13
Pouca terra, pouca terra, lá vamos nós a balançar, trepidantes, atravessando uma New Jersey anoitecida e mal iluminada. A minha carruagem é das antigas, com bancos castanhos de plástico e janelas imundas. Um odor metálico e rançoso paira no corredor e agarra-se aos compartimentos das bagagens, enquanto a luz das velhas lâmpadas tremula e escurece. É o reverso da medalha dos transportes públicos.
Mesmo assim, não é mau sentir-me em movimento. Com o banco da frente virado para mim, é fácil pôr-me confortável, com os pés em cima dele, a ver passar, flutuantes, as vilas sidéreas de Edison, Metuchen, Metropark, Rahway e Elizabeth.
Claro que não faço a mais pálida ideia do meu destino ou do que fazer quando lá chegar. Às vezes é essencial encontrar formas de fugir às forças sinistras, embora o que se segue possa implicar uma total atrapalhação. Tenho a certeza de que não apanhei o comboio noturno para Nova Iorque desde que a X e eu lá fomos ver Porgy and Bess numa noite de inverno em que nevava. Há quanto tempo? Cinco anos? Oito? Os momentos específicos do passado têm tendência para se misturar, o que não me incomoda particularmente. E a eventualidade de desembarcar esta noite em Gotham afigura-se menos assustadora do que é habitual. Parece um lugar mais acolhedor com um doce toque de ilicitude, como uma mulher que mal conhecemos e estamos longe de desejar, mas que mesmo assim nos deixa avançar. As coisas mudam. É isso que nos mantém acesa a expectativa. De facto, descer esta noite até às ruas de qualquer destes pequenos burgos criptoacolhedores de Jersey poderia provocar-me um pânico mais avassalador do que Nova Iorque alguma vez me provocou.
Apenas alguns passageiros solitários partilham comigo a carruagem. A maioria vai a dormir e não reconheço nenhuma das caras que vislumbrei da plataforma. Já agora, não me importava nada de ver alguém conhecido. Bert Brisker seria um companheiro de viagem muito bem-vindo, a dissertar longa e inovadoramente sobre o livro que está a ler para depois escrever uma crítica, ou sobre alguma entrevista que tenha feito a um escritor famoso. Eu estaria interessado em ouvir a sua opinião sobre o futuro do romance moderno. (Tenho saudades destas conversas com entendidos na matéria, da oportunidade de fazer boa figura, na convicção de que a educação formal que recebemos não nos deixou completamente marginalizados.) Geralmente Bert concentra-se no seu trabalho e eu no meu, e, quando deixamos para trás a plataforma, onde trocamos algumas risadas e frases feitas, raramente dizemos mais uma palavra que seja. Mas agora ficaria contente por trocar meia dúzia de palavras com ele, coisa que faço muito pouco. É a parte negativa de privar com atletas e pessoas que não conheço bem nem chegarei a conhecer, pessoas com quem há muito poucos temas interessantes sobre que conversar. Lamento dizê-lo, mas ser jornalista desportivo é passar a maior parte da vida entregue aos próprios pensamentos, e vislumbrar somente os dos outros. Foi precisamente por isso que Bert abandonou a profissão e é por isso que está em casa esta noite com Penny, as filhas e os cães pastores, a ver Shakespeare na HBO, ou deitado na cama a ler um bom livro. E é por isso que estou sozinho num comboio vazio e fedorento a caminho de um reino obscuro que sempre temi.
O ferroviário mais jovem, com ar de carapau de corrida, entra com passo oscilante na minha carruagem e olha-me com desconfiança enquanto me vende o bilhete e cola o talão nas costas do banco. Não lhe agrada que eu tenha de comprar o bilhete no comboio nem que não tenha dado boleia à irmã de Walter, lá na estação, nem que esteja de camisa axadrezada e ar feliz, precisamente o seu oposto, quando o resto do mundo que ele conhece – com o seu fato preto brilhante de revisor – é exatamente como devia ser. Segundo me parece, ainda não chegou aos trinta, e eu dirigi-lhe um sorriso como quem diz que está tudo bem, que não sou uma ameaça para nenhuma das suas convicções. De facto, até partilho provavelmente a maior parte delas, mas percebo pelo seu olhar hostil que não gosta da noite nem do que ela encerra – horas inconstantes, inseguras, sinistras e inquietantes que devem ser completamente banidas do curso matraqueante das suas obrigações profissionais. E, como eu saí dela inesperadamente, também sou suspeito. Mete de novo o alicate no bolso, tão depressa quanto é capaz, avança pelo corredor a verificar os talões dos bilhetes dos outros passageiros e abandona-me, passando para a carruagem-bar, onde o vejo a conversar com o empregado, um negro.
Quando paguei o bilhete, toquei outra vez na carta de Walter e, dadas as circunstâncias, nada mais me resta fazer do que lê-la, e assim faço, começando em Rahway com a ajuda da tíbia luzinha de leitura.
Caro Franko,
Hoje acordei com ideias claríssimas sobre o que preciso de fazer. Estou absolutamente seguro do que quero. Escrever um romance! Não sei para que diabo serve nem quem o irá ler, nem nada disso, mas sinto aquela febre dos escritores e quem quiser poderá lê-lo ou passar adiante. Ultrapassei tudo o que havia a ultrapassar, e isso deixa-me muito feliz!
O que escrevi foi: «Eddie Grimes acordou no domingo de Páscoa de manhã e ouviu ao longe o apito de um comboio numa estação suburbana qualquer. O seu primeiro pensamento do dia foi: “Uma pessoa perde o controlo gradualmente.”» Isto pareceu-me do melhor para primeira linha. O Eddie Grime sou eu e trata-se de um romance sobre mim mesmo, onde se entrelaçam os meus próprios conceitos, ideias e convicções. É difícil pensarmos nos temas da nossa própria vida. A princípio pensa-se que qualquer pessoa consegue fazê-lo, mas estou a achar muito, muito difícil. Quase impossível. Entendo-te agora muito melhor, Frank. Eu sou conservador, apaixonado, criativo e justo – como um banqueiro de investimentos, e isso é fantástico! Mas estou a ver que é difícil traduzi-lo em palavras, dar-lhe a forma de romance. Perco o fio à meada.
