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A história mostrou-nos que os homens sempre detiveram todos os poderes concretos; desde os primeiros tempos do patriarcado, julgaram útil manter a mulher em estado de dependência; seus códigos estabeleceram-se contra ela; e assim foi que ela se constituiu concretamente como Outro. Esta condição servia os interesses dos homens, mas convinha também a suas pretensões ontológicas e morais. Desde que o sujeito busque afirmar-se, o Outro, que o limita e nega, é-lhe, entretanto, necessário: ele só se atinge através dessa realidade que ele não é. Por isso, a vida do homem nunca é plenitude e repouso, ela é carência e movimento, é luta. Diante de si, o homem encontra a Natureza; tem possibilidade de dominá-la e tenta apropriar-se dela. Mas ela não pode satisfazê-lo. Ou ela só se realiza como uma oposição puramente abstrata e é então obstáculo e permanece alheia, ou se dobra passivamente ao desejo do homem e deixa-se assimilar por ele; ele só a possui consumindo-a, isto é, destruindo-a. Nesses dois casos, ele continua só; está só quando toca uma pedra, só quando digere um fruto. Só há presença do outro se o outro é ele próprio presente a si; isso significa que a verdadeira alteridade é a de uma consciência separada da minha e idêntica a ela. É a existência dos outros homens que tira o homem de sua imanência e lhe permite realizar a verdade de seu ser, realizar-se como transcendência, como fuga para o objeto, como projeto. Mas essa liberdade alheia, que confirma minha liberdade, entra também em conflito com ela: é a tragédia da consciência infeliz; toda consciência aspira a colocar-se como sujeito soberano. Toda consciência tenta realizar-se reduzindo a outra à escravidão. Mas o escravo no seu trabalho e no seu medo sente-se, ele também, como essencial e, em virtude de uma reviravolta dialética, é o senhor que a ele se apresenta como inessencial. O drama pode ser resolvido pelo livre reconhecimento de cada indivíduo no outro, cada qual pondo, a um tempo, a si e ao outro como objeto e como sujeito em um movimento recíproco. Mas a amizade e a generosidade que realizam concretamente esse reconhecimento das liberdades não são virtudes fáceis; são seguramente a mais alta realização do homem, e desse modo é que ele se encontra em sua verdade: mas essa verdade é a de uma luta incessantemente esboçada e abolida. Ela exige que o homem se supere a cada instante. Pode-se dizer também, numa outra linguagem, que o homem atinge uma atitude autenticamente moral quando renuncia a ser para assumir sua existência; com essa conversão, ele renuncia também a toda posse, porque a posse é um modo de procura do ser; mas a conversão pela qual ele atinge a verdadeira sabedoria nunca se completa, é preciso fazê-la sem cessar, ela reclama uma tensão constante. De maneira que, incapaz de se realizar na solidão, o homem em suas relações com seus semelhantes acha-se permanentemente em perigo: sua vida é uma empresa difícil cujo êxito nunca se encontra assegurado.

Mas ele não aprecia a dificuldade; teme o perigo. Contradi-toriamente, aspira à vida e ao repouso, à existência e ao ser; sabe muito bem que “a inquietação do espírito” é o preço que tem de pagar pelo seu desenvolvimento, que sua distância em relação ao objeto é o que lhe custa sua presença em si: mas ele sonha com a quietude na inquietude e com uma plenitude opaca que a consciência habitaria contudo. Esse sonho encarnado é precisamente a mulher; ela é o intermédio desejado entre a natureza exterior ao homem e o semelhante que lhe é por demais idêntico.71 Ela não lhe opõe nem o silêncio inimigo da natureza, nem a dura exigência de um reconhecimento recíproco; por um privilégio único, ela é uma consciência e no entanto parece possível possuí-la em sua carne. Graças a ela, há um meio de escapar à implacável dialética do senhor e do escravo, que tem sua base na reciprocidade das liberdades.

Viu-se que não houve, a princípio, mulheres livres que os homens teriam escravizado e que nunca a divisão dos sexos criou uma divisão em castas. Assimilar a mulher ao escravo é um erro. Houve mulheres entre os escravos, mas sempre existiram mulheres livres, isto é, revestidas de dignidade religiosa e social; elas aceitavam a soberania do homem e este não se sentia ameaçado por uma revolta que o pudesse transformar, por sua vez, em objeto. A mulher apresentava-se assim como o inessencial que nunca retorna ao essencial, como o Outro absoluto, sem reciprocidade. Todos os mitos da criação exprimem essa convicção preciosa do macho e, entre outras, a lenda do Gênese que, através do cristianismo, se perpetuou na civilização ocidental. Eva não foi criada ao mesmo tempo que o homem; não foi fabricada com uma substância diferente, nem com o mesmo barro que serviu para moldar Adão: ela foi tirada do flanco do primeiro macho. Seu nascimento não foi autônomo; Deus não resolveu espontaneamente criá-la com um fim em si e para ser por ela adorado em paga: destinou-a ao homem. Foi para salvar Adão da solidão que ele lha deu, ela tem no esposo sua origem e seu fim; ela é seu complemento no modo do inessencial. E assim ela surge como uma presa privilegiada. É a natureza elevada à transparência da consciência, uma consciência naturalmente submissa. E é essa maravilhosa esperança que muitas vezes o homem pôs na mulher. Ele espera realizar-se como ser possuindo carnalmente um ser, ao mesmo tempo que consegue confirmar-se em sua liberdade através de uma liberdade dócil. Nenhum homem consentiria em ser uma mulher, mas todos desejam que haja mulheres. “Agradeçamos a Deus por ter criado a mulher.” “A Natureza é boa demais, pois deu a mulher aos homens.” Nessas frases, e em outras análogas, o homem afirma uma vez mais com arrogante ingenuidade que sua presença neste mundo é um fato inelutável e um direito, enquanto a da mulher é um simples acidente: um bem-aventurado acidente. Aparecendo como o Outro, a mulher aparece ao mesmo tempo como uma plenitude de ser em oposição a essa existência cujo vazio o homem sente em si; o Outro, sendo posto como objeto aos olhos do sujeito, é posto como em si, logo como ser. Na mulher encarna-se positivamente a falta que o existente traz no coração, e é procurando alcançar-se através dela que o homem espera realizar-se.

Entretanto, ela não representou, para ele, a única encarnação do Outro, e nem sempre conservou, no decorrer dos tempos, a mesma importância. Houve momentos em que foi eclipsada por outros ídolos. Quando a Cidade, o Estado devoram o cidadão, este não tem mais a possibilidade de se ocupar de seu destino particular. Destinada ao Estado, a espartana tem uma condição superior à das outras mulheres gregas, mas não é por isso mesmo transfigurada por nenhum sonho masculino. O culto do chefe, seja ele Napoleão, Mussolini, Hitler, exclui qualquer outro culto. Nas ditaduras militares, nos regimes totalitários, a mulher não é mais um objeto privilegiado. Compreende-se que seja divinizada num país rico e cujos habitantes não sabem muito bem que sentido dar à vida: é o que ocorre na América do Norte. Em compensação, as ideologias socialistas que exigem a assimilação de todos os seres humanos não admitem que no futuro, e mesmo desde o presente, qualquer categoria humana seja objeto ou ídolo. Na sociedade autenticamente democrática que profetiza Marx não há lugar para o Outro. Entretanto, poucos homens coincidem exatamente com o soldado, o militante que escolheram ser; na medida em que se conservam indivíduos, a mulher guarda a seus olhos um valor singular. Vi cartas escritas por soldados alemães a prostitutas francesas, nas quais, a despeito do nazismo, o sentimentalismo tradicional se evidenciava ingenuamente vivaz. Escritores comunistas, como Aragon na França, Vittorini na Itália, dão em suas obras um lugar de grande importância à mulher, amante ou mãe. Talvez o mito da mulher se extinga um dia: quanto mais se afirmam como seres humanos mais definha nelas a maravilhosa qualidade do Outro. Mas, atualmente, esse mito ainda existe no coração de todos os homens.

Todo mito implica um Sujeito que projeta suas esperanças e seus temores num céu transcendente. As mulheres, não se colocando como Sujeito, não criaram o mito viril no qual seus projetos se refletiriam; elas não possuem nem religião nem poesia que lhes pertençam exclusivamente: é ainda através dos sonhos dos homens que elas sonham. São os deuses fabricados pelos homens que elas adoram. Estes forjaram para sua própria exaltação as grandes figuras viris: Hércules, Prometeu, Parsifal; no destino desses heróis a mulher tem apenas um papel secundário. Possivelmente, existem imagens estilizadas do homem enquanto preso a suas relações com a mulher: pai, sedutor, marido ciumento, bom filho, mau filho; mas foram igualmente os homens que as fixaram e elas não atingem a dignidade do mito: não passam, por assim dizer, de clichês. Ao passo que a mulher é exclusivamente definida em relação ao homem. A assimetria das duas categorias, masculina e feminina, manifesta-se na constituição unilateral dos mitos sexuais. Diz-se, por vezes, “o sexo” para designar a mulher; é porque ela é a carne com suas delícias e seus perigos. Quanto ao fato de, para a mulher, ser o homem o sexual e o carnal, é uma verdade que nunca foi proclamada porque não houve ninguém para a proclamar. A representação do mundo, como o próprio mundo, é operação dos homens; eles o descrevem do ponto de vista que lhes é peculiar e que confundem com a verdade absoluta.

É sempre difícil descrever um mito; ele não se deixa apanhar nem cercar, habita as consciências sem nunca postar-se diante delas como um objeto imóvel. É por vezes tão fluido, tão contraditório que não se lhe percebe, de início, a unidade: Dalila e Judite, Aspásia e Lucrecia, Pandora e Atená, a mulher é, a um tempo, Eva e a Virgem Maria. É um ídolo, uma serva, a fonte da vida, uma força das trevas; é o silêncio elementar da verdade, é artifício, tagarelice e mentira; a que cura e a que enfeitiça; é a presa do homem e sua perda, é tudo o que ele quer ter, sua negação e sua razão de ser.

“Ser mulher, diz Kierkegaard,72 é algo tão estranho, tão complexo, tão complicado que nenhum predicado consegue exprimi-lo e que os múltiplos predicados que desejaríamos empregar se contradiriam de tal modo que só uma mulher o pode suportar.” Isso decorre do fato de que ela não é considerada positivamente, tal qual é para si, mas negativamente, tal qual se apresenta ao homem. Pois, se há outros Outros além da mulher, ela continua contudo sempre definida como Outro. E sua ambiguidade é a da própria ideia de Outro: é a da condição humana enquanto se define na sua relação com o Outro. Já se disse: o Outro é o Mal; mas, necessário ao Bem, retorna ao Bem. É por ele que ascendo ao Todo, mas é por ele que me separo do Todo: é a porta do infinito e a medida de minha finidade. É por isso que a mulher não encarna nenhum conceito imoto; através dela realiza-se sem cessar a passagem da esperança ao fracasso, do ódio ao amor, do bem ao mal, do mal ao bem. Sob qualquer aspecto que se considere é essa ambivalência que impressiona primeiramente.

O homem procura na mulher o Outro como Natureza e como seu semelhante. Mas conhecemos os sentimentos ambivalentes que a Natureza inspira ao homem. Ele a explora, mas ela o esmaga, ele nasce dela e morre nela; é a fonte de seu ser e o reino que ele submete à sua vontade; uma ganga material em que a alma se encontra presa, e é a realidade suprema; é a contingência e a Ideia, a finitude e a totalidade; é o que se opõe ao Espírito e o próprio espírito. Ora aliada, ora inimiga, apresenta-se como o caos tenebroso da onde brota a vida, como essa vida, e como o além para o qual tende: a mulher resume a natureza como Mãe, Esposa e Ideia. Essas figuras ora se confundem e ora se opõem, e cada uma delas tem dupla face.

O homem mergulha suas raízes na Natureza: foi engendrado como os animais e as plantas, sabe que só existe enquanto vive. Mas, desde o advento do patriarcado, a Vida revestiu a seus olhos um duplo aspecto: ela é consciência, vontade, transcendência e espírito; e é matéria, passividade, imanência e carne. Ésquilo, Aristóteles, Hipócrates proclamaram que na Terra, como no Olimpo, é o princípio masculino que é verdadeiramente criador. Dele saíram a forma, o número, o movimento. Com Deméter multiplicam-se as espigas, mas a origem da espiga e sua verdade está em Zeus; a fecundidade da mulher é encarada tão somente como uma virtude passiva. Ela é a terra e o homem, a semente, ela é a Água e ele, o Fogo. A criação foi amiúde imaginada como um casamento do fogo com a água: é a unidade quente que dá nascimento aos seres vivos. O Sol é o esposo do Mar;73 Sol e fogo são divindades masculinas; o Mar é um dos símbolos maternos mais universais. Inerte, a água sofre a ação dos raios flamejantes que a fertilizam. Da mesma forma, a gleba entalhada pelo arado recebe, imóvel, as sementes em seus sulcos. Entretanto, seu papel é necessário: é ela que alimenta o germe, que o nutre e lhe fornece sua substância. Eis por que, mesmo depois de destronada a Grande Mãe, o homem continua a render um culto às deusas da fecundidade;74 ele deve a Cibele suas colheitas, seus rebanhos, sua prosperidade. Deve-lhe a própria vida. Ele exalta a água assim como o fogo. “Glória ao mar! Glória às suas vagas envoltas em fogo sagrado! Glória à onda! Glória ao fogo! Glória à estranha aventura!”, escreve Goethe no Segundo Fausto. Ele venera a terra: The Matron Clay, como a chama Blake. Um profeta indiano aconselha seus discípulos a não cavar a terra porque “é um pecado ferir ou cortar, dilacerar nossa mãe comum com trabalhos agrícolas... Irei armar-me de faca para mergulhá-la no seio de minha mãe... Irei mutilar-lhe as carnes para alcançar-lhe os ossos? Como ousaria cortar os cabelos de minha mãe?” Na Índia Central, os Baja também consideram que é um pecado “dilacerar o seio da terra-mãe com o arado”. Inversamente, Ésquilo diz de Édipo que “ousou semear o sulco sagrado em que se formara”. Sófocles fala dos “sulcos paternos” e do “lavrador, dono de um campo longínquo que só visita uma vez na época da semeadura”. A bem-amada de uma canção egípcia declara: “Eu sou a terra!” Nos textos islâmicos a mulher é chamada “campo... vinha”. São Francisco de Assis, em um de seus hinos, fala de “nossa irmã, a terra, nossa mãe, que nos conserva e de nós cuida, que produz os mais variados frutos e as flores multicores e a relva”. Michelet, tomando banhos de lama em Acqui, exclama: “Querida mãe comum! Somos um. Venho de ti e a ti retorno!...” E há mesmo épocas em que se afirma um romantismo vitalista que aspira ao triunfo da Vida sobre o Espírito: então a fertilidade mágica da terra, da mulher, se apresenta como mais maravilhosa do que as operações projetadas do homem; e o homem sonha então com se confundir novamente com as trevas maternas para reencontrar as fontes verdadeiras de seu ser. A mãe é a raiz plantada nas profundezas do cosmo e que suga os sucos, é a nascente de que jorra a água viva que é também um leite nutriz, uma cálida fonte, uma lama feita de terra e água, rica de forças regeneradoras.75

Porém mais generalizada é no homem a revolta contra sua condição carnal; ele considera-se um deus destronado; sua maldição está em ter caído de um céu luminoso e se ter formado nas trevas caóticas do ventre materno. A mulher mantém prisioneiro na lama da terra esse fogo, esse sopro ativo e puro em que o homem aspira a se reconhecer. Ele se desejaria necessário como uma pura Ideia, como o Um, o Todo, o Espírito Absoluto; e encontra-se encerrado em um corpo limitado, em um lugar e um tempo que não escolheu, a que não era chamado, inútil, incômodo, absurdo. A contingência carnal é a de seu próprio ser que sofre em seu desamparo, em sua injustificável gratuidade. Ela impõe-lhe igualmente a morte. Essa gelatina trêmula que se elabora na matriz (a matriz secreta e fechada como um túmulo) evoca demasiado a mole viscosidade da carniça para que dela não se afaste com arrepios. Por toda parte onde a vida se vai criando, germinação, fermentação, ela provoca repugnância porque só se faz em se desfazendo; o embrião visguento abre o ciclo que se fecha com a podridão da morte. Por ter horror à gratuidade e à morte, o homem abomina ter sido engendrado; gostaria de renegar suas ligações animais; em consequência de seu nascimento a Natureza assassina o domina. Entre os primitivos, o parto é cercado dos mais severos tabus; a placenta, em particular, deve ser cuidadosamente queimada ou jogada ao mar, pois quem quer que dela se apossasse teria nas mãos o destino do recém-nascido; essa ganga em que se formou o feto é o sinal de sua dependência; aniquilando-a, dá-se ao indivíduo a possibilidade de se desprender do magma vivo e realizar-se como ser autônomo. A mácula do nascimento recai na mãe. O Levítico e todos os códigos antigos impõem ritos purificadores à parturiente; e em muitas regiões rurais a cerimônia da purificação é conservada tradicionalmente. Conhece-se o embaraço espontâneo, embaraço que se mascara por vezes de escárnio, que sentem as crianças, as jovens, os homens diante do ventre de uma mulher grávida, dos seios intumescidos de uma nutriz. Nos museus Dupuytren, os curiosos contemplam os embriões de cera e os fetos em conserva com um interesse tão mórbido quanto o que teriam ao violar sepulturas. A função da gestação inspira uma repulsa espontânea, apesar de todo o respeito com que a sociedade a cerca. E se o menino, na sua primeira infância, continua sensualmente ligado à carne materna, quando cresce, se socializa e toma consciência de sua existência individual, essa carne lhe inspira medo; ele quer ignorá-la e ver na mãe tão somente uma pessoa moral; se procura imaginá-la casta e pura é menos por ciúme amoroso do que por recusa em lhe reconhecer um corpo. Um adolescente perturba-se, enrubesce, se, passeando com seus colegas, encontra a mãe, as irmãs, mulheres de sua família; é que a presença delas impele-o para as regiões da imanência de onde desejaria sair; elas revelam as raízes de que gostaria de se libertar. A irritação do meninote quando a mãe o acarinha e beija tem o mesmo sentido; ele renega a família, a mãe, o seio materno. Desejaria, como Atená, ter surgido no mundo adulto, armado dos pés à cabeça, invulnerável.76 Ter sido concebido e parido é a maldição que pesa sobre seu destino, a impureza que se cola a seu ser. E é o sinal de sua morte. O culto da germinação sempre se associou ao culto dos mortos. A Terra-Mãe encerra em seu seio as ossadas de seus filhos. São as mulheres — Parcas e Moiras — que tecem o destino humano; mas são elas igualmente que cortam os fios. Na maioria das representações populares, a morte é mulher, e é às mulheres que cabe chorar os mortos, porquanto a morte é obra sua.77

Tem, assim, a Mulher-Mãe um rosto de trevas: ela é o caos de que tudo saiu e ao qual tudo deve voltar um dia; ela é o Nada. Dentro da Noite confundem-se os múltiplos aspectos do mundo que o dia revela: noite do espírito encerrado na generalidade e na opacidade da matéria, noite do sono e do nada. No fundo do mar impera a noite: a mulher é o Mare tenebrarum temido dos antigos navegadores; a noite impera nas entranhas da terra. Essa noite pela qual o homem receia ser tragado, e que é o inverso da fecundidade, apavora-o. Ele aspira ao céu, à luz, aos picos ensolarados, ao frio puro e cristalino do azul; e, a seus pés, há um abismo úmido e quente, obscuro, pronto para abocanhá-lo; numerosas lendas mostram-nos o herói que se perde para sempre recaindo nas trevas maternas: caverna, abismo, inferno.

