrava e a uma estranha alegria latente presente em quase tudo o que se passava na minha vida. Poderia parecer que nesse momento estava «fechado em mim mesmo», mas de facto estava era a anos-luz de tudo aquilo.
Pouco depois a X saiu para o jardim, deixando as luzes todas acesas dentro de casa enquanto a arca do enxoval se elevava desfeita em fumo pela chaminé – estávamos em junho –, e foi sentar-se numa cadeira de lona numa outra parte do jardim, no escuro e longe de mim, a chorar muito alto. Oculto na escuridão, por detrás de um grande rododendro, dirigi-lhe palavras de esperança e de conforto, mas penso que não me ouviu. Nessa altura a minha voz já se tornara tão débil que não seria audível para mais ninguém a não ser eu próprio. Levantei os olhos para o fumo daquilo que depois vim a descobrir ser a arca do enxoval da X, repleta de preciosidades – menus, talões de bilhetes, fotografias, recibos de hotéis, marcadores de lugares à mesa, o seu véu de noiva –, a imaginar o que seria, o que poderia ter estado a dissipar-se em fumo na noite límpida e desencantada de New Jersey. Fazia lembrar o fumo que anuncia um novo Papa – um novo Papa! –, se nestas circunstâncias tal fosse credível. E daí a quatro meses estava divorciado. Tudo isto agora me parece bizarro, e distante, como se tivesse acontecido a outra pessoa e eu apenas tivesse lido a notícia. Mas essa era a minha vida de então, e é essa a minha vida agora, e encaro-a com relativo otimismo. Se o jornalismo desportivo nos ensina algo mais, é que não há na vida temas transcendentais. Em todas as situações as coisas têm um princípio e um fim, e isso tem de ser suficiente. Outra visão das coisas é uma mentira da literatura e das artes liberais, e foi essa a razão por que não tive sucesso como professor, e também uma das razões que me levou a meter o meu romance na gaveta e a nunca mais o ter tirado de lá.
– Sim, claro – diz a X, fungando. Quase parou de chorar, apesar de eu não ter tentado consolá-la (um privilégio que já não tenho). Ergue os olhos para o céu leitoso e funga uma vez mais, ainda a segurar no ovo mordiscado. – Quando me pus a chorar no escuro, foi a pensar que o Ralph Bascombe devia ser agora um bonito rapagão e que eu tenho trinta e sete anos para o melhor e para o pior. E a pensar no que todos deveríamos estar a fazer. – Abana a cabeça e aperta os braços com força contra o estômago, como já não a via fazer havia muito tempo. – A culpa não é tua, Frank. Pensei apenas que seria bom veres-me chorar. É assim que eu encaro o sofrimento. Não é mesmo coisa de mulher?
Ela espera agora que eu diga alguma coisa que nos liberte da velha dor da memória e da vida. É por de mais evidente que sente no dia de hoje uma certa estranheza, uma frescura no ar que é augúrio de mudança permanente no curso das coisas. E eu estou pronto a servi-la, feliz por fazer isso mesmo, por deixar que o meu otimismo nos traga de volta um dia inteiro ou pelo menos a manhã ou um instante quando tudo parece soçobrar ante o sofrimento. O único ponto forte do meu temperamento talvez seja eu reagir bem quando as coisas correm mal. Reajo pior face ao sucesso.
– E se eu lesse um poema? – sugiro, esboçando um sorriso feliz de velho pretendente rejeitado.
– Acho que devia ter trazido um poema, não era? – diz a X limpando os olhos. – Pus-me a chorar em vez de trazer um poema.
Parece uma menina a chorar.
– Não faz mal – digo eu.
Procuro no bolso das calças o poema que fotocopiei na redação para trazer, não fosse a X esquecer-se. O ano passado trouxe «A Um Atleta que Morre Jovem», de Housman, e cometi o erro de não o ter lido na íntegra antecipadamente. Já não o lia desde os tempos da faculdade, mas o título levou-me a pensar que seria apropriado. Porém, não era. No mínimo, era demasiado literal e fantasioso em relação aos verdadeiros atletas, um assunto que me toca muito fundo. De facto, Ralph não tinha sido um grande atleta. Mal eu acabara de dizer «cidadão de uma cidade mais calma», tive de parar, limitando-me a ficar sentado a olhar para a pequena lápide de mármore vermelho onde estavam simplesmente gravadas as palavras RALPH BASCOMBE.
