10
Por baixo da pala tenho um mapa da campanha Let’s-Clean-Up-America, de Johnny Horizon, feito para celebrar o bicentenário da Independência, e, colada com fita-cola ao painel de instrumentos, uma página escrita à mão por Vicki com indicações da melhor maneira de chegar a Barnegat Pines. Pela 206-A, depois pela 530-E, depois pela 70-S e (curvando ligeiramente para norte) por uma estrada sem número referida apenas como Double Trouble Road, que supostamente me levará diretamente ao sítio para onde vou.
As direções dela levam-me a passar pelas paisagens mais banais de New Jersey, mas agradáveis, aqueles troços que fazem lembrar outros lugares onde já estive ao longo da vida, mas que em New Jersey estão todos juntos como as peças de um puzzle. Está na hora de baixar a capota e deixar entrar o vento.
Claro que muitos dos lugares por onde passo me parecem precisamente iguais a todos os outros lugares do Estado, e as curvas e contracurvas são um desafio para o sentido de orientação. O efeito de seguir para sul e para este faz-me sentir que estou a ir para oeste e que estou perdido ou, por vezes, que não estou a ir para lado nenhum. Abundam as indústrias limpas. Fábricas de válvulas. Uma fábrica Congoleum. Barracões da U-Haul. Um depósito de areia e saibro perto de uma fábrica de vidro. Um canil de airedale terriers. O Lar Quaker para Amigos Desorientados. Um centro comercial com decoração náutica. Várias tabuletas a dizer AQUI! De repente o céu está desanuviado e pálido como na Flórida, mas daí a um quilómetro é o Delta do Mississippi – a vida civilizada esmagada por baixo de cabos de alta tensão, extensões de terra não cultivada onde os negros pescam nas pontes baixas, e Mount Holly desenha-se no horizonte distante imediatamente antes do Delaware. Mais além fica o Maine.
Paro na cidade de Pemberton, perto de Fort Dix, e ligo de novo para a X para desejar boa Páscoa. A gravação responde-me na mesma voz dura de mulher de negócios, e desta vez deixo um número de telefone – o dos Arcenaults – para onde ela me pode ligar. Ligo também para Walter, que hoje não me sai do pensamento, mas ninguém atende.
Paro em Bamber – uma cidade que se resume ao posto dos correios e a um pequeno lago do outro lado da Route 530 – para tomar uma bebida num restaurante aconchegado de beira de estrada todo em pinho, com candeeiros baixos de luz amarelada e troncos a servir de mesas. É o Sweet Lou’s Sportsman’s B’ar, propriedade – como anunciam os cartazes no interior – de um famoso ex-central dos Giants, Sweet Lou Calcagno. Jack Dempsey, Spike Jones, Lou Costello, Ike e mais uma série deles foram todos amigos íntimos de Sweet Lou e ofereceram as fotografias que forram as paredes, onde aparecem abraçados a um matulão sorridente, de cabelo à escovinha e camisa de colarinho desabotoado, que parece capaz de devorar uma bola.
Neste momento Sweet Lou não está, mas, quando me sento ao balcão, uma mulher pesada e pálida, de cinquenta e tal anos, cabelo apanhado ao alto estilo anos 60 e calças elásticas, sai por uma porta de batente, vinda das traseiras, e começa a limpar um cinzeiro.
– Onde está hoje o Lou? – pergunto-lhe, depois de pedir um uísque.
De facto, gostaria de o encontrar, talvez iniciar uma rubrica intitulada Onde Estão Eles Agora: «Lou Calcagno, o antigo rolo compressor dos Giants, tinha um sonho. Não o de recuperar uma bola perdida e marcar seis pontos ou jogar no campeonato nacional ou merecer um lugar no Hall of Fame, mas ter uma tasquinha na sua cidade natal – Bamber, New Jersey –, um lugar tradicional e tranquilo onde os amigos e os fãs pudessem vir recordar os dias gloriosos do passado…»
– Que Lou? – pergunta a mulher, acendendo um cigarro e expelindo o fumo para longe de mim pelo canto da boca.
– O Sweet Lou – digo eu, abrindo mais o sorriso.
– Está onde está. Há quanto tempo não vem cá?
– Há algum, acho eu.
– Também acho. – E semicerra os olhos. – Talvez na outra vida.
– Eu era um grande fã dele.
É o que eu digo, mas não é verdade. Nem sequer estou certo de ter ouvido falar dele. Para ser sincero, sinto-me a fazer figura de parvo.
– Morreu. Está morto talvez há uns trinta anos? É aproximadamente isso.
– Lamento muito saber.
– Pois. O Lou era um parvalhão – diz a mulher, enquanto acaba de limpar o cinzeiro. – Um grandessíssimo parvalhão. Eu fui casada com ele. – Serve-se de uma chávena de café e fica a olhar para mim. – Não lhe quero destruir os sonhos. Mas, sabe como é…
– O que é que aconteceu?
– Bem – começa ela –, uns mafiosos vieram de carro de Mount Holly até aqui e depois foram com ele ali ao parque de estacionamento como bons amigos e depois deram-lhe vinte ou trinta tiros. E pronto.
– Que diabo lhes tinha ele feito?
– Não faço ideia. – Abana a cabeça. – Eu estava precisamente aqui onde estou agora, atrás do balcão. Eles entraram, eram três, todos baixotes. Disseram que queriam que o Lou fosse lá fora falar com eles, e quando ele foi, pum. E nenhum deles voltou aqui para dar explicações.
– E apanharam-nos?
– Ná. Não apanharam. Ninguém foi apanhado. De qualquer maneira, eu e o Lou estávamos a divorciar-nos. Mas eu vinha trabalhar para ele todas as tardes.
Passo os olhos em redor pelo bar escuro onde Sweet Lou me olha do passado, e da vida, rodeado de amigos e fãs sorridentes, um atleta que abandonou o desporto no auge do sucesso para ter uma vida próspera em Bamber, que era sem dúvida a sua terra, ou muito perto, mas que teve um triste fim. Não do modo como estas coisas costumam acontecer, e não exatamente o que as pessoas gostariam de ler antes do jantar com um martíni bem gelado.
Vejo que está mais alguém no bar, um homem já grisalho com um fato de tom prateado e aspeto caro, sentado a conversar com uma jovem de calças encarnadas. Estão no canto, junto à janela, e por cima deles está uma cabeça de urso, enorme e medonha.
Dou um estalido com a língua e olho para a viúva de Lou.
– É bonito ter mantido este lugar tal como está.
– Ele deixou estipulado no testamento que todas as fotos tinham de ficar onde estavam; senão eu já tinha mudado tudo há… ora deixa cá ver… cem anos? Também tem de continuar a ser um bar e tenho de fazer as compras através da sua distribuidora. Caso contrário, perco isto para os mafiosos dos primos dele de Teaneck. Por isso, ignoro-o. Até já me esqueci de quem é a foto. Ele queria mandar na vida de toda a gente.
– Ainda é proprietária da distribuidora?
– É o meu filho, do meu segundo casamento. Foi parar às mãos dele – diz ela, fungando, e depois dá uma fumaça e fica a olhar lá para fora pelo pequeno vidro da porta por onde entra uma luz pálida.
– Nada mau.
– Foi a melhor coisa que ele fez, acho eu. E já depois de estar debaixo da terra. O que faz sentido.
– Já agora, o meu nome é Frank Bascombe e sou jornalista desportivo.
Coloco o meu dólar em cima do balcão e bebo o uísque de um trago.
– Mrs. Philips – diz ela, apertando-me a mão. – O meu outro marido também já morreu. – Fita-me sem interesse e abre um pacote de bolachas de água e sal que tira de um cesto cheio delas colocado em cima de balcão. – Há anos que não via um jornalista. Costumavam andar sempre por aqui a entrevistar o Gordo. Vindos de Filadélfia. Era sempre uma galhofa. Ele sabia anedotas às centenas.
Deita a tira vermelha do pacote de bolachas no cinzeiro e parte a bolacha ao meio.
– Tenho pena de não o ter conhecido.
Neste momento já estou de pé, com um sorriso simpático, mas pronto para sair dali.
– Pois eu tenho pena de o ter conhecido. Acho que estamos quites. – Mrs. Phillips deita fora a beata antes de trincar a bolacha, e fica a olhar para ela com ar intrigado, como se a reavaliar mais uma vez Lou Calcagno. – Não, retiro o que disse. Ele não era assim tão terrível o tempo todo – diz ela com um sorriso amargo. – Pode citar-me. Que tal? Não o tempo todo.
Depois vira costas e afasta-se até ao fundo do balcão em direção a um televisor desligado. Os outros dois clientes estão a levantar-se para sair e eu fico sozinho com o meu próprio sorriso e sem nada para dizer além de:
– Combinado. Obrigado. Farei isso.
Lá fora, no parque de estacionamento de saibro branco, e apesar do sol radioso, paira uma promessa de mudança de tempo – é o tempo de Detroit. Vindo do lago Bamber, começou a soprar um vento húmido que levanta a poeira e faz vergar os pinheiros que bordejam a fiada de chalés vazios e abanar a tabuleta do Sportsman’s B’ar. O homem de meia-idade e a jovem de calças largas entram no Cadillac vermelho e partem rumo a oeste, onde o céu se cobriu de um aglomerado de nuvens densas. Estou junto ao meu carro e a primeira coisa em que penso é no Lou Calcagno, que ali encontrou o seu triste fim, no sítio onde o carro está estacionado, e que este é o lugar ideal para esse tipo de coisas, um lugar dos diabos antigamente. Penso nas pessoas que vi no balão esta manhã, e se irão conseguir descer e aterrar antes de o vento começar a soprar com força. Hoje estou contente por estar longe de casa, numa paisagem que me é desconhecida, contente por estarmos em contacto com um mundo que não é o meu nem o que eu idealizo. Há momentos em que a nossa vida parece não ser muito boa, mas melhor do que qualquer outra, e em que nos sentimos felizes por estarmos vivos, se bem que não propriamente em êxtase.
Subo a capota, para me proteger do frio, e daí a um minuto já rolo veloz pela estrada fora, deixando a insignificante Bamber rumo ao meu encontro com a Double Trouble Road.
As indicações de Vicki revelam-se perfeitas. Atravesso a vila costeira de Barnegat Pines e uma ponte móvel sobre o extremo lodoso de uma baía com cintilações de aço, contorno uns bangalós de aluguer, viro à direita para uma península feita pela mão humana e entro numa rua sem passeios, serpenteante e aprazível, com casas novas em tom pastel, com pisos independentes e belos relvados, caves e garagens exteriores. Sherri-Lyn Woods, é esse o nome da zona, e há mais ruas como esta ao longo de outras penínsulas paralelas, mas, apesar de Woods querer dizer bosques, de bosques não vejo sinal. A maior parte das casas tem ancoradouros nas traseiras com um barco amarrado – um pequeno barco a motor com cabina ou uma lancha esguia com um motor fora de borda. No fundo, trata-se de uma localidade vagamente náutica, ainda que as casas desta rua tenham todas um ar californiano e descontraído.
A casa dos Arcenaults, o n.º 1411 de Arctic Spruce, assemelha-se vagamente às outras, embora tenha pendurada na fachada, no ponto onde os dois pisos se encontram por trás do revestimento bege, uma imagem de Jesus crucificado quase em tamanho natural que a destaca imediatamente das outras. Jesus numa agonia suburbana. Olhos raiados de sangue. Corpo desfalecido. Pés já a começar a pender com a aproximação da morte. Uma imagem terrível de angústia e serenidade. Está pintado numa tonalidade bege mais clara do que o revestimento e tem um ar inconfundivelmente mediterrânico.
Família Arcenault, diz a placa que oscila, pendurada, e eu entro com o carro, precisamente antes de o mau tempo chegar, e estaciono ao lado do Dart de Vicki.
– A Lynette tinha de pôr o pobre Jesus ali pendurado – segreda-me Vicki com ar enfadado, quando ainda estamos no limiar da porta, onde ela me veio receber. – Acho-o a coisa mais pirosa do mundo e olha que eu sou católica. E tu chegaste com meia hora de atraso.
Vicki está deslumbrante, de vestido de malha cor-de-rosa, sapatos cor-de-rosa de salto alto a condizer, collants e unhas escarlates, e o cabelo preto está penteado com simplicidade, sem caracóis, pois está em casa.
A família, diz-me ela, está espalhada por todos os andares da casa ao mesmo tempo, e eu sou apenas apresentado ao Elvis Presley, um pequeno caniche branco com uma coleira de diamantes, e à Lynette, a madrasta de Vicki, que aparece à porta da cozinha de avental à chef e colher na mão, e que diz a cantarolar:
– Olá, olá. – É uma segunda mulher pequena e de ar atrevido, cabelo ruivo brilhante, ancas largas e pulseiras nos tornozelos. Vicki diz-me baixinho que ela é natural de Lodi, Virginia Ocidental, e uma autêntica labrega, embora eu tenha a sensação de que até nos poderíamos dar bem se Vicki deixasse. Está a preparar um prato de carne e espalha-se por toda a casa um odor quente e intenso. – Espero que goste do cordeiro muito bem passado, Franky – diz a Lynette, voltando para a cozinha. – É assim que o Wade Arcenault gosta dele.
– Ótimo. É exatamente assim que eu gosto – digo eu, mentindo, e de repente apercebo-me de que não só me atrasei, como também não trouxe presentes para ninguém, nem sequer uma flor, um postal a desejar Boa Páscoa ou uma caixa de bombons. Tenho a certeza de que Vicki reparou.
– É melhor deitar muito molho de hortelã no meu prato – diz Vicki, revirando os olhos, e depois bichana-me ao ouvido: – Tu também não gostas dele bem passado.
Vicki e eu sentamo-nos num grande sofá cor de salmão, de costas para uma janela panorâmica que dá para Arctic Spruce Drive. Os cortinados estão abertos e uma luz ambarina e tempestuosa invade a sala, em cujas paredes se veem reproduções de quadros famosos – um Van Gogh, uma pintura marítima de Constable e O Rapaz Azul. Uma carpete azul de pelo alto cobre o chão de uma parede à outra (tenho o pressentimento de que foi obra de Everett). A casa tem exatamente o mesmo estilo do apartamento de Vicki, mas o efeito que produz em mim – com o meu fato de alpaca da juventude – é o de me fazer sentir aquele professor que deu má nota a Vicki a meio do semestre e é convidado para o almoço de domingo para lhe provarem, antes do exame final, que se trata de uma família unida e respeitável. Não é de todo uma má sensação, e estou certo de que, quando o almoço terminar, me posso ir logo embora.
A televisão, dentro de um armário do tamanho de uma casota de cão, está a transmitir mais um jogo da NBA, mas sem som. Não me importaria nada de passar o resto da tarde a ver o jogo, enquanto Vicki lê A Última Etapa do Amor, e esquecer o almoço.
– Estou com calor, tu não? – diz Vicki. E nisto salta do sofá, corre para o outro lado da sala e baixa drasticamente o termóstato. Quase de imediato sou atingido pelo ar frio que sai com ímpeto de um ventilador instalado no cimo da parede. Ela vira para mim o seu belo rabiote e depois faz-me um sorriso maroto. É uma rapariga completamente diferente aqui em casa da família, disso não tenho dúvida. – Não há necessidade de estarmos a abafar aqui dentro, pois não?
Ficamos sentados, em silêncio, a ver os Knicks darem uma abada aos Cavaliers. A equipa de Cleveland faz o seu jogo habitual, dinâmico e desestabilizador, enquanto os Knicks parecem uns pés de chumbo desajeitados como girafas, mas inexplicavelmente marcam mais pontos, o que deixa os adeptos do Cleveland desvairados. Dois gigantes negros começam a discutir depois de uma falta pessoal e a discussão escala quase instantaneamente para uma briga violenta. Jogadores, negros e brancos, rolam pelo chão como toros e o jogo transforma-se rapidamente numa batalha campal que os árbitros não conseguem controlar. Os polícias entram no campo e começam a agarrar pessoas a torto e a direito, com sorrisos estampados nas carantonhas eslovacas, e as coisas parecem ficar ainda piores. Esta é uma tática habitual do Cleveland.
Vicki desliga a televisão com o comando escondido entre as almofadas do sofá, deixando-me mudo e de olhos arregalados. Puxa o vestido para baixo, compondo-o à volta dos joelhos elegantes, e senta-se muito direita como uma candidata a um emprego. Através da malha cor-de-rosa consigo ver os contornos típicos, e amplos, do soutien (e ela precisa de um bem grande). Como eu gostaria de meter sub-repticiamente uma mão em volta de um daqueles seios e puxá-la para mim para o beijo da Páscoa que ainda não recebi. Um odor a carne paira por toda a casa.
– Já leste a Parade de hoje? – pergunta-me ela, puxando novamente o vestido de malha e olhando para um órgão elétrico encostado à parede oposta, por baixo do inescapável Van Gogh florido.
– Acho que não – digo eu, mas sem conseguir realmente lembrar-me do que fiz hoje. Fazer horas para vir para aqui foi a minha única ocupação do dia.
– O Walter Scott disse que uma mulher que lavou o cabelo com champô de mel e foi passear para o jardim com a cabeça molhada foi de tal maneira picada pelas abelhas que acabou por morrer – diz ela, lançando-me um olhar desconfiado. – Parece-te possível?
– E o que aconteceu à mulher que lavou a cabeça com cerveja? Acabou por casar com um polaco?
Vicki abana a cabeça e diz:
– És mesmo um pantomineiro, não és?