Talvez uma boa maneira de começar um romance seja com uma nota de suicídio, o que seria uma boa estratégia narrativa. Sei que já foi usada antes, mas o que é que não o foi? Para mim seria novidade, certo? Não estou preocupado com isso.
Parti e voltei. A ideia da nota de suicídio não tem realmente um efeito interessante em termos de romance, Frank. Não sei bem que caprichoso amo estou a tentar servir (ah-ah-ah). Já agora, peço desculpa por aquela mensagem sobre o avião. Estava apenas a tentar manipular os sentimentos, a tentar entrar no estado de espírito ideal para a escrita. Espero que não estejas chateado. Admiro-te cada vez mais pelo trabalho que fizeste. Continuo a considerar-te o meu melhor amigo, apesar de não nos conhecermos muito bem.
Tentei ligar hoje de manhã cedo para a Yolanda. Primeiro não atendeu, depois o telefone estava ocupado e depois não atendeu. Também resolvi as coisas com o Warren, e isso foi muito bom. Admito que só devia ter sido seu amigo. Mas não fui. E depois? Processem-me. Cuida de ti, Frank.
Gostava que esta fosse uma carta interessante, já que não pode ser um bestseller. Sinto que sei exatamente o que estou a fazer. E olha que isto não é conversa da treta. Quem disse que uma pessoa tem de estar doida para se matar? Qual quê! Nunca estive mais lúcido. Disso tenho a certeza.
E agora, Frank, a grande novidade, pode ser? Tenho uma filha! E sei tudo o que estás a pensar. Mas, sim, tenho mesmo. Tem dezanove anos. Uma daquelas relações fugazes da adolescência, no Ohio, no início do verão, no segundo ano da universidade, quando eu próprio também tinha dezanove anos! O nome dela é Susan – Suzie Smith – e vive em Sarasota, na Flórida, com a mãe (a Janet), que vive com um marinheiro ou um polícia de trânsito, não sei bem. Ainda lhes envio cheques com regularidade. Gostaria de lá ir contar toda a verdade à minha filha. Por ela e por mim. A verdade é que nunca a conheci. Naquela época foi um problema muito complicado. Claro que hoje nada disso teria acontecido. Mas sinto-me muito apegado a ela. E tu és a única pessoa que pode entender isto, Frank. Espero que não leves a mal que te peça que vás lá e tenhas uma conversa com ela. Desde já muito obrigado. Estavas a precisar de férias, não estavas?
Realmente não me sentia tão clarividente acerca de todas as coisas desde que estava na Grinnell e tive de tomar a decisão de subir para os 152 kg, e desisti ao chegar aos 145, onde estava a ter sucesso, porque de repente apareceu alguém melhor do que eu – e logo um caloiro. E eu tinha de desistir ou tomar a grande decisão. Finalmente consegui vencer combates no peso mais elevado, mas nunca fui tão bom como ele. E também nunca mais senti orgulho em mim próprio. Também não o sinto agora, mas penso que tenho o direito de sentir.
As maiores felicidades,
Wally
As maiores felicidades? Por falar em perder a autoridade…! As maiores felicidades e depois… pum, um tiro nos miolos? Como é que nos ligamos a pessoas que nem sequer conhecemos: esta é a minha pergunta para o homem que tem todas as respostas. Neste momento daria tudo na vida para não ter conhecido Walter Luckett, Jr., ou para que ele estivesse vivo e eu pudesse largá-lo como uma batata quente, e ele não tivesse ninguém a quem dirigir a sua carta imbecil e tivesse de descobrir a grande pergunta por si próprio. Talvez assim ele tivesse conseguido terminar o seu romance. De certo modo, se não fosse por eu ser seu amigo, ele ainda estaria vivo.
Que vida está permanentemente envolta em mistério? A de um astronauta? A de um campeão de pesos pesados? A de um membro da tribo Ubangi? Até o velho Bosobolo tem de tirar um curso superior, e nem isso dá garantias, o que explica o seu caso amoroso pela calada. Se Walter aqui estivesse, expulsava-lhe os demónios do corpo.
Walter podia ter ido procurar Mrs. Miller (se soubesse da sua existência); ou lido catálogos até altas horas; ou ligado a televisão para o programa do Johnny; ou mandado vir uma puta de cem dólares. Podia ter tentado arranjar maneira de continuar a respirar. Para que mais serve este mundo senão para nos fornecer razões para não partirmos prematuramente?
As circunstâncias de Walter seriam um bom pretexto para ir a Bimini pagar as suas dívidas, ou para ir acampar em Yellowstone. Só que agora eu nem sequer me posso dar a esses luxos. Tudo o que me resta é a evidência banal e insuportável da morte, que, depois de começarmos a pensar nela, nunca mais nos larga e nos invade a existência como a carcaça de uma doninha fedorenta no alpendre.
E uma filha? Nem pensar. Eu tenho a minha própria filha. E um dia, já não falta muito, também ela vai querer ouvir explicações. E, francamente, isso é tudo o que me interessa: as respostas que então lhe darei. O que aconteceu a Walter neste mundo é da inteira responsabilidade dele. Tenho uma pena dos diabos, mas ele teve a sua oportunidade como todos nós.
Num instante, já atravessámos os prados alegres e verdejantes e entrámos no longo túnel de Gotham, onde as luzes se apagam e não vemos mais nada além da nossa imagem refletida nas janelas sujas, e tenho de súbito a sensação de estar a cair do espaço para um sonho perigoso – um sonho que eu, de facto, costumava ter depois do divórcio (embora tenha a certeza de que desta vez é despoletado por Walter), no qual me encontro na cama com alguém que não conheço e em quem não posso – não devo – tocar (uma mulher, graças a Deus), mas ao lado de quem devo ficar deitado horas a fio, excitado e cheio de medo e de uma culpa avassaladora. É um sonho terrível, mas não ficaria surpreendido se todos os homens o tivessem uma vez por outra. Ou muitas vezes. E, na verdade, depois de o ter durante seis meses, habituei-me, e daí a cinco minutos já estava outra vez a dormir. No entanto, se não estivesse já no chão, estava pelo menos na beira da cama quando acordava, todo encolhido e dorido, como se agarrado a um salva-vidas na vastidão de um mar revolto. Como acontece com todas as coisas, más e boas, habituamo-nos a elas e passam com a idade.