– Sabes, o Housman detestava as mulheres – dissera a X naquele silêncio sinistro enquanto eu continuava sentado. – Não é nada contra ti. Só que me lembrei de ter ouvido dizer isto numa aula qualquer. Penso que era um velho pederasta que teria amado o Ralph e nos teria odiado a nós. Para o ano trago eu um poema, se não te importares.
– Ótimo – respondera eu, com desalento.
Foi depois disso que falou sobre eu estar a escrever um romance e ser um homem solitário, e sobre ter querido entrar para a LPGA nos anos 60. Penso que estava com pena de mim – tenho até a certeza, na verdade –, embora eu próprio estivesse naquele momento com pena de mim mesmo.
– Trouxeste outro poema do Housman? – pergunta-me ela com um sorriso forçado, e depois vira-se e lança o ovo mordiscado para tão longe quanto pode, para o meio das campas e dos ulmeiros da parte antiga do cemitério, onde cai sem ruído. Lança-o para as sombras em linha reta, como um jogador de futebol americano, levando a mão à orelha com destreza.
Admiro-lhe o pensamento positivo. Fazer o luto por um filho quando existem outros dois é muito difícil. E nós ainda não temos muita prática, embora encaremos o luto como uma questão de afeto e dignidade pessoal, para que a morte de Ralph e a nossa perda não fiquem reféns do tempo e dos acontecimentos e nos destruam secretamente a vida. Num certo sentido, não estamos a fazer mal nenhum.
Em Constitution Street, uma carrinha de reparação de eletrodomésticos parou no semáforo. Diz Easler’s Philco Repair e é conduzida pelo Sid (anteriormente dizia Sid’s Service, uma empresa que abriu falência). Ele veio muitas vezes a minha casa e dirige-se agora para a praça para ir tomar café no The Coffee Spot antes de lançar mãos às cozinhas, caves e bombas de água daquele dia, que está a começar em beleza. Um homem solitário, um dos poucos negros da cidade, de fato claro dos que não se amarrotam, vai a pé pelo passeio fora a caminho da estação. O céu continua leitoso, mas é possível que se incendeie antes de eu partir com Vicki para Detroit, a Capital do Automóvel.
– Hoje não é o Housman – respondo.
– Bem, se tu o dizes.
A X sorri e senta-se na lápide do tal Craig a ouvir. As luzes nas traseiras das casas da minha rua são inúmeras e a empalidecer com a raiar do dia. Sinto mais calor.
É uma «Meditação» de Theodore Roethke, que também andou na Michigan University, um pormenor que a X deve saber, e começo a ler com a minha melhor voz, e mais plausível, como se o meu filho morto pudesse ouvir-me ali onde está:
«Fui aos lugares desolados e solitários por detrás dos olhos…»
A X já começou a abanar a cabeça ainda antes de eu passar ao segundo verso e então paro e olho para ela para perceber qual é o problema.
Ela projeta o lábio inferior e muda de posição sobre a lápide.
– Não gosto desse poema – diz desassombradamente.
Eu sabia que ela devia conhecê-lo e teria críticas a fazer. Continua a ser uma rapariga do Michigan senhora do seu nariz, que tem opinião formada sobre todas as coisas e fica dececionada quando o resto do mundo não a tem. O tipo de rapariga segura e organizada que deveria existir na vida de cada homem. Elas, e só elas, são a razão de ser do Midwest, que é onde maioritariamente florescem. Sinto a tensão a subir como uma febre. É possível que ler um poema junto à campa de um menino que nunca gostou de poesia não seja uma boa ideia.
– Calculei que o conhecesses – digo eu com voz branda.
– Em boa verdade, eu não devia dizer que não gosto – admite a X com frieza. – Simplesmente não acredito, é tudo.
É um poema sobre como deixar o dia a dia fazer-nos felizes – insetos, sombras, a cor do cabelo de uma mulher, algo em que acredito piamente.
– Quando o leio, penso sempre que sou eu a falar.
– Não creio que todas essas coisas citadas no poema fizessem alguém feliz. Poderão não nos fazer infelizes, mas é tudo – diz a X escorregando da lápide e sorrindo-me de um modo que me desagrada, de lábios contraídos e ar depreciativo, como quem está convicta de que estou errado a respeito de tudo e isso a divirta. – Às vezes penso que já ninguém pode ser feliz.