Mas a ambivalência funciona novamente aqui: se a germinação sempre se associa à morte, esta também se associa à fecundidade. A morte detestada apresenta-se como novo nascimento e ei-la bendita. O herói morto ressuscita, como Osíris, na primavera, e é regenerado por novo parto. A suprema esperança do homem, diz Jung,78 “é que as sombrias águas da morte se tornem águas de vida, que a morte e seu frio amplexo sejam o ventre materno, como o mar que, tragando o sol, o reengendra em suas profundezas”. É um tema comum a numerosas mitologias o do sepultamento do deus-sol no seio do mar e sua deslumbrante reaparição. E o homem quer viver, mas ao mesmo tempo aspira ao repouso, ao sono, ao nada. Ele não se deseja imortal e por isso pode aprender a amar a morte. “A matéria inorgânica é o seio materno, escreve Nietzsche. Libertar-se da vida é tornar a ser verdadeiro, é completar-se. Quem compreendesse isso consideraria uma festa retornar ao pó insensível.” Chaucer põe essa prece na boca de um velho que não consegue morrer:

 

Com meu bastão, dia e noite,

bato na terra, porta de minha mãe,

e digo: Ó querida mãe, deixe-me entrar.

 

O homem quer afirmar sua existência singular e repousar orgulhosamente em sua “diferença essencial”, mas ele aspira também a demolir as barreiras do eu, confundir-se com a água, a terra, a noite, o Nada, o Todo. A mulher que condena o homem à finidade permite-lhe igualmente ultrapassar seus próprios limites. Daí a magia equívoca com que ela se reveste.

Em todas as civilizações, e até em nossos dias, ela inspira horror ao homem: é o horror da sua própria contingência carnal que ele projeta nela. A jovem ainda impúbere não encerra nenhuma ameaça, não é objeto de nenhum tabu e não possui nenhum caráter sagrado. Em muitas sociedades primitivas seu sexo é considerado inocente. Os jogos eróticos são permitidos desde a infância entre meninos e meninas. É a partir do dia em que se torna suscetível de conceber que a mulher fica impura. Descreveram-se, muitas vezes, os severos tabus que nas sociedades primitivas cercam a jovem, quando de sua primeira menstruação; mesmo no Egito, onde era tratada com deferências especiais, a mulher permanecia isolada durante o período das regras.79 Muitas vezes expunham-na no telhado de uma casa, relegavam-na numa cabana fora da aldeia, não se devia vê-la nem tocá-la: mais ainda, ela própria não se devia tocar com a mão. Entre os povos que praticam habitualmente o despiolhamento dão-lhe um pauzinho para se coçar. Ela não deve tocar os alimentos com os dedos. Por vezes, é radicalmente proibido que ela coma; em outros casos a mãe e a irmã são autorizadas a alimentá-la por intermédio de um instrumento. Mas todos os objetos que entram em contato com ela durante esse período devem ser queimados. Depois dessa primeira provação, os tabus menstruais tornam-se menos severos, mas permanecem rigorosos. Lê-se, em particular, no Levítico: “A mulher que tiver um fluxo de sangue em sua carne permanecerá sete dias na sua impureza. Quem a tocar será impuro até a noite. Todo leito em que dormir... todo objeto sobre o qual se sentar será impuro. Quem tocar em seu leito lavará as roupas e a si próprio com água e será impuro até a noite.” Este texto é exatamente simétrico ao que trata da impureza produzida no homem pela gonorreia. E o sacrifício purificador é idêntico em ambos os casos. Uma vez purificada, deve-se contar sete dias e trazer duas rolas ou dois pombos jovens ao sacrificador que os oferecerá ao Criador. É de observar que, nas sociedades matriarcais, as virtudes atribuídas à menstruação são ambivalentes. Por um lado, ela paralisa as atividades sociais, destrói a força vital, faz murcharem as flores, caírem os frutos; mas tem também efeitos benfazejos: os mênstruos são utilizados nos filtros de amor, nos remédios, em particular para cortes e equimoses. Ainda hoje, certos índios, quando partem para combater os monstros quiméricos que frequentam seus rios, colocam à frente do barco um tampão de fibras impregnado de sangue menstrual, cujas emanações são nefastas aos inimigos sobrenaturais. As jovens de certas cidades gregas ofereciam em homenagem no templo de Astarté um trapo manchado com seu primeiro sangue. Mas desde o advento do patriarcado só se atribuíram poderes nefastos ao estranho licor que escorre do sexo feminino. Plínio diz em sua História natural: “A mulher menstruada estraga as colheitas, devasta os jardins, mata os germes, faz caírem os frutos, mata as abelhas; se toca no vinho, dele faz vinagre; o leite azeda...”

Um antigo poeta inglês exprime o mesmo sentimento quando escreve:

 

Oh! Menstruating woman, thou’st a fiend

From whom all nature should be screened!”

 

“Ó mulher, teus mênstruos são uma praga

De que seria preciso proteger a Natureza!”

 

Tais crenças perpetuaram-se até nossos dias com muita força. Em 1878, um membro da Associação de Medicina Britânica fez uma comunicação ao British Medical Journal em que declara: “É indubitável que a carne se corrompe quando tocada pela mulher no período das regras”; e afirma saber de dois casos em que os presuntos se estragaram em tais circunstâncias. Em princípios deste século, nas refinarias do Norte, um regulamento proibia às mulheres entrarem na fábrica quando atingidas por isso que os anglo-saxões chamam curse, “maldição”, porque então o açúcar pretejava. E em Saigon não se empregam mulheres em fábricas de ópio: em consequência das regras, o ópio torna-se amargo. Essas crenças sobrevivem em muitas regiões rurais francesas. Toda cozinheira sabe que é impossível acertar uma maionese quando se acha indisposta ou simplesmente diante de uma mulher indisposta. Em Anjou, recentemente, um velho jardineiro, tendo guardado num celeiro a colheita de cidra do ano, escreveu ao patrão: “Cumpre pedir às jovens da casa e às convidadas que não passem pelo celeiro em certos dias do mês: impediriam a fermentação da cidra.” Posta a par da carta, a cozinheira deu de ombros: “Isso nunca impediu a fermentação da cidra, é só para o toucinho que é ruim; não se pode salgá-lo diante de uma mulher indisposta; apodreceria.”80

Seria muito insuficiente assimilar tais repugnâncias às que o sangue suscita em quaisquer circunstâncias. Sem dúvida, o sangue é em si um elemento sagrado, penetrado mais do que qualquer outro pelo mana misterioso que é a um tempo vida e morte. Mas os poderes maléficos do sangue menstrual são mais singulares. Ele encarna a essência da feminilidade. É por isso que põe em perigo a própria mulher cujo mana assim se materializa. Durante a iniciação dos Chago, exortam-se as mulheres a dissimularem cuidadosamente seu sangue menstrual. “Não o mostres a tua mãe, ela morreria. Não o mostres às tuas companheiras, pode haver uma maldosa que se aposse do pano com que te enxugaste e teu casamento seria estéril. Não o mostres a uma mulher má que pegará o pano para colocá-lo em cima de sua cabana... e não poderás mais ter filhos. Não jogues o pano no atalho nem no mato. Uma pessoa ruim pode fazer coisas feias com ele. Enterra-o no chão. Dissimula o sangue aos olhos de teu pai, de teus irmãos e de tuas irmãs. Deixá-lo ver é um pecado.”81 Entre os Aleutas, se o pai vê a filha quando das primeiras regras, ela pode ficar cega ou muda. Pensa-se que, durante esse período, a mulher é possuída por um espírito e carregada de forças perigosas. Certos primitivos acreditam que o fluxo é provocado pela picada de uma cobra, pois a mulher tem com a serpente e o lagarto suspeitas afinidades: o fluxo participaria do veneno do animal rastejante. O Levítico compara o fluxo menstrual à gonorreia; o sexo feminino sangrento não é apenas uma ferida, é uma chaga suspeita. E Vigny associa as noções de mácula e de doença quando escreve: “A mulher, criança doente e doze vezes impura.” Fruto de perturbadoras alquimias interiores, a hemorragia periódica da mulher acerta-se estranhamente ao ciclo da lua: a lua tem também caprichos perigosos.82 A mulher faz parte da temível engrenagem que comanda o movimento dos planetas e do Sol, é presa das forças cósmicas que regulam o destino das estrelas, das marés e cujas irradiações inquietantes os homens têm de suportar. Mas é principalmente impressionante que a ação do sangue menstrual esteja ligada a ideias de creme que azeda, de maionese que não se faz consistente, de fermentação, de decomposição; diz-se também que é capaz de provocar a quebra de objetos frágeis, de rebentar as cordas dos violinos e das harpas; mas tem sobretudo influência nas substâncias orgânicas a meio caminho entre a matéria e a vida; e isso menos por ser sangue do que por emanar dos órgãos genitais. Sem lhe conhecer sequer a função exata, sabe-se que está ligado à germinação da vida. Ignorando a existência do ovário, os antigos viam mesmo nos mênstruos o complemento do esperma. Em verdade, não é esse sangue que faz da mulher uma impura; antes, ele manifesta a impureza; aparece no momento em que a mulher pode ser fecundada e quando desaparece ela se torna em geral estéril; jorra do ventre em que se elabora o feto. Através dele exprime-se o horror que o homem sente ante a fecundidade feminina.

Entre os tabus que dizem respeito à mulher em estado de impureza, nenhum é tão rigoroso quanto a proibição de relações sexuais com ela. O Levítico condena a sete dias de impureza o homem que transgredir essa regra. As leis de Manu são mais severas: “A sabedoria, a energia, a força, a vitalidade de um homem que se achega a uma mulher maculada por excreções menstruais morrem definitivamente.” Os penitentes ordenavam cinquenta dias de penitência aos homens que com elas mantivessem relações sexuais durante o período de menstruação. Como se considera que o princípio feminino atinge, então, sua força máxima, receia-se que um contato íntimo venha a triunfar sobre o princípio masculino. De maneira mais imprecisa, repugna ao homem encontrar na mulher que possui a essência temível da mãe; ele procura dissociar esses dois aspectos da feminilidade: eis por que a proibição do incesto, pela exogamia ou outras formas mais modernas, é uma lei universal; eis por que o homem se afasta sexualmente da mulher nos momentos em que ela se prende mais a seu papel reprodutor: durante as regras, durante a gravidez e quando amamenta. O complexo de Édipo — cuja descrição cumpriria aliás rever — não contradiz essa atitude, antes a implica. O homem defende-se contra a mulher enquanto fonte confusa do mundo e turvo devir orgânico.

Entretanto, é também sob esse aspecto que ela permite à sociedade que se separou do cosmo e dos deuses permanecer em comunicação com eles. Ainda hoje, entre os beduínos e os iroqueses, ela assegura a fecundidade dos campos. Na Grécia antiga, ela capta as vozes subterrâneas, a linguagem do vento e das árvores; ela é Pítia, Sibila, profetisa; os mortos e os deuses falam pela sua boca e ela conserva os poderes divinatórios: é médium, quiromante, cartomante, vidente, inspirada; ouve vozes e tem visões. Quando os homens sentem necessidade de mergulhar de novo no seio da vida vegetal e animal, apelam para a mulher, como Anteu que tocava a terra para refazer suas forças. Através das civilizações racionalistas da Grécia e de Roma, subsistem os cultos ctônicos. Eles se desenvolvem, em geral, à margem da vida religiosa oficial; acabam mesmo, como em Elêusis, por assumir a forma dos mistérios; seu sentido é inverso ao dos cultos solares em que o homem afirma sua vontade de separação e de espiritualidade; mas são o complemento destes. O homem busca arrancar-se da solidão pelo êxtase; esse é o objetivo dos mistérios, das orgias, das bacanais. No mundo reconquistado pelos homens é um deus masculino, Dionísio, que usurpa as virtudes mágicas e selvagens de Ichtar, de Astarté; mas são ainda as mulheres que se desencadeiam em torno de sua imagem: Menadas, Tíades, Bacantes incitam os homens à embriaguez religiosa, à loucura sagrada. O papel da prostituição sagrada é análogo: trata-se de desencadear e canalizar, concomitantemente, as forças da fecundidade. Ainda hoje as festas populares caracterizam-se por explosões de erotismo; a mulher não aparece nelas simplesmente como um objeto de gozo, mas sim como um meio de atingir esse hybris em que o indivíduo se supera. “O que um ser possui no fundo de si mesmo de perdido, de trágico, a “maravilha ofuscante” só pode ser encontrado numa cama”, escreve G. Bataille.

No desencadeamento erótico, o homem, ao se unir à amante, procura perder-se no infinito mistério da carne. Mas vimos que, ao contrário, sua sexualidade normal dissocia a mãe da esposa. Ele sente repugnância pelas misteriosas alquimias da vida, ao passo que sua própria vida se alimenta e se encanta com os frutos saborosos da terra; aspira a apossar-se deles; deseja Vênus saindo inteiramente nova das águas. É como esposa que a mulher inicialmente se descobre no patriarcado, porquanto o criador supremo é masculino. Antes de ser a mãe do gênero humano, Eva é a companheira de Adão; foi dada ao homem para que ele a possua e fecunde como possui e fecunda o solo; e, através dela, ele faz da Natureza inteira seu reino. Não é apenas um prazer subjetivo e efêmero que o homem busca no ato sexual; quer conquistar, pegar, possuir; ter uma mulher é vencê-la; penetra nela como o arado nos sulcos da terra; ele a faz sua como faz seu o chão que trabalha: ara, planta, semeia; estas imagens são velhas como a escrita; da Antiguidade aos nossos dias poderíamos citar mil exemplos: “A mulher é como o campo e o homem como a semente”, dizem as leis de Manu. Em um desenho de André Masson vê-se um homem com uma pá na mão, cavando o jardim de um sexo feminino.83 A mulher é a presa do esposo, sua propriedade.

A hesitação do macho entre o medo e o desejo, entre o temor de ser possuído por forças incontroláveis e a vontade de captá-las, reflete-se de maneira impressionante nos mitos da Virgindade. Ora temida pelo homem, ora desejada e até exigida, ela se apresenta como a forma mais acabada do mistério feminino; é o aspecto mais inquietante deste e ao mesmo tempo o mais fascinante. Segundo se sinta esmagado pelas forças que o cercam ou se acredite orgulhosamente capaz de anexá-las a si, o homem recusa ou reclama que a esposa lhe seja entregue virgem. Nas sociedades mais primitivas, em que o poder da mulher é exaltado, é o temor que vence; convém que a mulher tenha sido deflorada antes da noite de núpcias. Marco Polo afirmava dos tibetanos que “nenhum deles desejaria ter por mulher uma jovem ainda virgem”. Explicou-se por vezes essa recusa de maneira racional: o homem não quer por esposa uma mulher que ainda não tenha suscitado desejos masculinos. O geógrafo árabe El Bekri, referindo-se aos eslavos, observa que “se um homem se casa e verifica que a mulher é virgem, ele lhe diz: se valesses alguma coisa, terias sido amada por homens e algum te teria tirado a virgindade. A seguir, ele a expulsa e repudia”. Dizem mesmo que certos primitivos só aceitam casar com uma mulher que já tenha sido mãe e dado assim prova de fecundidade. Mas os verdadeiros motivos dos costumes tão difundidos de defloramento são místicos. Certos povos imaginam que há, na vagina, uma serpente que morderia o esposo no momento da ruptura do hímen; atribuem-se virtudes terrificantes ao sangue virginal, aparentado ao sangue menstrual e suscetível, ele também, de quebrar o vigor do homem. Através dessas imagens, exprime-se a ideia de que o princípio feminino tem mais força e comporta mais ameaças estando intato.84 Há casos em que a questão do defloramento não existe; entre os indígenas descritos por Malinowski, por exemplo, do fato de serem as práticas sexuais autorizadas desde a infância, resulta que as jovens nunca são virgens. Por vezes, a mãe, a irmã mais velha ou alguma matrona deflora sistematicamente a menina e alarga-lhe o orifício vaginal no decurso da infância. Ocorre também ser o defloramento executado na época da puberdade por mulheres, com ajuda de um pedaço de pau, de um osso ou uma pedra, sendo encarado como uma operação cirúrgica. Em outras tribos, a jovem, ao se tornar púbere, é submetida a uma iniciação selvagem: alguns homens arrastam-na para fora da aldeia e defloram-na, ou com instrumentos ou violentando-a. Um dos ritos mais frequentes consiste em entregar as virgens aos estrangeiros de passagem, ou por pensarem que eles não são alérgicos a esse mana, perigoso tão somente para os homens da tribo, ou por não se preocuparem com os males que se desencadeiam sobre eles. O mais das vezes é o sacerdote, ou o homem-médico, ou o cacique, o chefe da tribo, que desvirgina a noiva na noite anterior à das núpcias. Na costa de Malabar, os brâmanes encarregam-se dessa operação que executam, ao que se diz, sem alegria e pela qual exigem salários elevadíssimos. Sabe-se que todo objeto sagrado é perigoso para o profano, mas os indivíduos consagrados podem manejá-lo sem correr risco; compreende-se, portanto, que os sacerdotes e os chefes sejam capazes de domar as forças maléficas contra as quais o esposo precisa se proteger. Em Roma, só restava desses costumes uma cerimônia simbólica. Sentavam a noiva no falo de um Priapo de pedra, o que tinha o duplo fim de aumentar-lhe a fecundidade e de absorver os fluidos demasiado fortes, e por isso mesmo nefastos, de que ela se achava carregada. O marido defende-se ainda de outra maneira: deflora ele próprio a virgem, mas com cerimônias que o tornam invulnerável nesse momento crítico. Ele o faz, por exemplo, na presença de toda a aldeia, com ajuda de um pedaço de pau ou de um osso. Em Samoa, ele emprega o dedo enrolado previamente num pano branco do qual distribui tiras manchadas de sangue aos assistentes. Acontece também de ser ele autorizado a deflorar normalmente a mulher, mas não deve ejacular nela antes de passados três dias, de maneira que o germe gerador não se macule com o sangue do hímen.

