Para confirmar esta análise do mito feminino, tal qual se apresenta coletivamente, vamos considerar o aspecto singular e sincrético que assume em certos escritores. A atitude de Montherlant, D. H. Lawrence, Claudel, Breton, Stendhal, entre outros, em relação à mulher pareceu-nos típica.
I/MONTHERLANT OU O PÃO DO NOJO
Montherlant inscreve-se dentro da longa tradição dos homens que retomaram, por sua conta, o maniqueísmo orgulhoso de Pitágoras. Ele estima, depois de Nietzsche, que somente as épocas de fraqueza exaltaram o Eterno Feminino e que o herói deve insurgir-se contra a Magna Mater. Especialista do heroísmo, empenha-se em destroná-la. A mulher é a noite, a desordem, a imanência. “Essas trevas convulsivas não são senão o feminino em seu estado puro”,108 escreve, a propósito de Mme Tolstoi. Foi a seu ver a tolice, a baixeza dos homens de hoje que emprestaram uma forma positiva às deficiências femininas: fala-se do instinto das mulheres, de sua intuição, de sua adivinhação, quando fora preciso denunciar-lhe a ausência de lógica, a ignorância obstinada, sua incapacidade em apreender o real; elas não são efetivamente nem observadoras nem psicólogas; elas não sabem nem ver as coisas nem compreender os seres; seu mistério é uma ilusão, seus insondáveis tesouros têm a profundidade do nada; elas nada têm a dar ao homem e não podem senão ser-lhe nocivas. Para Montherlant a mãe é que é primeiramente a grande inimiga; em uma peça de mocidade, L’Exil, ele focaliza uma mãe que impede o filho de se engajar; em Les Olympiques o adolescente que gostaria de se dedicar aos esportes é “barrado” pelo egoísmo medroso da mãe; em Les Célibataires e em Les Jeunes filles a mãe é descrita de maneira odiosa. Seu crime é querer conservar o filho encerrado para sempre nas trevas do ventre; ela o mutila a fim de poder açambarcá-lo e encher assim o vazio estéril de seu ser; é a mais lamentável das educadoras; corta as asas ao filho, retém-no longe das alturas a que ele aspira, imbeciliza-o e avilta-o. Tais críticas não são sem fundamento. Mas, através das censuras explícitas que Montherlant dirige à mulher-mãe, é claro que o que detesta nela é seu próprio nascimento. Ele se crê deus, ele se quer deus: porque é homem, porque é “homem superior”, porque é Montherlant. Um deus nunca foi engendrado; seu corpo, se é que tem um, é uma vontade encerrada em músculos duros e obedientes, não uma carne surdamente habitada pela vida e pela morte; a responsabilidade dessa carne perecível, contingente, vulnerável e que ele renega cabe à mãe. “O único lugar do corpo que era vulnerável em Aquiles era aquele pelo qual a mãe o segurara”.109 Montherlant nunca quis assumir a condição humana; o que chama seu orgulho é, desde o início, uma fuga amedrontada ante os riscos que comporta uma liberdade empenhada no mundo através da carne; ele pretende afirmar a liberdade, mas recusar o compromisso; sem ligações, sem raízes, ele se acredita uma subjetividade soberanamente voltada sobre si mesma; a lembrança de sua origem carnal perturba esse sonho e ele recorre a um processo que lhe é habitual: em vez de superá-la, ele a repudia.
Aos olhos de Montherlant, a amante é tão nefasta quanto a mãe; ela impede o homem de ressuscitar o deus dentro de si; a parte da mulher, declara, é a vida no que tem de imediato; ela se nutre de sensações, ela se agita na imanência, ela tem a mania da felicidade: quer encerrar o homem nisso, não sente o impulso da transcendência, não tem o sentido da grandeza; ama o amante em sua fraqueza e não em sua força, nas suas penas e não na sua alegria; ela o deseja desarmado, infeliz a ponto de querer, contra toda evidência, convencê-lo de sua miséria. Ele a ultrapassa e assim lhe escapa: ela aspira a reduzi-lo a sua própria medida a fim de se apossar dele. Porque ela precisa dele, não se basta, é um ser parasitário. Pelos olhos de Dominique, Montherlant mostra as passantes do Ranelagh “penduradas aos braços dos amantes como seres sem vértebras, semelhantes a grandes lesmas fantasiadas”.110 As mulheres são a seu ver, com exceção das esportistas, seres incompletos, destinados à escravidão; moles e sem músculos, não podem dominar o mundo, por isso mesmo trabalham com afinco para anexar-se um amante, ou melhor, um marido. O mito do louva-a-deus não é, ao que eu saiba, utilizado por Montherlant, mas ele redescobre-lhe o conteúdo: amar, para a mulher, é devorar; pretendendo dar-se, ela toma. Ele cita a exclamação de Mme Tolstoi: “Vivo por ele, para ele, exijo o mesmo para mim”, e denuncia os perigos de uma tal fúria de amor. Encontra uma terrível verdade nas palavras do Eclesiastes: “Um homem que vos quer mal vale mais do que uma mulher que vos quer bem.” Invoca a experiência de Lyautey: “Um de meus homens que se casa é um homem reduzido à metade.” É principalmente para o “homem superior” que ele julga nefasto o casamento; é um aburguesamento ridículo. Seria possível dizer: Mme Ésquilo ou “Vou jantar em casa dos Dante?” O prestígio de um grande homem é enfraquecido pelo casamento, mas este principalmente quebra a solidão magnífica do herói, o qual “precisa não se distrair de si mesmo”.111 Já disse que Montherlant escolheu uma liberdade sem objeto, isto é, que ele prefere uma ilusão de autonomia à autêntica liberdade que se empenha no mundo; é essa disponibilidade que ele pensa defender contra a mulher: ela incomoda, pesa. “Era um triste símbolo que um homem não pudesse andar direito porque a mulher que amava o segurava pelo braço.”112 “Eu ardia, ela me apaga. Eu andava sobre as águas, ela pendura-se a meu braço e me afunda.”113 Como pode ela ter tamanho poder se é apenas carência, pobreza, negatividade e sua magia, ilusória? Montherlant não o explica. Diz tão somente com soberbia que “o leão teme com razão o mosquito”.114 Mas a resposta é evidente: é fácil acreditar-se soberano quando se está só, acreditar-se forte quando se recusa cuidadosamente a carregar qualquer fardo. Montherlant escolheu a facilidade; ele pretende ter o culto dos valores difíceis, mas procura alcançá-los facilmente. “As coroas que damos a nós mesmos são as únicas que merecem ser usadas”, diz o rei de Pasiphaé. Princípio cômodo. Montherlant sobrecarrega a fronte, veste-se de púrpura, mas bastaria um olhar alheio para revelar que seus diademas são de papel pintado e que, como o rei de Andersen, está inteiramente nu. Andar em sonho sobre as águas é muito menos cansativo do que marchar de verdade pelos caminhos da terra. Eis por que o leão Montherlant evita com terror o mosquito feminino: receia a prova do real.115
Se Montherlant tivesse verdadeiramente esvaziado de seu conteúdo o mito do Eterno Feminino, seria preciso felicitá-lo. É negando a Mulher que se pode ajudar as mulheres a se considerarem seres humanos. Mas viu-se que ele não pulveriza o ídolo: converte-o em monstro. Crê, também ele, nesta obscura e irredutível essência: a feminilidade. Considera, após Aristóteles e são Tomás, que ela se define negativamente; a mulher é mulher por falta de virilidade; é o destino que todo indivíduo do sexo feminino deve suportar sem poder modificá-lo. Aquela que pretende escapar a esse destino situa-se no mais baixo degrau da escala humana; não consegue tornar-se homem e renuncia a ser mulher; não passa de uma caricatura irrisória, uma aparência; o fato de ser um corpo e uma consciência não lhe confere nenhuma realidade. Platônico em certos momentos, Montherlant parece considerar que só as Ideias de feminilidade e virilidade possuem o ser; o indivíduo que não participa nem de uma nem de outra tem apenas uma aparência de existência. Ele condena inapelavelmente essas “estriges” que têm a ousadia de se pôr como sujeitos autônomos, de pensar, de agir. Retratando Andrée Hacquebaut, pretende provar que toda mulher que se esforça por fazer de si uma pessoa, transforma-se em um fantoche, alvo de deboche. Naturalmente, Andrée é feia, desgraciosa, malvestida, suja mesmo, com unhas e braços duvidosos; o pouco de cultura que lhe é atribuído bastou para matar toda sua feminilidade; Costals assegura-nos que ela é inteligente, mas, em todas as páginas que lhe consagra, Montherlant convence-nos da sua estupidez. Costals tenta ter simpatia por ela, Montherlant a torna odiosa para nós. Com esse equívoco engenhoso, prova-se a tolice da inteligência feminina, estabelece-se que uma desgraça original perverteu na mulher todas as qualidades viris para as quais ela tende.
Montherlant concorda em admitir uma exceção para as desportistas; pelo exercício autônomo do corpo, podem elas conquistar um espírito, uma alma; ainda assim seria fácil fazê-las descer de tais alturas. Da vencedora dos mil metros a quem dedica um hino entusiasta, Montherlant afasta-se delicadamente: não duvida de que a seduziria com facilidade e quer poupar-lhe essa decadência. Dominique116 não se manteve nos cimos a que a chamava Alban; apaixona-se por ele: “A que era toda espírito, toda alma, suava, desprendia perfumes e, perdendo o fôlego, tossia repetidamente.” Indignado, Alban expulsa-a. Pode-se apreciar uma mulher que pela disciplina do esporte matou em si a carne; mas é um escândalo odioso uma existência autônoma encerrada numa carne de mulher; a carne feminina é detestável a partir do momento em que uma consciência a habita. O que convém à mulher é ser puramente carne; Montherlant aprova a atitude oriental: como objeto de gozo o sexo frágil tem um lugar na terra, humilde sem dúvida, mas válido; ele encontra uma justificação no prazer que o macho extrai desse objeto, mas somente no prazer. A mulher ideal é perfeitamente estúpida e submissa; está sempre preparada para acolher o homem e nunca lhe pede nada. Assim é Douce, que Alban aprecia em certos momentos. “Douce, admiravelmente tola e tanto mais desejada quanto mais tola... inútil fora do amor e que ele evita então com uma doçura decidida.”117 Assim é Radidja, a pequena árabe,118 tranquilo animal de amor que aceita docilmente prazer e dinheiro. Assim se pode imaginar o “animal feminino” encontrado em um trem espanhol: “Tinha um ar tão estúpido que me pus a desejá-la.” O autor explica: “O que há de irritante nas mulheres é a pretensão à razão; quando exageram a animalidade, esboçam o sobre-humano.”119
Entretanto, Montherlant nada tem de um sultão oriental: falta-lhe primeiramente a sensualidade. Está longe de se deleitar sem segunda intenção com “animais femininos”; são “doentes, malsãs, e nunca inteiramente limpas”;120 Costals confia-nos que os cabelos dos jovens têm cheiro mais forte e melhor do que os das mulheres; ele sente, por vezes, nojo diante de Solange, diante “desse odor açucarado, quase enjoativo, desse corpo sem músculos, sem nervo, como uma lesma branca”.121 Ele sonha com posses mais dignas de si, entre iguais, em que a doçura nascesse da força vencida... O oriental aprecia voluptuosamente a mulher e assim se estabelece entre amantes uma reciprocidade carnal: é o que manifestam as ardentes invocações do Cântico dos Cânticos, os contos das Mil e uma noites e tantas poesias árabes à glória da bem-amada. Por certo, há mulheres más; mas há também saborosas, e o homem sensual abandona-se confiantemente em seus braços sem se achar humilhado. Ao passo que o herói de Montherlant está sempre na defensiva: “Possuir sem ser possuído, única fórmula aceitável entre o homem superior e a mulher.”122 Ele fala de bom grado do momento do desejo, que se lhe afigura um momento agressivo, viril, mas afasta o do gozo; talvez se arriscasse a descobrir que ele também sua, arqueja, desprende perfumes. Não: quem lhe ousaria respirar o odor, sentir-lhe o suor? Sua carne desarmada não existe para ninguém, porque não há ninguém diante dele: ele é a única consciência, uma pura presença transparente e soberana; e se o prazer existe para sua consciência, ele não o leva em consideração: seria ceder-lhe. Montherlant fala com complacência do prazer que dá, nunca do que recebe: receber é uma dependência. “O que peço a uma mulher é dar-lhe prazer”;123 o calor vivo da volúpia seria uma cumplicidade e ele não admite nenhuma; prefere a solidão altiva do domínio. São satisfações cerebrais e não sensuais que ele busca nas mulheres.