Mete as mãos nos bolsos do impermeável. Provavelmente tem uma aula às sete, ou então um seminário, e a cabeça já começa a estar longe, muito longe.
– Penso que todos estamos à mercê do resto das nossas vidas; é essa a minha maneira de ver as coisas – digo, esperançado. – Não é verdade?
Ela fica a olhar para a campa do nosso filho como se ele estivesse a ouvir-nos e isso o incomodasse.
– Acho que sim.
– Vais mesmo casar?
Sinto os meus olhos a arregalarem-se como se já soubesse a resposta. De repente, parecemos dois irmãos, Hansel e Gretel, a planearem a fuga para um lugar seguro.
– Não sei – diz ela, encolhendo levemente os ombros, de novo como uma menina, mas acima de tudo com resignação. – Há quem queira casar comigo. Mas pode ser que eu tenha chegado a uma idade em que não preciso dos homens.
– Talvez devesses casar. Talvez te fizesse feliz.
Claro que não acredito nisso nem por um segundo. Eu próprio estou pronto a casar com ela outra vez, para que a vida retome o seu curso. Sinto falta da doce especificidade do casamento, da estabilidade, do ritmo de vida. E a X também, consigo vê-lo. É disso que ambos sentimos falta. Agora temos de reinventar tudo, pois nada é nosso por direito próprio.
Ela abana a cabeça.
– Tu e o Pauly estiveram a conversar sobre o quê ontem à noite? Pareceu-me tratar-se de segredos entre homens, onde eu não era chamada. Detestei.
– Falámos do Ralph. O Paul tem a teoria de que conseguimos chegar até ele se enviarmos um pombo-correio para Cape May. Foi uma conversa interessante.
A X sorri face à ideia de Paul, que à sua maneira é tão sonhador como eu. Nunca achei que essa faceta agradasse muito à X, que devia preferir as certezas de Ralph, mais parecido com ela e, como tal, admirável. Quando ele já estava gravemente doente com a síndrome de Reye, sentou-se um dia na cama do hospital, a delirar, e disse:
– O casamento é uma coisa brutalmente séria, em particular em Boston – algo que ele tinha lido na Bartlett, que costumava folhear, e depois memorizado e recitado. Levei seis semanas para conseguir identificar esta frase como sendo de Marquand. E nessa altura já ele tinha morrido e já aqui jazia. Mas a X gostou da frase, embora a última provasse que a mente dele estava a funcionar bem por baixo do coma profundo. Infelizmente a frase tornou-se numa espécie de mote do nosso casamento desde essa altura até ao fim, uma maldição lançada involuntariamente por Ralph sobre nós.
– Gosto do teu novo penteado – digo eu.
Esse novo estilo era um corte escalado sobre a nuca que lhe ficava muito bem. Já não estamos aqui a fazer nada, mas não me quero ir embora. A X pega numa madeixa de cabelo, afasta-a da cabeça e examina-a.
– É um bocado masculino, não achas?
– Não – digo eu, e realmente não acho.
– Bem. O comprimento estava esquisito. Tinha de fazer qualquer coisa. Eles até gritaram quando cheguei a casa – diz ela a sorrir, como se só agora se tivesse apercebido de que os filhos se tornam nos nossos pais e nós voltamos a ser filhos. – Não te sentes velho, Frank, ou sentes? – Vira-se e estende o olhar para lá do cemitério. – Não sei porque te estou a fazer todas estas perguntas de merda. Hoje não estou boa. Tenho a certeza de que é por estares quase a fazer os trinta e nove.
O negro chegou à esquina de Constitution Street e está parado, à espera, quando o semáforo passa de vermelho a verde em frente da nova biblioteca. A carrinha de reparação de eletrodomésticos já desapareceu e um pequeno autocarro amarelo para na mesma esquina e dele saem várias criadas negras. São mulheres avantajadas, vestidas com amplas fardas brancas de criada, e vão conversando e balançando grandes sacos de ombro enquanto esperam que as patroas brancas as venham buscar. O homem e as mulheres não conversam entre si.
– Ah, não achas aquilo a coisa mais triste que já se viu – diz a X, olhando para as mulheres. – Não sei o que é, mas há nelas qualquer coisa que me parte o coração.