Por uma inversão clássica no domínio das coisas sagradas, o sangue virginal torna-se, nas sociedades menos primitivas, um símbolo propício. Há ainda, na França, aldeias em que na manhã seguinte ao casamento se exibe o lençol ensanguentado aos pais e amigos. É que no regime patriarcal o homem tornou-se o senhor da mulher e as mesmas qualidades que atemorizam nos animais ou nos elementos indomados tornam-se qualidades preciosas para o proprietário que as soube domesticar. Da fogosidade do cavalo selvagem, da violência do raio e da catarata o homem fez os instrumentos de sua prosperidade. Do mesmo modo, procura anexar a mulher com toda sua riqueza intata. Motivos racionais desempenham certamente um papel no dever de virtude imposto à jovem; tal como a castidade da esposa, a inocência da noiva é necessária para que o pai não corra o risco de legar seus bens a um filho estranho. É, porém, de uma maneira mais imediata que a virgindade da mulher é exigida quando o homem encara a esposa como sua propriedade pessoal. Primeiramente, a ideia de posse é sempre impossível de se realizar positivamente; em verdade, nunca se tem nada nem ninguém; tenta-se por isso realizá-la de modo negativo; a maneira mais segura de afirmar a posse de um bem é impedir que os outros o usem. E, depois, nada se afigura mais desejável ao homem do que o que nunca pertenceu a nenhum ser humano; a conquista se apresenta, então, como um acontecimento único e absoluto. As terras virgens sempre fascinaram os exploradores; alpinistas morrem todos os anos por terem tentado violar um pico ainda virgem ou simplesmente por terem querido abrir novo caminho em seus flancos; e curiosos arriscam a vida para descer ao fundo de grutas nunca antes exploradas. Um objeto domesticado pelo homem torna-se um instrumento; isolado de suas raízes naturais, perde suas mais profundas virtudes: há mais promessas na água livre das torrentes do que na das fontes públicas. Um corpo virgem tem o frescor das nascentes secretas, o aveludado matinal de uma corola fechada, o tom da pérola que o sol não acariciou ainda. Gruta, templo, santuário, jardim secreto, como a criança, o homem é fascinado pelos recantos umbrosos e fechados que nenhuma consciência nunca animou, que esperam que uma alma lhes seja emprestada: o que só ele tocou e penetrou parece-lhe, em verdade, ser criação sua. Ademais, um dos fins a que visa todo desejo é a consumação do objeto desejado, o que implica sua destruição. Destruindo o hímen, o homem possui o corpo feminino mais intimamente do que mediante uma penetração que o deixa intato; com essa operação irreversível o homem faz dele um objeto inequivocamente passivo, afirma seu domínio sobre ele. Esse sentido exprime-se muito exatamente na lenda do cavaleiro que abre um caminho difícil entre arbustos espinhosos para colher uma rosa nunca ainda respirada. Não somente ele a descobre, como ainda lhe quebra o caule; é então que a conquista. A imagem é tão clara que, na linguagem popular, “colher a flor” de uma mulher significa destruir-lhe a virgindade, e essa expressão originou a palavra “defloramento”.

Mas a virgindade só tem essa atração erótica quando ligada à mocidade, sem o que seu mistério torna-se inquietante. Atualmente muitos homens sentem repulsa sexual diante de virgens algo amadurecidas e não é somente por motivos psicológicos que as solteironas são comparadas às matronas azedas e maldosas. A maldição está em sua própria carne, nessa carne que não é objeto para nenhum sujeito, que nenhum desejo tornou desejável, que desabrochou e murchou sem encontrar um lugar no mundo dos homens; afastada de seu destino, ela torna-se um objeto barroco e que inquieta como inquieta o pensamento incomunicável de um louco. De uma mulher de quarenta anos, ainda bela, mas presumivelmente virgem, ouvi um homem dizer grosseiramente: “Está cheio de teia de aranha lá dentro...” Realmente, os porões e os sótãos em que ninguém mais entra, que não servem para nada, impregnam-se de um mistério sujo; aí vivem de bom grado os fantasmas. Abandonadas pelos homens, as casas tornam-se residências de espíritos. A menos que a virgindade feminina tenha sido consagrada a um deus, admite-se sem relutância que implica casamento com o demônio. As virgens que o homem não dominou, as mulheres velhas que escaparam a seu poder são mais facilmente do que as outras encaradas como feiticeiras; porque, sendo a sorte da mulher destinar-se a um outro, não sofrendo o jugo do homem está preparada para aceitar o do diabo.

Exorcizada pelos ritos do defloramento ou purificada, ao contrário, pela sua virgindade, pode a esposa apresentar-se, então, como presa desejável. Unindo-se a ela, possui o amante todas as riquezas da vida que deseja possuir. Ela é toda a fauna e toda a flora terrestre: gazela, corça, lírios e rosas, pêssego sedoso, framboesa perfumada, pedras preciosas, madrepérolas, ágata, pérola, seda, azul do céu, frescor das nascentes, ar, chama, terra e água. Todos os poetas do Oriente e do Ocidente metamorfosearam o corpo da mulher em flores, em frutos, em pássaros. Aqui também, através da Antiguidade, da Idade Média e da época moderna, seria preciso citar toda uma espessa antologia. Conhece-se o Cântico dos cânticos em que o bem-amado diz à bem-amada:

 

Teus olhos são pombas...

Teus cabelos são como um rebanho de cabras...

Teus dentes são como um rebanho de ovelhas tosquiadas...

Tua face é a metade de uma romã...

Teus dois seios são dois enhos...

Há sob tua língua mel e leite...

 

Em Arcane 17, retoma André Breton esse cântico eterno: “Mélusine no momento do segundo grito: ela jorrou de suas ancas sem globo, seu ventre é toda uma seara de agosto, seu torso projeta-se em fogo de artifício da cintura arqueada, moldada sobre duas asas de andorinha; seus seios são arminhos presos em seu próprio grito, ofuscantes à força de se clarearem com o carvão abrasado de sua boca ardente. E seus braços são a alma dos regatos que cantam e perfumam...”

O homem reencontra na mulher as estrelas brilhantes e a lua sonhadora, a luz do sol, a sombra das grutas; por outro lado, as flores selvagens das moitas, a rosa orgulhosa dos jardins são mulheres. Ninfas, dríades, sereias, ondinas, fadas habitam os campos, os bosques, os lagos, os mares, as charnecas. Não há nada mais arraigado no coração dos homens do que esse animismo. Para o marinheiro, o mar é uma mulher perigosa, pérfida, difícil de conquistar mas que ele ama através de seu esforço para domá-la. Orgulhosa, rebelde, virginal e má, a montanha é uma mulher para o alpinista que a quer violar ainda que correndo perigo de morrer. Afirma-se, muitas vezes, que essas comparações são manifestações de uma sublimação sexual; elas exprimem antes uma afinidade tão original entre a mulher e os elementos quanto a própria sexua-lidade. O homem espera da posse da mulher mais do que a simples satisfação de um instinto; ela é o objeto privilegiado através do qual ele domina a Natureza. Pode acontecer que outros objetos desempenhem esse papel. É, por vezes, no corpo dos rapazes que o homem procura a areia das praias, o aveludado das noites, o odor das madressilvas. Mas a penetração sexual não é o único modo pelo qual se pode realizar uma apropriação carnal da terra. Em seu romance To an unknow God, Steinbeck mostra um homem que escolheu como mediadora entre a natureza e ele uma rocha musgosa; em La Chatte, Colette descreve um jovem marido que fixou seu amor na sua gata predileta, porque através desse animal selvagem e doce tem uma participação no universo sensual que sua companheira demasiado humana não lhe consegue dar. No mar, na montanha, o Outro pode encarnar-se quase tão perfeitamente quanto na mulher: é que opõem ao homem a mesma resistência passiva e imprevista que lhe permite realizar-se; são uma recusa a ser vencida, uma presa a ser possuída. Se o mar e a montanha são mulheres, é porque a mulher é também para o amante o mar e a montanha.85

Mas não é dado indiferentemente a qualquer mulher servir assim de mediadora entre o homem e o mundo; o homem não se contenta com encontrar em sua parceira órgãos sexuais complementares aos seus. É preciso que ela encarne o maravilhoso desabrochar da vida, e ao mesmo tempo que dissimule os perturbadores mistérios dessa vida. Pedirão, portanto, a ela antes de tudo mocidade e saúde, pois apertando nos braços uma coisa viva só pode encantar-se com ela esquecendo que toda vida é habitada pela morte. Ele deseja mais ainda: que a bem-amada seja bela. O ideal da beleza feminina é variável; mas certas exigências permanecem constantes. Entre outras, exige-se que seu corpo ofereça as qualidades inertes e passivas de um objeto, porquanto a mulher se destina a ser possuída. A beleza viril é a adaptação do corpo a funções ativas, é a força, a agilidade, a flexibilidade, a manifestação de uma transcendência a animar uma carne que não deve nunca recair sobre si própria. O ideal feminino só é simétrico em sociedades como as de Esparta, da Itália fascista, da Alemanha nazista que destinavam a mulher ao Estado e não ao indivíduo, que a consideravam exclusivamente como mãe e não atentavam em absoluto para o erotismo. Mas, quando a mulher é entregue ao homem como um bem, o que ele reclama é que nela a carne esteja presente em sua pura facticidade. Seu corpo não é tomado como a irradiação de uma subjetividade, mas sim como uma coisa empastelada em sua imanência; esse corpo não deve lembrar o resto do mundo, não deve ser promessa de outra coisa senão de si mesmo: precisa deter o desejo. A forma mais ingênua dessa exigência é o ideal hotentote da Vênus esteatopigia, pois as nádegas são a parte do corpo menos inervada, a parte em que a carne se apresenta como um dado sem função. O gosto dos orientais pelas mulheres gordas é da mesma espécie; eles apreciam o luxo absurdo dessa proliferação adiposa que nenhum projeto anima, que não tem outro sentido senão o de estar presente.86 Mesmo nas civilizações de uma sensualidade mais sutil, em que intervêm noções de forma e harmonia, os seios e as nádegas constituem objetos privilegiados por causa da gratuidade, da contingência de seu desenvolvimento. Os costumes, as modas são muitas vezes utilizados para separar o corpo feminino da transcendência: a chinesa de pés enfaixados mal pode andar; as garras vermelhas da estrela de Hollywood privam-na de suas mãos; os saltos altos, os coletes, as anquinhas, as crinolinas destinavam-se menos a acentuar a linha arqueada do corpo feminino do que a aumentar-lhe a impotência. Amolecido pela gordura, ou ao contrário tão diáfano que qualquer esforço lhe é proibido, paralisado por vestidos incômodos e pelos ritos da boa educação, é então que esse corpo se apresenta ao homem como sua coisa. A maquilagem e as joias também servem para a petrificação do corpo e do rosto. A função do adorno é muito complexa: possui entre certos primitivos um caráter sagrado; mas seu papel mais habitual é completar a metamorfose da mulher em ídolo. Ídolo equívoco: o homem a quer carnal, sua beleza participará da das flores e dos frutos, mas ela deve também ser lisa, dura, eterna como uma pedra. O papel do adorno é fazê-la participar mais intimamente da natureza e ao mesmo tempo arrancá-la dessa natureza; é dar à vida palpitante a necessidade imota do artifício. A mulher faz-se planta, pantera, diamante, madrepérola, misturando a seu corpo flores, peles, búzios, penas; perfuma-se a fim de exalar um aroma como a rosa e o lírio: mas penas, seda, pérolas e perfumes servem também para esconder a crueza animal de sua carne, de seu odor. Ela pinta a boca e o rosto para dar-lhes a solidez imóvel de uma máscara; o olhar, ela o prende dentro da espessura do khol e outros ingredientes, é apenas um ornamento luminoso de seus olhos; trançados, encaracolados, esculpidos, seus cabelos perdem seu inquietante mistério vegetal. Na mulher enfeitada, a Natureza está presente mas cativa, moldada por uma vontade humana segundo o desejo do homem. Uma mulher é tanto mais desejável quanto mais se acha nela desabrochada e escravizada a natureza; a mulher “sofisticada” sempre foi o objeto erótico ideal. E a predileção por uma beleza mais natural não passa, muitas vezes, de uma forma especiosa de sofisticação. Remy de Gourmont quer que a mulher use cabelos soltos, livres como os regatos e as ervas do prado; mas é na cabeleira de uma Verônica Lake que se podem acariciar as ondulações da água e das espigas e não numa cabeleira hirsuta abandonada à natureza. Quanto mais uma mulher é jovem e sadia, quanto mais seu corpo novo e límpido parece votado a um frescor eterno, menos útil lhe é o artifício; mas é preciso dissimular sempre ao homem a fraqueza carnal dessa presa que ele abraça e a degradação que a ameaça. É também porque ele lhe teme o destino contingente, porque a sonha imutável, necessária, que o homem procura no rosto da mulher, em seu busto e suas pernas a exatidão de uma ideia. Entre os povos primitivos a ideia é tão somente a da perfeição do tipo popular; uma raça de lábios grossos e nariz achatado forja uma Vênus de lábios grossos e nariz achatado; posteriormente, aplicam-se às mulheres os cânones de uma estética mais complexa. Em todo caso, quanto mais os traços e as proporções de uma mulher parecem harmonizados, mais ela alegra o coração dos homens, porque parece escapar aos avatares das coisas naturais. Chega-se, pois, a esse estranho paradoxo: desejando apreender a natureza na mulher, mas transfigurada, o homem obriga a mulher ao artifício. Ela não é physis somente mas também antiphysis; e isso não apenas nas civilizações dos permanentes elétricos, da depilação com cera, das cintas de látex como ainda no país das negras de botoque, na China, em toda parte. Swift denunciou essa mistificação em sua famosa ode a Célia. Descreve com asco os apetrechos da coquete e com asco lembra-lhe as servidões animais do corpo; erra duplamente ao indignar-se, porque o homem deseja que a mulher seja, ao mesmo tempo, animal e planta, e que se esconda por trás de uma armadura fabricada. Ama-a saindo das águas e de uma costureira, nua e vestida, nua sob a roupa, tal qual precisamente ele a encontra no universo humano. O citadino procura a animalidade na mulher, mas, para o jovem camponês que faz seu serviço militar, o bordel encarna toda a magia da cidade. A mulher é campo e pastagem, mas é também Babilônia.

Entretanto, aí está a primeira mentira, a primeira traição da mulher: a da própria vida que, embora assumindo as formas mais atraentes, é sempre habitada pelos fermentos da velhice e da morte. O próprio uso que o homem faz dela destrói suas virtudes mais preciosas: gasta pelas maternidades, ela perde sua atração erótica; mesmo estéril, bastam os anos para alterar-lhe os encantos. Enferma, feia, velha, a mulher causa horror. Dela, como de uma planta, diz-se que seca, murcha. Sem dúvida, a decrepitude também atemoriza no homem; mas o homem normal não sente os outros homens como carne, só tem com esses corpos autônomos e alheios uma solidariedade abstrata. É no corpo da mulher, esse corpo que lhe é destinado, que o homem experimenta sensivelmente a decadência da carne. É com os olhos hostis do macho que a belle heaulmière de Villon contempla a degradação de seu corpo. A mulher velha, a mulher feia não são somente objetos sem encantos: suscitam um ódio impregnado de medo. Nelas está presente a figura inquietante da mãe quando os encantos da esposa se esvaem.