Na cozinha, Lynette deixa cair uma panela com estrépito.
– Desculpem lá, meninos – grita ela entre risadas.
– Deixou cair o anel? – pergunta Vicki muito alto.
– Podia ter dito outra coisa – riposta Lynette – mas não vou dizer porque é Páscoa.
– Ainda bem – diz Vicki.
– Em tempos tive mesmo um anel desse tamanho – diz a voz conciliadora de Lynette.
– Então para onde foi quem lho deu? – pergunta Vicki, lançando-me um olhar carregado de segundas intenções.
Ela e Lynette estão longe de ser amigas, mas tudo o que desejo é que consigam fingir que o são até ao fim da tarde.
– Esse pobre homem morreu de cancro antes de tu teres aparecido na minha vida – responde Lynette com desenvoltura.
– Foi mais ou menos na altura em que se converteu?
A cara radiante de Lynette aparece a espreitar à porta da cozinha, de olhar acerado.
– Pouco depois, minha querida, é verdade.
– Imagino que estivesse a precisar de ajuda e orientação.
– Todos precisamos, não é, querida Vicki? Até o Franky, aposto.
– Ele é presbiteriano.
– Ah, bom… – Lynette sai da porta e volta para o fogão. – Lá nas montanhas chamávamos-lhes o clube de campo, embora tenha ouvido dizer que se tornaram mais piedosos depois do Vaticano II. Os católicos tornaram-se mais tolerantes e os outros tiveram de se tornar mais duros.
– Duvido que os católicos se tenham tornado mais tolerantes – digo eu, embora Vicki, ao ouvir tal, me lance um olhar feroz, de aviso.
De repente, Lynette reaparece e põe-se a olhar muito séria para mim e a menear a cabeça, ao mesmo tempo que afasta da testa um caracol ruivo, molhado. Continua a parecer uma pessoa de quem poderei vir a gostar.
– Nenhum de nós devia encarar de ânimo leve o caminho que este mundo está a levar – diz ela.
– A Lynette trabalha no centro de crise católico de Forked River – diz Vicki com voz cansada.
– Isso mesmo, minha querida – confirma Lynette, sorridente, e depois desaparece outra vez e começa a mexer qualquer coisa numa tigela, fazendo um barulho assaz desagradável. Vicki mostra-se tão incomodada quanto possível.
– Ela não faz mais nada senão atender o telefone – diz Vicki, soltando um suspiro suficientemente audível. – Chamam-lhe a linha da crise. – Volta a refastelar-se no sofá, enterra o queixo na clavícula e põe-se a olhar para a parede. – Acho que vi uma ou duas crises. Um dia, em Dallas, apareceu um tipo com a coisa inteira a sair do bolso do amigo, e tivemos de lha coser outra vez.
– Estás a ver, nesse caso a alienação não resultou – diz Lynette da cozinha sem papas na língua. – É o que estamos a descobrir agora nas faculdades. Agora há muitíssima gente a querer voltar a fazer, por assim dizer, a diferença neste mundo. E eu não tento impor a minha religião a ninguém. Posso passar oito horas seguidas ao telefone com o mesmo indivíduo e ele nem sequer ser católico. Claro que depois tenho de passar dois dias na cama. Todos nós usamos auscultadores. – Lynette surge à entrada da porta abraçada a uma grande tigela de barro, como uma mulher do campo, com o sorriso mais paciente do mundo, mas o ar de quem pretende alguma coisa. – Há crises que não extravasam para o exterior, minha querida.
– Pois, pois – diz Vicki, revirando os olhos.
– Ora, o Frank é escritor, certo? – pergunta Lynette.
– Sim, minha senhora.
– Bem, isso também é muito bom. – Lynette olha enlevada para a tigela enquanto pensa no assunto. – E já escreveu alguma vez textos religiosos?
– Não, minha senhora, nunca escrevi. Sou jornalista desportivo.
Vicki liga outra vez a televisão e solta um suspiro. No ecrã, um homem moreno e minúsculo está a saltar do alto de um penhasco para um braço estreito de águas revoltas e espuma branca.
– Acapulco – murmura Vicki.
Agora Lynette está a sorrir para mim. A minha resposta, apesar de tudo, foi suficiente para a satisfazer e quer apenas aproveitar a oportunidade para me observar.
– Bem, Lynette, e que tal ficar a olhar para o Frank durante uma ou duas horas? – exclama Vicki quase aos gritos, cruzando os braços, zangada.
– Só quero olhar bem para ele, minha querida. Gosto de ter tempo para poder ver uma pessoa de alto a baixo. Depois fico a conhecê-la. Não faz mal nenhum. O Frank sabe que só o faço por bem, não é, Frank?
– Sem dúvida – digo, a sorrir.
– Ainda bem que não vivo aqui – riposta Vicki.
– É por isso que tens uma casa bonita só para ti – diz Lynette, toda afável. – Claro que eu nunca fui convidada para lá ir.
E volta tranquilamente para a cozinha impregnada de vapor e odor a carne, deixando-nos sozinhos no sofá na companhia dos mergulhadores.
– Tu e eu devíamos ter uma conversa – diz Vicki com aspereza, com os olhos subitamente vermelhos e marejados de lágrimas. O ar condicionado sopra de novo e atinge-nos com uma lufada fria e mecânica. O Elvis Presley assoma-se alegremente à porta e fica parado a olhar para nós.
– Sai daqui, Elvis Presley – diz-lhe Vicki, e o Elvis Presley dá meia-volta e regressa alegremente para a casa de jantar.
– Sobre o quê? – pergunto com um sorriso otimista.
– Uma série de coisas, só isso.
Vicki limpa os olhos com as pontas dos dedos, o que a obriga a baixar a cabeça.
– Sobre nós os dois?
– Sim.
Os seus lábios enfadados acentuam o esgar de irritação e o meu pobre coração acelera uma vez mais. Quem sabe porquê? Para me salvar? Não faço a mínima ideia do que precisa de ser dito entre nós, mas Vicki está num estado que raia a infelicidade.
Mas porque será que tudo isso não pode esperar (só por hoje)? Fazer uma pausa dramática, como dizem os atores. Continuar sem alterações por mais um pouco? Porque será que as coisas boas não transcendentais que conhecemos, ou julgamos conhecer, não podem prolongar-se por mais um pouco sem o final ter de lhes travar prosaicamente o passo? Walter Luckett, que, ao invés do que o apelido indicia, é mais um Walter Luckless, não podia estar mais certo a meu respeito. Não gosto de pensar que isto ou aquilo vai acabar, ou sequer mudar. A morte, essa velha máquina imparável, não é minha amiga nem nunca o será.
Todavia, não posso adiar o que quer que isto seja, e talvez nem queira fazê-lo. Hoje ela é um demónio em busca de mudança, todo o seu ser transpira transição. Só que não há realmente necessidade, pois não? (Pum, pum, pum, bate o meu coração.) Ainda não almoçámos nem provámos o cordeiro duro como sola. Ainda tenho de ser apresentado ao pai e ao irmão. Acalentava a esperança secreta de que o pai dela e eu pudéssemos vir a ser amigos do peito mesmo que as coisas não resultassem entre mim e Vicki. Ele e eu poderíamos continuar a ser amigos. Se ele tivesse um pneu furado numa noite chuvosa, em Haddam ou Hightstown, ou outro lugar qualquer nas imediações, poderia telefonar-me e eu iria buscá-lo, tomaríamos um copo enquanto o pneu estivesse a ser reparado na oficina do Frenchy, e depois ele embrenhar-se-ia na escuridão da noite de New Jersey com a certeza de ter um amigo de confiança que olhava a estrada da vida mais ou menos como ele. Talvez pudéssemos até levar o irmão connosco à pesca, em Manasquan (sem precisarmos de levar as mulheres). Vicki poderia casar-se com o enteado de Sweet Lou Calgagno, de Bamber, e ter uma vida maravilhosa como mulher de um distribuidor de cerveja com um bando de filhos. E eu poderia ser o amigo de confiança e coração de ouro, e de bom grado trocaria o semblante bisonho do pretendente rejeitado pela sábia bonomia do tio velho. Para mim seria o bastante, apenas a fruição natural do aprazível presente.
De braço apoiado nas costas do sofá, Vicki está a olhar pela janela para as casas de Arctic Spruce. Por vezes é possível ver-lhe no rosto os prenúncios da mulher mais velha em que se tornará, quando os traços se avolumarem, mais pesados, em torno do queixo, dando-lhe um semblante mais sério do que agora. Daqui a uns anos será indubitavelmente entroncada, o que nem sempre é desejável.
A luz ambarina tornou a relva tão verde como a própria Inglaterra. À porta das casas desta rua em curva e sem passeios estão estacionados carros novos e reluzentes – Chryslers, Oldsmobiles, Buicks –, todos eles grandes e faustosos. Um pouco mais longe, num pátio, está uma grande caravana branca. Saem rolos de fumo de quase todas as chaminés, de tijolo branco, embora não faça de modo algum frio que o justifique, e várias portas ostentam ainda coroas de Natal. Entretanto chegou um vento assolador.
Vejo que alguém instalou aros de croquet no relvado dos Arcenaults – duas estacas listradas, frente a frente, a uma distância menor do que a regulamentar. Há jogos planeados para hoje, e aqui está como irei fugir ao momento vazio que sinto aproximar-se.
– Vamos jogar – sugiro, apertando o braço de Vicki como um tio carinhoso. Não o faço com segundas intenções, só para quebrar o silêncio pesado e indefinido que nos contagiou.
Ela parece surpreendida, embora não o esteja, com os olhos redondos como moedas.
– Com esta ventania toda e a chuva que se aproxima?
– Ainda não chove.
– Ai menino menino menino – diz Vicki, estalando os dedos afoitamente a compasso. – Vai ser o teu funeral.
Mas sai rapidamente do sofá e vai aos arrumos, no andar de cima, buscar os maços.
Na televisão, a CBS está a tentar retomar a transmissão do jogo de basquetebol, agora que tudo está de novo sob controlo. Contudo, de cada vez que mostram o que se está a passar no campo, aparece um homem baixo de nariz batatudo e faces coradas, com um casaco berrante aos quadrados, que grita, sem som, «Vai-te foder» a alguém da equipa nova-iorquina, agitando, indignado, um toco de braço. Este sujeito de casaco aos quadrados é um dos meus favoritos. É Mutt Greene, presidente dos Cleveland Cavaliers. Entrevistei-o uma vez, logo após ter recomeçado a minha vida como jornalista desportivo. Nessa altura ele era treinador em Chicago, mas por decisão sua passou para a direção numa outra cidade, onde certamente a vida se lhe afigura melhor.
– As pessoas surpreendem-nos com a sua tamanha estupidez, Frank – disse-me ele. Estava a fumar um charuto enorme, dos caros, no seu gabinete de treinador, atravancado, por baixo do Chicago Stadium. – Quer dizer, já pensou realmente em quanta conversa adulta é trocada nesta porra de negócio? Os factos tratados como se fossem opiniões, só para se poder falar mais sobre eles? Para alguns até pode ser interessante, companheiro, mas deixe que lhe diga… Para mim é pura fantasia, é o mesmo que chamar cadeia montanhosa ao raio de um rochedo. As pessoas perdem nisso um tempo dos diabos que podiam aproveitar para fazer qualquer coisa de útil. Isto é só um jogo. É para ver e esquecer.
Depois enveredámos por uma animada cavaqueira sobre sementes de relva e as péssimas alternativas que se oferecem quando o problema é o elevado nível do lençol freático e uma drenagem inadequada, o que não era problema meu, mas da casa dele em Hilton Head.
A entrevista não foi muito produtiva no que toca a «identificar os pontos essenciais» do clássico confronto entre grandes e pequenos – o objetivo que ali me tinha levado. Mas penso que trouxe bastante informação, embora não concorde com tudo o que ele disse. No entanto, ele ficou contente por se poder sentar a conversar com um jovem jornalista desportivo e dar-lhe uma lição de vida. «Colocar as coisas em perspetiva e dar honestamente o nosso melhor» foi a lição que levei comigo nessa noite para o Sheraton Commander Hotel. E, uma vez esse assunto arrumado, venha o interesse por uma nova semente de relva ou por um velho disco do Count Basie que já não ouvimos há uns tempos, ou por um catálogo ou por uma empregada de bar, que foi precisamente – a última hipótese – aquilo que fiz e não me arrependi.
Os jogadores estão agora a fuzilar toda a gente com olhares mortíferos, de dedos compridos e ossudos ameaçadoramente apontados. Os jogadores negros estão com um ar particularmente agressivo, e os brancos, pálidos e de braços esqueléticos, parecem querer arvorar-se em apaziguadores, quando na verdade estão apenas a tentar evitar mais problemas. O treinador, um homem atarracado de ar preocupado e calças brancas, tenta levar Mutt Greene por um corredor por baixo das bancadas, mas Mutt está a dar luta. Para ele, a vida real é isto. Não há lugar para fingimento. Perdeu completamente a perspetiva e quer armar um escândalo por causa da forma como os Knicks jogam. Veio das bancadas para mostrar o que vale, e admiro-o por isso. Tenho a certeza de que tem saudades da vida de outros tempos.
Nisto, a imagem muda bruscamente e aparece outro mergulhador no alto do penhasco, a olhar para baixo, para o destino de espuma que o aguarda. A CBS desistiu de transmitir o jogo.
O Elvis Presley entra outra vez pela porta da cozinha, fazendo tilintar a coleira de diamantes e farejando o ar. Não sabe se pode confiar em mim, e quem poderá criticá-lo?
Logo atrás entra Lynette, de olhos furtivos a brilhar, mas com uma alegria sã.
– A bem dizer, o Elvis Presley manda nesta família toda – diz ela, dando-lhe um leve toque com o pé. – Foi esterilizado, claro, e por isso não precisa de se preocupar com a sua perna. Não passa de meio cão, mas nós amamo-lo na mesma.
O Elvis Presley senta-se à entrada da porta a olhar para mim.
– Ele é o máximo – digo eu.
– A Vicki não lhe parece preocupada?
A voz da Lynette torna-se cautelosa, e o seu olhar vivo é especulativo quando cruza os braços em câmara lenta, muito lenta.
– A mim parece-me ótima.
– Bem, pensei que, depois de terem ido a Detroit, talvez tivesse acontecido alguma coisa desagradável.
Pois é! Toda a gente, incluindo o Elvis Presley, sabe tudo e quer tirar partido da situação, por mais inútil que seja. É uma família que pratica a revelação total. Nada de segredos a não ser que os seus membros tomem decisões unilaterais, correndo o risco de merecer a reprovação geral. É óbvio que Vicki lhes contou uma história condimentada, mas pela metade, e Lynette quer saber o resto. Porém, Lynette não é exatamente como eu quero que seja, e a partir deste momento transfiro-me integralmente para o lado de Vicki.
– Que eu saiba, está tudo ótimo – insisto, a sorrir, sem admitir nada.
– Bem, então tanto melhor – diz Lynette, acenando, feliz, com a cabeça. – Todos a amamos e queremos o melhor para ela. É a rapariga mais corajosa que conheço.
Não respondo. Nem «Corajosa porquê?» nem «Diga-me o que acha do Everett?» nem «De facto, ela de repente parece andar um pouco diferente». Não digo nada, exceto:
– É maravilhosa.
E sorrio mais uma vez.
– Sim, agora é – diz Lynette com um sorriso radioso onde transparece um aviso. E depois foi-se novamente embora deixando o Elvis Presley à porta, imóvel, a fitar-me.
Durante o tempo que Vicki demora a ir buscar os maços, Cade, o irmão dela, entra de rompante pela porta da frente. Esteve nas traseiras a cobrir o barco, um Boston Whaler, com uma lona, e, quando lhe aperto a mão, sinto-a rígida como uma pedra e gelada. Cade tem vinte e cinco anos, é mecânico naval na vizinha Toms River e é um latagão de calças de ganga e T-shirt branca. Vicki disse-me que ele está na «lista de espera» para a academia da polícia estadual e que já mostra aquele desinteresse desprovido de emoção, típico dos agentes da autoridade, pelas peculiaridades do seu semelhante.
– Com que então veio de Haddam? – grunhe Cade, quando paramos de apertar as mãos e ficamos os dois sem nada para dizer um ao outro. Não se vislumbra no seu discurso o mínimo vestígio de sotaque do Texas, onde foi criado, e já adquiriu completamente a maneira de falar dos jovens de New Jersey, mas com uma aura que o envolve como um veneno, uma aura de quem está para lá do tempo e dos lugares. Está especado ao meu lado como um mastro, a olhar fixamente para fora pela janela da frente.
– Andei com uma rapariga de Brunswick do Sul e costumava ir patinar com ela numa pista na 130. É capaz de saber onde fica… – e nos seus lábios desenha-se de imediato um sorriso escarninho.
– Sei perfeitamente – replico, enfiando as mãos nos bolsos. Na verdade, vi os meus dois queridos filhos (e uma vez o terceiro) patinarem lá horas a fio, enquanto eu os admirava de longe, abraçado à balaustrada.