Mais dez minutos e paramos sob a abóbada de Penn Station. Levanto-me, saio da atmosfera escaldante do túnel, atravesso o átrio superior bem iluminado e o meu sonho desvanece-se entre a multidão de vagabundos e viajantes que regressam da Páscoa; e depois saio para a ventosa Seventh Avenue e para a vastidão de Gotham nesta noite quente de Páscoa. São agora dez e um quarto e não tenho a mínima ideia do que fazer.
Contudo, não me arrependo de estar aqui. Não é o habitual e desmoralizante frenesim dos táxis em correria, do turbilhão de luzes e do bulício citadino que me vai atirar para um estado de angústia depressiva e obscura em que tudo se torna demasiado importante e demasiado perigoso para ser tolerado. Aqui, no cruzamento da Seventh Avenue com a 34th Street, sinto uma inusitada languidez, um enlevo pós-coito, bem típico do Midwest, em relação a tudo – à atmosfera sempre sombria ainda desanuviada, às ruas a fervilhar de vida com o afluxo frenético do trânsito que passa por mim e logo se vai.
E eu, cercado pelas multidões que saem do Madison Square Garden, parado a olhar para o cartaz e para as luzes do velho Statler Hotel, pressinto que poderia passar aqui um bom bocado, desfrutar até do prazer da excitação de uma mulher, dentro dos limites do tolerável e desde que no local e hora certos. Uma pessoa podia até ver os seus atos a falarem por si (mesmo se brevemente) – algo que nunca antes me pareceu possível acontecer aqui – e suportar por algum tempo a velha prevaricação e a falta de ética antes de a fuga se tornar essencial. Deve ser o que sentem todos os que vivem nos subúrbios quando eles se tornam subitamente demasiado bizarros e desconfortáveis: que as coisas não podem continuar a degradar-se eternamente, e que está na hora do início de uma nova era mais ágil. É embaraçoso ser tão tímido e imaturo com a minha idade.
Mas enfim. O que hei de eu fazer neste frágil interregno? Sim, o que hei de eu fazer se, simplesmente, não estiver pronto para voltar a correr pela escada abaixo, comprar o bilhete e dormir durante toda a viagem de regresso a casa?
A minha resposta, mesmo com a cidade já docilizada e aparentemente disposta a satisfazer algumas das minhas necessidades, só prova a minha falta de experiência da vida complicada dos verdadeiros habitantes das grandes metrópoles. Enfio-me no primeiro táxi que passa e vou direito ao cruzamento da 56th Street com Park Avenue, onde exerço o meu ofício de jornalista desportivo. Nada me apetece mais do que usar novas estratégias em relação a Herb e transformar esse símbolo da desolação em algo melhor, mesmo que tal implique ter de distorcer um facto ou dois.
O vigésimo segundo andar está efervescente de trabalho com as luzes fluorescentes acesas ao longo das fiadas de compartimentos. Quando saio do elevador, oiço vozes alteradas a discutirem nos gabinetes do fundo.
– Tá-bem… Tá-bem!
E depois:
– Não, não, não, não. Ele é um frouxo. Um puro asno.
E ainda:
– Eu não acredito nisto. Este gajo vai assombrar-te em pesadelos, acredita. Acre-diita!
É o Pigskin Preview. As contratações da NFL são daqui a dez dias, e a redação está reunida em assembleia extraordinária.
Dirijo-me para o meu compartimento, mas paro a meio e espreito para a sala de conferências apinhada. Lá dentro está uma mesa comprida de fórmica pejada de sacos de papel de hambúrgueres, cinzeiros, chávenas de café de papel, grossos blocos de apontamentos com argolas e um ecrã verde de computador com uma lista de nomes. Encostado à parede, está um quadro branco com marcadores. Toda a equipa de especialistas em futebol americano, e alguns jornalistas estagiários, os últimos nas fichas técnicas, estão a olhar atentamente através de uma cortina de fumo para um vídeo de um jogo num grande campo com relva artificial. Esta é a reunião para discussão de estratégias, em que os nossos especialistas escolhem os primeiros quarenta jogadores das universidades a serem selecionados para as equipas profissionais, e por que ordem. É o evento mais importante do ano a seguir ao World Series Roundup. Quando estava a começar, participei em sessões como esta, a trincar um charuto apagado, a gritar os nomes dos meus favoritos como estes rapazes estão a fazer agora (há uma mulher na última fila cuja cara não me é estranha), e foi uma experiência memorável. Os jornalistas, os investigadores e os estagiários mais jovens de Yale e Bowdoin podem ver como os mais velhos fazem o seu trabalho, como as coisas realmente se desenrolam. Os jornalistas mais velhos resolveriam normalmente estes assuntos com uma bebida na mão no restaurante de sushi mais próximo. Mas para o Preview – honra lhes seja feita – abrem o jogo, lançam mão de todos os recursos e orientam a sessão como se fosse realmente democrática. Mais tarde, acabarão todos nas ruas já de madrugada, já reconciliados consigo mesmos, com o futebol americano e com o mundo em geral, a rir, a dizer palavrões e a beber uns copos num bar da Third Avenue. Alguns farão até uma direta, e poderemos vê-los às nove da manhã junto à máquina de café ou de volta às secretárias, exaustos mas satisfeitos, prontos para passarem tudo para o papel.