Antes de tudo aquelas de um orgulho que deseja exprimir-se mas sem correr riscos. Diante da mulher “tem-se o mesmo sentimento que diante de um cavalo, de um touro que se vai enfrentar: a mesma incerteza e o mesmo gosto de medir o próprio poder”.124 Medi-lo com outros homens seria por demais ousado: eles interviriam na prova, imporiam tabelas imprevistas, pronunciariam um veredicto estranho; diante de um touro, de um cavalo, o homem permanece seu próprio juiz, o que é infinitamente mais seguro. Perante uma mulher, se bem escolhida, também se fica só: “Não amo na igualdade, porque na mulher é a criança que procuro.” Esta verdade banal nada explica: por que procura a criança e não a igual? Montherlant seria mais sincero se dissesse que ele, Montherlant, não tem igual; ou, mais exatamente, que não quer ter: seu semelhante amedronta-o. Na época de Les Olympiques admira no esporte o rigor das competições que criam hierarquias com as quais não se pode trapacear; mas ele próprio não entendeu a lição; no resto de suas obras e em sua vida, seus heróis, como ele mesmo, fogem a qualquer confronto; lidam com bichos, paisagens, crianças, mulheres-crianças, nunca com iguais. Antes apaixonado pela dura lucidez do esporte, Montherlant só aceita como amantes mulheres cujo juízo seu orgulho medroso não precisa temer; escolhe-as “passivas e vegetais”, infantis, estúpidas, vendáveis. Evitará sistematicamente atribuir-lhes uma consciência. Se lhes descobre algum vestígio, agasta-se e se vai; não se trata de estabelecer qualquer relação intersubjetiva com a mulher; no reino do homem ela deve ser unicamente um objeto animado. Nunca será encarada como sujeito, nunca seu ponto de vista será considerado. O herói de Montherlant tem uma moral que imagina ser arrogante e que é apenas cômoda: só se preocupa com suas relações consigo mesmo. Apega-se à mulher — ou melhor, pega a mulher — não para desfrutá-la, mas para desfrutar de si mesmo. Sendo absolutamente inferior, a existência da mulher desvenda sem risco a superioridade substancial, essencial e indestrutível do homem.
Assim, a tolice de Douce125 permite a Alban “reconstituir, até certo ponto, as sensações do semideus antigo desposando uma gansa fabulosa”. Mal toca Solange e eis Costals transformado em um soberbo leão: “Mal se sentaram um ao lado do outro, ele pôs a mão sobre a coxa da jovem (por cima do vestido), depois manteve-a pousada no centro do corpo como um leão pousa a pata aberta sobre o quarto da carne que conquistou.”126 Esse gesto, que na obscuridade dos cinemas tantos homens fazem modestamente, Costals proclama-o “o gesto primitivo do Senhor”.127 Se os amantes, os maridos que beijam a amante antes de a possuir tivessem, como ele, o sentido da grandeza, conheceriam, sem maior esforço, essas poderosas metamorfoses. “Ele aspirava vagamente o rosto da Mulher, como um leão que, despedaçando a carne que tem entre as patas, de vez em quando se detém para lambê-la.”128 Esse orgulho carnívoro não é o único prazer que o macho extrai da fêmea; ela lhe serve de pretexto para experimentar livremente, e sempre sem risco, o próprio coração. Costals, certa noite, chega a divertir-se com o sofrer até que, saciado seu apetite de dor, atira-se alegremente a uma coxa de frango. Só raramente é que a gente pode permitir-se um tal capricho... Mas há outras alegrias fortes ou sutis. A condescendência, por exemplo: Costals cede em responder a certas cartas de mulheres e até o faz, por vezes, com cuidado. A uma camponesinha inspirada, escreve ao fim de uma dissertação pedante: “Duvido que possa compreender-me, mas isso é melhor do que se me tivesse abaixado até você”.129 Agrada-lhe, às vezes, moldar uma mulher à própria imagem: “Quero que você seja para mim como uma cereja... não a ergui até mim para que você fosse outra coisa que não eu.”130 Diverte-se com fabricar algumas belas recordações para Solange. Mas é principalmente quando dorme com uma mulher que sente com embriaguez seu esbanjamento: doador de alegria, de paz, de calor, de força, de prazer, as riquezas que esbanja enchem-no de satisfação. Nada deve a suas amantes; paga-as frequentemente para ter certeza disso; mas mesmo quando o coito se realiza ao par, a mulher é sua devedora sem reciprocidade: ela não dá nada, ele toma. Por isso acha absolutamente normal mandar Solange ao toilette no dia em que a deflora: ainda que uma mulher seja ternamente querida, seria absurdo um homem constranger-se com ela; ele é macho por direito divino, ela por direito divino é votada ao bidê. O orgulho de Costals imita aqui tão fielmente o cafajestismo que não se sabe ao certo o que o diferencia de um caixeiro-viajante mal-educado.
O primeiro dever de uma mulher é submeter-se às exigências de sua generosidade; quando supõe que Solange não lhe aprecia as carícias, Costals fica furioso. Se gosta de Radidja é porque o rosto dela se ilumina de alegria quando ele a penetra. Então goza por sentir-se ao mesmo tempo animal de rapina e príncipe magnífico. Indaga-se, entretanto, com perplexidade, de onde pode vir a embriaguez de possuir e satisfazer, se a mulher possuída e satisfeita não passa de uma pobre coisa, carne insípida em que palpita um ersatz de consciência. Como Costals pode perder tanto tempo com criaturas vãs?
Essas contradições dão a medida de um orgulho que não passa de vaidade.
Um deleite mais sutil do forte, do generoso, do senhor, é a piedade pela raça infeliz. Costals, de quando em quando, comove-se ao sentir no coração tanta gravidade fraternal, tanta simpatia pelos humildes, tanta “piedade pelas mulheres”. Haverá coisa mais tocante do que a doçura imprevista dos seres inflexíveis? Ele ressuscita em si essa nobre imagem de Epinal quando se debruça sobre esses animais enfermos que são as mulheres. Mesmo as desportistas, gosta de as ver vencidas, feridas, exaustas, magoadas; quanto às outras, ele as quer o mais desarmadas possível. A miséria mensal delas repugna-lhe e no entanto Costals nos confia que “sempre preferira nas mulheres esses dias em que as sabia atingidas”.131 Acontece-lhe ceder a essa piedade; chega a assumir compromissos, senão a cumpri-los: compromete-se a ajudar Andrée, a desposar Solange. Quando a piedade se retira de sua alma tais promessas morrem: não tem ele o direito de se contradizer? Ele é que estabelece as regras do jogo que joga consigo mesmo, como único parceiro.
Não basta considerá-la inferior, lamentável. Montherlant quer que a mulher seja desprezível. Afirma por vezes que o conflito do desejo com o desprezo é um drama patético: “Ah” desejar o que se desdenha, que tragédia!... Ter que atrair e rechaçar quase no mesmo gesto, acender e logo jogar fora como se faz com um fósforo, eis a tragédia das relações com as mulheres!”132 Em verdade não há tragédia senão para o fósforo, o que é negligenciável. Quanto ao acendedor, preocupado com não queimar os dedos, é evidente que essa ginástica o encanta. Se seu prazer não fosse “desejar o que se desdenha”, não se recusaria sistematicamente a desejar o que estima: Alban não afastaria Dominique: preferiria “amar na igualdade”; poderia evitar desdenhar o que deseja; afinal de contas, não se vê por que, a priori, uma pequena dançarina espanhola jovem, bonita, ardente, simples, é tão desprezível. Por ser pobre, de baixa extração, sem cultura? É de temer que aos olhos de Montherlant sejam efetivamente taras. Mas principalmente ele a despreza como mulher, por decreto; diz justamente que não é o mistério feminino que suscita os sonhos do homem e sim esses sonhos que criam mistério; mas ele também projeta no objeto o que sua subjetividade exige: não é porque são desprezíveis que ele desdenha as mulheres; é porque ele as quer desdenhar que elas lhe parecem abjetas. Sente-se encarrapitado em cumes tanto mais altivos quanto maior é a distância entre elas e ele: é o que explica que escolha, para seus heróis, amorosas tão lamentáveis. Ao grande escritor, Costals opõe uma solteirona virgem da província, atormentada pelo sexo e pelo tédio, e uma pequena burguesa da extrema direita, ingênua e interesseira; é medir assim com medidas bem humildes um indivíduo superior: o resultado de tão inábil prudência é torná-lo bem pequeno a nossos olhos. Mas pouco importa, Costals acredita-se grande. As mais insignificantes fraquezas da mulher bastam para alimentar-lhe a soberbia. Um texto de Les Jeunes filles é particularmente significativo. Antes de dormir com Costals, Solange faz sua toalete noturna. “Ela devia ir ao W.C., e Costals lembrou-se da égua que tivera, tão altiva e delicada que não urinava nem sujava nunca quando ele a montava.” Percebe-se aqui o ódio da carne (pensa-se em Swift: Célia caga), a vontade de assimilar a mulher a um animal doméstico, a recusa em lhe reconhecer qualquer autonomia, ainda que de ordem urinária; mas, principalmente, enquanto Costals se indigna esquece que ele também possui uma bexiga e um cólon; da mesma forma, quando se sente enojado de uma mulher banhada de suor e de odores, abole todas as suas próprias secreções: é um puro espírito servido por músculos e um sexo de aço. “O desdém é mais nobre do que o desejo”, declara Montherlant em Aux fontaines du désir; e Álvaro: “Meu pão é o nojo”.133 Que álibi é o desprezo, quando se compraz em si mesmo! Em se contemplando e julgando, sente-se o indivíduo radicalmente diferente do outro que condena, lava-se sem esforço das taras de que o acusam. Com que embriaguez Montherlant exala durante toda a sua vida seu desprezo pelos homens! Basta-lhe denunciar a estupidez deles para que se acredite inteligente, a covardia deles para que se imagine corajoso. No início da ocupação, entrega-se a uma orgia de desprezo pelos compatriotas vencidos: ele não é nem francês nem vencido; flutua acima de todos. Em meio a uma frase, convém em que afinal ele, Montherlant, que acusa, não fez nada mais do que os outros para prevenir a derrota; não consentiu sequer em ser oficial; mas logo recomeça a acusar com uma fúria que lhe faz perder as estribeiras.134 Se ele se mostra afligido com seus nojos é para os sentir mais sinceros e com eles se regozijar ainda mais. Na verdade, encontra nisso tantas comodidades que procura sistematicamente arrastar a mulher para a abjeção. Diverte-se em tentar com dinheiro ou joias raparigas pobres: se aceitam seus presentes mal-intencionados, rejubila-se. Joga um jogo sádico com Andrée pelo prazer, não de a fazer sofrer, mas sim de vê-la aviltar-se. Incita Solange ao infanticídio; ela admite a perspectiva e os sentidos de Costals se inflamam: e num enlevo de desprezo ele possui essa assassina em potencial.