– Agora acho que há lá um cinema da Mann’s Tri-Plex – diz Cade, olhando em redor, como se perplexo, antes de mais nada por estar a ter esta conversa embaraçosa. Sentir-se-ia muito melhor se pudesse deitar-me as mãos e enfiar-me, baixando-me a cabeça com força, no banco traseiro de um carro-patrulha; e depois, na viagem até ao centro da cidade, poderíamos relaxar os dois, ser nós mesmos, e ele poderia contar uma anedota cruel a mim e ao colega, e seríamos «amigos do peito», cada um no seu papel, como Deus quis. Afinal, eu venho de um outro mundo, sou o tipo de cidadão indefeso que é proprietário dos barcos que ele repara; um daqueles papalvos sem conhecimentos de mecânica que ele odeia pela maneira como cuidamos de uma coisa que ele não tem dinheiro para comprar. Não sou o tipo de pessoa que normalmente vai almoçar lá a casa, e está a ser-lhe muito difícil tratar-me com simpatia.
O conselho que lhe dou, sem o verbalizar, é que é melhor habituar-se a mim e aos meus, pois sou uma das pessoas a quem, mais tarde ou mais cedo, vai estar a passar multas, um dos cidadãos honestos e normais cujos usos e costumes ele meterá a ridículo correndo o risco de se meter em apuros. Se ele ao menos me deixasse, eu poderia de facto ajudá-lo, poderia ensinar-lhe a enfrentar o mundo.
– Hum, onde está a Vicki? – pergunta Cade, parecendo subitamente enjaulado, correndo os olhos pela sala, como se ela pudesse estar escondida atrás de alguma cadeira, ao mesmo tempo que abre a manápula expondo um pedaço de metal prateado e trabalhado.
– Foi buscar os maços de croquet – esclareço. – O que é isso?
Cade olha de lábios crispados para o tubo de metal com cinco centímetros.
– Um espaçador – diz ele, e depois fica um momento em silêncio. – São os Alemães que os fazem. Dizem que são os melhores do mundo. E afinal são uma merda, é o que são.
– Para que servem?
As minhas mãos continuam enfiadas até ao fundo dos bolsos e por um instante centro todo o meu interesse no tal «espaçador».
– Barcos – diz Cade, lacónico. – Devíamos fazer cá estas coisas. Assim iam durar.
– Nisso tem toda a razão – digo eu. – É uma pena.
– Quer dizer, o que é que faz se estiver no mar alto e esta coisa estalar? Assim. – Um dedo sujo de óleo aponta para uma fissura fina como um cabelo num dos lados do espaçador, que me tinha passado despercebida. Os olhos escuros de Cade toldam-se com reprimida irritação. – Chama um alemão? É isso? Eu digo-lhe o que é que o senhor faz. – Os seus olhos apanham-me a olhar estupidamente para o espaçador, que tem um aspeto obscuro e insignificante. – Vai desta pra melhor se vier uma tempestade – diz Cade, acenando sinistramente com a cabeça e fechando a manápula como se fosse uma amêijoa gigante. Todos os seus sentimentos estão intimamente ligados ao conceito de que qualquer corrente é tão forte quanto o seu elo mais fraco, e está determinado a não ser jamais esse elo na sua vida pessoal, da qual ele é que detém o controlo. É este o tema central de todas as tragédias, embora não seja, a meu ver, nada que justifique tanta exacerbação. O ponto de vista dele é o do polícia, o meu, o do jornalista desportivo. Para mim, um elo fraco tem de ser vigiado, e é melhor ter sempre outro preparado para o substituir, caso fique inutilizado. Mas entretanto poderá ser interessante ver como se comporta e como procura desempenhar a sua função em condições adversas, continuando a dar o seu melhor nas outras áreas em que é forte. Sempre me considerei um elo humano fraco, a lutar contra a adversidade e o destino, e não estou disposto a desistir. Cade, pelo contrário, quer meter-nos na prisão, aos infratores e aos elos mais fracos, para nunca mais vermos a luz do dia e nunca mais incomodarmos ninguém. Ser-nos-ia muito difícil tornarmo-nos bons amigos, isso é evidente.
– Esteve recentemente em Atlantic City? – pergunta Cade, desconfiado.
– Há muito tempo que lá não vou.
A X e eu fomos lá em lua de mel. Ficámos no velho Hadden Hall, passeámos na marginal e passámos dias inesquecíveis. Nunca mais lá fui exceto uma vez, para uma partida de karaté, em que cheguei de avião ao início da noite e parti duas horas depois. Duvido que isto interesse a Cade.
– Agora está uma desgraça – diz Cade, abanando a cabeça com desalento. – Prostitutas e adolescentes hispânicos por todo o lado. Antigamente era um bom sítio. E olhe que eu não sou preconceituoso.
– Ouvi dizer que tinha mudado.
– Mudado? – Cade esboça um simulacro de sorriso, o primeiro sinal de um verdadeiro sorriso. – Nagasaki também mudou, certo? – Nisto, vira bruscamente a cabeça na direção da cozinha. – Estou com tanta fome que era capaz de comer uma chave de fendas. – Por estranho que pareça, um sorriso de felicidade estampa-se-lhe na carantonha trágica de patego. – Tenho de me ir lavar, senão a Lynette dá-me um tiro. – E abana a cabeça, todo contente, de sorriso rasgado.
De repente todo ele extravasa alegria. O que quer que estivesse a incomodá-lo já desapareceu. Atlantic City. Elos fracos. Espaçadores com defeito. Espiões. Criminosos que irá prender um dia e a quem depois dirá umas graçolas no longo percurso até à esquadra. Desapareceu tudo. Este é um traço da sua personalidade de que eu não estava à espera – conseguir esquecer e ser feliz, o que é uma excelente mais-valia. Uma boa refeição espera por ele algures. Um jogo na TV. Uma cerveja. Poder navegar com céu limpo para lá das tormentas da vida. Nada mau, quando não se pensa nisso.
No jardim Vicki mostra-me a maneira mais fabulosa de bater uma bola de croquet, o golpe por entre as pernas afastadas que lhe permite dar à bola um bom efeito que a faz gritar de alegria. Eu sou por natureza mais adepto do golpe lateral, pois joguei golfe algumas vezes em Lonesome Pines e com a X nos primeiros tempos do meu casamento. Também gosto de bater a estúpida da bola às riscas com a mão, embora desista sempre do toque. Quando bato a bola, Vicki lança-me olhares cruéis, de descrédito, e depois, com um ar mais agressivo ainda, abre as pernas por cima da sua bola verde e puxa a saia acima dos joelhos para imprimir ao maço um movimento pendular perfeito. Ela já vai a meio do circuito completo e eu ainda não passei o primeiro aro, embora me sinta agora algo devaneante e não consiga concentrar-me no jogo.
O tempo de Detroit chegou finalmente aqui, ainda que a tempestade não seja a mesma. Esta perdeu toda a sanha e contenta-se em ser apenas uma brisa intensa e desabrida com alguma queda de chuva gelada – no máximo, um pequeno aguaceiro suburbano, apesar de a luminosidade ter passado de ambarina e dominical a vespertina e azul-esverdeada. De facto, é maravilhoso estar cá fora, mesmo que seja a jogar sob o olhar de Jesus crucificado. Não faço ideia de onde o pai de Vicki possa estar. Será que devo interpretar esta ausência como mau sinal, um gesto de rejeição? Será que deveria estar a perguntar-me o que faço aqui? Afinal fui convidado, embora, e inevitavelmente, me sinta tão sozinho como um nómada.
– Estás a divertir-te? – pergunta Vicki, que conseguiu colocar a bola verde às riscas suficientemente perto da minha bola amarela para lhe dar uma sonora pisadela com o pé impecavelmente calçado com collants, o que a pôs a rolar pela relva até ao canteiro de flores encostado à casa, onde está perdida entre as bocas-de-lobo.
– Eu até estava a portar-me muito bem.
– Vailábuscaroutrabola. Traz uma vermelha… dão sorte – diz ela, de maço ao ombro como um lenhador. Só lhe faltam dois aros e está a fingir que quer que eu a apanhe.
– Abandono – digo eu, com um sorriso.
– O que é que disseste?
– É o que se diz no xadrez. Não sou adversário à tua altura. Não te chego aos calcanhares.
– Xadrez uma ova, foste tu que quiseste vir jogar, e agora és tu que abandonas. Vai lá buscar uma bola.
– Não vou nada. Não tenho jeito para jogos, já desde pequeno.
– No Texas fazem-se apostas neste jogo. Lá joga-se a sério.
– É por isso que eu não jogo nada.
Vou sentar-me no degrau húmido do alpendre, ao lado dos sapatos vermelhos dela, a contemplar a luz com reflexos esverdeados e a encantadora rua em curva. Esta península serpenteante é obra de algum empreendedor criativo que aqui descarregou centenas de camiões e a fez nascer de um pântano. E nem foi má ideia, pois, se fecharmos os olhos por instantes, como fiz agora, parece que estamos em Hyannis Port.
Vicki volta a bater a bola verde às riscas, mas agora de qualquer maneira, recorrendo ao meu método para mostrar que não está a jogar a sério.
– Sabes, quando eu era pequena, fui com o Cade ver a Alice no País das Maravilhas. – Levanta os olhos para ver se estou a prestar atenção. – Na parte em que eles jogam croquet com cabeças de avestruzes, ou lá o que são aquelas aves cor-de-rosa, eu gritei seus assassinos, porque julgava que aquilo os tinha matado. Já nessa época detestava ver fosse o que fosse a sofrer. É por isso que sou enfermeira.
– Flamingos – digo eu, sorrindo para ela.
– Era isso que eram? Bem, só sei que chorei por causa deles. – Pás-pás. A bola dela descreve um percurso acidentado até à estaca listrada e depois dá uma volta e desvia-se para a esquerda. – Pronto, a culpa foi tua. Dá-lhe com força – diz ela, enfrentando a brisa, destemida, e eu olho-a possuído de desejo. – Tu não jogas, mas passas a vida a escrever sobre jogos. Funcionas ao contrário.
– Eu gosto assim.
– O que achaste do meu Cade? Não é o máximo?
– É um tipo fixe.
– Se ele me deixasse escolher-lhe a roupa ainda era muito melhor, digo-to eu. O Cade está a precisar de uma namoradinha. Mas não pensa em mais nada senão em ser polícia.
Vicki vem para junto de mim, senta-se no degrau abaixo do meu e abraça-se aos joelhos ao mesmo tempo que aconchega a saia debaixo dela. O seu cabelo exala um cheiro doce. Enquanto esteve lá em cima, pôs uma boa dose de Chanel N.º 5.
Quem me dera não estar agora a falar sobre Cade, mas não tenho propriamente nada que o substitua. Vicki não se interessa pelas contratações da NFL para recrutar jogadores, nem pela liderança precoce dos Tigers na costa leste, nem por quem poderá estar a ganhar no jogo dos Knicks, e por isso contento-me em ficar sentado no alpendre como um proprietário rural preguiçoso, a respirar o ar salgado e a contemplar a Lua no céu ainda diurno. À sua maneira, isto é até bastante inspirador.
– Então, o que é que achas disto aqui? – pergunta Vicki, olhando para mim por cima do ombro e depois de novo para a casa em frente, mais uma com pisos independentes, mas com uma fachada virada a oriente, de cornijas retorcidas e pintadas de vermelho.
– É ótimo.
– Tu não te encaixas de todo, e sabes disso.
– Estou aqui para estar contigo. Não estou a tentar encaixar-me.
– Pois – diz ela, e abraça-se com força aos joelhos.
– Onde está o teu pai? Tenho o pressentimento de que anda a evitar-me.
– Nem pensar.
– Eu posso desaparecer num instante, sabes, se a minha presença causar algum problema.
– Certo, tu és um monte de problemas. Só partes coisas, entornas comida e tratas mal o pobre do Cade. Se calhar era melhor ires-te embora.
Vicki vira-se para trás e lança-me um olhar diferente, o tipo de olhar que lançaríamos a um homem que estivesse a tentar rezar o pai-nosso na língua dos pês.
– Não sejas estúpido – diz ela. – O homem não está a evitar ninguém. Está na cave entretido com o hobby dele. Provavelmente nem sabe que aqui estás. – Olha irritada para o céu tempestuoso. – Se alguém lhe dá problemas é aquela-que-tu-sabes, ali dentro. Mas não posso falar nisso. Esse é que é o seu veneno. Ele que o beba.
– Tal como tu és o meu.
Desço um degrau para poder abraçá-la com força pelos ombros, sem que isso suscite minimamente o interesse de quem quer que vá a subir ou a descer Arctic Spruce, um lugar muito diferente do recatado Michigan. A sensação aqui é a de que podemos abraçar-nos e estar na marmelada sentados nos degraus até os braços não aguentarem mais sem que ninguém ligue nenhuma.
Os ombros dela erguem-se e encaixam-se no meu abraço de urso.
– Eu não sou assim tão doce – diz ela.
– Não me dês más notícias agora.
– Bem, olha lá – diz ela, franzindo a testa.
– Sem problema. Dou-te a minha palavra; seja o que for, quanto mais tarde, melhor – digo eu, inalando o aroma doce e lavado do seu cabelo quente.
– Bem, tenho mesmo de te dizer uma coisa.
– Só não quero que me estrague a tarde.
– Pode ser que não estrague.
– Tenho mesmo de ouvir?
– Tens, acho que devias – diz ela com um suspiro. – Sabes aquele cirurgião de mãos transpiradas com quem estavas no outro dia a conversar no aeroporto? Aquele que eu fulminei com o olhar quando cheguei ao pé de vocês?
– Não quero saber nada sobre ti e o Fincher. Seria um momento terrível do meu dia. Estás proibida de me contar.
Fixo o olhar no céu enxameado de nuvens esverdeadas. Um pequeno Cessna cruza, ronquejante, o nosso espaço aéreo, certamente em busca de uma aterragem segura em Manahawkin ou Ship Bottom antes que venha a tempestade. Agora nem parece nada domingo de Páscoa, apenas mais um dia igual aos outros. Se bem que, quanto mais normal for este dia de abril, melhor para mim. Os feriados podem trazer demasiadas deceções que depois tenho de aceitar.
– Ouve. Eu nunca andei com tal personagem.
– Pronto, é bom saber.
– É a tua ex. Essa é que anda com ele. Só sei porque a vi ir buscá-lo à porta das Urgências três vezes ou quatro. Ela tem um Citation castanho-claro, certo?
– O quê?
– Bem – diz Vicki. – Se não fosse o beijo que ele lhe deu, eu até podia pensar que era apenas uma amizade inocente. Mas não é nada inocente. Foi por isso que me portei de uma maneira tão estranha no aeroporto. Julguei que vocês se iam pegar.
– Talvez fosse outra pessoa – alvitro eu. – Há muitos carros castanhos. A General Motors fez milhares deles. São fabulosos.
– A General Motors… – diz ela, abanando a cabeça com ar professoral. – Mas não com a tua mulher lá dentro, isso não fez.
E por um momento fugaz a minha mente, simplesmente, paralisa – o que nem sequer é assim tão raro, e há alturas em que nada me pode ajudar, como naquele instante em que estava sentado à cabeceira de Ralph e a enfermeira entrou e disse «Lamento muito, o Ralph faleceu» (efetivamente ele estava frio como uma ostra quando lhe toquei na mãozinha fechada, e provavelmente já devia estar morto havia uma hora); naquele momento em que soube que ele estava morto, lembro-me de a minha mente ter paralisado. Nos segundos imediatos não me ocorreu mais nenhum pensamento, nenhuma associação ou recordação relacionada com esse acontecimento, ou o seguinte, o que quer que pudesse ter sido. Nenhuns versos. Nenhumas epifanias. O quarto transformou-se na imagem de um quarto, se bem que mais esverdeado e sombrio para aquela hora da manhã, e depois essa imagem esvaneceu-se e tornou-se minúscula – como se estivesse a vê-la pelo lado errado de um telescópio. Ouvi mais tarde este fenómeno ser explicado como um mecanismo de proteção da mente, e disseram-me que devia estar grato por ter acontecido, embora tenha a certeza de que foi provocado tanto pela fadiga como pelo choque do desgosto.
Nada é minimizado por esta notícia inesperada, embora o ar que me rodeia adquira um tempestuoso tom verde-garrafa. Continuo a ver com perfeita nitidez a moradia de pisos independentes, e nada se me afigura surpreendente. Dou simplesmente por mim a olhar em frente para o outro lado de Arctic Spruce, para uma chaminé pintada de branco de onde a ventania sopra o fumo num ângulo perfeitamente perpendicular ao cano da chaminé. Todos os cortinados estão fechados, o relvado é tão indizivelmente verde que seria possível jogar golfe nele e esperar, com um pequeno toque, que a bola fosse direita ao buraco.
Admito que me surpreende que o quadro que Vicki gostaria de pintar, da X a beijar o Fincher Barksdale no banco da frente do Citation dela à porta das urgências – quando ele acaba de sair da oncologia a cheirar a doença e a cadáveres –, seja tão repugnante como qualquer outro que eu tivesse imaginado; e que a cena seguinte, que ela ainda não pintou, do local, seja ele qual for, para onde os dois se vão escapar a seguir para porem em prática os seus planos obscuros, se apague tão depressa sob o efeito da repugnância. Ao mesmo tempo é verdade que tenho de lutar contra o buraco negro da traição – por mim e pela Dusty, a mulher de Fincher, o que não tem qualquer justificação, pois ela poderá nem se importar e eu já mal me lembro dela. Esta reviravolta faz-me sentir a depravação desbragada de Fincher, o que agrava ainda mais a minha repulsa.
Mas é um pensamento em que não me detenho. E também não invento uma teoria perversa e explicativa para formular a minha posição face ao que ouvi. Por outras palavras, não tenho propriamente reação, exceto para recordar que as pessoas irão sempre surpreender-nos.