Vi muitas vezes escritores, romancistas famosos, ensaístas e até poetas, com nomes imediatamente reconhecíveis e cuja obra admiro, andarem por aqui a escrever artigos pagos a peso de ouro. Vi o seu ar ansioso, solitário e evasivo, vi-os sentarem-se à secretária que lhes damos num dos últimos compartimentos, porem os pés no tampo e desatarem a falar em voz alta, brincalhona, matreira e convidativa, a tentarem desesperadamente sentir-se como membros da equipa, ser o centro das atenções, a agirem como bons rapazes, sempre prontos a darem conselhos ou opiniões sobre tudo o que qualquer um de nós quisesse saber. Por outras palavras, a divertirem-se à grande.
E quem poderia criticá-los? Os escritores – todos os escritores – precisam de se sentir no seu ambiente. Só que, para os verdadeiros escritores, o seu clube tem infelizmente apenas um membro.
Os rapazes do Pigskin Preview estão em desacordo quanto às virtudes de um gigante polaco da Iowa State University, todo ele velocidade e coragem, e de um lateral negro de ar violento, aluno de uma pequena faculdade batista da Georgia, que é veloz como um tigre e dotado de um talento inato. Charutos enormes agitam-se entre dedos crispados. Há resmas de folhas impressas com estatísticas espalhadas em redor. Todos os olhos estão focados no ecrã quando o rapaz negro – a quem se referem como Tyrone, o Assassino –, de camisola azul e cor de laranja com o número 19, atinge o recetor, um branco magricela, com um golpe que atiraria a maior parte das pessoas para um ventilador. Contudo, os dois jogadores saltitam como brinquedos, Tyrone dá uma palmada no rabo do rapaz branco e voltam os dois a correr para as respetivas formações.
– Filho da puta. Aquilo foi mesmo um golpe à Assassino – grita um júnior talvez da Williams. – O sacana atrasou-se, perdeu o momento e mesmo assim foi em frente como um comboio de mercadorias… caraças.
Eddie Frieder, o redator-chefe, de dentes cravados num cigarro e boné dos Red Sox na cabeça, arqueia as sobrancelhas, meneia a cabeça em concordância e volta a fazer cálculos. É ele o coordenador, mas ninguém diria. Desenha-se um acordo entre os mais jovens, embora ainda seja clara a divisão. Dois homens mostram-se incomodados com a palmada amigável do Assassino no traseiro do outro. Suspeitam que os profissionais possam interpretar o gesto como sinal de um instinto competitivo impuro, enquanto outros o veem como uma manifestação do bom carácter do Assassino.
– Este gajo não vai além de oito na segunda volta – parecem concordar.
– O que achas, Frank? – pergunta Eddie, olhando para a porta onde me mantenho semioculto, sem querer dar nas vistas.
Todos os olhos veem este homem magro e sorridente, levemente corado, de calças de sarja e camisa de xadrez. Dois ou três dos mais novos pousam os lápis e ficam a olhar. Eu não sou especialista em prognósticos; de facto, Eddie até sabe que nem gosto de futebol americano, embora acabe provavelmente a reescrever muito do que aqui se passa e a preparar uma pequena crónica sobre o eterno medo que o Assassino tem de herdar o alcoolismo fatal do seu pai (o que pode afetar a competitividade de um jogador).
– Tenho ouvido dizer bem deste miúdo havaiano, da universidade do Arkansas A&M – digo eu. – Ele faz quase 40 metros em 5 segundos e gosta do contacto.
– Já está eliminado! – gritam quatro ao mesmo tempo. Há cabeças a abanar. Olhos a piscar. Todos voltam às suas folhas das estatísticas. Alguém passa de novo o golpe assassino do Assassino e todos tomam notas, o que me recorda que não encontrei em Detroit nada que possa usar aqui.
– O Denver pô-lo numa lista de trocas com o Miami. Não pode falhar – declara Eddie Frieder, e depois consulta as notas.
– Ele é o nosso próximo milionário, Mike – comenta alguém.
– Os especialistas são vocês. Eu só acabei de chegar de Altoona – digo eu, acenando ao Eddie, e depois esgueiro-me corredor fora até ao meu compartimento.
A minha secretária. A minha máquina de escrever. A minha consola de vídeo. O meu ficheiro rotativo. A minha camisa sobresselente pendurada na parede de módulos. O meu telefone com três linhas. A minha vista restrita da janela para a cidade anoitecida. As minhas fotografias: Paul e Clary a sorrirem debaixo de um chapéu de chuva num jogo dos Mets durante um atraso devido à chuva. X e Clary com T-shirts do parque de diversões Six Flags, uma foto tirada nos degraus da nossa entrada seis meses antes do divórcio (a X parece feliz, mais animada). Ralph montado num pónei num dia de aniversário com ar aborrecido. Uma fotografia de revista de Herb Wallagher com o capacete do Detroit colada na parede, ao lado de uma outra de Herb de fato completo na cadeira de rodas, no relvado, em Walled Lake. Na segunda está a sorrir, de óculos limpos e bem penteado, com um ar beatífico. Na primeira é simplesmente um atleta.
O meu plano de ataque é escrever num bloco A4 pautado as primeiras coisas que me vierem à cabeça – frases, expressões, um conceito, uma simples palavra, um detalhe. Quando escrevia a sério, costumava passar horas a construir uma frase, geralmente uma frase que ainda não tivesse escrito, e geralmente sem a mínima ideia do que estava a tentar dizer, o que devia ter sido um aviso. Mas, a partir do momento em que comecei a escrever sobre desporto, descobri que a estrutura da frase, ou mesmo se a frase fazia sentido, não tinha realmente muita importância, pois outra pessoa qualquer – por exemplo, Rhonda Matuzak – alterá-la-ia a seu gosto antes de ir para impressão. Assim, habituei-me a escrever o que quer que me viesse à cabeça, e não tardou a que a verdade da maior parte das coisas aguardasse a sua vez no limiar das minhas preocupações, e acabei por escrever sem precisar praticamente de revisão. Se alguma vez voltar a escrever um conto, vou recorrer à mesma técnica, procedendo como se estivesse a escrever sobre um jogador de hóquei americano que se torna um bêbedo inveterado, se reabilita com a ajuda dos AA, marca quarenta golos e vence a Stanley Cup como capitão e inspirador dos Quebec Nordiques.