A chave dessa atitude está no apólogo das lagartas;135 qualquer que tenha sido a intenção recôndita, ele é em si mesmo bastante significativo. Mijando nas lagartas, Montherlant diverte-se com poupar algumas e exterminar outras; concede uma piedade sorridente às que se esforçam por viver e dá-lhes, generosamente, uma oportunidade; o brinquedo encanta-o. Sem as lagartas, o jato urinário não passaria de uma excreção; mas, assim, torna-se um instrumento de vida e de morte; diante do bicho rastejante, o homem que alivia a bexiga conhece a solidão despótica de Deus, sem ameaça de reciprocidade. Assim, ante os animais femininos, o homem, do alto de seu pedestal, ora cruel, ora terno, justo ou caprichoso, dá, retoma, satisfaz, apieda-se, irrita-se; só obedece a seu prazer; é soberano, livre, único. Mas é preciso que esses animais sejam unicamente animais; cumpre escolhê-los de propósito, lisojeando-lhe as fraquezas, tratando-os como bichos tão obstinadamente que acabem aceitando sua condição. Por isso, os brancos de Luisiana e Geórgia adoram os pequenos furtos e mentiras dos negros. Sentem-se confirmados na superioridade que lhes confere a cor da pele e, se um desses negros insiste em se mostrar honesto, muito mais maltratado será. Assim se praticava sistematicamente nos campos de concentração o aviltamento do homem: a raça dos senhores encontrava nessa abjeção a prova de que era de essência sobre-humana.
Esse encontro nada tem de casual. Sabe-se muito bem que Montherlant admira a ideologia nazista. Encanta-o ver a cruz gamada, que é a Roda solar, triunfar em uma das festas do Sol. “A vitória da Roda solar não é somente vitória do Sol, vitória do paganismo. É vitória do princípio solar de que tudo gira... Vejo triunfar neste dia o princípio de que estou imbuído, que cantei, que com inteira consciência sinto governar minha vida”, escreve.136 Sabe-se também com que adequado sentido de grandeza, durante a ocupação, ele propôs como exemplo, aos franceses, esses alemães “que respiram o grande estilo da força”.137 O mesmo gosto pânico da facilidade que o levava a fugir diante dos iguais põe-no de joelhos ante os vencedores: crê que, em se ajoelhando, se identifica a eles; ei-lo vencedor, o que sempre desejou, contra um touro, contra lagartas ou contra mulheres, contra a própria vida e a liberdade. É justo dizer que já antes da vitória ele incensava os “sedutores totalitários”.138 Como eles, sempre fora niilista, sempre detestara os homens. “Não vale sequer a pena conduzir os indivíduos (e não é necessário que a humanidade nos tenha feito alguma coisa para detestá-la a esse ponto)”, escreve;139 como eles, acreditava que certos seres: raça, nação ou ele próprio, Montherlant, detêm um privilégio absoluto que lhes confere todos os direitos sobre outrem. Toda sua moral justifica e quer a guerra e as perseguições. Para julgar sua atitude com as mulheres, convém examinar essa ética mais de perto. Porque fora preciso afinal saber em nome de quê elas são condenadas.
A mitologia nazista tinha uma infraestrutura histórica: o niilismo exprimia o desespero alemão; o culto do herói servia a fins positivos pelos quais milhões de soldados morreram. A atitude de Montherlant não tem nenhuma contrapartida positiva e não exprime senão sua própria escolha existencial. Em verdade, esse herói escolheu o medo. Há, em toda consciência, uma pretensão à soberania: mas só pode afirmar-se arriscando-se. Nunca nenhuma superioridade é dada porque, reduzido à sua subjetividade, o homem não é nada; é entre os atos e as obras que se podem estabelecer hierarquias. Cumpre conquistar o mérito, sem cessar; Montherlant, ele próprio, o sabe. “Só se tem direito sobre o que se está disposto a arriscar.” Mas ele jamais quis arriscar-se no meio de seus semelhantes. E é porque não ousa enfrentá-la que quer abolir a humanidade. “Odioso obstáculo o dos seres”, diz o rei de La Reine morte. Sim, porque desmentem a “fantasia” complacente que o vaidoso cria em torno de si. É preciso negá-los. É notável que nenhuma das obras de Montherlant descreva-nos um conflito de homem com homem; a coexistência é que é o grande drama vivo: ele o evita. Seu herói ergue-se sempre apenas perante animais, crianças, mulheres, paisagens; luta contra seus próprios desejos (como a rainha de Pasiphaé) ou contra suas próprias exigências (como Le Maître de Santiago) mas nunca há alguém a seu lado. O próprio Alban, em Le Songe, não tem companheiro: desdenha Prinet vivo e só se exalta sobre seu cadáver. A obra, como a vida de Montherlant, só admite uma consciência.
Em consequência, todo sentimento desaparece desse universo; não pode haver relação intersubjetiva se há apenas um sujeito. O amor é irrisório; mas não é em nome da amizade que é desprezível, pois a “amizade carece de vísceras”.140 E toda solidariedade humana é recusada com altivez. O herói não foi engendrado, não é limitado pelo espaço e pelo tempo: “Não vejo nenhum motivo razoável para me interessar pelas coisas exteriores que me são contemporâneas, como não vejo tampouco para me interessar por qualquer ano do passado”.141 Nada do que acontece a outrem tem importância para ele: “Em verdade, os acontecimentos nunca me importaram. Só os amava nos raios de luz que produziam em mim ao me atravessarem... Que sejam pois o que querem ser.”142 A ação é impossível: “Ter tido o ardor, a energia, a audácia e não ter podido pô-los à disposição de quem quer que seja por falta de fé em alguma coisa de humano!”143 Isto significa que toda transcendência é proibida. Montherlant reconhece-o. O amor e a amizade são tolices, o desprezo impede a ação; ele não crê na arte pela arte, e não crê em Deus. Resta apenas a imanência do prazer: “Minha única ambição foi usar meus sentidos melhor do que os outros”, escreve em 1925.144 E ainda: “Em suma, que quero? A posse dos seres que me agradam na paz e na poesia.”145 E em 1941:146 “Mas eu que acuso, que fiz desses vinte anos? Foram um sonho cheio de meu prazer. Vivi de cá para lá embriagando-me do que amo: de lábios colados com a vida!” Seja. Mas não é precisamente porque chafurda na imanência que a mulher é espezinhada? Que fins mais elevados, que grandes desígnios opõe Montherlant ao amor possessivo da mãe, da amante? Ele também busca a “posse”; e quanto aos “lábios colados com a vida”, muitas mulheres poderiam dar-lhe troco. É verdade que ele aprecia singularmente os prazeres insólitos: os que se podem tirar dos animais, dos rapazes, das meninas impúberes; fica indignado porque uma amante apaixonada se recusa a pôr em sua cama a filha de doze anos: mesquinharia muito pouco solar. Não sabe ele que a sensualidade das mulheres não é menos atormentada que a dos homens? Se se trata de hierarquizar os sexos segundo esse critério, talvez elas ganhem. Para dizer a verdade, as incoerências de Montherlant são aqui monstruosas. Em nome da “alternância” ele declara que, exatamente porque nada tem valor, tudo igualmente tem valor; aceita tudo, quer tudo abraçar e agrada-lhe que sua largueza de espírito assuste as mães de família; era ele, entretanto, que durante a ocupação reclamava uma “inquisição”,147 que censurasse filmes e jornais; as coxas das girls norte-americanas dão-lhe nojo, o sexo luzidio de um touro exalta-o; gosto não se discute. Cada qual recria a seu modo a “fantasia”; em nome de que valores esse grande devasso cospe com repugnância sobre as orgias alheias? Porque não são suas? Mas toda moral consiste então em ser Montherlant?
Ele responderia evidentemente que gozar não é tudo: depende do jeito. É preciso que o prazer seja o reverso de uma renúncia, que o voluptuoso se sinta também com o estofo de um herói e de um santo. Mas muitas mulheres são peritas em conciliar seus prazeres com a alta opinião que têm de si mesmas. Por que devemos acreditar que os sonhos narcisistas de Montherlant valem mais do que os delas?