Mas a própria esposa é uma presa perigosa. Deméter sobrevive em Vênus saindo das águas, como uma fresca espuma, uma loura seara; apropriando-se da mulher pelo gozo que dela tira, o homem também desperta nela as forças perturbadoras da fecundidade; é pelo mesmo órgão que o macho penetra que o filho é parido. Eis por que, em todas as sociedades, o homem é protegido por tantos tabus contra as ameaças do sexo feminino. A recíproca não é verdadeira, porque a mulher nada tem a temer do homem; o sexo deste é considerado laico, profano. O falo pode ser elevado à dignidade de um deus, mas no culto que lhe rendem não entra nenhum elemento de terror, e no decurso de sua vida quotidiana a mulher não precisa ser misticamente defendida contra ele; ele só lhe é propício. É notável, aliás, que em muitas sociedades de direito materno exista uma sexualidade muito livre, mas isso ocorre somente durante a infância da mulher, na sua primeira juventude, quando o coito não se acha ligado à ideia de geração. Malinowski conta, com algum espanto, que os jovens que dormem juntos livremente “na casa dos celibatários” exibem de bom grado seus amores; porque a jovem não casada é considerada incapaz de conceber, e o ato sexual não passa de um tranquilo prazer profano. Quando casada, ao contrário, seu esposo não lhe deve manifestar publicamente qualquer afeição, não deve tocá-la, e qualquer alusão às relações íntimas é sacrílega, pois ela participa, então, da essência temível da mãe e o coito tornou-se ato sagrado. Desde então cerca-se de proibições e precauções. O coito é proibido quando se cultiva a terra, quando se semeia, quando se planta e o é porque não se quer que se desperdicem em relações interindividuais as forças fecundantes necessárias à prosperidade das colheitas e, portanto, ao bem da comunidade; é por respeito aos poderes ligados à fecundidade que se recomenda economizá-los. Mas, na maioria das oportunidades, a continência protege a virilidade do esposo; ela é exigida quando o homem parte para a pesca, para a caça, e principalmente quando se prepara para a guerra; na união com a mulher, o princípio masculino enfraquece-se e, em consequência, é necessário que ele evite essa união sempre que precisa da integridade de suas forças. Perguntou-se se o horror que o homem experimenta ante a mulher provém do que lhe inspira a sexualidade em geral ou se é o inverso. Verifica-se que, no Levítico em particular, a polução noturna é encarada como uma mácula, embora a mulher não esteja presente. E, em nossas sociedades modernas, a masturbação é considerada um perigo e um pecado; muitas das crianças e muitos dos jovens que a ela se entregam só o fazem enfrentando terríveis angústias. É a intervenção da sociedade, e principalmente dos pais, que faz do prazer solitário um vício. Mais de um menino, porém, sentiu-se apavorado com suas primeiras ejaculações: sangue ou esperma, qualquer perda de sua própria substância lhe parece inquietante; é sua vida, é seu mana que lhe escapa. Entretanto, mesmo que subjetivamente um homem possa viver experiências eróticas a que a mulher não está presente, objetivamente ela se acha implicada em sua sexualidade. Como dizia Platão no mito dos andróginos, o organismo do homem pressupõe o da mulher. É a mulher que ele descobre ao descobrir o próprio sexo, ainda que ela não lhe seja dada nem em carne e osso, nem em imagem. E, inversamente, é enquanto encarna a sexualidade que a mulher é temível. Nunca se pode separar o aspecto imanente do aspecto transcendente da experiência viva: o que receio ou desejo é sempre um avatar de minha própria existência, mas nada me acontece senão através do que não é eu. O não eu está implicado nas poluções noturnas, na ereção, senão na imagem exata da mulher, pelo menos enquanto Natureza e Vida. O indivíduo sente-se possuído por uma magia estranha. De modo que a ambivalência dos sentimentos que tem para com a mulher se reencontra em sua atitude para com o próprio sexo: dele se orgulha, dele ri, dele se envergonha. O menino compara, numa espécie de desafio, o próprio pênis com o dos amigos; sua primeira ereção enche-o de orgulho e de pavor ao mesmo tempo. O adulto olha o sexo como um símbolo de transcendência e força; dele se envaidece como músculo estriado, mas também como graça mágica. É uma liberdade rica de toda a contingência do dado, um dado livremente querido; é sob esse aspecto contraditório que se encanta com ele; mas suspeita-lhe a ilusão. Esse órgão com o qual pretende afirmar-se não lhe obedece; intumescido por desejos insatisfeitos, retesando-se inopinadamente, aliviando-se por vezes em sonhos, manifesta uma vitalidade estranha e caprichosa. O homem pretende fazer o Espírito triunfar sobre a Vida, a atividade sobre a passividade. Sua consciência mantém a Natureza a distância, sua vontade molda-a, mas sob a imagem do sexo ele torna a encontrar em si a vida, a natureza, a passividade. “As partes sexuais são o verdadeiro centro ativo da vontade, sendo o cérebro o polo contrário”, escreve Schopenhauer. O que ele denomina vontade é o apego à vida, que é sofrimento e morte, ao passo que o cérebro é o pensamento que se destaca da vida, representando-a: o pudor sexual é, na sua opinião, o pudor que experimentamos ante a nossa estúpida obstinação carnal. Ainda que não se aceite o pessimismo inerente a suas teorias, ele tem razão de ver na oposição sexo-cérebro a expressão da dualidade do homem. Enquanto sujeito, ele põe o mundo, e, permanecendo fora do universo que põe, torna-se o soberano desse mundo; ele se apreende como carne, como sexo, não é mais consciência autônoma, liberdade transparente; está empenhado no mundo, um objeto limitado e perecível. E, talvez, o ato gerador ultrapasse as fronteiras do corpo; mas, no mesmo instante, ele as constitui. O pênis, pai das gerações, é simétrico à matriz materna. Saído de um germe desenvolvido no ventre da mulher, o homem é, ele próprio por seu turno, portador de germes e, com essa semente que gera a vida, é também sua própria vida que se renega. “O nascimento dos filhos é a morte dos pais”, diz Hegel. A ejaculação é promessa de morte, a afirmação da espécie contra o indivíduo; a existência do sexo e sua atividade negam a singularidade orgulhosa do sujeito. É essa contestação do espírito pela vida que faz do sexo um objeto de escândalo. O homem exalta o falo na medida em que o apreende como transcendência e atividade, como modo de apropriação do outro; mas dele se envergonha quando não vê nele senão uma carne passiva através da qual é o joguete das forças obscuras da Vida. Esse pudor se fantasia de bom grado de ironia. O sexo de outrem suscita facilmente o riso. Pelo fato de imitar um movimento intencional e ser, entretanto, involuntária, a ereção parece muitas vezes ridícula; e a simples presença dos órgãos genitais, tão somente evocada, suscita alegria. Malinowski narra que, entre os selvagens com os quais vivia, bastava pronunciar o nome dessas “partes vergonhosas” para provocar risos intermináveis. Muitas piadas grosseiras, ditas gaulesas, não vão muito além desses rudimentares jogos de palavras. Entre certos primitivos, as mulheres têm o direito, durante os dias consagrados à capina do jardim, de violentar brutalmente qualquer estrangeiro que se aventure na aldeia. Atacando-o em grupo, largam-no muitas vezes semimorto: os homens da tribo riem da façanha. Com essa violação, a vítima constitui-se em carne passiva e dependente: ele foi possuído pelas mulheres e através delas pelos maridos; ao passo que, no coito normal, o homem quer afirmar-se como possuidor.

Mas é então que vai sentir, com maior evidência, a ambiguidade de sua condição carnal. Ele só assume orgulhosamente sua sexualidade enquanto modo de apropriação do Outro, e esse sonho de posse redunda tão somente em fracasso. Numa posse autêntica, o outro é abolido como outro, é consumido e destruído. Só o sultão das Mil e uma noites tem o poder de cortar a cabeça das amantes quando a madrugada as rouba de seu leito; a mulher sobrevive à posse do homem e assim lhe escapa: desde que ele abra os braços, a presa se lhe torna alheia, e ei-la nova, intata, pronta para ser possuída por novo amante, e de maneira igualmente efêmera. Um dos sonhos do homem é “marcar” a mulher de maneira a que permaneça sua para sempre: porém o mais arrogante bem sabe que nunca deixará mais do que recordações e que as mais ardentes imagens são frias ante uma sensação. Toda uma literatura denunciou esse fracasso. Objetivam-no na mulher que chamam inconstante e traidora porque seu corpo a destina ao homem em geral e não a um homem particular. Sua traição é mais pérfida ainda: ela é que faz do amante uma presa. Só um corpo pode comover outro corpo. O homem não domina a carne desejada senão tornando-se, ele próprio, carne. Eva foi dada a Adão para que ele realizasse nela sua transcendência e ela o arrasta para a noite da imanência. A mulher reconstitui em torno de seu amante, nas vertigens do prazer, o barro opaco da ganga tenebrosa que a mãe modelou para o filho e de que ele busca evadir-se. Ele queria possuir: ei-lo, ele próprio, possuído. Odor, morno suor, fadiga, tédio, toda uma literatura descreveu essa paixão sombria de uma consciência que se faz carne. O desejo, que muitas vezes elimina a repugnância, volta à repugnância quando satisfeito. Post coitum homo animal triste. “A carne é triste”, e, no entanto, o homem não encontrou nos braços da amante um apaziguamento definitivo. Muito breve o desejo renasce nele; e não apenas o desejo da mulher em geral, porém, o da mesma mulher. Esta adquire então um poder inquietante, porque em seu próprio corpo o homem só encontra a necessidade sexual como uma exigência de ordem geral análoga à da fome ou da sede e cujo objeto não é particular. O laço que o amarra a esse corpo feminino singular foi obra do Outro. É um laço misterioso como o ventre impuro e fértil em que deita raízes, uma espécie de força passiva: é mágico. O vocabulário puído dos romances-folhetins em que a mulher é descrita como uma feiticeira, uma sedutora que fascina o homem, que o submete a seus encantos, reflete o mais antigo, o mais universal dos mitos. A mulher é votada à magia. A magia, diz Alain, é o espírito solto nas coisas; uma ação é mágica quando, em lugar de ser produzida por um agente, emana de uma passividade; precisamente os homens sempre encararam a mulher como a imanência do dado; se ela produz searas e filhos, não o faz por um ato de vontade; ela não é sujeito, transcendência, força criadora, e sim um objeto carregado de fluidos. Nas sociedades em que o homem adora esses mistérios, a mulher é, por causa dessas virtudes, associada ao culto e venerada como sacerdotisa; mas quando ele luta para fazer a sociedade triunfar sobre a natureza, a razão sobre a vida, a vontade sobre o dado inerte, então a mulher é encarada como feiticeira. Conhece-se a diferença entre o sacerdote e o mágico: o primeiro domina e dirige as forças de que se assenhoreou de acordo com os deuses e as leis, para o bem da comunidade e em nome de todos os seus membros; o mágico opera à margem da sociedade contra os deuses e as leis e segundo suas próprias paixões. Ora, a mulher não se acha inteiramente integrada no mundo dos homens; enquanto outro, ela se opõe a eles; é natural que se valha das forças que detém, não para estender a marca da transcendência através da comunidade dos homens e no futuro, mas sim, por estar separada, por ser oposta, a fim de arrastar os homens para a solidão da separação, para as trevas da imanência. Ela é a sereia cujos cantos precipitavam os marinheiros de encontro aos recifes; ela é Circe que transformava os amantes em animais, a Ondina que atrai o pescador para o fundo da lagoa. O homem preso a seus encantos não tem mais vontade, projeto e futuro; não é mais cidadão, porém apenas uma carne escrava de seus desejos. É banido da comunidade, encerrado no instante, balouçado passivamente da tortura ao prazer; a mágica perversa ergue a paixão contra o dever, o momento presente contra a unidade do tempo, retém o viajante longe de seu lar, dá o esquecimento. Buscando apropriar-se do Outro, é preciso que o homem permaneça ele próprio; mas, no malogro da posse impossível, ele tenta tornar-se esse outro a quem não consegue unir-se; aliena-se então, perde-se, bebe o filtro que o faz estranho a si mesmo, mergulha no fundo das águas fugidias e mortais. A Mãe destina o filho à morte ao dar-lhe vida; a amante induz o amante a renunciar à vida e a abandonar-se ao sono supremo. Esse laço que une o Amor à Morte foi pateticamente salientado na lenda de Tristão, mas há uma verdade mais original. Nascido da carne, o homem realiza-se como carne no amor e a carne é condenada ao túmulo. Com isso, confirma-se a aliança da mulher com a Morte; a grande ceifadeira é a figura invertida da fecundidade que faz crescerem as espigas. Mas ela se apresenta também como a horrível desposada cujo esqueleto se revela sob tenra carne mentirosa.87

Assim, o que o homem ama e detesta antes de tudo na mulher, amante ou mãe, é a imagem imóvel de seu destino animal, é a vida necessária à sua existência, mas que a condena à finitude e à morte. Desde o dia em que nasce, o homem começa a morrer: é a verdade que a mãe encarna. Procriando, ele afirma a espécie contra si próprio: é o que aprende nos braços da esposa. Na emoção perturbadora e no prazer, antes mesmo de ter engendrado, ele esquece seu eu singular. Embora tente distingui-las, encontra numa e noutra, amante e mãe, uma só evidência: a de sua condição carnal. Ao mesmo tempo deseja realizá-la; venera a mãe, deseja a amante; ao mesmo tempo rebela-se contra elas na aversão e no terror.

É num texto significativo de Jean Richard Bloch (La Nuit kurde) que vamos encontrar uma síntese de quase todos esses mitos. Trata-se do texto em que descreve os amores do jovem Saad com uma mulher muito mais velha, mas ainda bela, durante o saque de uma cidade: “A noite abolia os contornos das coisas e das sensações. Não apertou mais uma mulher contra o corpo. Chegava afinal ao cabo de uma viagem interminável, que prosseguia desde as origens do mundo. Aniquilou-se pouco a pouco numa imensidade que balançava em derredor, sem fim, nem figura. Todas as mulheres se confundiram em um país gigante, encolhido sobre si mesmo, sombrio como o desejo, ardente como o verão... Ele, entretanto, reconhecia com uma admiração temerosa a força encerrada na mulher, as coxas alongadas de cetim, os joelhos semelhantes a duas colinas de marfim. Quando subia pelo eixo polido do dorso, dos rins até os ombros, parecia-lhe percorrer a própria abóbada que sustenta o mundo. Mas o ventre chamava-o sem cessar, oceano elástico e tenro em que toda a vida nasce e retorna, asilo entre os asilos, com suas marés, seus horizontes, suas superfícies ilimitadas.

“Então viu-se tomado de um desejo raivoso de rasgar o invólucro delicioso e alcançar a própria fonte de suas belezas. Uma comoção simultânea enrolou-os um no outro. A mulher não mais existiu senão para fender-se como o solo, abrir-lhe as vísceras, ingurgitar-se com os humores do amado. O êxtase fez-se assassínio. Uniram-se como se apunhala.

“...Ele, o homem isolado, o dividido, o separado, o cerceado, ia jorrar de sua própria substância, evadir-se de sua prisão de carne e rolar enfim, matéria e alma, na matéria universal. Estava-lhe reservada a felicidade suprema, nunca experimentada até então, de ultrapassar as fronteiras da criatura, de fundir na mesma exaltação o sujeito e o objeto, a pergunta e a resposta, de anexar ao ser tudo o que não é o ser, e atingir numa última convulsão o império do inatingível.

“...Cada vai e vem do arco despertava no instrumento precioso que tinha à sua mercê vibrações sempre mais agudas. Subitamente, um último espasmo arrancou Saad do zênite e lançou-o na terra e na lama.”

Insatisfeita em seu desejo, a mulher prende com as pernas o amante, que sem querer sente renascer o próprio desejo: ela se apresenta então a ele como uma força inimiga que lhe arranca a virilidade e, ao possuí-la novamente, ele morde-lhe tão profundamente a garganta que a mata. Assim fecha-se o ciclo que vai da mãe à amante, à morte, através de complicados meandros.

Muitas atitudes são possíveis ao homem segundo o aspecto do drama carnal que ele acentua. Se um homem não tem a ideia de que a vida é única, se não tem a preocupação de seu destino singular, se não teme a morte, aceitará alegremente sua animalidade. Entre os muçulmanos, a mulher é reduzida a um estado de abjeção por causa da estrutura feudal da sociedade que não autoriza o recurso ao Estado contra a família. Isso se deve à religião que, exprimindo o ideal guerreiro dessa civilização, destinou diretamente o homem à morte e despojou a mulher da sua magia. Que temeria nesta terra quem está preparado para mergulhar de um segundo a outro nas voluptuosas orgias do paraíso maometano? O homem pode, pois, fruir tranquilamente da mulher sem precisar defender-se contra si mesmo, nem contra ela. Os contos das Mil e uma noites encaram-na como uma fonte de untuosas delícias, tal qual os frutos, as geleias, os bolos opulentos, os óleos perfumados. Encontra-se hoje essa benevolência sensual em muitos povos do Mediterrâneo; satisfeito com o instante, não pretendendo a imortalidade, o homem do sul que, através do brilho do céu e do mar, apreende a Natureza em seu aspecto fasto, amará gulosamente as mulheres; por tradição, despreza-as suficientemente para não as tomar como pessoas, não estabelecendo grande diferença entre o encanto do corpo delas e o da areia ou da água; nem nelas nem em si mesmo sente o horror à carne. É com tranquilo deslumbramento que, nas Conversações na Sicília, Vittorini diz ter descoberto com a idade de sete anos o corpo nu da mulher. O pensamento racionalista da Grécia e de Roma confirma essa atitude espontânea. A filosofia otimista dos gregos ultrapassou o maniqueísmo pitagórico; o inferior subordina-se ao superior e como tal é útil: essas ideologias harmônicas não manifestam nenhuma hostilidade à carne. Voltado para o céu das Ideias, ou para a Cidade ou o Estado, o indivíduo, pensando-se como Nous ou como cidadão, crê ter superado sua condição animal: que se entregue à volúpia ou pratique o ascetismo, a mulher solidamente integrada na sociedade masculina só tem uma importância secundária. Por certo, o racionalismo nunca triunfou inteiramente e a experiência erótica conserva, nessas civilizações, seu caráter ambivalente: ritos, mitologias, literatura o comprovam. Mas as seduções e os perigos da feminilidade nisso tudo só se manifestam sob uma forma atenuada. É o cristianismo que dá novamente à mulher um prestígio assustador: o medo do outro sexo é uma das formas que assume para o homem o desespero da consciência infeliz. O cristão está separado de si mesmo; consuma-se a divisão do corpo e da alma, da vida e do espírito: o pecado original faz do corpo o inimigo da alma; todas as ligações carnais se consideram más.88 É só enquanto resgatado por Cristo e voltado para o reino celeste que o homem pode ser salvo, mas originalmente ele é apenas podridão; seu nascimento impõe-lhe não somente a morte mas ainda a danação; é em virtude de uma graça divina que o céu lhe pode ser aberto, mas em todos os avatares de sua existência natural há uma maldição. O Mal é uma realidade absoluta e a carne, um pecado. E, naturalmente, como nunca a mulher deixa de ser o Outro, não se considera que homem e mulher sejam reciprocamente carne: a carne, que é para o cristão o Outro inimigo, não se distingue da mulher. Nela é que se encarnam as tentações da terra, do sexo, do demônio. Todos os padres da Igreja insistem no fato de que ela conduziu Adão ao pecado. Cumpre citar de novo as palavras de Tertuliano: “Mulher! És a porta do diabo. Persuadiste aquele que o diabo não ousava atacar de frente. Foi por tua causa que o filho de Deus teve de morrer. Deverias andar sempre vestida de luto e de andrajos.” Toda a literatura cristã se esforça por exacerbar a repugnância que o homem pode sentir pela mulher. Tertuliano assim a define: Templum aedificatum super cloacam. Santo Agostinho sublinha com horror a promiscuidade dos órgãos sexuais e excretórios: Inter foeces et urinam nascimur. A repugnância do cristianismo pelo corpo feminino é tal que ele consente em destinar seu Deus a uma morte ignominiosa, mas poupa-lhe a mácula do nascimento: o concílio de Éfeso no Oriente, o de Latrão no Ocidente afirmam a concepção virginal de Cristo. Os primeiros padres da Igreja — Orígenes, Tertuliano, Jerônimo — pensavam que Maria parira no sangue e na imundície como as outras mulheres, mas é a opinião de santo Agostinho e santo Ambrósio que prevalece. O seio da Virgem permaneceu fechado. A partir da Idade Média, o fato de ter a mulher um corpo foi considerado uma ignomínia. A própria ciência andou muito tempo paralisada por essa repugnância. Lineu, em seu tratado da Natureza, deixa de lado, como “abominável”, o estudo dos órgãos genitais da mulher. O médico francês des Laurens pergunta escandalizado como “esse animal divino cheio de razão e juízo que chamam homem pôde ser atraído por essas partes obscenas da mulher, maculadas de humores e situadas vergonhosamente na parte mais baixa do tronco”. Hoje, muitas outras influências interferem na do pensamento cristão; e este mesmo tem mais de um aspecto; mas no mundo puritano, entre outros, o ódio à carne perpetua-se; exprime-se, por exemplo, na Light in August de Faulkner; as primeiras iniciações sexuais do herói provocam-lhe terríveis traumatismos. É frequente em toda a literatura mostrar um jovem transtornar-se até o vômito depois do primeiro coito; e, se em verdade tal reação é muito rara, não é por acaso que tão frequentemente seja ela descrita. Nos países anglo-saxões, penetrados de puritanismo, a mulher suscita na maioria dos jovens e em muitos homens feitos um terror mais ou menos confessado. Esse terror existe assaz acentuado na França. Michel Leiris escreve em L’Age d’homme: “Tenho comumente tendência para encarar o órgão feminino como uma coisa suja ou como uma ferida, nem por isso menos atraente, mas perigosa em si, como tudo o que é sangrento, mucoso, contaminado.” A ideia de doença venérea traduz esses pavores; não é por transmitir doenças que a mulher atemoriza, são as doenças que parecem abomináveis porque provêm da mulher; contaram-me de rapazes que pensavam que relações sexuais demasiado frequentes bastavam para provocar a blenorragia. Acredita-se também comumente que, com o coito, o homem perde seu vigor muscular, sua lucidez cerebral, seu fósforo consome-se, sua sensibilidade se embota; é verdade que o onanismo faz com que se incorra nos mesmos riscos, e até por motivos morais a sociedade considera-o mais nocivo do que a função sexual normal. O casamento legítimo e a vontade de procriação são defesas contra os malefícios do erotismo. Mas já disse que o Outro está implicado em todo ato sexual; e sua imagem mais habitual é a da mulher. É diante dela que o homem sente com maior evidência a passividade da própria carne. A mulher é vampiro, mutiladora, devoradora e bebedora e seu sexo alimenta-se gulosamente do sexo masculino. Certos psicanalistas quiseram encontrar bases científicas para essas imagens; todo prazer que a mulher aufere do coito proviria do fato de que ela castra simbolicamente o macho e apropria-se do sexo dele. Mas parece-me que essas próprias teorias exigiriam uma psicanálise e que os médicos, que as inventaram, projetaram nelas terrores ancestrais.89