No caso de Herb Wallagher escrevo: Possibilidades Limitadas.
E então penso por momentos na primeira viagem que fiz a Nova Iorque. Foi em 1967. No outono. Mindy Levinson e eu partimos de Ann Arbor e viajámos durante toda a noite no carro de um dos meus irmãos da fraternidade para eu ir a uma entrevista na faculdade de Direito da New York University. (Houve um período relativamente curto, depois de deixar os Fuzileiros, em que tudo o que eu queria era ser advogado e trabalhar para o FBI.) Ficámos, Mindy e eu – como marido e mulher –, no velho Albert Pick, em Lexington Avenue, apanhámos o metro para Greenwich Village, comprámos uma aliança de latão para nos dar um ar de casal legítimo, e passámos o resto do tempo na cama, enrolados um no outro, e a ver desporto na televisão. Na manhã seguinte, muito cedo, apanhei um táxi para Washington Square e fui à minha entrevista. Estive sentado a conversar amigavelmente com um sujeito de ar compenetrado que agora tenho a certeza de que era apenas um estudante-trabalhador a preparar a tese, mas que me impressionou com a sua juventude e o seu ar excêntrico de génio em Direito Constitucional. Eu não sabia as respostas a nenhuma das perguntas que ele me fez, e na verdade nunca tinha pensado sequer em nada que se parecesse com as perguntas que ele tinha preparado. Mais tarde, nesse mesmo dia, Mindy e eu saímos do hotel, atravessámos a ponte George Washington e voltámos para Ann Arbor pela autoestrada, eu com a sensação de que me tinha saído bastante bem nas respostas às perguntas que deveriam ter sido importantes, mas que nem sequer foram feitas, e que acabaria por ir editar a revista de Direito.
Naturalmente que nem sequer fui aceite na universidade, nem em nenhuma das outras faculdades de Direito a que concorri. E hoje em dia não consigo passar por Washington Square sem pensar nesse episódio com uma ponta de tristeza e de saudade, a imaginar o que poderia ter acontecido. Que diferença teria feito na minha vida? E o que sinto, tendo em conta a natureza caótica e imprevisível deste mundo, é que a vida podia ter corrido exatamente como correu, com diferenças mínimas: o divórcio. Os filhos. As mudanças profissionais. A vida numa cidade como Haddam. E isto traz-me algum consolo, embora não me importe de admitir que também alguns calafrios.
Volto a Herb e escrevo: Herb Wallagher já não joga mais à bola.
Depois penso nas pessoas a quem poderia telefonar a esta hora – 22h45. Podia ligar para Providence. Ou talvez para a X, se bem que os hábitos lá de casa me levem a crer que já estará a caminho de Poconos ou de outro sítio qualquer. Podia ligar a Mindy Levinson, no New Hampshire. Podia ligar a Vicki, em casa dos pais. Podia ligar à minha sogra, em Mission Viejo, onde ainda é apenas um quarto para as oito, com o Sol a acabar de se esconder atrás de Catalina no oceano pascal. Podia ligar a Clarice Wallagher, pois é possível que fique acordada até tarde a maior parte das noites, a pensar nas voltas que a sua vida deu. Todas estas pessoas falariam comigo, disso não tenho dúvida. Mas tenho quase a certeza de que nenhuma delas ficaria particularmente contente por me ouvir.
Volto a Herb mais uma vez: Tal como Herb Wallagher a vê, a vida real olha-nos nos olhos todos os dias. Não é algo que precisemos de procurar.
– Olá – diz atrás de mim uma voz numa cadência quase náutica.
Viro-me e, emoldurada no retângulo de alumínio, está uma cara capaz de salvar um náufrago. Sorriso rasgado e confiante. Cabelo cor de mel com duas tranças, uma de cada lado, puxadas para trás num complicado penteado à colégio de elite. Pele luminosa como uma túlipa. Dedos esguios. Uma penugem loira no braço que está neste momento a esfregar levemente com a palma da mão. Calças curtas cáqui. Blusa branca de algodão a cobrir um par de maminhas muito consideráveis.
– Olá – digo eu, devolvendo-lhe o sorriso.
Ela apoia uma anca à ombreira da porta. As pernas que saem das bainhas das calças são firmes e brilhantes como uma sela de cavalaria. Não sei propriamente para onde olhar, embora o sorriso rasgado dela diga: Olha sem receio para onde quiseres, homem. Foi para isso que Deus fez tudo isto.
– É o Frank Bascombe, não é? – pergunta ainda a sorrir, como se soubesse alguma coisa, um segredo.
– Sou, sim – respondo, sentindo as faces agradavelmente quentes.
Há olhos a piscar e sobrancelhas arqueadas. Um ar de admiração sem ter necessariamente implícita qualquer desconfiança – uma atitude ensinada nos melhores colégios internos de Nova Inglaterra e aperfeiçoada na idade adulta –, o simples mas contundente desejo de uma pessoa se fazer entender completamente.
– Desculpe a intrusão, mas desde que aqui estou que quero conhecê-lo.
– Trabalha aqui? – é a minha pergunta hipócrita, pois tenho a certeza absoluta de que trabalha aqui.
Vi-a no corredor o mês passado – sem contar há dez minutos no Pigskin Preview –, e fui espreitar o currículo dela para ver se tinha a formação necessária para fazer investigação. É uma estagiária vinda do Dartmouth College, uma Melissa ou uma Kate, mas neste momento não me consigo lembrar, pois o seu tipo de beleza é geralmente vigiado por um qualquer Dan do Dartmouth com quem partilha um estúdio no Upper East Side, aproveitando o estágio para decidirem se o casamento será uma escolha sensata neste momento. Lembro-me, contudo, de que a família dela é de Milton, Massachusetts, que o pai é um político local com um nome que reconheço vagamente como famoso entre os atletas de Harvard (e é amigo de um dos mandachuvas da revista). Consigo até imaginá-lo – baixote, atarracado, arrogante, um fura-vidas que teve a sorte de entrar para Harvard e de ser famoso em dois desportos, embora mais ninguém na família tivesse conseguido singrar nos estudos. Um tipo de quem eu normalmente gostaria. E aqui está agora a filha, sorridente e pronta a complementar o currículo com alguns extras com interesse para o curso de Medicina, ou para quando entrar na política local em Vermont/New Hampshire, enquanto se divorcia do tal Dan do Dartmouth. Convenhamos que nada disto é má ideia.