– Acho que não – apresso-me a concordar, e continuo a olhar em frente.
Vicki virou-se para me olhar de frente, e a cara dela surge acima da linha descontínua do horizonte dos meus dois joelhos. Está com um ar preocupado, mas pronta a trocá-lo por um ar feliz.
– Então, em que estás a pensar?
– Em nada – respondo a sorrir, agora que a repugnância já se dissipou, deixando-me apenas um pouco fraco. Ainda bem que não tenho de me levantar. Vêm-me à cabeça as simples palavras «Não podes», mas não consigo terminar a frase. «Não podes… o quê?» Dançar? Voar? Cantar uma ária? Controlar a vida dos outros? Ser feliz o tempo todo? – Porque será tão importante contares-me isso precisamente agora? – é a minha pergunta brusca, mas afável.
– Bem, é que eu detesto segredos e já andava a guardar este há algum tempo. Se esperasse mais, tu podias começar a sentir-te tão bem que eu depois talvez já não te pudesse contar para não te estragar completamente o dia. Podia ter-te contado em Detroit, mas teria sido terrível. – Meneia a cabeça muito séria, de queixo empinado, como se não pudesse concordar mais com o que acabou de se ouvir dizer. – Assim, tens tempo para te recompores.
– Agradeço teres pensado em mim – digo eu, apesar de lamentar que ela seja tão perdulária com os segredos.
– Tu és o meu parceiro, não és?
Dá-me uma palmadinha no joelho e o sorriso que desde o início da conversa tem para me dar. Apesar de tudo, é bom de se ver.
– Diz lá outra vez o que é que eu sou?
– O meu parceiro. Era o que eu chamava ao meu pai quando era pequena – explica ela, fazendo-me olhinhos.
– Sou mais do que isso, pelo menos costumava ser. Aliás, ainda quero ser – replico, e tenho de estancar uma lágrima enorme que me inunda o olho.
Certos negócios do coração não dão realmente lucro. Diz quem sabe.
– Ora essa, podes apostar. Mas não podemos ser também amigos? Vou querer ser tua parceira para sempre – diz Vicki e depois prega-me um beijo enorme e algo suspeito na face gelada, enquanto muito acima de nós, o céu se agita e desaba e sinto na cara a primeira gota a sério da tempestade que esteve este tempo todo à espera da sua vez.
Wade Arcenault é um tipo bem-disposto de olhos arregalados e cabelo à escovinha, rosto quadrado, rústico, e sorriso aberto. Reconheço-o imediatamente de o ver na portagem da Saída 9, onde me ficou com o dinheiro centenas de vezes, mas neste momento não me reconhece. Não é um homem grande, é até pouco mais alto do que Lynette, embora os braços, à mostra, com as mangas cáqui arregaçadas para os lavar no lava-loiças, sejam musculados e bronzeados. Dá-me um bom aperto de mão, molhado, sem sair de onde está, e, com um sorriso secreto e matreiro, diz-me que esteve «lá em baixo no covil do diabo» a reparar uma fritadeira Sunbeam para Lynette poder fazer minipanquecas holandesas, a sua sobremesa de Páscoa favorita. A fritadeira, de novo a funcionar esplendidamente, está ali mesmo ao lado, em cima da bancada.
Ele não é nada daquilo que eu esperava. Tinha-o imaginado como um sujeito dinâmico, vesgo, baixinho e insignificante, como o dono de uma loja de armas, com tatuagens ostensivas de mulheres nos bíceps descarnados, um homem com uma aversão cruel a negros. Mas esse é o mau estereótipo, o tipo de personagem que deitou a perder a minha carreira de escritor, e provavelmente com razão. O mundo é um lugar mais motivante e menos dramático do que os escritores querem fazer parecer. E, por instantes, Wade e eu não fazemos mais nada além de ficarmos parados como surdos-mudos a olhar para as linhas drásticas e utilitárias da fritadeira, incapazes de encontrar melhor assunto de conversa.
– Então que tal foi a viagem até aqui, Frank? – pergunta Wade com intempestiva cordialidade. Há no seu temperamento uma frontalidade própria da gente fronteiriça que o torna imediatamente simpático e digno de confiança, um homem com as prioridades bem definidas e um permanente brilho nos olhos que diz que espera que alguém – talvez eu – lhe conte alguma coisa que o deixe extremamente feliz. De facto, nada me agradaria mais.
– Vim por Pemberton e Bamber, Wade. É um dos meus percursos preferidos. Um dia destes gostaria de ir andar de canoa no Rancocas. Deve ser muito parecido com algumas zonas de África.
– Não é fantástico, Frank? – Os olhos de Wade Arcenault reviram-se nas órbitas, em busca de quê, isso não sei. Por estranho que pareça, Wade já perdeu o sotaque do Texas tanto quanto Cade. – Este é o nosso pequeno Jardim do Éden, e queremos mantê-lo assim, para os forasteiros não virem por aí estragar tudo. É por isso que não me importo de fazer setenta quilómetros para ir trabalhar, apesar de pensar que não devia ser tão radical. – Os seus olhos claros brilham ao admiti-lo. – Hoje em dia, todos nós vimos de um outro lugar, Frank. As pessoas que aqui nasceram já nem reconhecem este sítio. Falei com elas.
– Mas aposto que gostam dele assim. Esta península é uma bela ideia.
– Só existe o pequeníssimo problema da erosão – diz Wade, acabando de limpar as mãos a um pano de cozinha. – Mas nós temos o nosso engenheiro, o jovem Pete Calcagno (um nome que eu conheço), um brilhante licenciado da Rutgers, que fez o que lhe competia com a retroescavadora e os sacos de areia, e que vai resolver o problema, é o que eu penso – continua Wade com um sorriso radioso. – A maioria das pessoas quer praticar o bem, é essa a minha ideia.
– Concordo.
Seguramente que sim! É certamente verdade em relação a mim, e inquestionavelmente verdade em relação a Wade Arcenault. Afinal, ele comprou à filha divorciada uma casa cheia de mobília nova, foi com ela às compras, deixou-a escolher tudo à vontade e depois retirou-se e passou-lhe um cheque colossal para ela poder recomeçar uma nova vida em terras do Norte. Muitas pessoas gostariam de o fazer, mas não seriam muitas as que levariam tal projeto até ao fim.
Os olhos azuis de Wade desviam-se sorrateiramente para a porta da cave. Devo ter dito ou feito alguma coisa que o levou a simpatizar comigo, pelo menos em princípio.
– Lynette – grita Wade, erguendo os olhos para o teto. – Tenho tempo de levar este rapaz lá abaixo ao covil do diabo? – pergunta ele, ao mesmo tempo que me pisca o olho e volta a olhar para cima. (Talvez consigamos planear uma pescaria, independentemente de como as coisas correrem com a Vicki.)
– Duvido que mesmo o exército do Grant te conseguisse impedir, ou será que conseguia? – diz Lynette a sorrir, olhando-nos pela janela de serviço que faz a ligação entre a cozinha e a casa de jantar, ao mesmo tempo que abana a cabeça ruiva, bonita, e nos acena.
Pela porta da sala vejo Vicki e Cade sentados no sofá cor de salmão, embrenhados no que parece uma conversa íntima. O guarda-roupa de Cade e a sua absurda vida social estão sem dúvida sob escrutínio.
Wade desce pesadamente os degraus até à cave comigo atrás, e o ar pesado da cozinha dá imediatamente lugar ao ar frio e pungente, a tresandar a produtos químicos, das caves suburbanas cujo proprietário é um tipo precavido que tem em dia as inspeções antitérmitas. Eu sou um deles.
– Ora bem, agora fique aí, Frank – diz Wade, perdendo-se na escuridão, à minha frente, enquanto os seus passos ressoam no cimento. Atrás de mim, o braço tronchudo de Lynette fecha a porta da cozinha. – E agora prepare-se.
Onde quer que esteja, Wade vibra de entusiasmo.
Agarro-me a um corrimão de madeira de 5x15, sem saber se devo dar mais um passo que seja, pois pressinto a presença de algo de grandes dimensões à minha frente.
Wade está a mexer em objetos de metal, talvez um abajur ou uma caixa com fusíveis ou com chaves.
– Ahh, bolas – resmunga ele.
De repente, uma luz flutua no ar, não proveniente de um pequeno candeeiro, mas uma luz fluorescente branca e tremeluzente projetada nas vigas do teto. O que vejo primeiro não é, penso, o que deveria ver. Vejo uma fotografia enorme do mundo tirada do espaço sideral e colada à parede de blocos de cimento por cima da bancada de trabalho de Wade. Nela, o espaço está todo azul e vazio, e a América do Norte destaca-se com a nitidez de um sonho, a milhares de quilómetros de distância, branca e perfeitamente delineada em contraste com o mar escuro que a circunda.
– O que lhe parece, Frank? – pergunta Wade todo orgulhoso.
Os meus olhos tentam encontrá-lo, mas só discernem mesmo à minha frente, e tão perto que lhe podia tocar, um grande carro preto, tão perto que nem consigo identificá-lo, embora seja sem dúvida um carro cheio de cromados, com um polimento vidrado e a palavra CHRYSLER escrita por cima da grelha enorme.
– Meu Deus, Wade – exclamo, e nisto descubro-o ao lado do interminável guarda-lamas, com a mão na ponta de uma barbatana de tubarão muito alta, na traseira, por cima da luz vermelha. Wade sorri como um vendedor da televisão que acabasse de montar algo verdadeiramente especial, algo de que a mulherzinha vai ter de gostar, uma coisa que qualquer pessoa sensata teria orgulho em possuir como um bom investimento, pois o seu valor só pode aumentar.
É um carro grande e robusto como um cofre-forte, grossos pneus brancos, para-choques aerodinâmicos e a elegância confortável do pós-guerra, de que o meu Malibu é apenas uma pálida lembrança.
– Já não os fazem assim, Frank. – Wade faz uma pausa para as palavras produzirem o impacto desejado. – Eu mesmo o recuperei. Cade deu-me uma ajuda, mas fartou-se assim que acabámos de afinar o motor. Comprei-o a um grego de Little Egg, um magnata do talco, e devia tê-lo visto. Castanho. Esburacado. Metade dos cromados todos estragados. Um trambolho, era o que era. – Contempla o polimento como se o carro lhe tivesse murmurado um obrigado. A cave é gelada e o Chrysler parece tão frio e duro como um diamante negro. – Ainda há muito trabalho a fazer lá dentro – admite Wade.
– Como é que o meteu cá dentro?
Wade esboça um sorriso. Já estava à espera da pergunta.
– Um alçapão de acesso direto, ali atrás, onde ninguém o vê. O reboque só teve de o meter cá dentro. E entretanto eu e o Cade fizemos uma rampa com barras de ferro. Tive de reaprender a soldar. Percebe alguma coisa de soldadura por arco submerso?
– Nada de nada – respondo. – Mas devia.
Olho de novo para a fotografia da Terra. Penso que é uma coisa interessante para se ter na parede, para manter um certo sentido de perspetiva, embora neste cenário tão feio o globo terrestre pareça exótico como uma tapeçaria.
– Não é necessário – diz Wade calmamente. – Os princípios são todos muito óbvios. A resistência é o mais importante. Ia aprender num instante. – Wade sorri ante a ideia de que eu talvez possa vir um dia a possuir alguma competência técnica.
– O que vai fazer com ele, Wade? – pergunto, sem me conseguir controlar.
– Ainda não pensei nisso.
– Já o conduziu?
– Ah, sim. Claro. Ponho o motor a trabalhar e ando meio metro para a frente e meio metro ou um metro para trás, que o espaço aqui não é muito.
Mete as mãos nos bolsos, encosta-se de lado ao guarda-lamas e olha para cima para as vigas baixas do teto e para o cimento escuro. Oiço vozes abafadas por cima das nossas cabeças, o som de passos entre a cozinha e a casa de jantar. Oiço os passos pesados de Cade a afastar-se noutra direção, sem dúvida para ir ao andar de cima mudar de roupa. Oiço as patas do Elvis Presley a tamborilar no chão da cozinha. E depois nada. Wade e eu ficamos em silêncio diante do seu Chrysler e um do outro.
Claro que esta situação, como acontece com tantas outras idênticas, poderia redundar em tragédia. O medo do que ele me possa perguntar inocentemente ou o medo ainda maior de não ter nada de interessante para responder e de ficar especado e mudo que nem o estribo da porta despertam em mim o desejo de estar lá em cima a ver os Knicks dar uma abada aos Cavaliers ao lado do meu amigalhaço Cade. O desporto é uma válvula de escape de primeiríssima ordem quando nós e o nosso sistema de valores somos colocados, amigável mas inesperadamente, sob escrutínio.
«Afinal que espécie de homem é você?» seria uma curiosidade perfeitamente natural. «Quais são as suas intenções em relação à minha filha?» («Não sei de todo responder» não seria grande resposta.) «Quem julga você que é?» (Deixar-me-ia atrapalhado.) De repente sinto um arrepio apesar de Wade parecer não ter truques na manga. É um homem que faz uso de códigos que respeito e que eu gostaria que gostasse de mim. Por outras palavras, os melhores sinais não são assim tão diferentes dos piores. Wade encosta os dedos ao guarda-lamas preto e brilhante como porcelana e fica a olhar para eles. Tenho a certeza de que, se estivesse mais perto, cada traço meu apareceria refletido nele como num espelho.
– Gosta de peixe, Frank? – pergunta Wade, erguendo os olhos para mim quase como quem implora.
– Se gosto!
– Gosta, hem?
– Então não!
Wade baixa de novo os olhos para a superfície preta brilhante.
– Estava aqui a pensar que talvez pudéssemos ir os dois jantar ao Red Lobster uma noite destas, para fugirmos ao mulherio. Para conversarmos à vontade. Já lá foi?
– Então não! Muitas vezes.
Na verdade, eu praticamente não ia a mais lado nenhum logo depois de a X e eu nos termos divorciado. Todas as empregadas de mesa me conheciam, sabiam que eu gostava da anchova grelhada não muito passada e faziam tudo para me agradarem, que é exatamente aquilo que são pagas para fazer, mas geralmente não fazem.
– Eu só lá vou pela arinca – diz Wade. – É uma refeição completa. Até lhe chamo a lagosta dos pobres.
– Devíamos ir. Seria o máximo. – Enfio as mãos geladas nos bolsos do casaco, pronto a voltar lá para cima à primeira oportunidade.
– Onde estão os seus pais, Frank? – pergunta Wade muito sério.
– Já morreram os dois, Wade. Há muito tempo.
– Os meus também. – Meneia a cabeça. – Desapareceram os dois. No fim, todos nós vimos do nada, certo?
– Acho que essa parte não me preocupa.
– Certo, certo, certíssimo. – Wade cruza os braços, dá um passo atrás e encosta-se ao guarda-lamas do Chrysler a fitar-me de lado e depois olha de novo em frente, para a cave. – O que o trouxe até New Jersey? É escritor, não é verdade?
– É uma longa história, Wade. Já fui casado. Tenho dois filhos em Haddam. Ia levar muito tempo a contar.
Sorrio de um modo que espero ser dissuasor, embora saiba que Wade se está provavelmente nas tintas e apenas tenta ser simpático.
– Frank, eu gosto de mulheres. E o Frank?
Wade vira para mim a cabeça quase rapada e abre um sorriso franco e matreiro, indício da velha antecipação de bons momentos que é fonte de oitenta por cento de toda a felicidade. Para ele é tão bom como gostar de arinca, mas mais interessante ainda porque se pode tornar um pouco lúbrico.
– Acho que também gosto, Wade – digo com um sorriso rasgado.
Wade empina o queixo e espeta a língua na bochecha, como quem diz «eu sabia».
– Nunca na vida quis ir para a farra com os amigos, Frank. Não sei que piada pode ter.
– Não muita – concordo, a pensar nas tristes noites do curso «De Novo em Ação», e nos dias passados com os Divorciados, à deriva nas águas geladas de Mantoloking, qual exército a planear um novo ataque às praias da vida vivida, e juro a mim mesmo nunca mais fazer parte desse número. Para mim chega de programas e de divorciados. Afinal, é em terra que a vida acontece (mas que Deus os proteja).
– Não me interprete mal, Frank – diz Wade, cauteloso, sempre a olhar em frente, como se eu estivesse noutro sítio. – Não tenho nada que me meter na sua vida com a Vicki, vocês é que têm de se entender.
– É complicado.
– Pode apostar que sim. Na sua idade é difícil um homem saber o que quer. Já agora, Frank, quantos anos tem?
– Trinta e oito – respondo. – E o Wade, quantos tem?
– Cinquenta e seis. Tinha quarenta e nove quando a minha mulher morreu de cancro.
– Tão nova, Wade.
– Nessa altura vivíamos em Irving, no Texas. Eu era engenheiro petrolífero na Beutler Oil, trabalhava a menos de dois quilómetros de casa, uma casa que era minha, tinha uma filha casada e levava o meu filho aos jogos dos Dallas Cowboys. Tínhamos o que pensávamos ser uma boa vida. E, de repente, sofremos o raio de uma perda terrível. Assim, de um momento para o outro, foi o que nos pareceu. A Vicki e o Cade ficaram destroçados. Por isso, pode apostar que sei o que são complicações – diz Wade, enquanto vai meneando a cabeça à sua própria infelicidade.
– Sei que foram tempos difíceis.