A causa desses terrores está em que, no Outro, para além de qualquer anexação, permanece a alteridade. Nas sociedades patriarcais, a mulher conserva muitas das inquietantes qualidades que detinha nas sociedades primitivas. Eis por que não a abandonam nunca à Natureza, cercam-na de tabus, purificam-na com ritos, colocam-na sob o controle dos sacerdotes; ensinam ao homem que não deve achegar-se a ela em sua nudez original, e sim através de cerimônias, sacramentos que a arrancam da terra, da carne, que a metamorfoseiam em uma criatura humana; então a magia que ela detém é canalizada como o raio após a invenção do para-raios e das centrais elétricas. Torna-se mesmo possível utilizá-la no interesse da coletividade. Percebe-se aqui outra fase desse movimento oscilatório que define a relação do homem com sua fêmea. Ele a ama enquanto ela lhe pertence, teme-a enquanto outro; mas é enquanto outro temível que ele procura torná-la mais profundamente sua, e é isso o que faz com que ele a eleve à dignidade de pessoa e a reconheça como semelhante.

A magia feminina foi profundamente domesticada dentro da família patriarcal. A mulher permite que a sociedade integre nela as forças cósmicas. Em sua obra, Mitra-Varuna, Dumézil assinala que, na Índia como em Roma, o poder viril afirma-se de duas maneiras: em Varuna e Rômulo, nos Gandarvas e nas Lupercas esse poder é agressão, rapto, desordem, hybris; então a mulher se apresenta como um ser que é preciso raptar, violentar; as sabinas raptadas são estéreis, fustigam-nas com correias de pele de bode, compensando pela violência um excesso de violência. Mas Mitra, Numa, os Brâmanes e os Flâmines asseguram, ao contrário, a ordem e o equilíbrio racional da cidade; então a mulher é ligada ao marido por um casamento de ritos complicados e, colaborando com ele, assegura-lhe o domínio de todas as forças femininas da natureza; em Roma, se a flamínica morre, o flamen dialis demite-se de suas funções. Assim é que, no Egito, Ísis, tendo perdido seu poder supremo de deusa-mãe, permanece, entretanto, generosa, benevolente, sábia e sorridente, a magnífica esposa de Osíris. Mas, quando se apresenta assim como a associada do homem, seu complemento, sua metade, a mulher é necessariamente dotada de uma consciência, de uma alma; ele não poderia depender tão intimamente de um ser que não participasse da essência humana. Já se viu que as leis de Manu prometiam à esposa legítima o mesmo paraíso que ao esposo. Quanto mais o homem se individualiza e reivindica sua individualidade, mais reconhece em sua companheira um indivíduo e uma liberdade. O oriental, despreocupado com seu próprio destino, contenta-se com uma fêmea que é para ele um objeto de prazer; mas o sonho do ocidental, quando se eleva à consciência da singularidade de seu ser, é ser reconhecido por uma liberdade alheia e dócil. O grego não encontra na prisioneira do gineceu a semelhante que reclama; por isso orienta seu amor para o companheiro masculino cuja carne, tal como a sua, é habitada por uma consciência e uma liberdade; ou então dedica seu amor às hetairas, cuja independência, cultura e espírito fazem-nas quase suas iguais. Mas, quando as circunstâncias o permitem, é a esposa que melhor pode satisfazer as exigências do homem. O cidadão romano vê na matrona uma pessoa. Em Cornélia, em Arria, ele possui seu duplo. É paradoxalmente o cristianismo que proclamará em certo plano a igualdade do homem e da mulher. Ele detesta nela a carne; se ela se renega como carne, torna-se, do mesmo modo que o homem, criatura de Deus, resgatada pelo Redentor, e ei-la do lado do homem entre as almas prometidas às alegrias celestes. Homens e mulheres são os servidores de Deus, quase tão assexuados quanto os anjos e que, em conjunto, com a ajuda da graça, rejeitam as tentações da terra. Aceitando renegar sua animalidade, a mulher, exatamente por encarnar o pecado, será também a mais radiosa encarnação do triunfo dos eleitos que venceram o pecado.90 Naturalmente, o Salvador Divino que opera a redenção dos homens é do sexo masculino; mas é preciso que a humanidade coopere para sua própria salvação e é sob sua forma mais humilhada, mais perversa que será chamada a manifestar sua boa vontade submissa. Cristo é Deus, mas é uma mulher, a Virgem Maria, que reina sobre todas as criaturas humanas. Entretanto, só as seitas que se desenvolvem à margem da sociedade ressuscitam, na mulher, os antigos privilégios das grandes deusas. A Igreja exprime e serve uma civilização patriarcal na qual é conveniente que a mulher permaneça anexada ao homem. É fazendo-se escrava dócil que ela se torna também uma santa abençoada. Assim, no coração da Idade Média, ergue-se a imagem mais acabada da mulher propícia aos homens: a figura da Virgem Maria cerca-se de glória. É a imagem invertida de Eva, a pecadora; esmaga a serpente sob o pé; é a mediadora da salvação como Eva o foi da danação.

É como Mãe que a mulher é temível; é na maternidade que é preciso transfigurá-la e escravizá-la. A virgindade de Maria tem principalmente um valor negativo. Não é carnal aquela por quem a carne foi resgatada; não foi tocada nem possuída. À Grande Mãe asiática, não se lhe reconhecia tampouco um esposo: ela engendrara o mundo e sobre ele reinava solitariamente; podia ser lúbrica por capricho, mas nela a grandeza da Mãe não era diminuída pelas servidões impostas à esposa. Maria também não conheceu a mácula que a sexualidade implica. Aparentada à Minerva guerreira, ela é torre de marfim, cidadela, torreão inexpugnável. As sacerdotisas antigas, como a maioria das santas cristãs, eram igualmente virgens. A mulher votada ao bem deve sê-lo no esplendor de suas forças intatas; cumpre que ela conserve em sua integridade indomada o princípio de sua feminilidade. Se se recusa a Maria o caráter de esposa é para lhe exaltar mais puramente a Mulher-Mãe. Mas é somente aceitando o papel subordinado que lhe é designado que será glorificada. “Eu sou a serva do Senhor.” Pela primeira vez na história da humanidade, a mãe ajoelha-se diante do filho; reconhece livremente a própria inferioridade. É a suprema vitória masculina que se consuma no culto de Maria: é a reabilitação da mulher pela realização de sua derrota. Ichtar, Astarté e Cibele eram cruéis, caprichosas, luxuriosas; eram poderosas, fonte da morte como da vida, engendrando os homens, transformavam-nos em escravos. No cristianismo, a vida e a morte só dependem de Deus, o homem originário do seio materno dele se evadiu para sempre, a terra só está à espera de seus ossos; o destino de sua alma decide-se em regiões onde os poderes da mãe se acham abolidos; o sacramento do batismo torna irrisórias as cerimônias em que se queimava ou afogava a placenta. Não há mais lugar na terra para a magia: Deus é o único rei. A natureza é originalmente má, porém diante da graça é impotente. A maternidade, como fenômeno natural, não confere nenhum poder. Só resta, portanto, à mulher, se quiser superar em si mesma a tara original, inclinar-se diante de Deus cuja vontade a escraviza ao homem. E mediante essa submissão, ela pode assumir novo papel na mitologia masculina. Combatida, espezinhada, quando aspirava a ser dominadora e enquanto ainda não abdicara explicitamente, pode a partir de então ser honrada como vassala. Não perde nenhum de seus atributos primitivos, mas estes mudam de sinal: de nefastos tornam-se fastos, a magia negra torna-se magia branca. Conquanto serva, a mulher tem direito às mais esplêndidas apoteoses.

Desde que foi escravizada como Mãe, é primeiramente como mãe que será querida e respeitada. Das duas faces da maternidade, o homem não quer mais conhecer senão a sorridente. Limitado no tempo e no espaço, possuindo apenas um corpo e uma vida finita, o homem não passa de um indivíduo no seio de uma Natureza e de uma História estranhas. Limitada como ele, semelhante a ele porque é também habitada pelo espírito, a mulher pertence à Natureza, é atravessada pela corrente infinita da Vida; ela se apresenta, portanto, como a mediadora entre o indivíduo e o cosmo. Compreende-se que o homem se volte com amor para a mãe quando a imagem dela se faz tranquilizadora e santa. Mergulhado na natureza, ele procura evadir-se, mas, separado dessa Natureza, aspira a unir-se a ela. Solidamente assentada na família, na sociedade, de acordo com as leis e os costumes, a mãe é a própria encarnação do Bem: a natureza de que ela participa torna-se boa, ela não é mais inimiga do espírito e, se permanece misteriosa, seu mistério é sorridente como o das madonas de Leonardo da Vinci. O homem não quer ser mulher, mas sonha com envolver em si tudo o que existe e também, portanto, essa mulher que ele não é. No culto que rende à mãe tenta apropriar-se de suas riquezas estranhas. Reconhecer-se filho é reconhecer a mãe em si próprio, é integrar a feminilidade enquanto ligação com a terra, a vida, o passado. Em Conversações na Sicília, de Vittorini, é o que o herói vai buscar junto de sua mãe: o solo natal, seus odores e frutos, a infância, a lembrança dos antepassados, as tradições, as raízes de que a existência individual o separou. É esse enraizamento mesmo que exalta no homem o orgulho da superação; agrada-lhe admirar-se arrancando-se dos braços maternos a fim de partir para a aventura, o futuro, a guerra; a partida seria menos comovente se não houvesse ninguém para tentar retê-lo: apresentar-se-ia como um acidente, não como uma vitória duramente alcançada. E agrada-lhe também saber que esses braços continuam prontos para acolhê-lo. Após a tensão da ação, o herói gosta de gozar novamente, junto de sua mãe, o repouso da imanência: ela é o refúgio, o sono; pela carícia de suas mãos ele mergulha novamente no seio da natureza, deixa-se levar pela grande corrente da vida, tão tranquilamente como na matriz, como no túmulo. E, se a tradição insiste em que morra chamando a mãe, é porque sob o olhar materno a própria morte é domesticada, simétrica do nascimento, indissoluvelmente ligada a toda vida carnal. A mãe permanece associada à morte como no antigo mito das Parcas; cabe à mãe enterrar os mortos e chorá-los. Mas seu papel é principalmente integrar a morte na vida, na sociedade, no bem. Por isso, o culto das “mães heroicas” é sistematicamente encorajado: se a sociedade obtém das mães que entreguem seus filhos à morte, é porque acredita ter o direito de assassiná-los. É vantajoso para a sociedade anexá-las em virtude do domínio que exercem sobre os filhos. Eis por que a mãe é cercada de tantas manifestações de respeito, por que lhe atribuem todas as virtudes e criam para ela uma religião a que é proibido obviar sob pena de sacrilégio e blasfêmia. Fazem-na a guardiã da moral; serva do homem, serva dos poderes, conduz docemente seus filhos pelos caminhos traçados. Quanto mais uma coletividade é resolutamente otimista, mais docilmente aceita essa terna autoridade, mais a mãe é nela transfigurada. A Mom norte-americana tornou-se o ídolo descrito por Philipp Wyllie em Generation of Vipers, porque a ideologia oficial dos Estados Unidos é o mais obstinado dos otimismos. Glorificar a mãe é aceitar o nascimento, a vida e a morte em sua forma animal e social, é proclamar a harmonia da natureza e da sociedade. É por sonhar com a realização dessa síntese que Auguste Comte faz da mulher a divindade da futura Humanidade. Mas é por isso também que todos os revoltados obstinam-se contra a figura da mãe; achincalhando-a, recusam o dado que lhe pretendem impor através da guardiã dos costumes e das leis.91

O respeito de que se aureola a Mãe, as proibições que a cercam recalcam o nojo hostil que espontaneamente se mistura à ternura carnal que inspira. Entretanto, sob formas larvadas, o horror à maternidade sobrevive. É interessante observar, em particular, que na França, desde a Idade Média, criou-se um mito secundário que permite a livre expressão dessas repugnâncias: o da Sogra. Desde os fabulários até os vaudevilles, é a maternidade em geral que o homem escarnece através da mãe da esposa, não defendida por nenhum tabu. Ele detesta que a mulher amada tenha sido engendrada: a sogra é evidentemente a imagem da decrepitude a que votou a filha ao dá-la à luz; sua obesidade, suas rugas, anunciam a obesidade, as rugas da jovem esposa cujo futuro assim tristemente se prefigura; ao lado da mãe, essa jovem esposa não se apresenta mais como um indivíduo, e sim como o momento de uma espécie; não é mais a presa desejada, a companheira querida, porque sua existência singular se dissolve na vida universal. Sua particularidade é irrisoriamente contestada pela generalidade, a autonomia do espírito pelo seu enraizamento no passado e na carne: é essa irrisão que o homem objetiva num personagem grotesco; mas se há tanto rancor em seu riso, é porque ele sabe muito bem que o destino de sua mulher é o de todo ser humano: é o seu. Em todos os países, as lendas e os contos encarnaram também na esposa de segundas núpcias o aspecto cruel da maternidade. É uma madrasta que tenta fazer com que Branca de Neve morra. Na madrasta — Mme Fichini, que chicoteia Sophie nos livros de Mme de Ségur — sobrevive a antiga Cali do colar de cabeças decepadas.

Entretanto, por trás da Mãe santificada aglomera-se a coorte das feiticeiras da magia branca que põem a serviço do homem os sucos das ervas e irradiações astrais: avós, velhas mulheres de olhos cheios de bondade, criadas carinhosas, irmãs de caridade, enfermeiras de mãos maravilhosas, amantes como aquela com que sonha Verlaine:

 

Doce, pensativa e morena e nunca espantada,

E que por vezes vos beija a fronte como uma criança;92

atribuem-lhe o claro mistério das cepas nodosas, da água fresca; elas cuidam e curam; sua sabedoria é a sabedoria silenciosa da vida, compreendem sem que lhes falem. Junto delas o homem esquece todo orgulho; conhece a doçura de se abandonar e de tornar a ser uma criança porque não há entre ele e elas nenhuma luta de prestígio. Ele não poderia invejar as virtudes inumanas da natureza, e, em seu devotamento, as sábias iniciadas que dele tratam reconhecem-se como suas servas; ele submete-se à força benfazeja delas porque sabe que nessa submissão permanece senhor. As irmãs, as amigas de infância, as moças puras, todas as futuras mães fazem parte da legião abençoada. E a própria esposa, quando sua magia erótica se dissipa, apresenta-se a muitos homens menos como amante do que como mãe dos filhos. A partir do dia em que a mãe é santificada e escravizada pode-se sem medo reencontrá-la na companheira, ela também santificada e submissa. Resgatar a mãe é resgatar a carne e, portanto, a união carnal e a esposa.