Pois, em verdade, é de sonhos que se trata. Como Montherlant recusa todo conteúdo objetivo às palavras com que joga, grandeza, santidade, heroísmo não passam de brinquedos. Montherlant tem medo de arriscar sua superioridade perante os homens. Para se embriagar com esse vinho exaltante, refugiou-se nas nuvens: o Único é certamente soberano. Ele se encerra em seu gabinete de miragens: os espelhos devolvem-lhe sua imagem de todos os lados e ele acredita que pode, sozinho, povoar a terra. Porém não passa de um recluso prisioneiro de si mesmo. Acredita-se livre, mas aliena a liberdade em proveito de seu ego; molda a estátua de Montherlant segundo normas tomadas de empréstimo às imagens de Epinal. Alban, afastando Dominique porque deparou no espelho com uma cara de tolo, ilustra essa escravidão. Só se é tolo aos olhos de outrem. O orgulhoso Alban submete o coração a essa consciência coletiva que despreza. A liberdade de Montherlant é uma atitude, não uma realidade. Sendo-lhe impossível a ação, por falta de objetivos, consola-se com gestos: faz mímica. As mulheres são para ele parceiros cômodos; dão-lhe a réplica, ele apropria-se do papel principal, cinge-se de louros e envolve-se em púrpura, mas tudo se passa em palco privado; na praça pública, sob um céu de verdade, o comediante não enxerga mais direito, não fica em pé, titubeia, cai. Em um assomo de lucidez, Costals148 exclama: “No fundo, que palhaçada essas “vitórias” contra as mulheres!” Sim. Os valores, as façanhas que Montherlant nos propõe são uma triste farsa. Os grandes acontecimentos que o embriagam são também simples gestos, nunca empreendimentos: comove-se com o suicídio de Peregrinus, a ousadia de Pasiphaé, a elegância do japonês que abriga o adversário sob o guarda-chuva antes de trespassá-lo em duelo. Mas declara que “a pessoa do adversário e as ideias que se admite que este representa não têm tanta importância”.149 Essa declaração ecoa de maneira singular em 1941. Toda guerra é bela, diz ele ainda, qualquer que seja o fim; a força é sempre admirável, sirva a quem servir. “O combate sem a fé é a fórmula a que chegamos forçosamente se queremos conservar a única ideia aceitável do homem: essa em que ele é, a um tempo, o herói e o sábio.”150 Mas é curioso que a nobre indiferença de Montherlant por todas as causas o tenha inclinado, não para a resistência, e sim para a Revolução nacional; que sua soberana liberdade tenha escolhido a submissão, e que tenha buscado o segredo de sua sabedoria heroica não nos maquis, mas entre os vencedores. Isso não é tampouco um acidente. É em tais mistificações que desemboca o pseudossublime da La Reine morte e do Maître de Santiago. Nesses dramas, tanto mais significativos quanto pretensiosos, veem-se dois machos imperiosos que sacrificam a seu orgulho vazio mulheres culpadas tão somente de serem seres humanos; elas aspiram ao amor e à felicidade terrestre. Para puni-las, tira-se a vida de uma e a alma de outra. Mais uma vez perguntamos: em nome de quê? O autor responde com altivez: de nada. Não quis que o rei tivesse motivos imperiosos para matar Inês: o assassínio não passaria de um crime político trivial. “Por que a mato? Há sem dúvida uma razão mas não a distingo”, afirma ele. A razão está em que é necessário que o princípio solar triunfe sobre a trivialidade terrestre; mas esse princípio, já o vimos, não ilumina nenhum fim: exige a destruição, nada mais. Quanto a Álvaro, Montherlant diz-nos, em um prefácio, que se interessa por certos homens desse tempo “por sua fé decidida, seu desprezo pela realidade exterior, seu gosto pela ruína, seu furor do nada”. A esse furor é que o senhor de Santiago sacrifica a filha. Será enfeitado com a linda e brilhante palavra misticismo. Não é medíocre preferir a felicidade à mística? Em verdade, os sacrifícios e as renúncias só têm sentido dentro da perspectiva de um fim, um fim humano; e os fins que ultrapassam o amor singular, a felicidade pessoal, só podem existir num mundo que reconhece o valor do amor e da felicidade; a “moral das costureirinhas” é mais autêntica do que as fantasias do vazio, porque tem suas raízes na vida e na realidade. E é daí que podem nascer as aspirações mais vastas. Imaginamos facilmente Inês de Castro em Buchenwald e o rei a cortejar a embaixada da Alemanha por motivo de Estado. Muitas costureirinhas mereceram durante a ocupação um respeito que não temos por Montherlant. As palavras vazias com que se empanturra são perigosas por seu próprio vazio: a mística sobre-humana autoriza todas as devastações temporais. O fato é que, nos dramas de que falamos, ele se afirma mediante dois assassínios: um físico e outro moral. Álvaro não tem muito que caminhar para se tornar arisco, solitário, menosprezado, um grande inquisidor; nem o rei, incompreendido, renegado, um Himmler. Mata-se às mulheres, aos judeus, aos homens efeminados e aos cristãos judaizantes, a tudo o que se tem interesse ou prazer em matar em nome de grandes ideias. É somente por negações que se podem afirmar as místicas negativas. A verdadeira superação é uma marcha positiva para o futuro, o futuro dos homens. O falso herói, para se persuadir de que foi muito longe, de que paira muito alto, olha sempre para trás, para os pés; despreza, acusa, oprime, persegue, tortura, extermina. É pelo mal que faz ao próximo que se estima superior a este. Tais são os cumes que Montherlant nos aponta de dedo em riste quando interrompe seus “lábios colados com a vida”.
“Como o burro das noras árabes, giro, giro, cego e passando sempre de novo sobre minhas pegadas. Só que não faço jorrar água fresca.” Há pouco que acrescentar a essa confissão que Montherlant assinava em 1927. A água fresca nunca jorrou. Talvez Montherlant devesse ter acendido a fogueira de Peregrinus: era a solução mais lógica. Preferiu refugiar-se em seu próprio culto. Em vez de entregar-se a esse mundo que não sabia fertilizar, contentou-se em mirar-se nele, e ordenou sua vida em atenção a essa miragem somente visível a seus olhos. “Os príncipes sentem-se à vontade em quaisquer circunstâncias, mesmo na derrota”,151 e como se compraz na derrota, acredita-se rei. Aprendeu com Nietzsche que “a mulher é o passatempo do herói” e crê que basta divertir-se com mulheres para se consagrar herói. O resto segue a mesma linha. Como diz Costals: “No fundo, que palhaçada!”
II/D. H. LAWRENCE OU O ORGULHO FÁLICO
Lawrence situa-se em posição diametralmente oposta a Montherlant. Não se trata para ele de definir as relações singulares da mulher com o homem, mas sim de recolocá-los ambos dentro da verdade da Vida. Essa verdade não é nem representação nem vontade: ela envolve a animalidade em que o ser humano mergulha suas raízes. Lawrence recusa com paixão a antítese sexo-cérebro; há nele um otimismo cósmico que se opõe radicalmente ao pessimismo de Schopenhauer; o querer-viver que se exprime no falo é alegria; e é nele que pensamento e ação devem ter sua fonte, sob pena de serem conceito vazio, mecanismo estéril. O simples ciclo sexual é insuficiente porque recai na imanência: é sinônimo de morte; porém, vale mais ainda essa realidade mutilada: sexo e morte, do que uma existência desligada do humo carnal. O homem não tem somente necessidade, como Anteu, de retomar por momentos contato com a terra; sua vida de homem deve ser inteiramente expressão de sua virilidade que põe e exige imediatamente a mulher; esta não é, portanto, nem divertimento nem presa, não é um objeto em face de um sujeito e sim um polo necessário à existência do polo de sinal contrário. Os homens que desprezaram essa verdade, um Napoleão, por exemplo, falharam em seu destino de homem: são uns frustrados. Não é afirmando sua singularidade, é realizando sua generalidade da maneira mais intensa possível que o indivíduo pode salvar-se: macho ou fêmea, nunca deve procurar nas relações eróticas o triunfo de seu orgulho nem a exaltação de seu eu; servir-se do sexo como instrumento de sua vontade é um erro irreparável; é preciso destruir as barreiras do ego, ultrapassar os próprios limites da consciência, renunciar a toda soberania pessoal. Nada é mais belo do que essa estatueta representando uma mulher parindo,152 “uma figura terrivelmente vazia, pontuda, tornada abstrata até a insignificância sob o peso da sensação experimentada”. Esse êxtase não é nem um sacrifício nem um abandono; não se trata para nenhum dos sexos de ser tragado pelo outro, nem o homem nem a mulher devem apresentar-se como o fragmento partido de um casal; o sexo não é ferimento; cada um dos indivíduos é um ser completo, perfeitamente polarizado; quando um se afirma em sua virilidade e o outro em sua feminilidade, “um e outro realizam a perfeição do circuito polarizado dos sexos”;153 o ato sexual é, sem anexação, sem rendição de nenhum dos parceiros, a realização maravilhosa de um pelo outro. Quando Ursule e Bikrin154 se encontram, enfim, “eles se dão reciprocamente esse equilíbrio estelar, o único que se pode chamar liberdade. Ela era para ele o que ele era para ela, a magnificência imemorial da outra realidade, mística e palpável”. Ascendendo um ao outro no arranco generoso da paixão, os dois amantes ascendem juntos ao Outro, ao Todo. Assim ocorre com Paul e Clara,155 no momento de seu amor: ela é para ele “uma vida forte, estranha, selvagem que se misturava à dele. Era tão maior do que eles que se viam reduzidos ao silêncio. Tinham-se encontrado e em seu encontro confundia-se o impulso das inumeráveis folhazinhas de erva, os turbilhões das estrelas”. Lady Chatterley e Mellors alcançam as mesmas alegrias cósmicas: misturando-se um ao outro, eles misturam-se às árvores, à luz, à chuva. Lawrence desenvolveu amplamente essa doutrina na Defesa de Lady Chatterley: “O casamento não passa de uma ilusão, se não é duradouro e radicalmente fálico, se não se liga ao sol e à terra, à lua, às estrelas e aos planetas, ao ritmo dos dias e ao ritmo dos meses, ao ritmo das estações, dos anos, dos lustros e dos séculos. O casamento não é nada, se não se alicerça numa correspondência de sangue. Porque o sangue é a substância da alma.” “O sangue do homem e da mulher são dois rios eternamente diferentes que não se podem misturar.” Eis por que esses rios envolvem com seus meandros a totalidade da vida. “O falo é um volume de sangue que enche o vale de sangue da mulher. O poderoso rio de sangue masculino envolve em sua última profundidade o grande rio do sangue feminino... no entanto nenhum dos dois rompe suas comportas. É a comunhão mais perfeita... e é um dos maiores mistérios.” Essa comunhão é um milagroso enriquecimento; mas exige que as pretensões da “personalidade” sejam abolidas. Quando as personalidades procuram atingir-se sem se renegar, como acontece comumente na civilização moderna, a tentativa é fadada ao fracasso. Há então uma sexualidade “pessoal, lívida, fria, nervosa, poética” que é dissolvente para a corrente vital de cada um. Os amantes tratam-se como instrumentos, o que engendra o ódio entre eles: assim ocorre entre Lady Chatterley e Michaelis; permanecem encerrados em sua subjetividade; podem conhecer uma febre análoga à que dá o álcool ou o ópio, mas que é sem objeto: não descobrem a realidade do outro; não chegam a nada. Lawrence teria condenado Costals sem apelo. Pintou em Gérard,156 um desses machos orgulhosos e egoístas; e Gérard é, em grande parte, responsável por esse inferno em que se precipita com Gudrun. Cerebral, obstinado, compraz-se na afirmação vazia de seu eu e retesa-se contra a vida; pelo prazer de domar uma égua fogosa, mantém-na encostada a uma cerca por trás da qual um trem passa ruidosamente; ensanguenta-lhe os flancos rebeldes e embriaga-se com seu próprio poder. Essa vontade de domínio avilta a mulher contra a qual se exerce; fraca, ei-la transformada em escrava. Gérard debruça-se sobre Minette: “Seu olhar elementar de escrava violentada, cuja razão de ser é ser perpetuamente violentada, fazia os nervos de Gérard vibrarem... A única vontade era a dele; ela era a substância passiva dessa vontade.” Eis uma soberania miserável; se a mulher não passa de uma substância passiva, o que o homem domina não é nada. Ele pensa possuir, enriquecer-se: é uma ilusão. Gérard aperta Gudrun nos braços: “Ela era a substância rica e adorável do seu ser... Ela esvaíra-se nele e ele atingia a perfeição.” Mas logo que a deixa, torna a encontrar-se só e vazio. E, no dia seguinte, ela não comparece ao encontro marcado. Se a mulher é forte, a pretensão do macho nela suscita uma pretensão simétrica; fascinada e rebelde, faz-se masoquista e sádica alternativamente. Gudrun sente-se transtornada e perturbada quando vê Gérard apertar entre as coxas os flancos da égua assustada; mas perturba-se também quando a ama de Gérard lhe conta que outrora “ela lhe beliscava a bundinha”. A arrogância masculina exaspera as resistências femininas. Enquanto Ursule é vencida e salva pela pureza sexual de Birkin, como Lady Chatterley pela do guarda florestal, Gérard arrasta Gudrun para uma luta sem saída. Certa noite, infeliz, debilitado por um luto, entrega-se aos braços dela. “Ela era o grande banho de vida, ele a adorava. Ela era a mãe e a substância de todas as coisas. A emanação milagrosa e doce de seu seio de mulher invadia-lhe o cérebro ressequido e doente como uma ninfa reconfortante, como o fluxo calmante da própria vida, perfeito como se ele se banhasse de novo no seio materno.” Nessa noite, ele pressente o que poderia ser uma comunhão com a mulher; mas é demasiado tarde; sua felicidade está viciada, pois Gudrun não se acha realmente presente. Deixa Gérard dormir sobre o ombro, mas permanece acordada, impaciente, separada. É o castigo do indivíduo em luta consigo mesmo; não pode, sozinho, romper a solidão: erguendo as barreiras do eu, ergueu as do Outro, não o alcançará nunca mais. No fim, Gérard morre, morto por Gudrun e por si mesmo.