– O divórcio deve ser algo parecido, Frank. A Lynette divorciou-se de um tipo até muito decente, sabe. O segundo marido. O primeiro também morreu. Conheci o segundo. É um tipo decente, mas não somos amigos. Só que eles não se entenderam. Cada caso é um caso, mas ela própria perdeu um filho em Oklahoma.
Aparentemente Vicki mencionou Ralph, o que não me incomoda. Afinal, ele faz permanentemente parte da minha biografia oficial e a sua vida perdida serve para explicar melhor e dar ênfase à minha. Wade, é com satisfação que o digo, está a fazer o possível para «me aceitar como indivíduo», para se mostrar tal como é e deixar que eu me mostre tal como sou, para se manter tão igual a si próprio quanto possível com alguém que não conhece e que facilmente poderia odiar à primeira vista. Poderia estar a fazer-me passar um mau bocado aqui na cave, e eu gostaria de lhe mostrar o quanto lhe agradeço por não estar a fazê-lo, embora não saiba muito bem como. Ao revelar-se direto e sem subterfúgios – nada do que eu antevia –, Wade deixou-me sem palavras.
– Em que parte do Texas foi criado, Wade? – pergunto-lhe, com um sorriso otimista.
– Eu sou do Nordeste do Nebraska, Frank. De Oakland. – Coça as costas da mão, talvez a pensar nas searas de trigo. – Mas estudei no Texas. Comecei em 1953, na A&M University, já casado e com a Vicki a caminho, acho eu. Levei séculos a acabar o curso, sempre a trabalhar ao mesmo tempo nos campos de petróleo. Mas o que eu estava a dizer a respeito das mulheres era que, quando faleceu a Esther, a minha primeira mulher, fiquei com medo de nunca mais me interessar por elas. Está a ver? Um homem pode simplesmente perder o interesse pelas mulheres, Frank. Não digo cá em baixo, mas aqui em cima – diz Wade, olhando para mim e apontando com um dedo para o meio da testa. – Um homem perde a noção de si mesmo, das suas necessidades. E isso aconteceu-me. A Vicki pode contar-lhe, porque foi ela que tomou conta de mim. – Wade revira os olhos de um modo que não tem rigorosamente nada que ver com a sua maneira de ser, embora eu tenha visto Vicki fazer o mesmo muitas vezes, e é perfeitamente possível que ele tenha aprendido com ela. É um gesto típico das mulheres e faz Wade parecer efeminado, como se a vida lhe tivesse dado lições demasiado duras e ele não fosse homem suficiente para as suportar. – Fiz muitos, muitos disparates, Frank – diz Wade com um sorriso autocomplacente (da geração New Age é que ele não é, digo-lhe eu). – Raptei uma bebé num centro comercial. Que loucura, hem? – Wade olha-me com assombro. – Uma menina de cor. Agora nem lhe consigo dizer porquê. Na altura acho que teria dito que o fiz para arranjar maneira de ir para a cadeia. Para ir chorar longe de tudo. Se me apanhassem, teria podido ir chorar para o corredor da morte, é o que lhe digo. E bem merecido era – diz Wade, acenando solenemente com a cabeça em direção às sombras, como se todos os seus motivos mais obscuros estivessem agora aí aprisionados e já não pudessem afetá-lo.
– É uma coisa dos diabos, Wade. Como é que se safou?
– Foi mesmo uma trapalhada dos diabos, Frank. Felizmente voltei a pôr a bebé no carrinho. Mas já a tinha levado comigo para o carro. Só Deus sabe o que eu teria feito com ela. Esse é o momento em que pairamos na fronteira da irrealidade.
– Talvez o Wade não quisesse fazer nada disso. Não ter levado o plano até ao fim é, se me perguntar, um argumento de peso.
– Eu conheço essa teoria muito bem, Frank. Mas vou contar-lhe o que aconteceu. Encontrei o Buck Larsen, meu colega da universidade, numa reunião em College Station. Já não nos víamos provavelmente há vinte e seis anos. Acontece que ele trabalhava para a concessionária desta autoestrada, e começámos os dois a conversar, como nós agora. E eu contei-lhe que a Esther tinha morrido, e por aí fora, os miúdos, as mulheres, as lágrimas, e que tinha de sair de Dallas, uma coisa que nem eu próprio sabia, percebe? Você sabe como é. É escritor.
– Sei muito bem, acho eu. (Pelo menos ele e Buck não foram para um motel.)
– É tão difícil saber quais são exatamente as nossas intenções, não é? – diz Wade, esboçando um sorriso desolado.
– É muito mais fácil nos livros, eu sei.
– Lá isso é. Lemos alguns na universidade. Mas não muitos, acho eu. – Agora podemos sorrir os dois. – Onde é que andou a estudar, Frank?
– No Michigan.
– East Lansing, certo?
– Ann Arbor.
– Bem. Leu mais livros lá do que eu em College Station, isso eu sei.
– Estou a ver tudo isto por aqui, e parece-me que fez as escolhas certas, Wade.
– Acho que sim, Frank. – Wade bate com a ponta do pé num pedaço de cimento seco que está no chão e insiste, até se tornar evidente que não vai sair dali. Depois abana a cabeça. – A nossa vida pode mudar de mil maneiras, digo-lho eu.
– Eu sei, Wade.
– Fui trabalhar para a concessionária da autoestrada, deixei o Cade com a família da Esther, em Irving, vim para aqui e fiz vida de solteiro durante um ano, tão longe quanto possível da minha vida anterior. No espaço de uma semana passei de engenheiro no Texas a portageiro em New Jersey. Com alguma ajuda, claro. Foi passar de cavalo para burro. Com um grande corte no salário. Mas não me importei, porque estava completamente destroçado, Frank. Não pensamos que estamos destroçados, mas estamos, e tive de começar de novo, de me adaptar a um novo lugar, mesmo sendo um lugar tão doido como este; mas não me importei. Sou por natureza alguém que gosta de resolver problemas, Frank. Todos os engenheiros são assim. E foi esse o meu problema. Se me perguntar, acho que os Americanos têm muita relutância em descer na hierarquia. Mas não é assim tão mau.
– No entanto, não parece nada fácil. Em comparação com os meus problemas, até os faz parecer bem insignificantes.
– Não lhe posso dizer se foi fácil ou não. – A testa franze-se-lhe como se desejasse dizê-lo, como se quisesse ser capaz de falar disso também, mas já não se lembrasse, o que é uma bênção. – O Frank sabe como é. Há um tipo que trabalha connosco na saída 9. Não lhe vou dizer o nome. Digo-lhe apenas que em 1959 ele estava a viver no Oeste, perto de Yellowstone. Tinha mulher e três filhos, uma casa e uma hipoteca para pagar. Um emprego. Uma vida. Uma noite foi a um bar e estava de regresso a casa quando, logo depois de ter saído, toda a encosta daquele lado da montanha desabou sobre o bar. Ele contou-me que parou a meio da autoestrada e pôde ver ao luar o local onde tinha havido tantas luzes acesas e que estava agora com as luzes todas apagadas por causa deste tremendo resvalamento de terras. Matou toda a gente menos ele. E sabe o que ele fez? – pergunta Wade, arqueando as sobrancelhas e semicerrando os olhos, tudo ao mesmo tempo.
– Estou mesmo a ver.
(Quem não estaria, neste mundo moderno?)
– Bem, teria acertado. Meteu-se no carro e tratou de ir para o Leste. Disse que lhe pareceu ouvir alguém dizer: «Toma, Nick, aqui tens a tua vida a ser-te oferecida de novo. Vê se a aproveitas melhor desta vez.» E depois foi dado como morto no Idaho ou no Wyoming, ou lá onde foi. O seguro pagou a indemnização. Quem sabe onde estará a família? Os filhos? E ele a trabalhar ali ao meu lado na portagem, feliz que só visto. Claro que eu nunca contaria isto a ninguém. E tenho muita mais sorte do que ele. Foram-nos dadas novas vidas aos dois e a convicção de estarmos a fazer alguma coisa de útil com elas. – Wade fita-me muito sério e passa as mãos suavemente pelo fecho cromado da porta, ao seu lado. Quer que eu saiba que descobriu algo importante já tarde na vida, algo digno de se saber, quando são tão poucas as pessoas que conseguem descobrir alguma coisa só pelo facto de estarem vivas. Ele gostaria de legar alguma sabedoria (se útil ou não, logo se verá), embora eu não consiga deixar de pensar em como reagiria a mulher do amigo se alguma vez passasse pela portagem da Saída 9 no momento certo. Poderia perfeitamente acontecer. – Quer casar outra vez, Frank?
– Não sei.
– Boa resposta. Eu pensava que não. Viver sozinho não me parecia assim tão mau depois de ter estado casado vinte e nove anos. O que acha?
– Tem as suas vantagens, Wade. Conheceu a Lynette aqui?
– Conheci-a num concerto de rock, e não me pergunte o que eu estava lá a fazer porque não saberia responder. Foi em Atlantic City, há três anos. Não sou um tipo sociável, e quem não é sociável pode acabar em lugares bem estranhos só para provar a si mesmo como é independente.
– Eu geralmente acabo por ficar em casa a ler, embora por vezes também me meta no carro e ande às voltas o dia inteiro. É mais ou menos parecido com o que está a dizer.
– Mas não é tão bom, a mim não me parece.
– Nem sempre é, não.
– Bem, seja como for. Aqui estava a Lynette. Ela é mais ou menos da sua idade, Frank. Ficou viúva, divorciou-se e foi a este concerto com um espanhol que devia ter cerca de vinte e cinco anos. E ele tinha-se simplesmente levantado e desaparecido. Não lhe vou contar todos os pormenores escabrosos. Mas acabámos no Howard Johnson, na via rápida, a tomarmos café e a contarmos verdades um ao outro até às quatro da manhã. Acontece que ambos acalentávamos o desejo de fazermos alguma coisa de útil e positivo com o tempo que nos restava e nenhum de nós era grande perfecionista, querendo eu dizer com isto que ambos sabíamos que não éramos propriamente perfeitos um para o outro – diz Wade, cruzando os braços, carrancudo.
– Quanto tempo passou até casarem, Wade? Aposto que não muito.
Olho para Wade com um sorriso malicioso, porque a cara dele está a precisar de um grande sorriso malicioso ao pensar naquela noite estrelada na enevoada via rápida de Atlantic City, e estou contente por poder dar-lhe essa ajuda. Deve ter-lhes parecido que tinham ido parar juntos a uma maldita praia deserta e que tinham uma sorte dos diabos por ali estarem. Uma história nada má e digna de uma centena de sorrisos.
– Não muito, Frank – diz Wade com orgulho, com o sorriso que se impõe para evocar novamente o espírito desse momento encantado. – O divórcio foi decretado e não vimos razão para esperar. Afinal, ela é católica e um divórcio já era suficientemente mau. E ela não queria que nos juntássemos, o que para mim estaria ótimo. Assim, no espaço de apenas um mês, casámos e arranjámos esta casa! Céus!
Wade sorri e abana a cabeça ante a extraordinária singularidade de uma vida não planeada.
– O Wade acertou em cheio, diria eu.
– Bem, a Lynette e eu somos o oposto um do outro. Ela sabe muito bem o que quer e eu bastante menos, pelo menos agora. Ela leva o catolicismo muito a sério, mais ainda desde que o filho foi morto. E eu dou-lhe toda a liberdade. Tornei-me católico só por causa dela, mas não somos fanáticos, Frank. Diria que somos iguais na única coisa que conta. Não somos ricos, e não estou seguro de que realmente nos amemos ou sequer precisemos disso, mas queremos ser uma força do bem neste nosso pequeno mundo e dar conta do recado no tempo que nos resta. – Wade olha para mim, já nos degraus, como se fosse julgá-lo e ele acalentasse a esperança de eu descer e lhe dar uma grande palmada no ombro como a um colega de equipa. Tenho a certeza de que me contou tudo isto (um assunto que poderíamos ter aprofundado no Red Lobster, onde eu poderia ter feito as despesas da conversa) porque me quer dar uma ideia correta de como é esta família, caso eu esteja a considerar entrar nela. E, na verdade, o mundo dos Arcenaults é muito diferente do que eu esperava. Só que para melhor. Wade não poderia ter encontrado maneira mais simpática e mais afável de se apresentar, a si mesmo e à sua vida regrada. Haverá melhor projeto de futuro do que vir aqui com regularidade? Selar um compromisso com Sherri-Lyn Woods (fins de semana alternados e feriados). Eu poderia até acabar por ficar amigo de Cade e escrever-lhe uma hábil carta de recomendação para uma boa escola profissional; levá-lo a interessar-se por técnicas de marketing em vez da polícia e das armas. Poderia comprar o meu próprio barco para ir à caça das baleias e fundeá-lo nas traseiras da casa. Podia vir a ter uma fabulosa vidinha banal, lá isso podia.
Há, no entanto, alguma coisa que me está a deixar nervoso e constrangido. Como ainda tenho as mãos enregeladas e rígidas, meto-as nos bolsos das calças e fito Wade com um olhar tão inexpressivo como a porta de um túmulo. Retrair-me precisamente neste momento é uma falha fundamental da minha personalidade.
– Frank – diz Wade, agora atento e de olhar sagaz. – Quero a sua opinião sobre o seguinte: acha que faço um trabalho menor? Somente cobrar portagens, ter uma família, trabalhar num carro velho como este, ir para o mar com o meu filho pescar solha? Talvez amar a minha mulher?
Mesmo pondo de lado toda e qualquer a relutância, não consigo responder-lhe com a celeridade necessária.
– Não – quase grito. – Nunca. Acho que é fantástico. O Wade é um danado de um filho da mãe cheio de sorte. (Fico chocado ao ouvir-me chamar filho da mãe ao Wade.)
– Mas há mais aventura, acho eu, naquilo que o Frank faz. De onde estou não vejo muito do que vai pelo mundo, mas já vi bastante.
– As nossas vidas são provavelmente muito mais parecidas do que imagina. Se me permite dizê-lo, a sua talvez seja até melhor.
– Já foi tanto o que dei a um carro velho como este, se é que me entende. – Wade sorri todo orgulhoso, feliz por ter a minha aprovação. – Pequenos retoques que não sei explicar por palavras. Às vezes venho cá para baixo às quatro da manhã e fico por aqui à volta dele até ser dia. E quando estou de regresso a casa é para aqui que penso vir. E digo-lhe uma coisa, rapaz: Sempre que chego lá acima, vou feliz que nem um passarinho, e deixo os meus demónios todos aqui no seu covil.
– Isso é formidável, Wade!
– E é tudo muito fácil de aprender, rapaz. Cabos e parafusos. Podia mostrar-lhe tudo, embora não lhe saiba explicar. Mas o Frank seria capaz de o fazer – diz ele, olhando para mim e abanando a cabeça, maravilhado.
Wade não é homem para revelações totais, mesmo que pareça. E neste caso eu sei exatamente o que ele descobriu, e o valor e o prazer que isso pode representar. No entanto, e por estranho que pareça, ao olhar para Wade e ao vê-lo a olhar para mim, a imagem que me vem à cabeça é a dele a percorrer sozinho um longo corredor de hospital, com uma mala na mão, a parar junto a uma porta sem número e a espreitar para um quarto vazio e bem arrumado, com a cama aberta, o sol a entrar pela janela e tudo lá dentro impecavelmente limpo. Exames, é para isso que ele aqui está. Muitos, muitos. E, depois de entrar no quarto, nunca mais voltará a ser o mesmo. Este é o princípio do fim e, para ser franco, assusta-me brutalmente e provoca-me um terrível calafrio. Neste instante a minha vontade é abraçá-lo, dizer-lhe que se mantenha longe dos hospitais, que enfrente a morte em casa. Mas não posso. Ele ficaria com uma ideia errada a meu respeito e isso iria destruir a nossa relação, que começou tão bem.
Lá em cima, por entre a azáfama febril, alguém começou a tocar no órgão elétrico a introdução para guitarra de What’d I Say, os quatro acordes menores evocativos da expectativa que rodeia o sexo antes de Ray começar a entoar o seu lamento. Os sons atravessam as vigas num sussurro e, inevitavelmente, geram na cave uma nova atmosfera – de desespero.
Wade olha para o teto, tão feliz como qualquer homem tem o direito de estar. É como se soubesse que isto iria acontecer e o tome como um sinal de que a sua casa está a funcionar na perfeição e pronta para encontrar nela de novo o seu lugar. É um homem completamente desprovido de subtextos, um literalista de primeiríssima ordem.
– Frank, acho que já vi a sua cara antes. É-me familiar. Não acha estranho?
– Deve ver uma data de caras, Wade, não é verdade?
– De toda a população de New Jersey, pelo menos uma vez – diz Wade com um sorriso rasgado típico de portageiro. – Mas não me lembro de muitas delas. No entanto, lembro-me da sua cara. Foi o que pensei mal o vi.
Não suporto a ideia de dizer a Wade que ele ficou com o meu dólar e cinco cêntimos quatrocentas vezes, me sorriu e desejou «um dia excelente» enquanto eu seguia rumo ao trânsito caótico da Route 1 – direção sul. Seria uma resposta banal de mais para o seu tipo especial de pergunta e para este momento ponderoso. Wade está em busca de mistério e não sou eu que lho vou negar. Seria o mesmo que eu descobrir que Mr. Smallwood de Detroit era afinal um antigo mecânico da estação de serviço do campo de golfe Frenchy Montreux que me tinha mudado o óleo e lubrificado o motor, sem que eu reparasse que era ele, mas depois notasse e lho dissesse. Mistério, primeiro adensado, depois estragado pelos factos. Prefiro ficar do lado dos bons pressentimentos, fazer parte do inexplicável, ser um inesperado indicador do que quer que venha a seguir. A discrição, por estranho que pareça, é a melhor resposta para um homem de reações acauteladas.