Privada de suas armas mágicas pelos ritos nupciais, econômica e socialmente subordinada ao marido, a “boa esposa” é para o homem o mais precioso dos tesouros. Pertence-lhe tão profundamente que participa da mesma essência: ubi tu Gaius, ego Gaia; usa o nome dele, tem os mesmos deuses, ele é responsável por ela: chama-a sua metade. Ele orgulha-se de sua mulher como de sua casa, suas terras, seus rebanhos, suas riquezas, e por vezes mais ainda; é através dela que manifesta sua força aos olhos do mundo; ela é sua medida e sua parte na terra. Entre os orientais, a mulher deve ser gorda: vê-se assim que é bem alimentada e honra seu senhor.93 Um muçulmano é tanto mais considerado quanto maior número de mulheres florescentes possui. Na sociedade burguesa, um dos papéis reservados à mulher é representar; sua beleza, seu encanto, sua inteligência, sua elegância são os sinais exteriores da fortuna do marido, ao mesmo título que a carroceria de seu automóvel. Rico, ele a cobre de peles e joias. Mais pobre, elogia-lhe as qualidades morais e os talentos de dona de casa; o mais deserdado, se tem apego à mulher que o serve, imagina possuir alguma coisa na terra. O herói de A megera domada convoca todos os vizinhos para lhes mostrar com que autoridade soube dominar a mulher. Todo homem ressuscita mais ou menos o rei Candaule: exibe a mulher porque pensa mostrar os próprios méritos.

Mas a mulher não lisonjeia apenas a vaidade social do homem; ela lhe dá também um orgulho mais íntimo; ele se encanta com o domínio que tem sobre ela; às imagens naturalistas do arado entalhando a terra superpõem-se símbolos mais espirituais, quando a mulher se torna uma pessoa; não é apenas eroticamente, é também moral e intelectualmente que o marido “forma” a esposa; ele a educa, marca-a, impõe-lhe sua personalidade. Um dos devaneios em que o homem se compraz é o da impregnação das coisas pela sua vontade, da moldagem das formas, da penetração da subsistência delas. A mulher é por excelência a argila que se deixa passivamente malaxar e moldar; mas, cedendo, ela resiste, o que permite à ação masculina perpetuar-se. A matéria demasiado plástica anula-se pela sua docilidade; o que há de precioso na mulher é que algo nela escapa indefinidamente a qualquer posse; desse modo, o homem é senhor de uma realidade tanto mais digna de ser dominada quanto o ultrapassa. Ela desperta nele um ser ignorado que ele reconhece, orgulhosamente, como si mesmo; nas comedidas orgias conjugais ele descobre o esplendor de sua animalidade: ele é o Macho; correlativamente, a mulher é fêmea, mas esta palavra assume então os mais lisonjeiros sentidos; a fêmea que acarinha, amamenta, lambe os filhotes, defende-os arriscando a vida é um exemplo para a humanidade; com emoção, o homem reclama de sua companheira essa paciência, esse devotamento; ela é ainda a natureza, mas com todas as virtudes úteis à sociedade, à família, ao chefe da família que este entende encerrar em seu lar. Um dos desejos comuns à criança e ao homem é desvendar o segredo escondido no interior das coisas. Desse ponto de vista, a matéria é decepcionante; uma boneca estripada com o ventre à mostra não tem mais interioridade; a intimidade viva é mais impenetrável; o ventre feminino é símbolo da imanência, da profundidade; ele revela em parte seus segredos, particularmente quando o prazer se inscreve no rosto feminino; mas retém-nos igualmente. O homem capta, em domicílio, as obscuras palpitações da vida sem que a posse lhes destrua o mistério. No mundo humano, a mulher transpõe as funções da fêmea animal: ela alimenta a vida, reina sobre as regiões da imanência; o calor e a intimidade da matriz, ela os transporta para o lar; ela é quem guarda e anima a casa em que se deteve o passado, em que se prefigura o futuro; ela engendra a geração futura e alimenta os filhos já nascidos; graças a ela, a existência, que o homem despende pelo mundo no trabalho e na ação, concentra-se retornando à sua imanência: quando à noite ele volta para casa, ei-lo ancorado à terra; pela mulher, a continuidade dos dias é assegurada; quaisquer que sejam os acasos que enfrente no mundo exterior, ela garante a repetição das refeições, do sono; ela conserta tudo o que a atividade destrói ou desgasta: ela prepara os alimentos do trabalhador cansado, dele trata se está doente, cerze, lava. E no universo conjugal que constitui e perpetua, ela introduz todo um vasto mundo: acende o fogo, enche a casa de flores, domestica os eflúvios do sol, da água, da terra. Um escritor burguês citado por Bebel assim resume com seriedade esse ideal: “O homem deseja não somente alguém cujo coração bata por ele, mas ainda cuja mão lhe enxugue a fronte, que faça reinar a paz, a ordem, a tranquilidade, uma silenciosa autoridade sobre si próprio e sobre as coisas que encontra diariamente ao voltar para o lar; ele quer alguém que espalhe sobre todas as coisas esse inexprimível perfume de mulher que é o calor vivificante da vida e da casa.”

Vê-se a que ponto a figura da mulher se espiritualizou desde o aparecimento do cristianismo; a beleza, o calor, a intimidade que o homem deseja ter através dela não são mais qualidades sensíveis; em lugar de resumir a saborosa aparência das coisas, torna-se a alma delas; mais profundo do que o mistério carnal, há em seu coração uma secreta e pura presença em que se reflete a verdade do mundo. Ela é a alma da casa, da família, do lar. Ela é também a das coletividades mais amplas; cidade, província, nação. Jung observa que as cidades sempre foram assimiladas à Mãe pelo fato de conterem os cidadãos em seu seio: eis por que Cibele se apresenta coroada de torres; pela mesma razão fala-se em “pátria mãe”; mas não é somente o solo nutriz, é uma realidade mais sutil que encontra seu símbolo na mulher. No Antigo Testamento e no Apocalipse, Jerusalém e Babilônia não são somente mães: são igualmente esposas. Há cidades virgens e cidades prostitutas como Babel e Tiro. Também se diz da França que é a “filha mais velha” da Igreja; a França e a Itália são irmãs latinas. A função da mulher não é especificada, mas tão somente sua feminilidade, nas estátuas que representam a França, Roma, a Germânia, ou nas que, na praça da Concórdia, evocam Estrasburgo e Lyon. Essa assimilação não é apenas alegórica, ela é efetivamente realizada por muitos homens.94 É frequente o viajante pedir à mulher o segredo das regiões que visita: quando tem uma italiana nos braços, ou uma espanhola, parece-lhe possuir a essência saborosa da Itália, da Espanha. “Quando chego numa nova cidade, começo indo ao bordel”, dizia um jornalista. Se um chocolate com canela pode revelar a Gide toda a Espanha, com muito mais razão os beijos de uma boca exótica dão ao amante um país com sua flora, sua fauna, suas tradições, sua cultura. A mulher não lhes resume as instituições políticas nem as riquezas econômicas, mas ela encarna sua polpa carnal e seu mana místico ao mesmo tempo. Desde Graziella de Lamartine aos romances de Loti e às novelas de Morand, é através da mulher que vemos o estrangeiro tentar apropriar-se da alma de uma região. Mignon, Sylvie, Mireille, Colomba, Carmen desvendam a mais íntima verdade da Itália, do Valois, da Provença, da Córsega, da Andaluzia. O fato de Goethe se fazer amar pela alsaciana Frederica pareceu aos alemães um símbolo de anexação dessa região à Alemanha; reciprocamente, quando Colette Baudoche se recusa a desposar um alemão, aos olhos de Barrès, a Alsácia recusa-se à Alemanha. Ele simboliza Aigues-Mortes e toda uma civilização requintada e friorenta na pequena Berenice; ela representa também a sensibilidade do próprio escritor. Porque naquela que é a alma da Natureza, das cidades, do universo, o homem reconhece também seu duplo misterioso; a alma do homem é Psique, uma mulher.

Psique tem traços femininos em Ulalume de Edgard Poe: “Aqui, certa vez, através de uma alameda titânica de ciprestes errava com minha alma — uma alameda de ciprestes com Psique minha alma... Assim pacifiquei Psique e a beijei... e disse: que está escrito na porta, doce irmã?”

E Mallarmé, dialogando no teatro com “uma alma ou nossa ideia” (isto é, a divindade presente no espírito do homem), chama-a “uma tão requintada dama anormal (sic)”.95

 

Harmoniosa eu diferente de um sonho

Mulher flexível e rija de silêncios seguidos

De atos puros!...

Misteriosa eu...96

 

Eis como Valéry a interpela. Às ninfas e às fadas o mundo cristão substituiu presenças menos carnais. Mas os lares, as paisagens, as cidades e os próprios indivíduos continuam habitados por uma impalpável feminilidade.

Essa verdade enterrada na noite das coisas resplende também no céu. Perfeita imanência, a Alma é ao mesmo tempo o transcendente, a Ideia. Não somente as cidades e as nações mas também entidades e instituições abstratas apresentam traços femininos: a Igreja, a Sinagoga, a República, a Humanidade são mulheres, e também a Paz, a Guerra, a Liberdade, a Revolução, a Vitória. O ideal que o homem põe diante de si como o Outro essencial, ele o feminiza porque a mulher é a figura sensível da alteridade; eis por que quase todas as alegorias, tanto na linguagem como na iconografia, são mulheres.97 Alma e Ideia, a mulher é também mediadora entre uma e outra; ela é a Graça que conduz o cristão a Deus, ela é Beatriz guiando Dante no além, Laura chamando Petrarca para os altos cumes da poesia. Em todas as doutrinas que assimilam a Natureza ao Espírito, ela se apresenta como Harmonia, Razão, Verdade. As seitas gnósticas tinham feito da Sabedoria uma mulher: Sofia. Atribuíam-lhe a redenção do mundo e até sua criação. A mulher não é mais carne então, mas corpo glorioso; não se pretende mais possuí-la, veneram-na em seu esplendor intato; as mortas pálidas de Edgard Poe são fluidas como a água, como o vento, como a lembrança; para o amor cortês, para os preciosos e em toda a tradição galante a mulher não mais é uma criatura animal e sim um ser etéreo, um sopro, uma luz. Assim é que a opacidade da Noite feminina se converte em transparência, a negridão em pureza como nos textos de Novalis:

“Êxtase noturno, sono celeste, desceste sobre mim; a paisagem elevou-se docemente, acima da paisagem flutuou meu espírito liberto, regenerado. O texto tornou-se uma nuvem através da qual percebi os traços transfigurados da Bem-Amada.”

“Somos então agradáveis a ti também, noite sombria?... Um bálsamo precioso escorre de tuas mãos, uma réstia de luz cai de tua girândola. Reténs as asas pesadas da alma. Uma emoção obscura e indizível nos invade: vejo um rosto sério, alegremente assustado, inclinar-se para mim com doçura e recolhimento e reconheço sob os cachos enlaçados a querida juventude da Mãe... Mais celestes do que as estrelas cintilantes parecem-nos os olhos infinitos que a Noite abriu em nós.”

Inverteu-se a atração descendente exercida pela mulher; ela não chama mais o homem para o coração da terra e sim para o céu:

 

O Eterno Feminino

Atrai-nos para o alto

 

proclama Goethe no fim do Segundo Fausto.

Sendo a Virgem Maria a imagem mais perfeita, mais geralmente venerada da mulher regenerada e consagrada ao Bem, é interessante ver através da literatura e da iconografia como ela se apresenta. Eis um excerto das ladainhas que lhe endereçava na Idade Média a cristandade fervorosa:

“Alta Virgem, tu és o Orvalho fecundo, a Fonte da Alegria, o Canal das misericórdias, o Poço das águas vivas que apaziguam nossos ardores.

“És o Seio com que Deus amamenta os órfãos...

“És a Medula, o Miolo, o Núcleo de todos os bens.

“És a Mulher sem ardis e cujo amor nunca muda...

“És a Piscina probática, o Remédio das vidas leprosas, a Médica sutil que não encontra semelhante nem em Salerno nem em Montpellier...

“És a Dama das mãos que curam e cujos dedos tão belos, tão brancos, tão alongados restauram os narizes e as bocas, fazem novos olhos e novas orelhas. Acalmas os ardentes, reanimas os paralíticos, retesas os covardes, ressuscitas os mortos.”

Encontra-se nessas invocações a maior parte das atribuições femininas que assinalamos. A Virgem é fecundidade, orvalho, fonte de vida; muitas imagens mostram-na no poço, na nascente, na fonte; a expressão “fonte de vida” é uma das mais difundidas; ela não é criadora, mas fertiliza, faz jorrar à luz o que se escondia na terra. Ela é a profunda realidade encerrada sob a aparência das coisas: o Núcleo, a Medula. Através dela, aplacam-se os desejos: ela é o que é dado ao homem para satisfazê-lo. Por toda parte onde a vida se acha ameaçada, ela a salva e a restaura; cura e fortalece. E como a vida emana de Deus, sendo intermediária entre o homem e a vida, ela é intermediária entre a humanidade e Deus. “Porta do diabo”, dizia Tertuliano. Mas, transfigurada, ela é a porta do céu; pinturas no-la representam abrindo uma porta ou uma janela para o paraíso; ou ainda, erguendo uma escada entre a terra e o firmamento. Mais claramente, ei-la advogada, intercedendo junto de seu Filho pela salvação dos homens. Inúmeros quadros do Juízo Final mostram a Virgem descobrindo os seios e suplicando a Cristo em nome de sua gloriosa maternidade. Ela protege nas dobras de seu manto os filhos dos homens; seu amor misericordioso acompanha-os pelos oceanos, pelos campos de batalha, através dos perigos. Em nome da caridade, atenua a justiça divina; veem-se “Virgens com balança” que fazem, sorrindo, pender para o lado do Bem o prato em que são pesadas as almas.

Esse papel misericordioso e terno é um dos mais importantes que foram atribuídos à mulher. Mesmo integrada na sociedade, a mulher ultrapassa-lhe sutilmente as fronteiras porque tem a generosidade insidiosa da Vida. É essa distância entre as construções voluntárias dos homens e a contingência da natureza que parece, em certos casos, inquietante, mas ela torna-se benéfica quando a mulher, demasiado dócil para ameaçar a obra dos homens, limita-se a enriquecê-la e amaciar-lhe as linhas por demais acentuadas. Os deuses masculinos representam o Destino; ao lado das deusas encontra-se uma benevolência arbitrária, uma proteção caprichosa. O Deus cristão tem os rigores da Justiça; a Virgem tem a doçura da caridade. Na terra, os homens são defensores das leis, da razão, da necessidade; a mulher conhece a contingência original do próprio homem e dessa necessidade em que ele crê; daí a misteriosa ironia que floresce em seus lábios e sua flexível generosidade. Ela pare na dor, trata das feridas dos machos, amamenta o recém-nascido e sepulta os mortos; conhece tudo o que freia o orgulho e humilha a vontade do homem. Embora inclinando-se diante dele, sujeitando a carne ao espírito, situa-se nas fronteiras carnais do espírito; contesta a seriedade das duras arquiteturas masculinas, adoça-lhe os ângulos; introduz nelas um luxo gratuito, uma graça imprevista. Seu poder sobre os homens decorre do fato de guiá-los ternamente para uma consciência modesta da autêntica condição deles; eis o segredo de sua sabedoria desabusada, dolorosa, irônica e amorosa. Mesmo a frivolidade, o capricho, a ignorância são nelas virtudes encantadoras, porque elas desabrocham aquém e além do mundo em que o homem escolhe viver, mas onde não gosta de se sentir encerrado. Diante das significações assentadas, dos instrumentos moldados para fins úteis, ela ergue o mistério das coisas intatas; faz passar pelas ruas das cidades e pelos campos cultivados o sopro da poesia. A poesia pretende captar o que existe além da prosa quotidiana: a mulher é uma realidade eminentemente poética, porquanto nela o homem projeta tudo o que não se decide a ser. Ela encarna o Sonho; o sonho é para o homem a presença mais íntima e mais estranha, o que ele não quer, o que não faz, aquilo a que ele aspira e que não pode ser atingido; a Outra misteriosa que é a profunda imanência e a longínqua transcendência empresta-lhe os traços. Assim é que Aurélia visita Nerval em sonho, e dá-lhe oniricamente todo o universo. “Ela pôs-se a crescer sob uma clara réstia de luz de maneira que, pouco a pouco, o jardim assumia a sua forma e os canteiros e as árvores tornavam-se as rosáceas e os festões de suas vestimentas; enquanto seu rosto e seus braços imprimiam seus contornos às nuvens purpurinas do céu. Eu a perdia de vista na medida em que ela se transfigurava, porque parecia esvair-se na sua própria grandeza. — Oh! não me fujas, exclamei, pois a natureza morre contigo.”