– Na verdade, não me sinto velho nem um pouco – digo eu, feliz por poder responder à pergunta com a verdade, e talvez deixar até escapar um bom conselho à mistura. – Tenho de lavar o cabelo com mais frequência e por vezes acordo com o coração a galope, embora o Fincher Barksdale diga que não é motivo para preocupação. Penso até que é um bom sinal. Diria mesmo que é uma espécie de urgência, não achas?
A X não tira os olhos das criadas, em animada conversa num grupo de cinco, sempre a olharem para o cimo da rua, de onde virão os carros das patroas. Desde o divórcio, a X desenvolveu uma capacidade total para a distração. É capaz de estar a falar connosco, mas a milhas de distância.
– Adaptas-te com muita facilidade – diz ela aereamente.
– Pois adapto. Sei que na tua casa não tens um alpendre onde possas dormir, mas devias experimentar dormir com as janelas todas abertas e completamente vestida. Assim, quando acordas, já estás pronta para sair. É o que eu faço há algum tempo.
A X olha-me com um sorriso crispado, de condescendência, um sorriso que não me agrada. Já não somos Hansel e Gretel.
– Continuas a consultar a tua quiromante… como é que ela se chama?
– Mrs. Miller. Não, muito menos.
Não estou preparado para admitir que ainda ontem à noite tentei consultá-la.
– Sentes que estás quase a compreender tudo o que se passou… connosco e com a nossa vida?
– Às vezes. Hoje encaro com bastante naturalidade o que aconteceu ao Ralph. Não me parece que vá enlouquecer outra vez.
– Sabes – diz a X, desviando os olhos –, a noite passada, quando já estava deitada, pensei que havia morcegos a esvoaçar pelo quarto, e quando fechei os olhos só vi uma linha do horizonte, muito longe, e tudo vazio e plano como se fosse uma mesa de jantar muito comprida posta só para uma pessoa. Não é terrível? – Abana a cabeça. – Talvez eu devesse levar uma vida mais parecida com a tua.
Sinto crescer em mim um leve ressentimento, apesar de este não ser lugar para ressentimentos. A ideia que a X faz da minha vida é que é mais agradável e mais natural do que a dela, e certamente mais até do que eu sinto que é. Provavelmente gostaria de me dizer outra vez que eu devia ter sido mais perseverante e escrito um romance, em vez de ter desistido para me tornar jornalista desportivo, e que ela própria devia ter feito algumas coisas de maneira diferente. Mas tal não seria justo, pelo menos em relação a mim – foram até muitas as vezes que ela própria o pensou. Agora tudo lhe parece negativo. Um aspeto do seu temperamento que foi afetado pelo divórcio é ela poder ser agora menos resiliente do que antes, e uma prova disso é a sua preocupação com o envelhecimento. Eu animá-la-ia se pudesse, mas esse é um dos talentos que perdi há muito.
– Peço desculpa mais uma vez – diz ela. – Mas hoje estou triste. Há qualquer coisa na tua partida que me faz sentir que estás a começar uma vida nova e eu não.
– Espero bem que esteja, embora duvide – digo eu. – E espero que tu também.
Na verdade, nada me agradaria mais do que ver um novo mundo multicor abrir-se hoje à minha frente, embora goste das coisas tal como estão. Contentar-me-ei com um belo quarto no Pontchartrain, um bife Diana e um buffet de saladas no restaurante giratório do terraço, a ver os Tigers sob os projetores. Não é difícil fazerem-me feliz.
– Já alguma vez desejaste ser mais novo? – pergunta a X meio amuada.
– Não. Sou razoavelmente feliz assim.
– Pois eu desejo-o a toda a hora – diz ela. – Uma estupidez, eu sei.
Sobre isso não tenho nada a dizer.
– Tu és um otimista, Frank.
– Espero bem que sim… – e esboço um sorriso franco, de encorajamento.
– Claro, claro – diz ela, começando a afastar-se rapidamente por entre as pedras tumulares, de cabeça virada para o céu branco e mãos nos bolsos, como qualquer rapariga do Midwest que de momento não tem a sorte do seu lado, mas que não tardará a voltar como nova. Oiço os sinos da Igreja de St. Leo the Great a repicarem, assinalando as seis da manhã, e não sei porquê tenho um pressentimento de que vou deixar de a ver por muito tempo, de que alguma coisa terminou e alguma coisa está a começar, embora jure pela minha saúde que não sei dizer o que essas coisas possam ser.