Mas vê-la ali à entrada da porta, com aquele ar sadio de quem anda de caiaque, sotaque de Boston, e já «experimentada» em artes que só posso imaginar, é um petisco para quaisquer olhos maliciosos. Talvez o tal Dan do Dartmouth ande por fora a passear no iate do papá, ou esteja ainda em Hanover a marrar para os exames semestrais. Talvez ele já não ache «interessante» esta rapariga altíssima e de uma beleza suave (uma decisão de que se vai arrepender), ou não a considere benéfica para a sua carreira (que exige uma rapariga mais baixa ou um pouco menos autoritária), ou que precise de laços familiares mais elevados ou de falar francês. São erros que ainda acontecem. Se assim não fosse, como é que qualquer de nós poderia enfrentar um novo dia?
– Eu estava só a assistir à reunião – diz a Melissa/Kate, inclinando-se para trás para espreitar para o fundo do corredor.
Ouvem-se vozes a afastar-se em direção aos elevadores. Os prognósticos estão feitos. Tem o cabelo cortado sem cerimónia sobre as orelhas pequenas e helicoidais e pode por isso afastá-lo com um piparote, como acabou de fazer.
– Chamo-me Catherine Flaherty. Estou a fazer aqui o estágio esta primavera. Venho do Dartmouth College. Mas não quero importuná-lo. Deve estar mesmo muito ocupado – diz ela com um sorriso tímido e contido, e outro piparote no cabelo.
– Para dizer a verdade, não estava a adiantar muito manter-me ocupado. – Giro a cadeira de novo para a secretária e coloco as mãos cruzadas atrás da cabeça. – Um pouco de companhia não me faz mal nenhum.
Outro sorriso, um tudo nada permissivo. Há em si qualquer coisa que me agrada, é o que diz, mas não me interprete mal. Ofereço-lhe o meu sorriso firme de prometo-que-não.
– Realmente só lhe queria dizer que li as suas histórias na revista e que realmente as admiro muito.
– Obrigado, é muito amável. – E meneio a cabeça, tão inofensivo como um tio velho. – Tento levar muito a sério este meu trabalho.
– Não estou a ser amável – diz ela, com os olhos a brilhar.
É uma mulher capaz de ser ao mesmo tempo tagarela e desafiante, e irónica também, estou certo, quando a situação o exige.
– Não. Não creio que fosse amável nem por um segundo. Mas é simpático dizê-lo, mesmo que não esteja a ser – replico, apoiando o queixo na palma da mão, macia, precisamente onde Vicki o atingiu.
– Concordo.
O seu sorriso diz que afinal sou um tipo fantástico. Tudo fica gravado nos sorrisos.
– Como está a correr o Pigskin? – pergunto, com pretensa descontração.
– Bem, é emocionante, acho eu – diz ela. – Finalmente eles apresentam os gráficos e as pontuações, e fazem valer os seus palpites. E é então que começa realmente a gritaria. Gostei.
– Bem, nós tentamos levar em conta todos os dados intangíveis – digo eu. – Quando comecei a trabalhar aqui, levei um tempo dos diabos a perceber porque é que eles haviam de ter sempre razão, ou mesmo como é que sabiam alguma coisa. – E vou acenando com a cabeça, satisfeito com o que é obviamente a verdade incontornável de uma vida vivida, apesar de não ter razões para pensar que esta Catherine Flaherty não o saiba já há mais tempo do que eu. Ainda está nos vinte, mas tem o ar arguto de quem sabe mais do que eu a respeito das coisas que mais importam para mim – fruto de uma vida privilegiada. – Está a pensar experimentar este ofício quando sair da universidade? – pergunto-lhe, na esperança de ouvir Isso mesmo, pode apostar. Mas ela fica por momentos pensativa, como se não quisesse dececionar-me.
– Bem, já me inscrevi em Medicina, e tenho passado este tempo todo a candidatar-me. Devo saber o resultado nos próximos dias. Mas também quis experimentar isto. Sempre achei que devia ser fixe. – Começa a rasgar mais um sorriso, mas de repente a sua expressão torna-se muito séria, como se eu pudesse ofender-me com a mínima graça. O que ela quer realmente é que lhe dê bons conselhos, um voto numa direção ou na outra. – O meu irmão jogou hóquei na Bowdoin – diz ela, e não consigo descortinar porquê.
– Bem – digo eu alegremente sem um pingo de sinceridade –, a Medicina é sempre uma escolha acertada. – Rodo a cadeira com pretensa vivacidade com os dedos a tamborilar no encosto de braços. – Medicina é uma escolha fantástica. Vai participar na vida das outras pessoas de uma forma útil, o que eu considero importante. Embora seja minha convicção que também o poderá fazer como jornalista desportiva… e até muito bem, de facto.
O meu joelho dorido solta um soluço articular, um soluço certamente comandado pelo coração.
– O que o levou a querer ser jornalista desportivo? – pergunta Catherine Flaherty. Esta rapariga não é para brincadeiras. O pai ensinou-lhe muito.
– Bem, para dizer a verdade, alguém me convidou numa altura em que eu não tinha outra ideia melhor. Em que estava sem objetivos. Nessa época estava a tentar escrever um romance, mas não estava a correr como eu queria. Foi bom pô-lo de lado e vir para aqui. E até hoje não me arrependi nem por um segundo.
– E chegou a terminar o romance?