Nenhum sexo portanto se apresenta inicialmente como privilegiado. Nenhum é sujeito. Assim como não é uma presa, não é a mulher um simples pretexto. Malraux157 observa que para Lawrence não basta, como basta ao hindu, que a mulher seja a oportunidade de um contato com o infinito, à maneira, por exemplo, de uma paisagem: seria fazer dela, de outro modo, um objeto. Ela é tão real quanto o homem; é a comunhão real que cumpre alcançar. Por isso é que os heróis aprovados por Lawrence exigem muito mais da amante do que do corpo: Paul não aceita que Myriam se entregue a ele por um terno sacrifício; Birkin não quer que Ursule se restrinja a buscar prazer em seus braços; fria ou ardente, a mulher que permanece encerrada em si mesma deixa o homem com sua solidão: ele deve rechaçá-la. É preciso que ambos se entreguem de corpo e alma. Se esse dom se realizou, eles devem continuar fiéis para sempre. Lawrence é partidário do casamento monógamo. Só existe busca de variedade quando há interesse pela particularidade dos seres: mas o casamento fálico é baseado na generalidade. Quando o circuito virilidade-feminilidade se estabelece, nenhum desejo de mudança é concebível: é um circuito perfeito, fechado em si, definitivo.
Dom recíproco, fidelidade recíproca: será realmente o reinado do reconhecimento mútuo? Longe disso. Lawrence acredita apaixonadamente na supremacia do homem. A própria expressão “casamento fálico”, a equivalência que estabelece entre sexual e fálico provam-no suficientemente. Das duas correntes de sangue que misteriosamente se casam, a corrente fálica é privilegiada. “O falo serve de traço de união entre os dois rios: conjuga os dois ritmos diferentes em uma única corrente.” Desse modo, o homem é não somente um dos termos do casal, mas ainda sua relação; sua superação: “A ponte que conduz ao futuro é o falo.” Lawrence procura substituir um culto fálico ao culto da Deusa-Mãe; quando quer ressaltar a natureza sexual do cosmo, não é o ventre da mulher mas a virilidade do homem que evoca. Quase nunca pinta um homem perturbado pela mulher, mas cem vezes descreve a mulher secretamente transtornada pelo apelo vivo, sutil, insinuante do homem; suas heroínas são belas e sadias mas não obstinadas, ao passo que seus heróis são faunos inquietantes. São os animais machos que encarnam o poderoso e perturbador mistério da vida; as mulheres sentem-lhe o sortilégio: uma comove-se com um raposo, outra apaixona-se por um garanhão, Gudrun desafia febrilmente um bando de bezerros; impressiona-a o vigor rebelde de um coelho. Nesse privilégio cósmico enxerta-se um privilégio social. Talvez por ser a corrente fálica impetuosa, agressiva, por projetar-se no futuro — Lawrence não o explica muito claramente —, ao homem é que cabe “marchar à frente carregando as flâmulas da vida”;158 ele se retesa em direção a metas, encarna a transcendência; a mulher é absorvida por seus próprios sentimentos, é toda interioridade; está votada à imanência. Não somente o homem desempenha o papel ativo na vida sexual, como ainda é por ele que essa vida é ultrapassada; acha-se arraigado ao mundo sexual mas evade-se; ela permanece encerrada nele. O pensamento e a ação têm suas raízes no falo; por não possuir falo, a mulher não tem direito nem a um nem a outra; pode desempenhar o papel de homem, e até brilhantemente, mas seu desempenho é falso. “A mulher é polarizada para baixo, para o centro da terra. Sua polaridade profunda é o fluxo dirigido para baixo, a atração lunar. O homem é, ao contrário, polarizado para cima, para o Sol e para a atividade diurna.”159 Para a mulher, “a mais profunda consciência jaz em seu ventre e em seus rins... Se ela se volta para o alto ocorre um momento em que tudo desmorona”.160 No terreno da ação o homem é que deve ser o iniciador, o positivo; a mulher é o positivo no terreno da emoção. Desse modo, Lawrence reencontra a concepção burguesa tradicional de Bonald, Auguste Comte, Clément Vautel. A mulher deve subordinar sua existência à do homem. “Ela deve acreditar em vós, na meta profunda para a qual tendeis.”161 Então o homem lhe devotará ternura e gratidão infinitas. “Ah! Doçura de voltar para casa junto da mulher quando ela acredita em nós e aceita que nosso desígnio a supere... Sentimos uma gratidão insondável para com a mulher que nos ama...”162 Lawrence acrescenta que, para merecer esse devotamento, cumpre que o homem seja autenticamente habitado por um grande desígnio; se o projeto não passa de uma impostura, o casal se afunda em uma mistificação irrisória; mais vale ainda encerrar-se no ciclo feminino; amor e morte, como Ana Karenina e Vronsky, Carmen e D. José, do que mentir um a outro como Pierre e Natacha. Mas, sob essa reserva, o que propugna Lawrence é, à maneira de Proudhon, de Rousseau, o casamento monógamo em que a mulher encontra no marido a justificação da própria existência. Contra a mulher que aspira a inverter os papéis, Lawrence tem inflexões tão carregadas de ódio quanto Montherlant. Se ela renuncia a desempenhar o papel de Magna Mater, a pretender deter a verdade da vida; açambarcadora, devorante, ela mutila o macho, fá-lo recair na imanência e o desvia de seus fins. Lawrence está longe de amaldiçoar a maternidade, ao contrário; alegra-se em ser carne, aceita o nascimento, adora a mãe. As mães apresentam-se em sua obra como magníficos exemplos de verdadeira feminilidade; elas são pura renúncia, generosidade absoluta, todo seu calor vivo é dedicado ao filho; aceitam que ele se torne homem e se orgulham disso. Mas é preciso temer a amante egoísta que busca reconduzir o homem à infância. Ela quebra o impulso do macho. “A lua, planeta das mulheres, chama-nos para trás.”163 Ela fala incessantemente de amor; mas amar, para ela, é possuir, é encher o vazio que ela sente em si; esse amor assemelha-se ao ódio; por isso é que Hermione sofre de horrível deficiência, porque nunca soube dar-se e desejaria incorporar Birkin a si. Malogra. Tenta matá-lo e o êxtase voluptuoso que experimenta ao batê-lo é idêntico ao espasmo egoísta do prazer.164 Lawrence detesta as mulheres modernas, criaturas de celuloide e de borracha que reivindicam uma consciência. Quando a mulher toma sexualmente consciência de si própria, ei-la que “caminha pela vida, agindo de uma maneira inteiramente cerebral e obedecendo às ordens de uma vontade mecânica”.165 Ele proíbe-lhe ter uma sensualidade autônoma; ela é feita para entregar-se, não para possuir. Pela boca de Mellors, Lawrence proclama seu horror às lésbicas. Mas censura também a mulher que, diante do homem, assume uma atitude desinteressada ou agressiva. Paul sente-se magoado e irritado quando Myriam acaricia-lhe os flancos dizendo: “És belo.” Gudrun, como Myriam, erra quando se encanta com a beleza do amante. Essa contemplação separa-os, tanto quanto a ironia das frias intelectuais que julgam o pênis irrisório e ridícula a ginástica masculina; a procura encarniçada do prazer não é menos censurável; há um gozo agudo, solitário, que também separa, e a mulher não deve voltar-se para ele. Lawrence esboçou vários retratos dessas mulheres independentes, dominadoras, que falham em sua vocação feminina. Ursule e Gudrun166 são dessa espécie. Inicialmente, Ursule é uma açambarcadora. “O homem teria que se entregar a ela até a borra...” Ela aprende a dominar a vontade. Mas Gudrun obstina-se; cerebral, artista, inveja ferozmente a independência e as possibilidades de ação dos homens; faz questão de conservar intata sua individualidade; quer viver para si mesma. Irônica, possessiva, ficará para sempre encerrada em sua subjetividade. A figura mais significativa, por ser a menos sofisticada, é a de Myriam.167 Gérard é, em parte, responsável pelo malogro de Gudrun; diante de Paul, Myriam carrega sozinha o fardo de sua desgraça. Ela também gostaria de ser homem; odeia os homens; não se aceita em sua generalidade, quer “distinguir-se”; por isso a grande corrente da vida não a atravessa; pode assemelhar-se a uma feiticeira, a uma sacerdotisa, nunca a uma bacante; só se comove com as coisas quando as recria em sua alma, dando-lhes um valor religioso, e esse próprio fervor separa-a da vida; ela é poética, mística, inadaptada. “Seu esforço exagerado fechava-se sobre si mesmo... Ela não era inábil e no entanto nunca fazia o movimento que convinha.” Ela procura alegrias muito interiores e a realidade amedronta-a; a sexualidade amedronta-a; quando se deita com Paul, seu coração conserva-se arredio numa espécie de terror; tem sempre consciência, nunca vida: não é uma companheira; não consente em se fundir com o amante, quer absorvê-lo nela. Ele se irrita com essa vontade; é tomado de violenta cólera quando a vê acariciar flores: diria-se que quer arrancar-lhes o coração. Insulta-a: “Você é uma mendiga de amor; não tem necessidade de amar mas sim de ser amada. Quer encher-se de amor porque lhe falta alguma coisa, não sei o quê.” A sexualidade não é feita para encher um vazio; deve ser a expressão de um ser acabado. O que as mulheres chamam amor é sua avidez diante da força viril de que gostariam de apossar-se. A mãe de Paul pensa lucidamente acerca de Myriam: “Ela o quer todo, quer extraí-lo de si mesmo e devorá-lo.” A jovem alegra-se quando o amigo está doente porque poderá tratar dele: pretende servi-lo, mas é uma maneira de lhe impor sua vontade. Porque fica separada dele, excita em Paul “um ardor semelhante à febre, como faz o ópio”, mas é incapaz de dar-lhe alegria e paz; do fundo de seu amor, no segredo de si mesma, “detestava Paul porque ele a amava e dominava”. Por isso Paul afasta-se dela. Busca seu equilíbrio junto de Clara; bela, viva, animal, esta entrega-se sem reservas e os amantes atingem momentos de êxtase que os superam a ambos. Mas Clara não compreende essa revelação. Acredita que deve sua alegria ao próprio Paul, à sua singularidade, e deseja apropriar-se dele: mas não consegue guardá-lo porque também o quer todo para ela. A partir do momento em que o amor se individualiza, transforma-se em egoísmo ávido e o milagre do erotismo dissipa-se.