A porta da cozinha abre-se atrás de mim e, ao virar-me, vejo a cara engraçada de chefe de claque da Lynette a espreitar-nos lá de cima com ar divertido – um alívio palpável, embora eu percebesse pela sua expressão que toda esta conversa aqui em baixo foi planeada de avanço e que ela tem estado atenta ao relógio da cozinha, à espera da hora previamente marcada para nos chamar para irmos para cima. Sou o feliz contemplado (mas não a vítima) de um esquema montado por outras pessoas, o que nunca é mau. De facto, provoca até um certo sentimento de conforto, mesmo que não sirva para nada.
Os acordes melancólicos e religiosos na voz de Ray Charles soam agora mais alto. É obra de Vicki.
– Vocês, os homens, se quiserem, podem passar o resto do dia a falar de carros velhos, mas há pessoas prontas para se sentarem à mesa.
Os olhos de Lynette cintilam com impaciente bom humor, pois sabe que aqui em baixo está tudo a correr bem. E acertou. Se ainda não somos bons amigos, depressa o seremos.
– Que tal irmos comer um pedaço de carneiro morto, Frank? – sugere Wade a rir, esfregando a barriga. – Agnus Dei – grita a seguir lá para cima, para Lynette, entre gargalhadas.
– Não é nada disso – replica Lynette, revirando os olhos ao estilo (constato agora) dos Arcenaults. – O que irá ele dizer a seguir, Frank? Agnus Dei é o que tu és, Wade, não o que vamos comer. Oh, céus!
– E está de certeza duro que se farta, Frank, já estou a avisar. Aah.
E saímos das sombras da cave – com todos os ajudantes já no convés – para a cozinha quente e ensolarada – a tripulação Arcenault estava agora completa e pronta para a comezaina ritual deste domingo.
O jantar implica um cerimonial mais completo do que eu teria imaginado. Lynette transformou a casa de jantar numa pequena caixa de joias aquecida, com candelabro de cristal, as melhores pratas e a mesa posta com toalha e guardanapos de linho. Mal nos sentamos, manda-nos dar as mãos ao redor da mesa oval, e eu, a contragosto, acabo por ficar a agarrar as mãos de Wade e de Cade (que não ofereceu a mínima resistência), enquanto Vicki está de mãos dadas com Wade e Lynette. E não posso deixar de pensar – de olhos fechados mas a espreitar em silêncio para baixo, para a bem conhecida bola letal de fluídas chamas escarlates atrás da qual aguarda o infinito abismo das almas negras onde nada a não ser as mãos pesadas de Wade e de Cade me podem impedir de tombar – na estranha sorte de ser acolhido de braços abertos por estas pessoas como um familiar chegado de Peoria. Não posso, no entanto, deixar de imaginar onde estarão os meus próprios filhos neste momento, e onde estará a X, e de acalentar a esperança de que não estejam a partilhar, sem a presença do pai, um brunch de Páscoa, de preço fixo, num qualquer hotel vazio de Asbury Park, à beira-mar, com Barksdale, chegado traiçoeiramente de Memphis para ocupar o meu lugar. Sem essa notícia, poderia ter passado um dia bem feliz, embora não possamos nunca evitar aquilo que por direito nos cabe. De facto, já estava a pedi-las, e tenho até muita sorte por não estar a passar o dia num qualquer centro comercial, à procura de um almoço de Páscoa para levar para casa, como o pobre Walter Luckett estará sem dúvida a fazer, perdido na vastidão inóspita da sua existência.
A oração de Lynette é carinhosamente breve e num tom alegremente ecuménico – para me agradar, penso eu –, tendo em conta o dia agitado e o mundo complicado em que vivemos, mas deixando de lado o Vaticano II e quaisquer referências religiosas que inquestionavelmente a assaltam – nos aspetos que contam –, terminando com uma menção ao filho, Beany, que jaz numa campa de soldado em Fort Dix, mas continua presente na mente de todos, incluindo na minha. (As chamas dissipam-se por fim para revelarem a cara afilada de Beany a olhar-me de esguelha do céu do oblívio.)
Wade e Cade estão de blazer e gravatas garridas às flores, o que lhes dá um ar boémio. Vicki troca os olhos quando lhe sorrio e tento mostrar-me à vontade com a família dela. Quando atacamos o cordeiro, o tema de conversa é o tempo, com uma passagem fugaz pela política estadual; fala-se depois das hipóteses de Cade ser chamado em breve para a academia da polícia e especula-se sobre se lhe entregarão logo o uniforme na primeira manhã, ou se ainda terá de prestar mais provas, o que Cade parece encarar como uma cruel possibilidade, e orienta em seguida a discussão para os efeitos do limite de velocidade de 90 km/hora, com o qual toda a gente concorda menos ele. Segue-se o trabalho de Lynette no centro de crise da Igreja Católica, o trabalho de Vicki no hospital, que toda a gente concorda ser um dos serviços mais difíceis e gratificantes que se podem prestar à humanidade – implicitamente, mais ainda do que o de Lynette. Ninguém menciona o nosso fim de semana na distante Capital do Automóvel, embora eu tenha a sensação de que Lynette está a tentar meter a palavra «Detroit» em praticamente todas as frases, para que todos fiquemos a saber que ela não nasceu ontem e que só não se mete no assunto porque Vicki, como todas as outras jovens divorciadas, sabe tomar conta de si mesma.
Cade abre um sorriso cativante e pergunta-me de quem é que eu gosto na American League East de basebol, e respondo o Boston (a equipa de que gosto menos). Claro que eu torço incondicionalmente pelo Detroit, e sei até que algumas transferências cruciais e um novo treinador de lançamentos os tornarão praticamente imbatíveis a partir de setembro.
– Boston. Hum… – diz Cade, olhando para o prato com um esgar de riso. – Nunca os vejo.
– Espere e verá – digo-lhe eu com absoluta convicção. – Há cento e sessenta e dois jogos. Eles podiam comprar um jogador-chave já com o prazo a esgotar-se e levar a melhor.
– Só se fossem buscar o Ty Cobb – diz Cade, rindo às gargalhadas, porque o prazo do grande Ty Cobb já se esgotara havia muito, olhando para o pai com ar submisso e a boca cheia de pão.
Rio a bom rir enquanto Vicki troca os olhos outra vez, pois sabe que conduzi Cade até àquela piada como um burro amestrado.
Lynette sorri, atenta, juntando a comida que tem no seu prato – um pedaço de cordeiro, ervilhas e molho de hortelã. É uma ouvinte compreensiva, mas também direta nas perguntas, alguém que não me largaria facilmente se lhe telefonasse para a linha de crise com uma crise idiota. Parece que não lhe saio da cabeça.
– Fez o serviço militar, Frank? – pergunta ela, afável.
– Nos Fuzileiros, mas adoeci e fui desmobilizado.
O semblante de Lynette espelha verdadeira preocupação.
– O que aconteceu?
– Tive uma síndrome sanguínea que levou um médico a pensar que eu estava a morrer de cancro. Não estava, mas durante algum tempo ninguém sabia.
– Então teve muita sorte, não teve?
Lynette está a pensar outra vez no pobre do Beany, morto e frio no setor católico do cemitério de Fort Dix. A vida nunca é justa.
– Deram-me seis meses de vida; por isso, acho que sim. Tive, sim, minha senhora.
– Não tem de me tratar por senhora, Frank – diz Lynette, olhando em redor a pestanejar, sorrindo com ar sonhador para o lado oposto da mesa, para Wade, que lhe devolve o sorriso ao melhor estilo cavalheiresco do Sul tradicional. – O meu primeiro marido esteve no Vietname, na guarda costeira – diz Lynette. – Poucos sabiam sequer que a guarda lá estava. Mas tenho cartas com o carimbo do Delta do Mekong e de Saigão.
– Onde é que as escondeu? – pergunta Vicki, olhando para todos nós com um sorriso afetado.
– O que lá vai lá vai, minha querida. Deitei-as fora quando encontrei aquele homem que ali está – Lynette meneia a cabeça e sorri para Wade. – Não precisamos de fingir, pois não? Aqui já toda a gente foi casada exceto o Cade.
Cade pisca os olhos escuros como um touro desnorteado.
– Esses tipos passaram por situações muito duras. O Stan, o ex-marido da Lynette, disse-me que matou provavelmente duzentas pessoas sem sequer as ver, limitando-se a avançar pela selva dentro aos tiros, dia após dia, noite após noite – diz Wade, abanando a cabeça.
– É realmente qualquer coisa – digo eu.
– Se é… – resmunga Cade, sarcástico.
– Tem pena de não ter entrado realmente em ação? – pergunta Lynette, virando-se para mim.
– Ele já entra em ação que chegue – interpõe Vicki, com mais um sorriso afetado. – Esse é o meu departamento.
Lynette olha-a com um sorriso sombrio.
– Sê amável, minha querida. Pelo menos tenta.
– Eu sou perfeita – diz Vicki. – Não se vê que sou?
– Eu comia mais um bocadinho de cordeiro – digo eu. – Cade, quer que lho passe?
Cade lança-me um olhar sub-reptício quando tiro uma fatia de carne escura de cordeiro e lhe passo a travessa. Não sei porquê, mas não me ocorre nenhum tema desportivo interessante, por mais que a minha cabeça se esforce que nem um computador. Só consigo pensar em factos. Estatísticas de lançamento. Datas. Capacidade dos estádios. O palmarés das equipas que disputaram a final da Super Bowl na última temporada (se bem que não me lembre realmente de quais). Por vezes o desporto não ajuda.
– Frank, estou interessado em ouvir o que tem a dizer sobre isto – diz Wade, engolindo um grande pedaço de cordeiro. – Na sua opinião de jornalista, diria que estamos neste momento, e neste país, numa situação de pré ou de pós-guerra? – E abana a cabeça num gesto do mais sincero desalento. – Acho que por vezes desanimo com certas coisas. Quem me dera que não desanimasse.
– Wade, para dizer a verdade, não tenho prestado muita atenção à política nos últimos anos. E a minha opinião nunca pareceu valer muito.
– Espero que haja uma guerra mundial antes de eu ser velho de mais para entrar nela. Isso é tudo o que eu sei – diz Cade.
– Isso era o que o Beany pensava, Cade – diz Lynette, franzindo a testa para Cade.
– Bem – diz ele, falando para o prato, após um momento de aturdido silêncio.
– Agora, falando a sério, Frank – diz Wade –, como é que conseguiu manter-se à margem dos acontecimentos em grande escala, essa é a minha pergunta.
Wade não está a criticar-me. É apenas a sua profunda sinceridade a manifestar-se.
– Eu escrevo sobre desporto, Wade. Se puder escrever uma peça para a revista sobre, por exemplo, o que está a acontecer ao espírito de equipa aqui na América, e fizer um bom trabalho, sinto-me muito bem. Muito patriótico, como se não me estivesse a pôr à margem dos acontecimentos.
– Faz sentido. – Wade acena em concordância, pensativo, ainda apoiado nos cotovelos e de mãos entrelaçadas por cima do prato. – Aceito a explicação.
– E o que é que está a acontecer ao espírito de equipa? – pergunta Lynette, olhando-nos a todos um por um. – Nem tenho bem a certeza de saber o que isso é.
– É muito complicado – diz Wade. – Não lhe parece, Frank?
– Se falar com os atletas e com os treinadores como eu falo, é tudo o que se ouve dizer, especialmente aos profissionais. Do basebol, do futebol americano. A questão é que todos têm um papel a representar, e, se alguém não for capaz de o fazer corretamente, então não se encaixa nos planos da equipa.
– A mim parece-me bem, Frank – diz Lynette.
– Isso é tudo conversa da treta, é o que é – diz Cade, olhando carrancudo para as mãos, pousadas em cima da mesa. – Todos uma cambada de bestas. Não sabem reconhecer uma equipa nem que a vaca tussa. Todos umas primas-donas. E ainda por cima metade deles são larilas.
– Isso é que é ser inteligente, Cade – diz Vicki. – Muito obrigada por tão brilhante comentário. Porque não nos falas mais sobre as tuas filosofias?
– Isso não foi lá muito bonito, Cade – diz Lynette. – O Frank estava a expor as suas ideias.
– Pfff – faz Cade, arregalando os olhos.
– Essa é alguma língua nova que aprendeste a trabalhar nos barcos? – pergunta Vicki.
– Agora a sério, Frank – diz Wade, ainda apoiado nos cotovelos como um jurista, abordando um assunto que dá pano para mangas, disposto a cortar a direito –, penso que Lynette tocou num ponto muito pertinente. (Esquece por ora a opinião de Cade.) Quero eu dizer, qual é o problema de desenvolver o seu projeto sobre o espírito de equipa? Quando eu trabalhava nas plataformas petrolíferas, era exatamente isso que fazíamos. E digo mais, funcionava.
– Bem, talvez esse pormenor seja muito pouco importante. Só que, para mim, a maneira como estes tipos usam o espírito de equipa tem demasiadas semelhanças com uma engrenagem, Wade. Demasiadas semelhanças com um daqueles poços de petróleo. Deixa de fora o papel do jogador… jogar ou não jogar; jogar bem ou não tão bem. Dar tudo o que se tem. O que todos estes tipos querem dizer com «espírito de equipa» não passa dos dentes minúsculos das rodas dentadas da engrenagem, e não leva em conta que todos os dias um tipo tem de tomar a decisão de fazer o seu trabalho e que os homens não são máquinas. Não me parece que seja um ponto de vista disparatado, Wade, apenas uma ideia à século XIX… os dínamos e essa treta toda… e a mim não me agrada muito.
– Mas no fim o resultado é o mesmo, não é? – questiona Wade muito sério. – A nossa equipa vence – afirma Wade, olhando para mim e piscando os olhos com força.
– Se todos decidirem que é isso que querem, assim será. Se conseguirem manter um bom desempenho por tempo suficiente. E é precisamente este se que me preocupa, Wade. E a parte da decisão também, acho eu. Tomamos demasiadas coisas como certas. E se, por exemplo, eu não quiser assim tanto vencer, ou não puder?
– Então não deve fazer parte da equipa. – Wade parece estar deveras baralhado (e não posso recriminá-lo). – Será que estamos de acordo e eu ainda não percebi, Frank?
– Se me perguntarem, o que eu acho é que é uma data de pretos com salários brutais e todos dopados – diz Cade. – Acho que, se toda a gente pudesse andar armada, tudo correria muito melhor.
– Ai, meu Deus – exclama Vicki, batendo com força na mesa com o guardanapo e pondo-se a olhar em frente, na direção da sala.
– E quem é esse? – grasna Cade.
– Podes sair da mesa, Cade Arcenault – diz Lynette com rispidez e extrema determinação. – Podes ir-te embora desta casa e ir viver com os outros trogloditas. Diz-lhe, Wade, diz ao Cade que se pode levantar.
– Cade – brame Wade, fulminando Cade com um olhar inequívoco de indizível violência. – Fecha a matraca, pá.
Mas Cade não consegue eliminar o sorriso escarninho e refastela-se na cadeira como um gangster, cruzando os braços enormes e cerrando os punhos, furioso. Wade cerra também os punhos e bate-os um no outro devagar diante da cara de Cade, enquanto os seus olhos se voltam a focar num ponto da toalha branca de linho a cinco centímetros de distância. Ainda está a cogitar nas equipas, no que faz e não faz uma equipa. Eu poderia dissertar sobre o assunto até serem horas de voltar para casa, mas tenho de admitir que toda esta conversa está a começar a deixar-me vagamente incomodado.
– Então o que me está a dizer, Frank… e eu até posso estar a fazer uma tremenda confusão… mas parece-me que está a dizer que esta ideia… – Wade arqueia as sobrancelhas e olha-me com um sorriso beatífico – não leva em consideração o elemento humano que há em nós. Estou certo?
– Bem dito, Wade. – E aceno em total concordância. Wade pôs agora a questão em termos que lhe agradam (usando, por sinal, um cliché desportivo bem versátil). E é de bom grado que alinho com ele, como um bom filho. – Uma equipa é realmente algo de intrigante para mim, Wade. É um acontecimento, não uma coisa. É tempo, mas não um relógio. Não podemos reduzi-la a um conjunto de papéis e à mera mecânica.
Wade concorda, acenando com o queixo apoiado entre os polegares e os indicadores.
– Pronto, pronto, acho que já compreendi.
– A maneira como os tipos falam disso agora, Wade, deixa de fora o conceito de herói, uma ideia da qual eu ainda não estou preparado para abdicar. Ty Cobb não teria sido homem para representar um papel – digo eu, lançando a Cade um olhar esperançoso, mas os olhos dele estão sonolentos e carregados de desprezo. O meu joelho começa a tremelicar debaixo da mesa.
– Eu também não sou – diz Lynette, de olho alerta.
– Também deixa de fora o porquê de os melhores jogadores, como um Ty Cobb ou um Babe Ruth, não jogarem por vezes tão bem como deveriam. E de as melhores equipas perderem, e de equipas que não deveriam ganhar acabarem por vencer. Mas isso é jogo de equipa de um outro tipo, penso eu, Wade. Não é terem de representar o seu papel e serem máquinas como muitos destes tipos lhe dirão.
– Penso que compreendi, Wade – diz Lynette, meneando a cabeça. – Ele está a dizer que os atletas e toda essa gente do desporto não são lá muito espertos.