Sendo a própria substância das atividades poéticas do homem, compreende-se que a mulher se apresente como sua inspiradora: as Musas são mulheres. A Musa é mediadora entre o criador e as fontes naturais em que deve haurir. É através da mulher, cujo espírito se acha profundamente ligado à natureza, que o homem sondará os abismos do silêncio e da noite fecunda. A Musa não cria nada por si mesma; é uma Sibila ajuizada que docilmente se fez serva de um senhor. Mesmo nos domínios concretos e práticos, seus conselhos serão úteis. O homem quer, sem o auxílio de seus semelhantes, atingir as metas que inventa e não raro a opinião de outro homem se lhe afigura importuna, mas ele imagina que a mulher lhe fala em nome de outros valores, em nome de uma sabedoria que ele não pretende possuir, mais instintiva do que a dele, mais imediatamente adequada ao real; são “intuições” que Egéria oferece ao consulente; ele a interroga sem amor próprio, como interrogaria os astros. Essa “intuição” introduz-se até nos negócios e na política: Aspásia e Mme de Maintenon ainda hoje fazem carreira florescente.98

Há outra função que o homem de bom grado confia à mulher: sendo o objetivo das atividades dos homens e fonte de suas decisões, ela se apresenta concomitantemente como medida dos valores. Ela se revela um juiz privilegiado. Não é somente para possuí-lo que o homem sonha com um Outro, é também para ser confirmado por ele; fazer-se confirmar por homens, que são seus semelhantes, exige dele uma tensão constante. Eis por que ele deseja que um olhar, vindo de fora, confira à sua vida, a seus empreendimentos, a ele próprio um valor absoluto. O olhar de Deus é oculto, estranho, inquietante: mesmo nas épocas de fé, só alguns místicos são por ele atingidos. Esse papel divino foi atribuído frequentemente à mulher. Próxima do homem, por este dominada, ela não põe valores que lhe sejam alheios: e no entanto, como é outra, ela permanece exterior ao mundo dos homens e é, portanto, capaz de apreendê-lo com objetividade. Cabe a ela, em cada caso singular, denunciar a ausência ou a presença da coragem, da força, da beleza, confirmando ao mesmo tempo, de fora, seu valor universal. Os homens acham-se demasiado ocupados com suas relações de cooperação e luta para se constituírem público uns dos outros: não se contemplam. A mulher está afastada de suas atividades, não participa dos torneios nem dos combates. Toda a sua situação a destina a desempenhar esse papel de olhar. É por sua dama que o cavaleiro combate no torneio; é o sufrágio das mulheres que os poetas procuram obter. Quando Rastignac quer conquistar Paris, pensa primeiramente em ter mulheres, menos para as possuir em seus corpos do que para gozar essa reputação que só elas são capazes de criar para um homem. Balzac projetou em seus jovens heróis a história de sua própria juventude: foi junto das amantes mais idosas que ele começou a formar-se; e não é somente no Le Lys dans la vallée que a mulher desempenha esse papel de educadora; é também o que lhe é apontado em L’Éducation sentimentale, nos romances de Stendhal e em numerosos outros romances de aprendizagem. Já se viu que a mulher é a um tempo physis e antiphysis; encarna a Natureza como encarna a sociedade; nela se resume a civilização de uma época, sua cultura, como se vê nos poemas corteses, no Decamerão, em L’Astrée; ela lança modas, reina nos salões, dirige e reflete a opinião. A celebridade e a glória são mulheres. “A multidão é mulher”, dizia Mallarmé. Junto das mulheres, o jovem inicia-se “no mundo” e essa complexa realidade chama-se “a vida”. Ela é um dos objetivos privilegiados a que se destina o herói, o aventureiro, o individualista. Vê-se, na Antiguidade, Perseu libertar Andrômeda, Orfeu buscar Eurídice nos infernos, e Troia combater para guardar a bela Helena. Os romances de cavalaria quase não conhecem outra façanha além da libertação de princesas cativas. Que faria o Príncipe Encantado se não despertasse a Bela Adormecida no bosque, se não cumulasse Pele de Asno com seus dons? O mito do rei que casa com a pastora lisonjeia o homem tanto quanto a mulher. O homem rico precisa esbanjar, do contrário, sua riqueza inútil permanece abstrata: ele precisa de alguém a quem dar. O mito de Cinderela, que Philipp Wyllie descreve com complacência em Generation of Vipers, floresce principalmente nos países prósperos; tem mais força na América do Norte do que em outros lugares, porque aí se encontram os homens mais embaraçados com suas riquezas: esse dinheiro que acumulam durante uma vida inteira, como o gastariam se não o consagrassem a uma mulher: Orson Welles, entre outros, encarnou em Cidadão Kane o imperialismo dessa falsa generosidade: é para a afirmação de sua própria força que Kane resolve esmagar com seus presentes uma obscura cançonetista e impô-la ao público como uma grande cantora; poderíamos citar também, na França, muitos cidadãos Kane de menor porte. Em outro filme, O fio da navalha, quando o herói volta da Índia senhor de uma sabedoria absoluta, o único emprego que lhe sabe dar é o de reabilitar uma prostituta. É claro que em se sonhando assim doador, libertador, redentor, o homem ainda aspira à escravização da mulher; sim, porque para despertar a Bela Adormecida cumpre que ela durma; são necessários ogros e dragões para que haja princesas cativas. Entretanto, quanto mais o homem aprecia as empresas difíceis, mais ele se compraz em conceder a independência à mulher. Vencer é ainda mais fascinante do que libertar ou dar. O ideal do homem médio ocidental é uma mulher que se submeta livremente a seu domínio, que não aceite suas ideias sem discussão, mas que ceda diante de seus argumentos, que lhe resista com inteligência para acabar deixando-se convencer. Quanto mais seu orgulho se torna ousado, mais ele deseja que a aventura seja perigosa: é mais belo dominar Pentesileia do que desposar Cinderela. “O guerreiro aprecia o perigo e o jogo”, diz Nietzsche, “eis por que ama a mulher que é o jogo mais perigoso”. O homem que gosta do perigo e do jogo vê, sem desprazer, a mulher transformar-se em amazona desde que conserve a esperança de dominá-la:99 o que exige, em seu coração, é que essa luta seja um jogo para ele, ao passo que a mulher nela empenha seu destino; e a verdadeira vitória do homem, libertador ou conquistador, consiste em que a mulher o reconheça livremente como destino.

Assim a expressão “ter uma mulher” comporta um duplo sentido: as funções de objeto e juiz não se acham dissociadas. A partir do momento em que a mulher é encarada como pessoa, só pode ser conquistada com seu consentimento: cumpre vencê-la. É o sorriso da Bela Adormecida que encanta o Príncipe; são as lágrimas de felicidade e gratidão das princesas cativas que emprestam verdade à façanha do cavaleiro. Inversamente, seu olhar não tem a severidade abstrata do olhar masculino, ele se deixa encantar. O heroísmo e a poesia são, portanto, modos de sedução, mas deixando-se seduzir, a mulher exalta o heroísmo e a poesia. Aos olhos do individualista, ela detém um privilégio ainda mais essencial: apresenta-se a ele não como uma medida de valores universalmente reconhecidos, mas sim como a revelação de seus méritos singulares e de seu próprio ser. Um homem é julgado por seus semelhantes pelo que faz, na sua objetividade e segundo medidas gerais. Mas algumas de suas qualidades, e entre outras suas qualidades vitais, só podem interessar a mulher; ele é viril, agradável, sedutor, terno, cruel unicamente em função dela: se é a essas mais secretas virtudes que dá valor, dela tem ele necessidade absoluta; por ela conhecerá o milagre de apresentar-se como outro, outro que é também seu eu mais profundo. Há um texto de Malraux100 que exprime admiravelmente o que o individualista espera da mulher amada. Kyo interroga-se: “Ouve-se a voz dos outros com os ouvidos, a nossa própria com a garganta. Sim. A nossa vida também é ouvida com a garganta, e a dos outros?... Para os outros, sou o que fiz... Somente para May ele não era o que fizera; somente para ele, ela era inteiramente diferente de sua biografia. O abraço pelo qual o amor mantém os seres colados uns aos outros contra a solidão não ajudava os homens, mas o louco, o monstro incomparável, preferível a tudo, o que todo ser é para si mesmo e que acarinha em seu coração. Desde que sua mãe morrera, May era o único ser para o qual ele não era Kyo Gisors e sim a mais estreita cumplicidade... Os homens não são meus semelhantes, são quem me olha e me julga; meus semelhantes são os que me amam e não me olham, que me amam contra tudo, que me amam contra a decadência, contra a baixeza, contra a traição: a mim, e não ao que fiz ou farei. São os que me amarão enquanto eu amar a mim mesmo até o suicídio inclusive.”101 O que torna humana e comovente a atitude de Kyo é o fato de que ela implica a reciprocidade e de que ele pede a May que o ame em sua autenticidade e não que lhe ofereça um reflexo complacente. Em muitos homens essa exigência se degrada: em lugar de uma revelação exata, eles buscam no fundo de dois olhos vivos uma imagem aureolada de admiração e gratidão, divinizada. Se a mulher foi, muitas vezes, comparada à água, é entre outros motivos porque é o espelho em que o Narciso macho se contempla; debruça-se sobre ela de boa ou de má-fé. Mas o que, em todo caso, ele lhe pede é que seja fora dele tudo o que não pode apreender em si, pois a interioridade do existente não passa de nada e, para se atingir, ele precisa projetar-se em um objeto. A mulher é para ele a suprema recompensa porque é sob uma forma exterior que ele pode possuir, em sua carne, sua própria apoteose. E é esse “monstro incomparável”, isto é, a si mesmo, que ele possui quando aperta nos braços o ser que lhe resume o Mundo e a quem impôs seus valores e leis. Então, unindo-se a esse outro que fez seu, espera atingir a si próprio. Tesouro, presa, jogo e risco, musa, guia, juiz, mediadora, espelho, a mulher é o Outro em que o sujeito se supera sem ser limitado, que a ele se opõe sem o negar. Ela é o Outro que se deixa anexar sem deixar de ser o Outro. E, desse modo, ela é tão necessária à alegria do homem e a seu triunfo, que se pode dizer que, se ela não existisse, os homens a teriam inventado.

Eles inventaram-na.102 Mas ela existe também sem essa invenção. Eis por que é, ao mesmo tempo, a encarnação do sonho masculino e seu fracasso. Não há uma só representação da mulher que não engendre de imediato a imagem inversa: ela é a Vida e a Morte, a Natureza e o Artifício, o Dia e a Noite. Sob qualquer aspecto que a consideremos, encontramos sempre a mesma oscilação pelo fato de que o inessencial volta necessariamente ao essencial. Nas figuras da Virgem Maria e de Beatriz subsistem Eva e Circe.

Pela mulher, escreve Kierkegaard,103 a idealidade entra na vida, e sem ela que seria do homem? Mais de um homem se fez gênio graças a uma jovem... mas nenhum se tornou gênio graças a uma jovem de quem tivesse obtido a mão...”

“É numa relação negativa que a mulher torna o homem produtivo na idealidade... Relações negativas com a mulher podem tornar-nos infinitos... Relações positivas com a mulher tornam o homem finito nas mais amplas proporções.” Isso significa que a mulher é necessária na medida em que permanece uma Ideia em que o homem projeta sua própria transcendência; mas que é nefasta enquanto realidade objetiva, existindo por si e limitada a si. É recusando casar-se com a noiva que Kierkegaard estima ter estabelecido a única relação válida com a mulher. E tem razão no sentido em que o mito da mulher colocada como Outro infinito acarreta, de imediato, seu contrário.

Porque é falso Infinito, Ideal sem verdade, ela se descobre como finitude e mediocridade e, concomitantemente, como mentira. Assim é que se apresenta em Laforgue. Este, em toda a sua obra, exprime seu rancor contra uma mistificação que torna o homem tão culpado quanto a mulher. Ofélia, Salomé são, na realidade, “mulherzinhas”. Hamlet pensa: “É assim que Ofélia me amara, como ‘seu bem’ e porque eu era social e moralmente superior aos bens de suas amiguinhas. E as pequenas frases que lhe escapam, nas horas em que as lâmpadas se acendem, acerca do bem-estar e do conforto!” A mulher faz o homem sonhar. Entretanto, pensa no conforto, no cotidiano; falam-lhe da alma quando não passa de um corpo. E acreditando perseguir um Ideal, o amante é o joguete da natureza que utiliza todas essas místicas para fins de reprodução. Ela representa, em verdade, o cotidiano da vida; ela é parvoíce, prudência, mesquinharia, tédio. É o que exprime, entre outros, o poema intitulado “Nossa companheirinha”:

 

...Tenho a arte de todas as escolas

Tenho almas para todos os gostos

Colhei a flor de meus rostos

Bebei minha boca e não minha voz

Não procureis outra coisa:

Ninguém aí vive com clareza nem mesmo eu.

Nossos amores não são iguais

Para que vos estenda a mão

Sois apenas machos ingênuos

Eu sou o Eterno Feminino!

Meu Fim perde-se nas estrelas!

Sou eu a Grande Ísis!

Ninguém me arregaçou o véu

Pensai somente em meus oásis...104

 

O homem conseguiu escravizar a mulher, mas desse modo despojou-a do que lhe tornava a posse desejável. Integrada na família e na sociedade, a magia da mulher dissipa-se em vez de se transfigurar; reduzida à condição de serva, ela não é mais a presa indomada em que se encarnavam todos os tesouros da natureza. Desde o aparecimento do amor cortês, é lugar-comum dizer que o casamento mata o amor. Demasiado desprezada ou demasiado respeitada, por demais cotidiana, a esposa não é mais um objeto erótico. Os ritos do casamento destinam-se primitivamente a defender o homem contra a mulher; ela torna-se sua propriedade; mas tudo o que possuímos nos possui; o casamento é também uma servidão para o homem; é então que ele se vê preso na armadilha da natureza. Por ter desejado uma jovem viçosa, o homem deve sustentar toda sua vida uma gorda matrona, uma velha encarquilhada; a joia delicada destinada a embelezar sua existência torna-se fardo odioso. Xantipa é um dos tipos femininos de que os homens sempre falaram com mais horror.105 Porém, mesmo que a mulher seja jovem, há no casamento uma mistificação, pois pretendendo socializar o erotismo só consegue aniquilá-lo. É que o erotismo implica uma reivindicação do instante contra o tempo, do indivíduo contra a coletividade; ele afirma a separação contra a comunicação; é rebelde a todo regulamento; contém um princípio hostil à sociedade. Nunca os costumes se dobraram ao rigor das instituições e das leis. É contra elas que o amor desde sempre se afirmou. Sob seu aspecto sensual, é aos jovens e às cortesãs que se endereça na Grécia e em Roma, carnal e platônico ao mesmo tempo, o amor cortês sempre se destinou à esposa de outrem. Tristão é a epopeia do adultério. A época que renova o mito da mulher, por volta de 1900, é aquela em que o adultério se torna o tema de toda a literatura. Certos escritores, como Bernstein, esforçam-se por reintegrar, no casamento, o erotismo e o amor, numa defesa suprema das instituições burguesas; mas há mais verdade na Amoureuse de Porto-Riche que mostra a incompatibilidade dessas duas ordens de valores. O adultério só pode desaparecer com o próprio casamento. Porque o fim do casamento é, em suma, imunizar o homem contra sua mulher: mas as outras mulheres conservam a seus olhos uma vertiginosa atração; é para elas que ele se volta. As mulheres fazem-se cúmplices, porque se rebelam contra uma ordem que pretende privá-las de todas as suas armas. Para arrancar a mulher à Natureza, para escravizá-la ao homem mediante cerimônias e contratos, elevaram-na à dignidade de pessoa humana, deram-lhe liberdade. Mas a liberdade é precisamente o que escapa a toda servidão; e se é concedida a um ser originalmente habitado por forças maléficas, ela se torna perigosa. E tanto mais quanto o homem se deteve nas meias medidas; só aceitou a mulher no mundo masculino fazendo dela uma serva, frustrando-a de sua transcendência; a liberdade que lhe outorgaram só podia ser de uso negativo; ela empenha-se em se recusar. A mulher só se tornou livre tornando-se cativa; renuncia a esse privilégio humano para encontrar de novo sua força de objeto natural. De dia, ela desempenha perfidamente seu papel de escrava dócil, mas, à noite, transforma-se em gata, em corça; introduz-se novamente em sua pele de sereia ou, cavalgando uma vassoura, participa de rondas satânicas. Por vezes, é sobre o marido que exerce sua magia noturna; porém, é mais prudente dissimular essa metamorfose a seu senhor; são estranhos que ela escolhe como presas; eles não têm direitos sobre ela e ela continua planta, fonte, estrela, feiticeira para eles. Ei-la, portanto, destinada à infidelidade: é o único aspecto concreto que pode assumir sua liberdade. Ela é infiel para além mesmo de seus desejos, seus pensamentos, sua consciência; pelo fato de ser encarada como objeto está entregue a toda subjetividade que resolve apossar-se dela; encerrada no harém, escondida sob véus, nem assim se tem certeza de que não inspire desejos a ninguém: inspirar desejo a um estranho já é estar em falta com o esposo e com a sociedade. Demais, ela faz-se muitas vezes cúmplice dessa fatalidade; é somente pela mentira e pelo adultério que pode provar que não é a propriedade de ninguém e desmentir as pretensões do homem. Eis por que o ciúme do homem tão facilmente desperta; vê-se nas lendas que a mulher, sem motivo, pode ser suspeita, condenada à menor desconfiança, como Geneviève de Brabant ou Desdêmona; antes mesmo de qualquer suspeita Grisélidis é submetida às mais duras provas. Esse conto seria absurdo se a mulher de antemão não fosse suspeita; não há necessidade de demonstrar suas culpas: a ela é que cabe provar sua inocência. Eis por que igualmente o ciúme pode ser insaciável; já se disse que a posse nunca pode ser positivamente realizada; mesmo em se proibindo a quem quer que seja servir-se dela, não se possui a nascente em que a gente se dessedenta. O ciumento bem o sabe. Por essência, a mulher é inconstante, como fluida é a água; e nenhuma força humana pode contradizer uma verdade natural. Através de todas as literaturas, nas Mil e uma noites, como no Decamerão, vemos os ardis da mulher triunfarem sobre a prudência do homem. E, no entanto, não é somente pela vontade individualista que este é carcereiro; é a sociedade que o torna responsável pela conduta da mulher, na qualidade de pai, irmão ou esposo. A castidade é imposta à mulher por motivos de ordem econômica e religiosa, devendo cada cidadão ser autentificado como filho de seu pai. Mas é muito importante também obrigar a mulher a representar exatamente o papel que lhe atribui a sociedade. Há uma dupla exigência do homem que força a mulher à duplicidade: ele quer que ela seja sua e que lhe permaneça estranha, deseja-a escrava e feiticeira a um tempo. Mas é somente o primeiro desses desejos que demonstra publicamente; o outro é uma reivindicação sorrateira que dissimula no segredo de seu coração e de sua carne. Ela contesta a moral e a sociedade; ela é má como o Outro, como a Natureza rebelde, como “a mulher má”. O homem não se dedica inteiramente ao Bem que constrói e pretende impor; entretém vergonhosamente relações com o Mal. Mas onde quer que este ouse mostrar imprudentemente seu rosto a descoberto, ele luta contra. Nas trevas da noite, o homem convida a mulher ao pecado, mas em pleno dia repudia o pecado e a pecadora. E as mulheres, elas próprias pecadoras no mistério do leito, com muito mais paixão ainda rendem culto público à virtude. Assim como, entre os primitivos, o sexo masculino é laico enquanto o feminino se impregna de virtudes religiosas e mágicas, nas sociedades mais modernas, o erro do homem não passa de um deslize sem gravidade; consideram-no geralmente com indulgência. Mesmo se desobedece às leis da comunidade, o homem continua a pertencer-lhe; não passa de um menino levado que não ameaça profundamente a ordem coletiva. Ao contrário, se a mulher se evade da sociedade, retorna à Natureza e ao demônio, desencadeia no seio da coletividade forças incontroláveis e perniciosas. À censura que inspira uma conduta desavergonhada, mistura-se sempre o medo. Se o marido não consegue constranger a mulher à virtude, ele participa do erro; sua desgraça é uma desonra aos olhos da sociedade; há civilizações tão severas que lhe obrigam a matar a criminosa para se dessolidarizar do crime. Em outras, pune-se o esposo complacente com charivaris, ou então passeando nu, montado num asno. E a comunidade encarrega-se de castigar a culpada em seu lugar: pois não é apenas a ele que ela ofende e sim toda a coletividade. Esses costumes existiram com certo rigor na Espanha supersticiosa e mística, sensual e aterrorizada pela carne. Calderon, Lorca, Valle Inclan fizeram disso o tema de muitos dramas. Em Casa de Bernarda Alba, de Lorca, as comadres da aldeia querem punir a jovem seduzida queimando com brasas “o lugar do pecado”. Nas Divinas palavras de Valle Inclan, a mulher adúltera apresenta-se como feiticeira que dança com o demônio; descoberto o pecado, toda a aldeia se reúne para arrancar-lhe as roupas e afogá-la. Muitas tradições relatam que se desnudava a pecadora e a seguir a lapidavam como está dito no Evangelho, enterravam-na viva, afogavam-na, queimavam-na. O sentido de tais suplícios era devolvê-la à Natureza depois de tê-la despojado de sua dignidade social; com seu pecado ela desencadeara eflúvios naturais perniciosos e a expiação efetua-se numa espécie de orgia sagrada em que as mulheres, despindo, batendo, massacrando a culpada, desencadeavam por sua vez fluidos misteriosos mas propícios, porquanto agiam de acordo com a sociedade.