– Não. Acho que o poderia ter terminado se quisesse. O problema, a meu ver, era que, a menos que eu fosse um Cheever ou um O’Hara, ninguém iria ler o que eu escrevesse, mesmo que tivesse ido até ao fim, o que eu não podia garantir. Ao passo que, assim, tenho uma data de leitores e posso continuar a dar atenção às coisas que são importantes para mim. Quer dizer, depois de ter conseguido algum reconhecimento.
– Bem, tudo o que as pessoas escrevem parece ter um propósito, querer transmitir algo de importante. Mas eu não sei se consigo fazer isso. Talvez seja demasiado cínica – diz Catherine.
– Se isso a preocupa, provavelmente não é. Foi o que eu descobri. Estou sempre preocupado com isso. Mas muitos dos que andam neste ofício nem pensam nisso. E alguns desses são os escrupulosos. Mas o que eu penso é que pode aprender a não ser cínica, se isso lhe interessar o suficiente. Pode encontrar alguém que lhe ensine a identificar os sinais de alarme. Provavelmente eu mesmo o poderia fazer, e num instante – sugiro, de joelho a latejar e coração a palpitar. Deixa-me ser teu professor.
– Qual é um sinal de alerta típico? – pergunta ela a sorrir, afastando o cabelo de mel como quem diz devo-estar-no-caminho-certo.
– Bem, não se preocupar com isso é um deles. E isso já a Catherine faz. Outro é dar por si a ter pena de alguém sobre quem está a escrever, pois a próxima pessoa de quem é provável que vá sentir pena é de si mesma, e se isso acontecer está tramada. Se eu alguma vez sentir que a vida de outra pessoa é uma tragédia, tenho a certeza de estar a cometer um erro crasso, e trato de recomeçar. E realmente acho que nunca me senti perdido nem alienado ao fazê-lo. Os verdadeiros escritores sentem-se permanentemente alienados. Já li artigos onde o admitem.
– Acha que os médicos se sentem alienados?
Catherine parece preocupada (e bem pode estar), e eu não posso deixar de pensar no Fincher e na vida triste e estúpida que deve ter. Se bem que poderia ser pior.
– Não vejo como podem evitá-lo, pelo menos em parte – é a minha resposta. – Veem tanta infelicidade e tanta desgraça. Falando francamente, poderia experimentar a faculdade de Medicina e, se não resultar, já sabe que tem emprego garantido como jornalista desportiva. De facto, poderia até voltar para aqui.
Ela oferece-me o seu sorriso mais cintilante, com os seus dentes perfeitos de Boston, ou Beantown, como às vezes lhe chamamos, a refletirem a luz como opalas. Estamos agora completamente sozinhos. As fiadas de compartimentos desertos sucedem-se até à receção, também ela deserta, e à zona do elevador – um lugar ideal para o amor desabrochar. Temos coisas para fazer e muito para partilhar – a admiração dela por mim, os meus conselhos sobre o seu futuro, a minha admiração por ela, o respeito dela pelas minhas opiniões (que até pode suplantar o que tem pelas do pai). Vamos esquecer que tenho o dobro da idade dela, ou talvez mais. A idade conta demasiado neste país. Os europeus riem-se de nós nas nossas costas, enquanto desfrutam da vida em pleno até à morte. Catherine Flaherty e este que eu sou são apenas duas pessoas que aqui estão, com muitas coisas em comum, muitos projetos e o desejo de partilha.
– Você é mesmo fantástico – diz ela, sem problema. – É mesmo um otimista. Como o meu pai. Todas as minhas preocupações parecem reduzidas a pormenores insignificantes que se vão resolver.
O seu sorriso diz que sente cada palavra, e eu mal posso esperar para continuar a passar-lhe mais um pouco da minha sabedoria.
– Gosto de me ver como uma pessoa literalista – começo eu a dizer. – Seja o que for que nos aconteça, será algo de literal quando acontecer. Eu só tento organizar as coisas da melhor maneira que sei, de acordo com as minhas capacidades. – Olho de relance para trás, para a secretária, como se tivesse acabado de me lembrar de uma coisa importante – um exemplar fantasma de Folhas de Erva ou um livro da Ayn Rand já muito folheado –, mas só lá está o meu bloco A4 todo rabiscado de alto a baixo com tentativas falhadas, como uma lista de compras. – A menos que a Catherine seja uma verdadeira calvinista, claro, realmente as possibilidades não são nem por sombras limitadas – concluo, contraindo os lábios.
– A minha família é presbiteriana – diz Catherine Flaherty, replicando na perfeição a minha expressão de lábios comprimidos. (E eu que pensava que ela alinhava na equipa do Papa.)
– Também jogo na mesma equipa. Mas tenho-me desleixado um pouco. Penso, no entanto, que não há problema. Ultimamente nem sei para onde me hei de virar.
– Também tenho muito a aprender, acho eu.
E por um longo momento reina entre nós um silêncio discreto enquanto as luzes murmuram suavemente sobre as nossas cabeças.
– O que é que eles aqui lhe deram para fazer para ganhar experiência? – pergunto abertamente.
Seja qual for a ideia em laboração, ainda não a vislumbro no horizonte, e não quero parecer calculista, o que a poria a correr daqui para fora. (Apercebo-me neste momento de como detestaria conhecer o pai dela, apesar de aceitar que seja um tipo fantástico.)
– Bem, acabei de fazer umas entrevistas pelo telefone e achei interessante. O antigo treinador de Princeton, agora reformado, era um desertor russo dos anos 50 que passava informação sobre as bombas de hidrogénio durante os encontros de atletismo. Tudo isso foi mantido em segredo, acho eu, e o governo já tinha o lugar à espera dele em Princeton.
– Parece-me bem – digo eu. E parece mesmo. Uma intriga de segunda, algo onde cravar os dentes.
– Mas tenho muita dificuldade em arranjar boas perguntas. – Franze a testa, a mostrar genuína preocupação com a sua arte. – As minhas são demasiado complicadas, e ninguém tem muito a responder.