– Minha querida, acho que dar conta do recado é o que importa no fim – diz Wade já desanimado. – Umas vezes é o suficiente. Outras não será. – E contempla a minha ideia, de lábios comprimidos, como se ela fosse uma jarra de cristal suspensa no éter rarefeito da sua mente.
E eu fico a olhar para o meu próprio prato, com a segunda dose em que não toquei nem irei tocar, a olhar para o cordeiro pálido, gelado e duro como uma lasca de madeira, e para as ervilhas e os brócolos incólumes que o acompanham, agora tão frios como o Natal.
– Quando eu puder defender esse ponto de vista numa das colunas de opinião «Pensam os Nossos Redatores», que são lidas por meio milhão de pessoas, então sim, Wade, acho que abordarei a questão no seu todo. Tal como o Wade disse: acontecimentos em grande escala. E depois não sei realmente o que mais possa fazer.
– Aquilo em que eu acredito é que isso é tudo o que a vida tem para oferecer – diz Lynette, embora esteja a pensar noutra coisa, e os seus olhos verdes brilhantes percorram a mesa para ver se há alguém que ainda não tenha terminado.
Na cozinha, uma cafeteira elétrica é ligada com um clique, depois esguicha e por fim suspira como um pulmão de ferro, e eu sinto o odor inesperado de Cade, que cheira a lubrificante e a fúria pós-adolescente. Não se consegue conter. A sua curta vida – de Dallas para Barnegat Pines – não tem sido particularmente ditosa até agora, e ele sabe-o, embora, e até certo ponto lamento-o, não haja nada neste verdejante mundo de Deus que eu possa fazer para lhe tornar a vida melhor. A minha futura carta de recomendação e as futuras pescarias, só os três, não ajudam a quebrar o gelo entre nós. Talvez um dia ele me mande parar por excesso de velocidade e possamos então ter a conversa que agora não podemos ter, olhar em uníssono para questões cruciais, como o patriotismo e a classificação final na American League East, questões que esta tarde nos lançariam num combate de boxe num segundo. A vida irá correr melhor ao Cade a partir do momento em que envergar a farda e se sentir confortável no seu carro preto e branco. Nasceu para fazer cumprir a lei e é possível que até tenha bom coração. Se há coisas melhores no mundo para se ser, também as há piores. Muito piores.
Vicki está de olhos pousados no prato ainda cheio, mas ergue-os e olha-me de relance com um desalentado esgar de reprovação. Como eu suspeitava, há promessas de tempestade no horizonte. Falei de mais para lhe agradar e, pior do que isso, disse o que não devia. E, pior ainda, falei pelos cotovelos como um tio velho e bêbedo, e num tom que ela nunca ouviu, como um Norman Vincent Peale secular, no tom que eu uso nos debates e que até a mim me faz por vezes impressão quando oiço a gravação. A minha intervenção pode ter sido interpretada como uma traição, uma desvalorização da intimidade, o destroçar de uma ilusão, o que transformou a dúvida em aversão. As nossas próprias discussões são sempre pluritemáticas e irónicas, o que nos permite saltar alegremente de «determinadas coisas» para «determinadas coisas» – aconchego e intimidade, sexo e arrebatamento são nossos num vibrar de coração. Mas agora posso ter-me afastado do que ela pensa saber, e que a faz sentir-se segura, para me tornar numa personagem estilo Great Gildersleeve que ela não conhece, mas de quem instintivamente desconfia. Não há maior traição do que a traição vocal, isso posso garantir. As mulheres odeiam-na. Por vezes a X ouvia-me dizer algo tão inocente como «Wis-sconsin» quando eu por norma dizia «Wisconsin» – e virava-se para mim desconfiada, com olhos de falcão, e punha-se a andar pela casa de um lado para o outro mal-humorada. «Disseste qualquer coisa de uma maneira que nem parecias tu», dizia ela por fim. «Não me lembro do que foi, mas não foi como costumas dizer.» Claro que eu ficava sem saber o que responder, além de que, se o tinha dito, só podia ser eu a falar.
No entanto, eu já devia saber que é má ideia passar festas de família em casa de outra qualquer família além da nossa. Festas com a presença de estranhos nunca correm bem, exceto em remotas estações de comboio, nos chalés da estância de esqui de Vermont ou nas Bahamas.
– Quem toma café? – pergunta Lynette alegremente. – Tenho descafeinado – acrescenta, enquanto levanta a mesa com desenvoltura.
– Knicks – murmura Cade, levantando-se e afastando-se pesadamente.
– Nicles para ti também, Cade – diz Lynette, empurrando a porta da cozinha com os braços carregados e, virando-se para trás de sobrolho carregado e olhando de relance para a cara quadrada de Wade, sentado com ar satisfeito e distraído, de mãos espalmadas sobre a toalha, a pensar no espírito de equipa e nos acontecimentos em grande escala, desbobina meia dúzia de palavras para deixar bem claro o que pensa desta cena de Cade Arcenault, que lhe vai sair cara, desaparecendo em seguida pela porta da cozinha, por onde entra um novo um aroma forte a café.
Wade está galvanizado e, olhando para Vicki e para mim com um sorriso postiço, levanta-se do seu lugar na cabeceira da mesa, parecendo pequeno e desconfortável com aquele blazer largo e aquela gravata tão feia, sem dúvida um daqueles presentes de brincadeira da família ou dos colegas da portagem, que ele põe como símbolo de boa disposição, boa disposição essa que agora o abandonou temporariamente.
– Acho que tenho uns assuntos a tratar – diz, desanimado.
– Agora não vás desancar o rapaz – murmura Vicki em tom de ameaça, de olhos semicerrados e ferozes. – A vida para ele também não é um mar de rosas.
Wade olha para mim e sorri com desalento, e eu imagino-o mais uma vez a espreitar para um quarto de hospital vazio de onde não mais regressará.
– O Cade está ótimo, mana – diz ele com um sorriso, e vai procurar Cade, já enfiado no seu quarto acanhado ao fundo do corredor de um outro andar.
– Está tudo bem – digo eu, agora num tom calmo e sóbrio que visa pôr-me de novo no caminho da intimidade. – Só que entraram demasiadas pessoas novas na vida do Cade. Eu também não lidaria bem com isso – e sorrio, meneando a cabeça, categórico.
Vicki arqueia uma sobrancelha – eu sou um homem estranho com opiniões descabidas sobre a sua vida familiar, algo de que ela precisa tanto como de um novo umbigo. Está a rodar uma colher entre os dedos vezes sem conta, como um rosário. A gola à barco do vestido de malha cor-de-rosa descaiu um tudo-nada para um lado expondo uma alça de soutien imaculadamente branca. É inspirador, e como eu desejo que fosse este o assunto importante que tínhamos em mãos em vez de coisas soturnamente sérias – embora a culpa seja minha. Sic transit gloria mundi. Quando é que isto não é verdade?
– O teu pai é um tipo formidável – afirmo, com a voz a ficar mais branda a cada palavra dita. Devia estar calado, passar a imagem de um tipo inteiramente diferente, fingir um antagonismo oculto para contrabalançar o dela. Mas, simplesmente, não sou capaz. – Lembra-me um grande atleta. Tenho a certeza de que jamais terá um esgotamento nervoso.
Na cozinha ouve-se Lynette a mexer em pratos de sobremesa e chávenas de café. Está atenta ao que dizemos e Vicki sabe-o. Tudo o que agora for dito será usado mais tarde.
– O meu pai e o Cade deviam estar a viver aqui só os dois – diz Vicki com desdém. – Ele não devia estar preso a esta mulher. Deviam ser ambos dois solteirões a divertirem-se à grande.
– Pois ele a mim parece-me muito feliz.
– Não comeces a dar-me lições sobre o meu próprio pai, por favor. Conheço-te a ti bastante bem, não conheço? Devo conhecê-lo a ele ainda melhor! – A animosidade flameja-lhe nos olhos. – Que chorrilho de disparates era aquele que estavas a desbobinar? Patriotismo. Espírito de equipa. Parecias um pregador. Deixaste-me de rastos.
– São coisas em que acredito. E, se queres saber, há mais pessoas que pensam como eu.
– Bem, então devias acreditar nelas, mas ficar calado. Eu não aguento isto.
Neste momento, o Elvis Presley aparece à porta da sala e põe-se a olhar para mim. Ouviu alguma coisa de que não gostou e veio disposto a descobrir se sou eu o responsável.
– Eu nem sequer gosto dos homens – diz Vicki, fixando a colher com um olhar beligerante. – Vocês não são capazes de estar felizes nem dez minutos. Tu e o Everett. Comportam-se como cães atormentados. Mais, viram tudo contra vocês.
– Eu acho que tu é que és infeliz.
– Ai sim? Mas, no fundo, tu é que és afinal, não és? Odeias tudo.
– Eu sou até bastante feliz. – Abro um sorriso rasgado, apesar de na verdade estar desanimado. – Tu fazes-me feliz. Isso eu sei. Podes acreditar.
– Ai ai, lá vamos nós. Não te devia ter contado nada sobre a tua ex e aquele… sei lá como ele se chama. A partir daí passaste a ser um Tio Sam Sisudo.
– Não sou nada um Tio Sam Sisudo. E não quero saber disso para nada.
– Podes continuar. Devias ter visto a tua cara quando te contei.
– Mas olha agora para ela – digo-lhe eu, com um sorriso de orelha a orelha, embora seja impossível argumentar a favor da minha boa disposição sem a aniquilar por completo e ficar danado. O Elvis Presley já viu que chegue e retira-se para trás do sofá. – Porque é que simplesmente não nos casamos? Não é uma boa ideia?
– Porque não te amo o suficiente, é por isso – diz Vicki, desviando os olhos. Ouvem-se mais pratos a bater na cozinha e chávenas a pousar, ruidosas, nos pires. Ao longe, num quarto que não conheço, toca suavemente um telefone.
– O telefone está a tocar – oiço Lynette dizer, sem se dirigir a ninguém em particular, e o telefona para de tocar.
– Amas-me, sim – digo eu, irradiando felicidade. – Isso não passa de um monte de disparates. Vou ajoelhar-me a teus pés e já. – Ajoelho-me e dou a volta à mesa de joelhos até onde ela está sentada, com as pernas majestosamente traçadas e enfiadas em collants bem esticados. – Aqui está um homem de joelhos a pedir-te e a implorar-te que cases com ele. Ser-te-á fiel, levará o saco do lixo para o contentor, lavará a loiça e cozinhará, ou pelo menos pagará a alguém que o faça. Como podes recusar?
– Não vai ser difícil – diz ela entre risadinhas, atrapalhada ainda por outra razão.
– Frank?
O meu nome. Inesperado. Vindo de algures de um recanto inexplorado daquela casa. É a voz de Wade. Provavelmente ele e Cade querem-me lá em cima para ver o final do jogo dos Knicks, mais uma vez com tudo a ser decidido nos últimos vinte segundos. Mas nem uma manada de cavalos bravos seria capaz de me tirar daqui. O momento é sério.
– Sim, Wade – grito, ainda de joelhos e em pose suplicante diante da sua majestosa filha. Mais uma dose de súplicas ardentes e desataremos os dois a rir, e ela será minha. E porque não haveria de ser? O meu sempre não precisa de ser um eternamente. Estou pronto a dar o mergulho, tão nervoso como um mergulhador prestes a saltar do alto de um penhasco. E se mais adiante as coisas correrem mal, podemos sempre escalar o penhasco outra vez. A vida é longa.
– O telefone é para si – grita Wade. – Pode atender cá em cima no nosso quarto, meu e da Lynette.
A voz de Wade soa cautelosa e preocupada, um som consternado vindo do cimo das escadas. Nisto, uma porta fecha-se suavemente.
– Quem é? – pergunta Vicki, em pulgas, puxando a saia cor-de-rosa como se tivéssemos sido apanhados na marmelada. A alça do soutien está agora completamente exposta.
– Não sei – digo eu, embora tolhido pelo medo terrível de me ter esquecido de alguma coisa importante e de estar prestes a ser confrontado com um tremendo revés. Um artigo especial que deveria ter escrito, mas de que me esqueci completamente, e toda a gente em Nova Iorque numa correria desenfreada, em estado de emergência, a tentar encontrar-me. Ou talvez um compromisso de Páscoa que assumi há meses e me passou por completo, embora não conheça ninguém suficientemente bem para ter sido convidado. Não consigo adivinhar quem possa ser. Deposito um beijo rápido no joelho de Vicki com a promessa de voltar num instante, ponho-me em pé e vou investigar. – Não saias daí – digo-lhe ainda, e a porta da cozinha está a abrir-se quando saio da casa de jantar.
Lá em cima, um pequeno corredor alcatifado e às escuras conduz a uma casa de banho, ao fundo, onde a luz está acesa. Há duas portas fechadas de um dos lados, mas do outro está uma aberta por onde sai uma luz azulada. À minha frente oiço um termóstato a ligar e o som de ar a sair.
Entro no santuário nupcial de Wade e de Lynette, onde a luz azul irradia do candeeiro da mesa de cabeceira. A cama também é azul, com um folho a toda a volta e um dossel com quatro colunas, e é tão grande e larga como um lago tranquilo. Nada está um milímetro que seja fora do lugar. Os tapetes impecavelmente escovados. O toucador a brilhar. Nem uma só peça de lingerie ou meias abandonadas na senhorinha azul da melhor camurça ao lado da janela que dá para o ventoso canal. A porta da casa de banho está discretamente fechada. No ar paira um aroma a pó de arroz. O quarto é perfeito enquanto lugar onde estranhos podem atender telefonemas pessoais.
O telefone está na mesa de cabeceira, onde brilha debilmente a precavida luz de presença.
– Estou, sim – digo eu, sem a mínima ideia do que irei ouvir, e mergulho expectante no silêncio suave que me rodeia.
– Frank? – diz a voz da X, solene, confiável, sociável. Fico logo entusiasmado só de a ouvir. Mas há na sua voz uma entoação que me escapa. Algo que transcende as palavras, e é por isso que ela é a única pessoa que me pode telefonar. Sinto um arrepio que me gela até à ponta dos pés. – O que se passa?
– Está tudo bem – diz ela. – Estamos todos bem. Estamos todos bem… aqui. Bem, na verdade nem todos. Alguém chamado, ora deixa cá ver, Walter Luckett, parece que morreu. Acho que não o conheço. O nome soa-me familiar, mas não sei porquê. Quem é ele?
– Estás a dizer que ele morreu? – A confiança percorre-me de novo, reconfortante. – Estive com ele a noite passada. Lá em casa. Não morreu nada.
Ela suspira para o auscultador, e o silêncio invade a linha. Oiço a voz de Wade Arcenault, branda e evocativa, a falar com o filho do outro lado do corredor, por trás de uma porta fechada. Uma televisão rezinga em pano de fundo com o ruído abafado da multidão e o apito distante do árbitro.
– Este é o melhor de todos os mundos possíveis… – oiço Wade dizer.
– Bem – diz a X serenamente –, a polícia veio cá há meia hora. Pensam que ele está morto. Há a carta. Que ele deixou para ti.
– O que é que tu estás a dizer? – exclamo, perplexo. – Falas como se ele se tivesse suicidado.
– Matou-se, disse o polícia, com uma espingarda de caçar patos.
– Oh, não.
– A mulher dele não está na cidade, como é óbvio.
– Está em Bimini, com o Eddie Pitcock.
– Hum – faz a X. – Bem…
– Bem o quê?
– Nada. Desculpa ter-te telefonado. Mas como ouvi a tua mensagem…
– Onde estão os miúdos?
– Estão aqui. Preocupados. Mas a culpa não é tua. A Clary é que atendeu o telefone quando ligaram da polícia. Estás com a… Seja-lá-como-ela-se-chama? – (Uma expressão bem do Michigan, da maior indiferença.)
– Vicki. – Vicki Lácomoelasechama.
– Agora já sei.
– O Walter apareceu lá em casa ontem à noite e ficou até tarde.
– Bem – diz a X –, lamento. Então era teu amigo?
– Acho que sim.
Alguém no quarto de Cade bate as palmas com força três vezes seguidas e depois assobia.
– Estás bem, Frank?
– Estou chocado.
De facto, sinto as pontas dos dedos a ficarem frias e deito-me de costas na colcha de seda.
– A polícia quer que lhes telefones.
– Onde é que ele estava?
– A dois quarteirões daqui. Coolidge, 118. Eu até posso ter ouvido o tiro. Não é assim tão longe.
Fico parado a olhar pelo dossel aberto para o teto absolutamente azul.
– O que é que eu devo fazer? Ou já me disseste?
– Telefona ao sargento Benivalle. Estás bem? Queres que vá ter contigo a algum lugar?
Do outro lado do corredor, Cade solta uma gargalhada rouca, muito alta.
– Não é mesmo verdade, que diabo?! – exclama Wade empolgado. – Juro que nunca vi um raio duma coisa mais incrível.
– Gostava de me encontrar contigo em algum lugar – digo eu, baixando a voz. – Mas tenho de te telefonar mais tarde.
– Onde diabo estás tu? – (Dito no antigo tom de amante assanhada: «Aonde irás tu a seguir?» «Onde diabo te meteste?»)
– Barnegat Pines – respondo brandamente.
– Onde quer que isso fique.
– Posso telefonar-te?
– Podes vir cá ter se quiseres. Claro.
– Ligo-te assim que souber o que fazer.
Não faço ideia porque estou a falar tão baixo.
– Liga para a polícia, está bem?