Essa severidade selvagem perde-se à proporção que diminuem as superstições e que o medo se dissipa. Mas, nos campos, olham com desconfiança as ciganas sem Deus nem lar. A mulher que exerce livremente o comércio de seus encantos — aventureira, vamp, mulher fatal — permanece um tipo inquietante. Na mulher má dos filmes de Hollywood sobrevive a imagem de Circe. Mulheres foram queimadas como feiticeiras simplesmente porque eram belas. E na pudica hostilidade das virtudes provincianas, contra as mulheres de maus costumes, perpetua-se um velho terror.

São esses perigos que, para um homem aventureiro, fazem da mulher um jogo cativante. Renunciando a seus direitos de marido, recusando-se a apoiar-se nas leis sociais, ele tentará vencê-la em combate singular. Tenta anexar a mulher a si mesmo até em suas resistências; persegue-a nessa liberdade pela qual lhe escapa. Em vão. Não se parcela a liberdade: a mulher livre o será várias vezes contra o homem. Mesmo a Bela Adormecida no bosque pode despertar com desprazer, pode não reconhecer em quem a acorda um Príncipe Encantado, pode não sorrir. É precisamente o caso do Cidadão Kane, cuja protegida se apresenta como uma oprimida e cuja generosidade se revela como vontade de poder e de tirania. A mulher do herói escuta a narrativa das façanhas com indiferença, a Musa com que sonha o poeta boceja ouvindo-lhe os versos. A amazona pode recusar, entediada, a luta, como pode também sair dela vitoriosa. As romanas da decadência, muitas norte-ame-ricanas de hoje, impõem aos homens seus caprichos e leis. Onde está Cinderela? O homem desejava dar e eis que a mulher toma. Não se trata mais de jogar e sim de se defender. A partir do momento em que se torna livre, a mulher não tem outro destino senão aquele que ela cria livremente. A relação entre os dois sexos é, então, uma relação de luta. Tornando-se uma semelhante para o homem, apresenta-se como tão temível quanto no tempo em que era para ele a Natureza estranha. A fêmea nutriz, devotada, paciente, converte-se em animal ávido e devorador. A mulher má mergulha suas raízes na Terra, na Vida; mas a Terra é um fosso, a vida, um impiedoso combate: o mito da abelha diligente, da mãe galinha é substituído pelo do inseto devorador, do louva-a-deus, da aranha; a fêmea não é mais a que alimenta os filhotes e sim a que come o macho; o óvulo não é mais o celeiro de abundância e sim uma armadilha de matéria inerte em que o espermatozoide, castrado, se afoga; a matriz, esse antro quente, calmo e seguro, torna-se um polvo sugador, planta carnívora, abismo de trevas convulsivas; habita-o uma serpente que engole insaciavelmente as forças do macho. Uma idêntica dialética faz do objeto erótico uma perigosa feiticeira, da escrava uma traidora, de Cinderela uma ogra e transforma toda mulher em inimiga: é o preço que paga o homem por se ter afirmado, com má-fé, como o único essencial.

Entretanto, esse rosto inimigo não é tampouco a imagem definitiva da mulher. O maniqueísmo introduz-se no seio da espécie feminina. Pitágoras assimilava o princípio bom ao homem e o mau à mulher. Os homens tentaram dominar o mal anexando a mulher; conseguiram-no parcialmente; mas assim como foi o cristianismo, com suas ideias de redenção e de salvação, que deu seu pleno sentido à palavra danação, é ante a mulher santificada que a mulher má assume todo seu relevo. Durante a “querela das mulheres”, que se prolonga da Idade Média aos nossos dias, certos homens só querem conhecer a mulher abençoada com que sonham, outros a mulher maldita que lhes desmente os sonhos. Mas, em verdade, se o homem pode tudo encontrar na mulher, é porque ela ao mesmo tempo tem essas duas faces. Ela representa de maneira carnal e viva todos os valores e antivalores pelos quais a vida adquire um sentido. Eis nitidamente separados o Bem e o Mal que se opõem sob os traços da Mãe devotada e da Amante pérfida; na velha balada inglesa Randall My Son, um jovem cavaleiro vem morrer nos braços da mãe, envenenado pela amante. La Glu de Richepin, com mais patetismo e mau gosto, trata do mesmo tema. A angélica Michaela opõe-se à pérfida Carmen. A mãe, a noiva fiel, a esposa paciente oferecem-se para tratar dos ferimentos abertos no coração dos homens pelas vamps e mandrágoras. Entre esses polos, claramente fixados, uma multidão de figuras ambíguas irá definir-se, lamentáveis, detestáveis, pecadoras, vítimas, coquetes, fracas, angélicas, demoníacas. Com isso, numerosas condutas e sentimentos solicitam o homem e o enriquecem.

Essa própria complexidade da mulher encanta-o: eis uma maravilha doméstica com que pode deslumbrar-se com pouco dispêndio. É ela anjo ou demônio? A incerteza transforma-a em esfinge. É sob essa égide que uma das casas de tolerância mais célebres de Paris se apresentava. Na grande época da Feminilidade, no tempo dos corpetes, de Paul Bourget, de Henri Bataille, do french-cancan, o tema da Esfinge surge sem cessar nas comédias, poesias e canções: “Quem és? De onde vens, Esfinge estranha?” E ainda não se acabou de sonhar com o mistério feminino e de discuti-lo. É para salvaguardar esse mistério que durante muito tempo os homens suplicaram às mulheres que não abandonassem as saias compridas, as anáguas, os véus, as luvas compridas, as botinas altas; tudo o que acentua no Outro a diferença torna-o mais desejável, porquanto é do Outro como tal que o homem quer apropriar-se. Vê-se Alain-Fournier censurar às inglesas, em suas cartas, o shake-hand masculino. É a reserva pudica das francesas que o perturba. É preciso que a mulher permaneça secreta, desconhecida, para que se possa adorá-la como uma princesa longínqua; não parece que Fournier tenha sido particularmente atencioso para com as mulheres, mas todo o maravilhoso da infância, da juventude, toda a nostalgia dos paraísos perdidos, foi numa mulher que ele encarnou, uma mulher cuja principal virtude era parecer inacessível. Traçou de Yvonne de Galais uma imagem branca e dourada. Mas os homens amam até os defeitos das mulheres quando criam mistério. “Uma mulher deve ter caprichos”, dizia com autoridade um homem a uma mulher bem-comportada. O capricho é imprevisível, empresta à mulher a graça da água ondulante; a mentira enfeita-a com reflexos fascinantes; o coquetismo, a perversidade dão-lhe um perfume capitoso. Enganadora, esquiva, incompreendida, dúplice, assim é que ela se presta aos desejos contraditórios do homem; ela é a Maya das inumeráveis metamorfoses. É um lugar-comum representar a Esfinge sob o aspecto de uma jovem; a virgindade é um dos segredos que os homens acham mais perturbadores, e sobretudo quanto mais libertinos são; a pureza da jovem autoriza a esperança de todas as licenças e não se sabe que perversidades se dissimulam sob sua inocência. Próxima ainda do animal e da planta, já dócil aos ritos sociais, ela não é nem criança nem adulta; sua feminilidade tímida não inspira o medo e sim uma inquietação temperada. Compreende-se que seja uma das imagens privilegiadas do mistério feminino. Entretanto, como a “verdadeira moça” se perde, seu culto tornou-se algo obsoleto. Em compensação, a figura de prostituta que, numa peça de êxito triunfal, Gantillon atribuiu a Maya, conservou muito de seu prestígio. É esse um dos tipos femininos mais plásticos, o que melhor permite o grande jogo dos vícios e das virtudes. Para o puritano timorato, ela encarna o mal, a vergonha, a doença, a danação; inspira pavor e repugnância; não pertence a nenhum homem, mas se empresta a todos e vive desse comércio, e assim readquire a independência temível das luxuriosas deusas-mães primitivas e encarna a Feminilidade que a sociedade masculina não santificou, que permanece impregnada de forças maléficas. No ato sexual, o macho não pode imaginar que a possui, só ele é entregue aos demônios da carne; é uma humilhação, uma mácula que sentem particularmente os anglo-saxões a cujos olhos a carne é mais ou menos maldita. Em compensação, um homem a quem a carne não choca apreciará na prostituta a sua afirmação generosa e crua; nela verá a exaltação da feminilidade que nenhuma moral tornou insípida; encontrará no corpo dela essas virtudes mágicas que outrora aparentavam a mulher aos astros e ao mar; um Miller, dormindo com uma prostituta, imagina sondar os próprios abismos da vida, da morte, do cosmo; une-se a Deus no fundo das trevas úmidas de uma vagina acolhedora. Por ser ela uma espécie de pária à margem de um mundo hipocritamente moral, pode-se considerar a “mulher perdida” como a contestação de todas as virtudes oficiais; sua indignidade aparenta-a às santas autênticas, pois o que foi aviltado será exaltado. Cristo olhou com bondade Maria Madalena; o pecado abre mais facilmente as portas do céu do que uma virtude hipócrita. Assim é que aos pés de Sônia, Raskolnikoff sacrifica o arrogante orgulho masculino que o levou ao crime; ele exasperou com o assassínio essa vontade de separação que existe em todo homem; resignada, abandonada por todos, é uma humilde prostituta que melhor pode receber a confissão de sua abdicação.106 A expressão “mulher perdida” provoca ecos perturbadores; muitos homens sonham em se perder; não é tão fácil e não se consegue sem dificuldades atingir o Mal numa forma positiva e mesmo o demoníaco apavora-se com crimes excessivos. Pois a mulher permite celebrar sem grandes riscos missas negras em que Satã é evocado sem ser especificamente convidado; ela está à margem do mundo masculino: os atos que lhe dizem respeito, na verdade, não acarretam consequências; ela é, entretanto, um ser humano e pode-se, através dela, realizar sombrias revoltas contra as leis humanas. De Musset e Georges Bataille, a devassidão de hedionda e fascinante fisionomia está na frequentação das prostitutas. É com mulheres que Sade e Sacher Masoch satisfazem os desejos que os obcecam; seus discípulos e a maioria dos homens que têm “vícios” a satisfazer dirigem-se mais comumente às prostitutas. São entre todas as mulheres as mais submissas aos homens e que, no entanto, mais lhe escapam; é o que as predispõem a assumir tão múltiplas significações. Entretanto, não há nenhuma figura feminina — virgem, mãe, esposa, irmã, serva, amante, virtude arisca, sorridente odalisca — que não seja suscetível de resumir assim as instáveis aspirações dos homens.

Cabe à psicologia — e particularmente à psicanálise — descobrir por que um indivíduo se apega mais especialmente a tal ou qual aspecto do mito de faces inumeráveis; e por que é em tal ou qual mulher que o encarna. Mas o mito está implicado em todos os complexos, obsessões, psicoses. Muitas neuroses, em particular, têm sua causa numa vertigem do proibido; este só pode apresentar-se se os tabus foram previamente constituídos. Uma pressão social exterior é insuficiente para lhes explicar a presença; na realidade, as proibições sociais não são unicamente convenções; têm — entre outras significações — um sentido ontológico que cada indivíduo sente singularmente. A título de exemplo, é interessante examinar o “complexo de Édipo”; consideram-no muito frequentemente como produzido por uma luta entre as tendências instintivas e as imposições sociais; mas é antes de tudo um conflito interior do próprio sujeito. O apego do filho ao seio materno é primeiramente o apego à Vida em sua forma imediata, em sua generalidade e em sua imanência; a recusa à desmama é a recusa ao abandono a que o indivíduo é condenado desde que se separe do Todo; é a partir de então, e na medida em que se individualiza e se separa ainda mais, que se pode qualificar como “sexual” o gosto que conserva pela carne materna doravante destacada da sua. Sua sensualidade mediatiza-se então, torna-se transcendência para um objeto exterior. Porém, quanto mais depressa e mais decididamente a criança se afirma como sujeito, mais o laço carnal que contesta sua autonomia lhe será pesado. Ele foge, então, às carícias; a autoridade exercida pela mãe, os direitos que ela possui sobre ele, sua própria presença, por vezes inspiram-lhe uma espécie de vergonha. Parece-lhe principalmente embaraçoso, obsceno, descobri-la como carne e evita pensar no corpo dela. No horror que experimenta em relação ao pai, ao segundo marido ou ao amante, há menos ciúme do que escândalo; lembrar-lhe que a mãe é um ser de carne, é lembrar-lhe o próprio nascimento, acontecimento que com todas as suas forças ele repudia; no mínimo, deseja dar-lhe a majestade de um grande fenômeno cósmico; é preciso que sua mãe resuma a Natureza que está em todos os indivíduos sem pertencer a nenhum; detesta que ela se torne presa, não porque — como se pretende muitas vezes — queira ele próprio possuí-la, mas porque quer que ela exista para além de toda posse: ela não deve ter as dimensões mesquinhas da esposa ou da amante. Entretanto, quando no momento da adolescência sua sexualidade se viriliza, ocorre o corpo da mãe o perturbar; mas é porque apreende nela a feminilidade em geral; e muitas vezes, o desejo despertado pela vista de uma coxa, de um seio, extingue-se logo que o rapaz compreende ser essa a carne materna. Há numerosos casos de perversão, porquanto sendo a adolescência a idade do desnorteamento, é também a da perversão em que a repugnância suscita o sacrilégio, em que do proibido nasce a tentação. Mas não se deve crer que inicialmente o filho deseje ingenuamente dormir com a mãe e que proibições exteriores se interponham e o oprimam; ao contrário, é por causa da proibição que se constituiu no coração do indivíduo que o desejo nasce. Essa proibição é a reação mais normal, mais generalizada. Mas, ainda aí, ela não provém de uma imposição social mascarando desejos instintivos. O respeito é antes a sublimação de uma repugnância original; o jovem recusa-se a encarar a mãe como carnal; transfigura-a, assimila-a a uma das imagens puras de mulher santificada que a sociedade lhe propõe. Desse modo, contribui para fortalecer a figura ideal da Mãe que virá em socorro da geração seguinte. Mas se ela tem tamanha força é porque é chamada por uma dialética individual. E como cada mulher é habitada pela essência geral da Mulher, logo da Mãe, é certo que a atitude em relação à Mãe repercutirá nas relações com a esposa e as amantes; porém menos simplesmente do que muitas vezes se imagina. O adolescente que concreta e sensualmente desejou a mãe pode ter desejado nela a mulher em geral: e o ardor de seu temperamento se aplacará com qualquer mulher; não se acha destinado a nostalgias incestuosas.107 Inversamente, um jovem que tenha pela mãe uma terna veneração, porém platônica, pode desejar que a mulher em qualquer ocasião participe da pureza materna.

Conhece-se bastante a importância da sexualidade, consequentemente da mulher, nas condutas tanto patológicas como normais. Acontece que outros objetos sejam feminilizados; sendo a mulher em grande parte uma invenção do homem, ele a pode inventar através de um corpo masculino: na pederastia a divisão dos sexos é mantida. Mas comumente é em seres femininos que a Mulher é procurada. É por ela, através do que nela há de pior e de melhor, que o homem faz a aprendizagem da felicidade, do sofrimento, do vício, da virtude, do desejo, da renúncia, do devotamento, da tirania, que faz a aprendizagem de si mesmo; ela é o jogo e a aventura, mas também a provação; é o triunfo da vitória e, mais áspero, o do fracasso superado; é a vertigem da perda, o fascínio da danação, da morte. Há todo um mundo de significações que só existe pela mulher; ela é a substância das ações e dos sentimentos dos homens, a encarnação de todos os valores que solicitam libertação. Compreende-se que, embora condenado aos mais cruéis desmentidos, o homem não deseje renunciar a um sonho no qual todos os seus sonhos estão envolvidos.

Eis, portanto, por que a mulher tem um duplo e decepcionante aspecto: ela é tudo a que o homem aspira e tudo o que não alcança. Ela é a sábia mediadora entre a Natureza propícia e o homem: é a tentação da Natureza indomada contra toda sabedoria. Do bem ao mal, ela encarna carnalmente todos os valores morais e seus contrários; é a substância da ação e o que se lhe opõe, o domínio do homem sobre o mundo e seu malogro; como tal, é a fonte de toda reflexão do homem sobre a própria existência e de toda expressão que possa dar-lhe; entretanto, ela se esforça por desviá-lo de si mesmo, por fazê-lo afundar no silêncio e na morte. Serva e companheira, ele espera que ela seja também seu público e juiz, que ela o confirme em seu ser; mas ela o contesta com sua indiferença, e até com seus sarcasmos e risos. Ele projeta nela o que deseja e o que teme, o que ama e o que detesta. E se é tão difícil dizer algo a respeito é porque o homem se procura inteiramente nela e ela é Tudo. Só que ela é Tudo à maneira do inessencial: é todo o Outro. E, enquanto outro, ela é também outra e não ela mesma, outra e não o que dela é esperado. Sendo tudo, ela nunca é isso justamente que deveria ser; ela é perpétua decepção, a própria decepção da existência que não consegue nunca se atingir nem se reconciliar com a totalidade dos existentes.