– Não me surpreende – digo eu. – Basta fazermos perguntas simples e lembrarmo-nos de as repetir vezes sem conta, às vezes usando palavras diferentes. A maior parte dos atletas estão na verdade mortos por contar toda a verdade. Só precisamos de lhes aplanar o caminho. É precisamente por isso que muitos jornalistas desportivos se tornam cínicos como o diabo. O seu papel é muito menos importante do que pensam, e isso torna-os amargos. No entanto, tudo o que eles fizeram foi aprender a serem bons no seu ofício.
Catherine Flaherty encosta-se à ombreira da porta de alumínio com os olhos a brilhar e a boca a expressar incerteza, e não diz rigorosamente nada neste momento tão importante, limitando-se a menear a cabeça bonita. Sim. Sim.
Cabe-me a mim tomar a iniciativa.
Esta noite a Lua desenha-se suavemente prateada no meu horizonte obscuro, e tudo o que tenho de fazer é levantar-me, colocar as mãos no peito firmemente, como Santo Estêvão, e sugerir irmos apanhar um pouco de fresco e dar uma volta pela Park Avenue, talvez com um desvio até à Second Avenue para uma sanduíche e uma cerveja num lugar que tenho de descobrir (mas ainda não sei qual), e depois deixar que a noite sonhadora se inspire e nos inspire daí em diante. Um casal. Cidadãos ordeiros de braço dado sob aquela superlua, companheiros a passear pelas ruas tranquilas, mãos experientes a entregarem-se a um novo romance.
Deito um olho ao relógio que está por cima do compartimento de Eddie Frieder, espreito até lá para fora pela janela dele para a noite enluarada e para o edifício em frente. Para as janelas que brilham amarelas com uma iluminação antiquada. Um homenzarrão de colete está a olhar para baixo, para a avenida. Para onde? O que lhe irá na cabeça, não posso deixar de pensar. Um conjunto de alternativas que não lhe agradam? Um dilema que poderia levar toda a noite a ser resolvido? Um futuro mais negro do que a própria noite? Por trás dele alguém que eu não posso ver fala com ele ou chama-o, e ele vira-se, levanta as mãos num gesto de aceitação e sai da minha vista.
No relógio de Eddie Frieder são onze horas em ponto. Noite de Páscoa. A redação está em silêncio e tudo sossegado, exceto pelo zunzum distante de um computador e o próprio relógio, que se aproxima do minuto seguinte. No ar inodoro paira um perfume doce – o perfume de Catherine Flaherty, um perfume a roupeiros repletos, a travessuras secretas de colégio de elite, a encontros escusos (mas não demasiado). E, por um momento, fico mudo e paralisado a imaginar com precisão como ela irá desempenhar a tarefa de me amar. Claro que, pensando bem, é uma história que já conheço, que só posso conhecer (um assunto que deixa de nos surpreender quando somos adultos). Fá-lo-á da forma mais semisséria que existe. Não como amaria um qualquer Dan do Dartmouth, nem como irá amar o felizardo com quem casará – algum licenciado da Columbia University, de olhos arregalados, com um escritório de advogados na família. Mas algo de intermédio, como quem diz: estou a levar isto muito a sério, mas só para adquirir experiência; seria a rapariga mais surpreendida de Boston se esta relação se tornasse minimamente importante; mas vai ser interessante, pode apostar, e um dia mais tarde olharei para trás com a certeza de ter feito o que devia, mas sem saber ao certo porque penso assim; vamos em frente a todo o vapor.
E qual é a minha atitude? A certa altura nada mais conta realmente senão a nossa atitude – as esperanças, os riscos, os sacrifícios, as potenciais áreas de arrependimento e recompensa –, quando entramos no que não passa de rotineira experiência na Terra.
A minha, e é a sentir-me feliz que o digo, é a melhor possível.
– Ora bem – digo em tom arrebatador, com as mãos sobre o peito. – Que diz a sairmos daqui e irmos dar uma volta? Não como nada desde o almoço, e neste momento estou com uma fome de leão. Ofereço-lhe uma sanduíche.
Catherine Flaherty morde o lábio, abre um sorriso ainda mais rasgado do que o meu e nas suas faces pálidas floresce a cor. Que bela ideia, parece dizer, a vibrar de emoção. (No entanto, e ainda antes de responder, já está a concordar com um aceno.)
– Isso parece-me realmente fantástico. – E sacode o cabelo com convicção. – Acho que também estou cheia de fome. Deixe-me só ir buscar o casaco e pomo-nos a andar.
– Combinado.
Oiço os seus passos ligeiros pelo corredor alcatifado e a porta da casa de banho das senhoras abrir, voltar a encostar, sussurrante, e bater com força (sempre prática, esta rapariga). E não há no mundo melhor momento do que este – tudo segue o seu curso, nada corre mal, tudo é possível –, diametralmente oposto ao modo como me sentia na outra noite, em que tudo estava em derrapagem e nada que valesse a pena se vislumbrava no horizonte, nem a mil quilómetros. Pensando bem, isso é realmente tudo o que importa na vida.
A luz no prédio em frente está agora apagada. No entanto, do lugar onde me encontro (a sentir o joelho magoado agora como novo), à espera desta rapariga sentimental e irresistível, não posso ter a certeza de que o homem que lá vi – o tal homenzarrão de colete e gravata, surpreendido por uma voz imprevista a chamar pelo seu nome, um som por que ele não esperava –, não posso ter a certeza de que ainda não esteja lá, a olhar para as ruas anoitecidas, sozinho. E então aproximo-me mais da vidraça e tento localizá-lo na escuridão, concentrando o olhar, na esperança de encontrar pelo menos a ilusão de um rosto, alguém do outro lado a observar-me também. Lá em baixo sinto o ruído do trânsito, a vida em movimento. Oiço lá atrás a porta a sussurrar e de novo a fechar-se, e passos que se aproximam. E sinto que não é possível ver mais nada, embora suspeite de que não está lá ninguém a observar-me. Ninguém deu pela minha presença aqui.