É preciso que a mulher renuncie ao amor pessoal: nem Mellors nem Don Cipriano consentem em dizer palavras de amor a suas amantes. Teresa, que é mulher exemplar, indigna-se quando Kate lhe pergunta se ama Dom Ramon.168 “Ele é minha vida”, responde. O dom que lhe consentiu é coisa muito diferente do amor. A mulher como o homem deve abdicar todo orgulho e toda vontade; se, para o homem, encarna a vida, encarna-o também para si; Lady Chatterley só encontra paz e alegria porque reconhece essa verdade: “renunciaria a seu duro e brilhante poder feminino que a cansava e retesava, mergulharia no novo banho de vida, na profundidade de suas entranhas que cantavam a canção sem voz da adoração”; então ela alcança a embriaguez das bacantes; obedecendo cegamente ao amante, não se procurando nos braços dele, com ele forma um casal harmônico, afinado com a chuva, as árvores, as flores da primavera. De igual modo, Ursule, entre os braços de Birkin, renuncia à própria individualidade e eles atingem juntos um “equilíbrio estelar”. Mas é principalmente A serpente emplumada que reflete em sua integridade o ideal de Lawrence. Porque Don Cipriano é um desses homens que “vão à frente carregando as flâmulas da vida”; tem uma missão a que se entrega completamente, a tal ponto que a virilidade nele se supera e se exalta até a divindade: faz-se sagrar deus e não é mistificação, é que todo homem plenamente homem é um deus; merece, portanto, a dedicação absoluta de uma mulher. Imbuída de preconceitos ocidentais, Kate recusa, a princípio, essa dependência, apega-se à sua personalidade e à sua existência limitada; mas, pouco a pouco, deixa-se penetrar pela grande corrente da vida, dá a Cipriano seu corpo e sua alma. Não é uma rendição de escrava: antes de resolver ficar com ele, exige que ele reconheça a necessidade que tem dela; ele a reconhece, porquanto efetivamente a mulher é necessária ao homem; ela consente então em não ser nunca outra coisa senão sua companheira: adota os objetivos, os valores, o universo dele. Essa submissão exprime-se no próprio erotismo; Lawrence não quer que a mulher se contraia na busca do prazer, separada do homem pelo espasmo que a sacode; ele recusa-lhe deliberadamente o orgasmo; Don Cipriano afasta-se de Kate quando sente nela a aproximação desse gozo nervoso; ela renuncia até a essa autonomia sexual. “Sua ardente vontade de mulher e seu desejo aplacavam-se nela e dissipavam-se, deixando-a toda doçura e submissão como as nascentes de água quente que saem da terra sem ruído e são, entretanto, tão ativas e poderosas em seu poder secreto.”
Compreende-se por que os romances de Lawrence são antes de tudo “educação de mulheres”. É infinitamente mais difícil para a mulher do que para o homem submeter-se à ordem cósmica, porque ele se submete de maneira autônoma, ao passo que ela precisa da medição do homem. É quando o Outro assume a figura de uma consciência e de uma vontade alheias que há realmente rendição; uma submissão autônoma, ao contrário, assemelha-se estranhamente a uma decisão soberana. Os heróis de Lawrence ou são condenados desde o início ou desde o início detêm o segredo da sabedoria;169 sua submissão ao cosmo consumou-se desde muito e eles tiram dela tamanha segurança interior que parecem tão arrogantes como um individualista orgulhoso; um deus fala pelas suas bocas: o próprio Lawrence. Ao passo que a mulher deve inclinar-se diante da divindade. Que o homem seja um falo e não um cérebro, o indivíduo que participa da virilidade conserva seus privilégios; a mulher não é o mal, ela é até boa, mas subordinada. É ainda o ideal da “verdadeira mulher” que Lawrence nos propõe, isto é, da mulher que aceita, sem reticência, definir-se como o Outro.
III/CLAUDEL OU A SERVA DO SENHOR
A originalidade do catolicismo de Claudel está num otimismo tão obstinado que o próprio mal retorna ao bem.
“O mal mesmo
“Comporta um bem que é preciso não deixar perder-se.”170
Adotando o ponto de vista que só pode ser o do Criador — desde que o supõem todo-poderoso, onisciente e benevolente —, Claudel adere a toda a criação; sem o inferno e o pecado, não haveria nem liberdade nem salvação. Quando fez surgir este mundo do nada, Deus premeditou a queda e a redenção. Aos olhos dos judeus e dos cristãos a desobediência de Eva colocara as mulheres em má situação: sabe-se quanto os padres da Igreja desprezaram a mulher. Ei-la, ao contrário, justificada, se se admite que serviu assim os desígnios divinos. “A mulher! Esse serviço que outrora, pela desobediência, prestou a Deus no paraíso terrestre; esse profundo entendimento que se estabeleceu entre Ele e ela; essa carne que pelo erro foi posta à disposição da Redenção!”171 Talvez ela seja a fonte do pecado e por ela o homem perdeu o paraíso, mas os pecados dos homens foram resgatados e este é novamente abençoado:
“Não saímos deste paraíso de delícias em que Deus inicialmente nos colocou.”172
“Toda terra é a Terra Prometida.”173
Nada do que saiu das mãos de Deus, nada do que é dado poderia ser ruim em si: “É com toda sua obra que oramos a Deus! Nada do que ele fez é vão, nada que seja estranho à nossa salvação.”174 Mais ainda, nenhuma coisa há que não seja necessária. “Todas as coisas que ele criou juntas se comunicam, todas são, ao mesmo tempo, mutuamente necessárias.”175 Assim, a mulher tem seu lugar na harmonia do universo; mas não é um lugar qualquer; há “uma paixão estranha, e escandalosa aos olhos de Lúcifer, que liga o Eterno a essa flor momentânea do Nada”.176
Evidentemente, a mulher pode ser destruidora: Claudel encarnou em Lechy,177 a mulher má que conduz o homem a sua perda; em Partage de midi, Ysé devasta a vida dos que caem na armadilha de seu amor. Mas, se não houvesse esse risco de perda, não existiria tampouco salvação. A mulher “é o elemento de risco que, deliberadamente, Ele introduziu no meio de sua prodigiosa construção”.178 É bom que o homem conheça as tentações da carne. “É esse inimigo, existente dentro de nós, que dá à nossa vida seu elemento dramático, esse sal angustiante. Se nossa alma não fosse tão brutalmente atacada, ela dormiria, e ei-la que salta... É a luta o aprendizado da vitória.”179 Não é somente pelo caminho do espírito, mas também pelo da carne que o homem é chamado a tomar consciência de sua alma. “E que carne, para falar ao homem, mais poderosa que a da mulher?”180 Tudo o que a arranca ao sono, à segurança lhe é útil: o amor, qualquer que seja a forma pela qual se apresente, tem essa virtude de surgir em “nosso pequeno mundo pessoal, arranjado pela nossa medíocre razão, como um elemento profundamente perturbador”.181 Muitas vezes a mulher é apenas uma decepcionante doadora de ilusão:
“Sou a promessa que não pode ser cumprida e minha graça nisso mesmo consiste.
“Sou a doçura do que é, com a saudade do que não é. Sou a verdade com a fisionomia do erro e quem me ama não se preocupa com deslindar uma da outra.”182
Mas a ilusão tem também uma utilidade; é o que o Anjo da Guarda anuncia a Dona Prouhèze:
“— Mesmo o pecado! O pecado também serve.
“— Então era bom que ele me amasse?
“— Era bom que lhe ensinasses o desejo.
“— O desejo de uma ilusão? De uma sombra que lhe escapa para sempre?
“— O desejo é do que é, a ilusão é do que não é. O desejo através da ilusão.
“É do que é através do que não é.”183
E o que Prouhèze por vontade de Deus foi para Rodrigo é:
“Uma espada atravessada no coração.”184
Mas nas mãos de Deus a mulher não é apenas essa lâmina, essa queimadura; os bens deste mundo não se destinam a ser sempre recusados: são também um alimento; é preciso que o homem os tome consigo e os faça seus. A bem-amada encarnará para ele toda a beleza sensível do universo; será em seus lábios um cântico de adoração. “Como sois bela, Violaine, e como é belo este mundo em que estais.”185
“Quem é essa que está em pé à minha frente, mais doce que o sopro do vento, tal qual a lua através da jovem folhagem?... Ei-la como a abelha nova que abre as asas ainda frescas, como uma grande corça, como uma flor que não sabe ela própria como é bela.”186
“Deixa-me respirar teu odor, que é como o odor da terra quando, brilhante, lavada pela água como um altar, produz as flores amarelas e azuis.