– Está bem.
– Sei que não vai ser agradável.
– É difícil pensar nisso agora. Pobre Walter.
Quem me dera ver no teto azul-claro alguma coisa que reconhecesse. Quase tudo serviria.
– Liga-me quando estiveres a chegar, Frank.
Mas claro que não há nada para ver por cima de mim.
– Ligo, sim.
A X desliga sem dizer mais nada, como se «Frank» fosse o mesmo que «Adeus. Amo-te».
Ligo para as informações para pedir o número da polícia de Haddam e telefono-lhes de imediato. Enquanto espero, tento lembrar-me se alguma vez pus os olhos no sargento Benivalle, embora não duvide que sim. Vi-os a todos e mais alguns na câmara municipal. Nos trâmites da vida, eles são tão inevitáveis e habituais como a bagagem.
– Mr. Bascombe – diz uma voz cautelosa. – Está correto?
– Sim.
Reconheço-o imediatamente – é um detetive de peitaça larga e olhos pequenos, com a cara cheia de terríveis cicatrizes de acne e cabelo à escovinha. Um homem de mãos grossas e macias, que usou para me tirar as impressões digitais quando a nossa casa foi assaltada. Lembro-me de como eram macias e já lá vão alguns anos. Tanto quanto me recordo, é boa pessoa, embora saiba que ele jamais se recordaria de mim.
E de facto o sargento Benivalle poderia estar a usar uma gravação. A morte e a sobrevivência tornaram-se equivalentes a pianos para um homem das mudanças – objetos grandes, mas um dia de trabalho que irá terminar. Ele explica-me numa voz desprovida de interesse que gostaria que eu fosse identificar «o cadáver». Ninguém que viva perto está disponível, e eu acabo por concordar com alguma relutância. Yolanda está inacessível em Bimini, embora isso não pareça incomodá-lo. Diz que tem de me entregar uma fotocópia da carta de Walter, porque precisa de guardar o original «como prova». E, uma vez que Walter deixou uma outra mensagem para a polícia, não há suspeitas de ato criminoso. Walter matou-se, diz ele, dando um tiro nos miolos com uma espingarda de caçar patos, e a hora da morte foi cerca da uma da tarde (estava eu a jogar croquet no relvado.) Ele fixou a espingarda em cima do televisor, explica o sargento Benivalle, e ligou um controlo remoto para soltar o gatilho. A televisão estava ligada quando lá chegaram – os Knicks contra os Cavaliers, no Richfield Coliseum.
– E agora, Mr. Bascombe… – diz o sargento na sua voz íntima de quando não está de serviço. Oiço-o folhear a papelada e expelir fumo para dentro do auscultador. Sei que está sentado a uma secretária de metal a pensar noutros crimes, noutras ocorrências mais preocupantes. Afinal, lá também é Páscoa. – Posso fazer-lhe uma pergunta pessoal?
– O quê?
– Bem… – mais papéis são folheados e uma gaveta metálica é fechada. – Mr. Bascombe e este Mr. Luckett tinham… ehhh… alguma coisa…
– Quer dizer se tínhamos alguma coisa um contra o outro? Se estávamos zangados? Não.
– Não me refiro a… ehhh… zangados. O que eu quero dizer é se tinham alguma coisa um com o outro… uma ligação amorosa. Ajudaria saber.
– Porque é que ajudaria saber?
O sargento Benivalle suspira, a cadeira range e ele expele novamente fumo para dentro do auscultador.
– Só para explicar a… ehh… a ocorrência em questão. Nada de especial. E o senhor claro que não tem de responder.
– Não – digo eu. – Éramos só amigos. Pertencíamos os dois a um clube de divorciados. Mas isto a mim parece-me intrusão.
– Sabe, Mr. Bascombe, digamos que o meu trabalho aqui passa pela intrusão. – Oiço gavetas a abrir e a fechar.
– Tudo bem. Só não vejo exatamente que importância isso possa ter.
– Certo, obrigado – diz o sargento Benivalle já a ficar farto (eu também não percebo o que ele quer dizer com isto). – Se eu não estiver aqui, peça a fotocópia ao agente de serviço. Diga-lhes quem é, para poder… ehh… identificar o cadáver. Está bem?
A voz dele ganhou subitamente vida sem razão.
– Assim farei – digo eu, já irritado.
– Obrigado – diz o sargento Benivalle. – Tenha um bom dia.
Desligo o telefone.
Porém, o dia não é bom nem irá ser. A Páscoa redundou em chuva, discussões e morte, e já nada a pode salvar.
– O queeeeê? – grita Vicki, surpreendida e chocadíssima com a morte de alguém que nunca viu, com o rosto contorcido numa expressão de dor e desinteressada incredulidade.
– Porquê, ooh naão – exclama Lynette, benzendo-se duas vezes com uma pressa dos diabos, sem sair da porta da cozinha. – Pobre homem. Pobre homem.
Disse-lhes apenas que um amigo meu tinha morrido e que tenho de regressar imediatamente. À volta da mesa há minipanquecas holandesas e café a escaldar, embora Wade e Cade ainda estejam lá em cima a falar sobre a vida.
– Bem, claro que tem – diz Lynette, solidária. – É melhor ir já.
– Queres que vá contigo? – Vá-se lá saber porquê, Vicki sorri ante tal ideia.
Porque será que tenho o pressentimento de que ela e Lynette selaram um pacto solidário enquanto eu estava ao telefone? Um mútuo entendimento que coloca um teto e um chão nas suas antigas fricções e me exclui – a família cerrando fileiras súbita e oficialmente, deixando-me de fora. Este é o lado obscuro da família não-nuclear – a capacidade de acumular desgraça sobre desgraça. (Porra!) Depois de eu sair, vão acender a lareira, buscar as partituras e cantar velhos êxitos – todos juntos. Eu sou chamado na pior altura, antes de eles perceberem o quanto realmente gostam de mim e querem alguém precisamente como eu junto deles para sempre. Uma morte prematura e mal-intencionada meteu-se de permeio e envolveu-me nos seus odores viscosos. Eu próprio sou capaz de os sentir.
– Não – digo-lhe eu. – Não haveria nada que pudesses fazer. É melhor ficares aqui.
– Bem, essa é a verdade de Deus, não é? – exclama Vicki, levantando-se e vindo colocar-se ao meu lado por baixo do arco da casa de jantar, dando-me o braço para me reconfortar. – No entanto, vou contigo até lá fora.
– Lynette…. – começo a dizer, mas Lynette já está a dizer-me adeus, acenando com uma colher do fundo da mesa.
– Agora nem mais uma palavra, Franky Bascombe. Vais resolver o problema do teu amigo que precisa de ti.
– Peçam desculpa por mim ao Wade e ao Cade.
O que eu mais quero é não ter de partir, ficar ali mais uma hora, para cantar Edelweiss e dormitar na cadeira enquanto Vicki lima as unhas e se entrega a devaneios.
– Desculpar o quê? O que é que aconteceu? – pergunta Wade, que ouviu o alvoroço e veio logo ver o que passava. Está no cimo das escadas, meio piso acima de nós, debruçado do corrimão como se prestes a levantar voo.
– Eu explico-te tudo mais tarde – diz Lynette, levando os dedos aos lábios.
– Vocês não se zangaram, pois não? – a expressão de Wade é de pura perplexidade. – Espero que ninguém tenha enlouquecido. Porque se vai embora, Frank?
– O melhor amigo dele morreu, é só – explica Vicki. – O telefonema tinha que ver com isso. – Está claríssimo que ela quer que eu me vá embora, e depressa, e tenciona ligar àquele cretino do Everett, no Texas, antes de eu meter a chave na ignição.
Mas o que terei eu feito de tão grave? Poderá o sonho de uma vida afundar-se entre as vagas só porque houve na minha voz uma certa entoação que lhe desagradou? Poderão os afetos ser assim tão frágeis? Os meus são mais robustos.
– Wade, estou mesmo desolado com tudo isto.
Estendo a mão do fundo da escada alcatifada para lhe apertar a mão forte. Nem ele nem eu ultrapassámos ainda esta avassaladora perplexidade.
– Eu também, rapaz. Espero voltar a vê-lo por cá. Nós não saímos daqui.
– Ele vai voltar – chilreia Lynette. – A Vicki encarregar-se-á disso. – (Vicki mantém-se em silêncio.)
– Diga adeus ao Cade.
– Digo, sim – diz Wade, descendo as escadas e envolvendo-me num semi-abraço de amigo, pondo-me uma mão solícita no ombro. – Volte para irmos à pesca.
Wade dá uma gargalhada estridente e constrangida, e de facto parece ligeiramente tonto.
– Vou voltar, Wade.
E Deus sabe que voltaria. No entanto, tal não acontecerá em cem luas, e não voltarei a ver a cara dele sem ser na portagem. Nunca iremos, famintos como ursos, ao Red Lobster, nunca seremos amigos da forma que eu esperava – para a vida inteira.
Despeço-me de todos com um aceno.
Tudo no relvado, incluindo as nossas estacas de croquet, desapareceu na tarde cinzenta, foi um ar que lhe deu. Estou parado ao vento cortante a olhar para a Arctic Spruce deserta, que desaparece na curva, com os seus arbustos frescos e viçosos, as suas casas de pisos independentes e perfeitamente isósceles. Wade Arcenault tem sorte em viver aqui, e eu, no fundo, sinto-me reduzido a nada na sua presença.
Vicki sabe que estou a tentar ganhar tempo e brinca com o fecho da porta do meu Malibu até ela se abrir, como se por magia.
Ela está confusa e faltam-lhe as palavras. Claro que eu ficaria aqui a conversar até à meia-noite se achasse que isso poderia aumentar as minhas hipóteses de êxito.
– Porque é que não vamos já diretos para um motel? – Pinto um sorriso no rosto. – Ainda não foste a Cape May. Podíamos passar momentos fabulosos.
– Então e o teu amigo que morreu? O Herb? – Vicki empina o queixo, altiva. – Então e ele?
– O Walter. – Faz-me sentir ligeiramente envergonhado. – Ele não sai de onde está. Mas eu ainda estou vivo. O Frank ainda faz parte dos vivos.
– Eu teria vergonha – diz Vicki, abrindo a porta entre nós os dois. O vento sopra agora com rigores de inverno. A superfície frontal passou veloz e deixou-nos uma friura primaveril e pardacenta. Daqui a meio minuto ela vai-se embora e esta é a última oportunidade de a amar.
– Bem, eu não tenho – digo alto e bom som, para o vento. – Eu não me matei. Quero que tu me deixes amar-te. E amanhã casamo-nos.
– Nem pensar – diz ela, olhando sorumbática para o tempo escuro e seco patente no pobre caixilho da janela do meu pobre carro e retira um bocadinho com uma unha bem vermelha.
– Porque não? – pergunto. – Eu quero. Ontem por estas horas estávamos na cama como recém-casados. Eu era nessa altura uma das únicas seis pessoas que existem no mundo. Que diabo aconteceu? Acaso endoideceste? Há vinte minutos estavas feliz como um passarinho.
– Não endoideci, não – diz ela asperamente.
Lanço um olhar glacial àquele simulacro bege de Jesus pregado à parede da casa. Ele, que desgraça a vida de tantos quantos pode, e depois nunca fica com as culpas. Devia experimentar ressuscitar no mundo complexo de hoje e era vê-lo cair da cruz para se estatelar de cu no chão. E não venderia jornais nenhuns.
– Nós não partilhamos os mesmos interesses, é o que parece – diz Vicki num tom quase inaudível, com um dedo a cofiar o brinco navajo azul. – Apercebi-me disso enquanto estávamos sentados à mesa.
– Mas eu estou interessado em ti! – grito eu. – Isso não é suficiente?
O vento aumenta de intensidade. Por trás da casa, o Boston Whaler de Wade bate contra o cais. As minhas palavras, desfeitas, são levadas pelo ar como palhas.
– Para casar, não, não é suficiente – diz ela, de maxilar hirto de certeza. – Andarmos por aí na brincadeira como temos feito é uma coisa. Mas isso não te leva até que a morte nos separe.
– Então o que é que leva? Diz-me e fá-lo-ei. Quero ficar contigo até que a morte nos separe. – As palavras, as minhas mais antigas aliadas e o meu melhor refúgio, tornam-se subitamente vãs e sinto-me indefeso. Ao vento, as palavras quase não parecem sair-me da boca. É como um sonho em que os meus amigos se viram contra mim e depois desaparecem, o sonho de grandeza de um homem pobre, um verdadeiro pesadelo. – Ouve bem. Eu vou interessar-me pela enfermagem. Vou ler alguns manuais e depois podemos passar a vida a conversar sobre enfermagem.
Vicki tenta sorrir, mas parece estupefacta.
– Realmente não sei o que te diga.
– Diz que sim! Ou pelo menos diz alguma coisa inteligente. Estou capaz de te raptar.
– Era o que faltava! – exclama ela, de lábios comprimidos e olhos semicerrados, numa expressão que nunca lhe vi e me assusta. Lá intrépida é ela, se intrepidez é o que é preciso. Mas só se for intrepidamente minha.
– Eu não vou deixar que brinques comigo – digo eu, aproximando-me dela.
– Eu simplesmente não te amo o suficiente para casar contigo. – Vicki deixa cair as mãos, exasperada. – Não te amo da maneira certa. Por isso podes continuar. Tu és capaz de dizer seja o que for, e eu não gosto disso.
O cabelo dela está todo revolto, fustigado pelo vento.
– Não existe uma maneira certa – replico. – Ou se ama ou não se ama. Tu és louca.
– Vais ver.
– Vá, entra lá para o carro. – Abro a porta. (Ela decidiu não me amar porque eu poderia querer fazê-la mudar, mas não poderia estar mais enganada.) – Tu apenas pensas que queres ter uma vidinha como a da Lynette para te poderes queixar, mas eu vou dar-te o melhor de todos os mundos. Nem sabes como vais ser feliz – e, com um daqueles sorrisos de cartaz, aproximo-me para a envolver nos meus braços, mas ela prega-me um soco na boca com um punho ruim e enervado que me apanha em cheio e me atira ao chão. Ainda consigo deitar a mão à porta do carro para atenuar a queda, mas o soco, dado com a mão esquerda, é desferido com um movimento circular com rotação de ombro, e a verdade é que eu fui direito a ele de olhos bem abertos.
– Eu dou-te uma coça – diz ela furiosa, com os dois punhos crispados como pequenos cachos de uvas, com os polegares para dentro. – O último gajo que me agarrou foi parar à cirurgia oftalmológica.
Não consigo deixar de sorrir. É o fim de tudo, claro. Mas um fim digno. Sinto na boca o gosto espesso e enjoativo do meu sangue. (A minha esperança é que ninguém lá dentro tenha visto esta cena e sinta necessidade de me vir ajudar.) Quando levanto os olhos, ela deu meio passo atrás e, à direita do malogrado Jesus, vejo a cabeçorra de Cade inclinada a olhar para mim, tão impassível como Buda, embora Cade não tenha absolutamente nada que ver com isto, e eu não me importe que ele me veja assim desfeiteado. É uma experiência que ele já conhece e, se pudesse, seria solidário comigo.
– Levanta-te e vai lá ver o teu amigo morto – ordena Vicki com voz trémula.
– Está bem.
Continuo com o meu sorriso imbecil à Joe Palooka. É até possível que tenha um turbilhão de estrelas a rodopiar-me à volta da cabeça. Posso não estar na melhor forma possível, mas consigo sem dúvida conduzir.
– Estás bem, não estás? – pergunta ela sem se aproximar um passo que seja, mas observando-me à distância com olho clínico.
Tenho a certeza de que estou branco como a cal, embora não sinta vergonha por ter sido atirado ao chão por uma rapariga possante que é capaz de virar homens adultos na cama e levá-los e trazê-los de casas de banho distantes sem ajuda. De facto, isto vem confirmar tudo o que sempre pensei dela. Mas ainda poderá haver esperança para nós. Este pode ser precisamente o amor que ela tem procurado, mas em que não confiou, e só precisava de me dar uma tareia para que ambos nos apercebêssemos dessa realidade.
– Porque não me ligas amanhã? – digo eu, estatelado sobre os cotovelos e com a cabeça a começar a doer, apesar de continuar a manter um sorriso de bom perdedor.
– Duvido – diz ela, cruzando os braços como a Maggie da banda desenhada. E quem será um melhor Jiggs do que eu? Quem será pior do que eu a tirar lições da experiência?
– É melhor entrares – digo eu. – É uma indignidade ficares a ver-me levantar do chão.
– Eu não te queria bater – diz ela com ar mandão.
– Não querias o tanas! Tinhas-me posto KO se soubesses fechar bem o punho. Fechaste o punho à menina.
– Não bato em muitos…
– Podes continuar.
– Tens a certeza de que estás bem?
– Talvez sim, talvez não.
Posso ouvir os collants dela a roçar uma perna na outra quando se vira e começa a atravessar o relvado, ao vento, braços a dar a dar, avançando em bicos de pés para não se enterrar na relva, sem olhar para trás, como sabe que não deve fazer, até desaparecer rapidamente dentro de casa. Cade também saiu da janela. E eu deixo-me ficar uns minutos sentado onde caí, ao lado do carro, a olhar para os flocos de nuvens e a tentar que o mundo que me cerca pare de andar assustadoramente à roda. Tudo parecia trazer promessas de futuro, mas agora já não sei se a vida não me atropelou como um ruidoso semirreboque e me deixou aqui estatelado na berma da estrada.