“E como o odor do verão que cheira a palha e a erva, e como o odor do outono...”187
Ela resume toda a Natureza: a rosa e o lírio, a estrela, o fruto, o pássaro, o vento, a lua, o sol, o jato de água, “o sereno tumulto do grande porto na luz do meio-dia”.188 E é muito mais ainda: uma semelhante.
“Ora, desta vez, eis que tu és, para mim, algo diferente de uma estrela, ponto de luz na areia viva da noite.
“Alguém humano como eu...”189
“Não estarás mais só, mas em ti e contigo para sempre a devotada. Alguém teu para sempre e que não se retomará jamais, tua mulher.”190
“Alguém para escutar o que digo e ter confiança em mim.
“Um companheiro de voz baixa que nos toma nos braços e assegura-nos que é uma mulher.”191
Corpo e alma, é apertando-a contra o coração que o homem encontra suas raízes nesta terra e nela se realiza.
“Peguei esta mulher e tal é minha medida e minha porção de terra.”192 Ela não é leve de carregar, mas o homem não é feito para a disponibilidade:
“E eis que o homem tolo se sente surpreso com essa pessoa absurda, essa grande coisa pesada e embaraçosa.
“Tanta roupa, tanto cabelo, que fazer?
“Ele não quer mais, não pode mais desfazer-se dela.”193
É que o fardo é também um tesouro. “Sou um grande tesouro”, diz Violaine.
Reciprocamente, é entregando-se ao homem que a mulher cumpre seu destino terrestre.
“Pois para que serve ser mulher senão para ser colhida?
“E esta rosa senão para ser devorada? E ter nascido enfim?
“Senão para ser de outro e a presa de um poderoso leão?”194
“Que faremos, eu que não posso ser mulher senão entre seus braços e uma taça de vinho em seu coração?”195
“Mas tu, minha alma, dize: não fui criada em vão e quem se destina a me colher existe!
“Esse coração que me esperava, ah!, que alegria é para mim enchê-lo.”196
Naturalmente, essa união do homem e da mulher deve ser consumada em presença de Deus; é sagrada e situa-se no eterno; deve ser consentida por um movimento profundo da vontade e não poderá ser rompida por um capricho individual. “O amor, o consentimento que duas pessoas livres dão uma à outra pareceu a Deus coisa tão grande que dele fez um sacramento. Aí como em toda parte o sacramento dá realidade ao que era apenas um supremo desejo do coração.”197 E mais:
“O casamento não é prazer, é o sacrifício do prazer, é o estudo de duas almas que para sempre, doravante e para um fim fora de si mesmas,
“Terão que se contentar uma com a outra.”198
Com essa união, não é somente alegria que o homem e a mulher se darão um ao outro; cada um entrará na posse de seu ser. “Essa alma no interior de minha alma, foi ele quem a soube encontrar!... Ele foi quem veio a mim e me estendeu a mão... Ele é que era minha vocação! Como dizer? Ele que era minha origem! Aquele por quem e para quem vim ao mundo.”199
“Toda uma parte de meu ser que eu pensava não existir, porque estava ocupada alhures e não pensava nela. Ah! Deus, ela existe e vive terrivelmente.”200
E esse ser surge necessário, justificado para aquele a quem completa. “Nele é que eras necessária”, diz o Anjo de Prouhèze. E Rodrigo:
“Pois o que é morrer senão deixar de ser necessário?
“Quando foi que ela pôde passar sem mim? Quando deixarei de ser para ela isso sem o que ela não pode ser ela própria?”201
“Dizem que não há alma que tenha sido feita fora de um intuito e dentro de uma misteriosa relação com outras.
“Mas ambos somos mais do que isso ainda, existes à proporção que falas; uma mesma coisa respondendo entre duas pessoas.
“Quando nos preparavam, Órion, penso que sobrava um pouco da substância que fora depositada em vós e eu sou feita do que careceis.”202
Na maravilhosa necessidade dessa reunião, o paraíso é reencontrado, a morte vencida:
“Ei-lo refeito por um homem e uma mulher, finalmente, esse ser que existia no Paraíso.”203
“Nunca, senão um pelo outro, conseguiremos livrar-nos da morte.
“Como o violeta, se se funde com o laranja, liberta o vermelho puro.”204
Enfim, sob a figura de um outro é que cada um ascende ao Outro em sua plenitude, isto é, a Deus.
“O que damos um ao outro é Deus sob formas diferentes.”205
“Se não o tivesses visto primeiramente em meus olhos, terias tido tal desejo do céu?”206
“Ah! Deixai de ser uma mulher e deixai-me ver em vosso rosto, enfim, esse Deus que sois impotente para conter.”207
“O amor de Deus, como o das criaturas, apela em nós para a mesma faculdade, para esse sentimento de que em nós sozinhos não somos completos e que o Bem supremo em que nos realizamos é, fora de nós, alguém.”208
Assim, cada um encontra no outro o sentido da vida terrestre e também o testemunho irrefutável da insuficiência dessa vida:
“Se não lhe posso dar o céu, posso ao menos arrancá-lo da terra. Eu só posso oferecer-lhe uma insuficiência na medida de seu desejo.”209
“O que te pedia, o que queria dar-te, não é compatível com o tempo e sim com a eternidade”.210
Entretanto, os papéis da mulher e do homem não são exatamente simétricos. No plano social há uma evidente primazia do homem. Claudel acredita nas hierarquias e, entre outras, na da família: o marido é o chefe. Anne Vercors reina no lar. Don Pelagio considera-se o jardineiro a quem se confiou o cuidado dessa planta frágil, Dona Prouhèze; dá-lhe uma missão que ela não pensa em recusar. O simples fato de ser homem confere-lhe um privilégio. “Quem sou eu, pobre mulher, para me comparar ao homem de minha raça?” indaga Sygne.211 O homem é que ara os campos, constrói as catedrais, combate com a espada, explora o mundo, conquista terras, age, empreende. É por ele que se realizam os desígnios de Deus na terra. A mulher não aparece senão como uma auxiliar. Ela é a que fica no lugar, a que espera, a que mantém:
“Sou a que fica e que sempre está presente”, diz Sygne.
Ela defende a herança de Coûfontaine, mantém as contas em dia enquanto ele combate ao longe pela Causa. A mulher traz ao lutador o socorro da esperança: “Trago a esperança irresistível.”212 E o da piedade:
“Tive piedade dele. Pois para onde se voltaria ele, em busca da mãe, senão para a mulher humilhada,
“Num espírito de confidência e pejo.”213
E Tête d’Or, morrendo, murmura:
“Eis a coragem do ferido, o sustentáculo do enfermo
“A companhia do agonizante...”
Claudel não censura a mulher por conhecer assim o homem em sua fraqueza; ao contrário: acharia sacrílego o orgulho macho que se exibe em Montherlant e Lawrence. É bom que o homem se saiba carnal e miserável, que não esqueça a origem nem a morte que lhe é simétrica. Toda esposa pode dizer as palavras de Marthe.214
“É verdade, não fui eu quem te deu a vida.
“Mas aqui estou para te pedi-la de volta. E daí vem ao homem diante da mulher.
“Esse embaraço semelhante ao da consciência, ao da presença de um credor.”
Entretanto, essa fraqueza deve inclinar-se diante da força. No casamento a esposa dá-se ao esposo que a toma a seu cargo: Lâla deita-se no chão diante de Coeuvre que sobre ela pousa o pé. A relação da mulher com o marido, da filha com o pai, da irmã com o irmão, é uma relação de vassalagem. Sygne,215 entre as mãos de George, faz o juramento do cavaleiro perante o suserano.
“Sois o chefe e eu a pobre sibila que guarda o fogo.”216
“Deixa-me prestar juramento como um novo cavaleiro! Ó, meu Senhor! Deixa-me, meu irmão mais velho, entre tuas mãos
“Jurar como uma freira que professa,
“Ó macho de minha raça!”
Fidelidade, lealdade são as maiores virtudes humanas da vassala. Doce, humilde, resignada como mulher, é ela, em nome de sua raça, de sua linhagem, orgulhosa e indomável; assim são a altiva Sygne de Coûfontaine e a princesa de Tetê d’Or, que carrega sobre os ombros o cadáver do pai assassinado, o qual aceita a miséria de uma vida solitária e selvagem, as dores de uma crucificação e que assiste Tetê d’Or em sua agonia, ao lado dele antes de morrer. Conciliadora, mediadora, assim a mulher se nos apresenta amiúde: ela é Ester, dócil às ordens de Mardoqueu, Judite obedecendo aos sacerdotes; sua fraqueza, sua pusilanimidade, seu pudor, ela é capaz de os vencer por lealdade para com a Causa que é sua porque é a dos senhores; ela retira de seu devotamento uma força que faz dela o mais precioso dos instrumentos.
No plano humano, ela se apresenta, portanto, como extraindo sua grandeza de sua própria subordinação. Mas, aos olhos de Deus, ela é uma pessoa perfeitamente autônoma. O fato de que, para o homem, a existência se supera enquanto para a mulher ela se mantém não estabelece diferença entre eles senão em relação à terra; de qualquer maneira, não é na terra que a transcendência se realiza; é em Deus. E a mulher tem com ele uma ligação tão direta, mais íntima mesmo e mais secreta do que seu companheiro. É por uma voz de homem — e de um padre — que Deus fala a Sygne; mas Violaine ouve sua voz na solidão de seu coração, e Prouhèze só se entende com o Anjo da Guarda. As personagens mais sublimes de Claudel são mulheres: Sygne, Violaine, Prouhèze. E isso em parte porque, aos olhos dele, a santidade está na renúncia. E a mulher acha-se menos empenhada nos projetos humanos, ela tem menos vontade pessoal: feita para entregar-se, não para possuir, encontra-se mais perto do perfeito devotamento. Por ela é que se fará a superação das alegrias terrestres, que são lícitas e boas, mas cujo sacrifício é melhor ainda. Sygne realiza-o por uma razão definida: salvar o papa. Prouhèze resigna-se primeiramente porque ama Rodrigo com amor proibido:
“Desejarias então que pusesse entre teus braços uma adúltera?... Não teria sido senão uma mulher morrendo sobre teu coração e não essa estrela eterna de que tens sede.”217
Mas quando esse amor poderia tornar-se legítimo, ela nada faz para realizá-lo neste mundo, porque o Anjo lhe murmurou:
“Prouhèze, minha irmã, essa filha de Deus na luz que eu saúdo,
“Essa Prouhèze que os anjos veem, é essa, sem o saber, que ele olha, é a que fizeste a fim de lhe dar.”218
Ela é humana, é mulher, não se resigna sem revolta:
“Ele não conhecerá esse gosto que tenho!”219
Mas ela sabe que seu verdadeiro casamento com Rodrigo só se consuma com sua recusa:
“Quando não houver mais nenhum meio de escapar, quando ele estiver preso a mim para sempre neste impossível himeneu, quando não houver mais meio de se arrancar dessa torquês de minha carne poderosa e desse vazio impiedoso, quando eu tiver provado seu nada com o meu, quando não houver mais segredo em seu nada que o meu não seja capaz de verificar.
“Então é que o darei a Deus, descoberto e estraçalhado, para que ele o encha num fragor de trovão, então é que terei um esposo e apertarei um deus em meus braços.”220
A resolução de Violaine é mais misteriosa e mais gratuita ainda, porque escolhe a lepra e a cegueira quando um laço legítimo teria podido uni-la ao homem que amava e que a amava.
“Jacques, talvez.
“Nós nos amávamos demais para que fosse justo que pertencêssemos um ao outro, para que fosse bom ser um do outro.”221
Mas, se as mulheres são assim singularmente votadas ao heroísmo da santidade, é principalmente porque Claudel as encara ainda por uma perspectiva masculina. Sem dúvida, cada um dos sexos encarna o Outro aos olhos do sexo complementar; mas a seus olhos de homem é principalmente a mulher que se apresenta geralmente como o outro absoluto. Há uma superação mística de que “sabemos que somos por nós mesmos incapazes e daí esse poder da mulher sobre nós, semelhante ao da Graça”.222 O nós representa aqui somente os homens e não a espécie humana, e, ante sua imperfeição, a mulher é o apelo do infinito. Em certo sentido, há nisso um novo princípio de subordinação; pela comunhão dos santos cada indivíduo é instrumento para todos os outros; mas a mulher é mais precisamente instrumento de salvação para o homem, sem que a recíproca apareça. Le Soulier de satin é a epopeia da salvação de Rodrigo. O drama inicia-se com a prece que seu irmão dirige a Deus em seu favor; termina com a morte de Rodrigo que Prouhèze conduziu à santidade. Mas, em outro sentido, a mulher conquista, assim, a mais alta autonomia, porque sua missão se interioriza nela e, salvando o homem ou lhe servindo de exemplo, ela chega na solidão à sua própria salvação. Pierre de Craon profetiza o destino dele a Violaine, e recolhe em seu coração os frutos maravilhosos do seu sacrifício: ele a exaltará perante os homens nas pedras das catedrais. Mas é Violaine que o realiza sem auxílio. Há em Claudel uma mística da mulher que se aparenta à de Dante diante de Beatriz, à dos gnósticos e até à da tradição saint-simoniana chamando a mulher regeneradora. Mas sendo homens e mulheres igualmente criaturas de Deus, ele também atribui a ela um destino autônomo. De modo que em Claudel é fazendo-se outro — sou a Serva do Senhor — que a mulher se realiza como sujeito; e é em seu para-si que ela se apresenta como o Outro.
Há uma página das Aventures de Sophie que resume mais ou menos toda a concepção claudeliana. Deus, lê-se, confiou à mulher “esse rosto que, por deformado e longínquo que seja, é uma exata imagem da perfeição. Tornou-a desejável. Colocou juntos o fim e a origem. Fê-la depositária de seus desígnios e capaz de devolver ao homem o sono criador em que ela mesma foi concebida. Ela é o suporte do destino, é o dom, é a possibilidade da posse... É a presilha desse laço afetuoso que une a cada instante o criador à sua obra. Ela O compreende. Ela é a alma que vê e que faz. Ela partilha com ele de certo modo a paciência e o poder da criação”.
Em certo sentido, parece que a mulher não poderia ser mais exaltada. Mas, no fundo, Claudel não faz senão exprimir poeticamente a tradição católica ligeiramente modernizada. Foi dito que a vocação terrestre da mulher não prejudica em nada sua autonomia sobrenatural; mas, inversamente, reconhecendo-lhe esta, o católico acredita-se autorizado a manter as prerrogativas masculinas neste mundo. Venerando a mulher em Deus, trata-a neste mundo como uma serva: mais ainda, quanto mais se exigir dela uma submissão completa, mais seguramente será ela dirigida para o caminho da salvação. Devotar-se aos filhos, ao marido, ao lar, à propriedade, à Pátria, à Igreja, é sua função, a função que a burguesia sempre lhe indicou; o homem dá sua atividade, a mulher sua pessoa; santificar essa hierarquia em nome da vontade divina não é modificá-la em nada; ao contrário, é pretender fixá-la no eterno.
Apesar do abismo que separa o mundo religioso de Claudel do universo poético de Breton, há uma analogia no papel que designam à mulher: ela é um elemento de perturbação; ela arranca o homem do sono da imanência; boca, chave, porta, ponte, é Beatriz iniciando Dante no além. “O amor do homem pela mulher, se nos dedicamos um minuto à observação do mundo sensível, persiste em abarrotar o céu de flores gigantes e selvagens. Permanece o mais terrível obstáculo ao espírito que sente sempre a necessidade de se acreditar em lugar seguro.” O amor a outra conduz ao amor ao Outro. “É no mais alto período do amor eletivo por determinado ser que se abrem inteiramente as comportas do amor pela humanidade...” Mas, para Breton, o além não é um céu estranho: existe aqui mesmo; desvenda-se a quem sabe afastar os véus da trivialidade quotidiana; o erotismo, entre outras coisas, dissipa a ilusão do falso conhecimento. “Em nossos dias, o mundo sexual... não deixou, ao que eu saiba, de opor à nossa vontade de penetração do universo seu inquebrável núcleo de noite.” Chocar-se contra o mistério é a única maneira de o descobrir. A mulher é enigma e põe enigmas; suas múltiplas caras, em se adicionando, compõem “o ser único em que nos é dado ver o último avatar de Esfinge”; e é por isso que ela é revelação. “Eras a própria imagem do segredo”, diz Breton a uma mulher amada. E um pouco adiante: “A revelação que me trazia, antes mesmo de saber em que consistia, soube que era uma revelação.” Isso significa que a mulher é poesia. É o papel que desempenha também em Gérard de Nerval; mas em Sylvie e Aurélia ela tem a consistência de uma recordação ou de um fantasma, porque o sonho, mais verdadeiro do que o real, não coincide exatamente com este. Para Breton, a coincidência é perfeita: só há um mundo; a poesia está objetivamente presente nas coisas e a mulher é, sem equívoco, um ser de carne e osso. Encontramo-la, não num meio sono, mas bem acordados, durante um dia vulgar que tem sua data como todos os outros dias do calendário — 5 de abril, 12 de abril, 4 de outubro, 29 de maio — e num cenário comum: um café, uma esquina. Mas sempre ela se distingue por algum traço insólito. Nadja “caminha de cabeça erguida contrariamente aos demais passantes... curiosamente pintada... Nunca vira olhos assim”. Breton interpela-a. “Ela sorriu, mas muito misteriosamente, dir-se-ia, como que com conhecimento de causa.” Em L’Amour fou: “Essa jovem mulher que acabava de entrar estava como que envolvida em vapor — vestida de fogo?... E posso bem dizer que naquele lugar, a 29 de maio de 1934, essa mulher era escandalosamente bela.”223 De imediato o poeta reconhece que ela tem um papel a desempenhar em seu destino; por vezes, é apenas um papel fugidio, secundário; assim a menina com olhos de Dalila em Les Vases communicants. Mesmo então pequenos milagres nascem em torno dela: tendo um encontro com essa Dalila, Breton no mesmo dia lê um artigo simpático assinado por um amigo perdido de vista há muito tempo e chamado Sansão. Às vezes, os prodígios multiplicam-se; a desconhecida de 29 de maio, Ondina que fazia um número de natação em um music-hall, fora anunciada por um trocadilho ouvido em um restaurante sobre o tema “Ondine, on dîne”;224 e sua primeira longa saída com o poeta fora minuciosamente descrita em um poema composto por ele onze anos antes. A mais extraordinária dessas feiticeiras é Nadja: ela prediz o futuro, de seus lábios brotam as palavras e as imagens que o amigo tem no mesmo instante no espírito; seus sonhos e desenhos são oráculos: “Sou a alma errante”, diz ela; conduz-se na vida “de uma maneira singular, só se baseando na pura intuição e participando sem cessar do prodígio”; em torno dela o acaso objetivo semeia em profusão estranhos acontecimentos; ela é tão maravilhosamente liberta das aparências que desdenha as leis e a razão: acaba num hospício. Era “um gênio livre, algo como um desses espíritos do ar que certas práticas mágicas permitem momentaneamente prender-se a alguma coisa mas aos quais não seria possível submeter-se”. Por causa disso, ela malogra em desempenhar plenamente seu papel feminino. Vidente, pítia, inspirada, ela situa-se próximo demais das criaturas irreais que visitavam Gérard de Nerval; ela abre as portas do mundo suprarreal: mas é incapaz de dá-lo porque não poderia dar-se ela própria. É no amor que a mulher se realiza e é realmente atingida; singular, aceitando um destino singular — e não flutuando sem raízes através do universo — é então que ela resume tudo. O momento em que sua beleza atinge sua mais elevada expressão é essa hora da noite em que “ela é o espelho perfeito no qual tudo o que foi, tudo o que foi chamado a ser banha-se adoravelmente no que vai ser desta vez”. Para Breton, “encontrar o lugar e a fórmula” confunde-se com o “possuir a verdade numa alma e num corpo”. E essa posse só é possível no amor recíproco, amor carnal, bem entendido. “O retrato da mulher que se ama deve ser não somente uma imagem à qual se sorri, mas ainda um oráculo que se interroga”; mas só será oráculo se a própria mulher for outra coisa que não uma simples ideia ou imagem; deve ser “a pedra angular do mundo material”; para o vidente esse mesmo mundo é que é Poesia e cumpre que nesse mundo ele possua realmente Beatriz. “O amor recíproco é o único que condiciona a magnetização total sobre a qual não há domínio possível, que faz com que a carne seja sol e marca esplêndida na carne, que o espírito seja nascente sempre jorrando, inalterável, sempre viva e cuja água se oriente uma vez por todas entre as maravilhas e os serpões.”
Esse amor indestrutível só poderia ser único. O paradoxo da atitude de Breton está em que, dos Vases communicants a Arcane 17, ele se obstina em dedicar um amor único e eterno a mulheres diferentes. Mas, a seu ver, são as circunstâncias sociais que, impedindo a liberdade de escolha, conduzem o homem a escolhas infelizes; de resto, através desses erros, ele busca em verdade uma mulher. E se ele recordar os rostos amados, “só descobrirá igualmente um em todos os rostos de mulheres: o último rosto amado”.225 “Quantas vezes, ademais, pude verificar que, sob aparências inteiramente dessemelhantes, buscava definir de um a outro desses rostos um traço comum dos mais excepcionais.” À Ondina de L’Amour fou, ele pergunta: “Sois vós finalmente essa mulher? É somente hoje que devíeis vir?” Mas em Arcane 17: “Bem sabes que, ao te ver pela primeira vez, sem hesitação te reconheci.” Em um mundo acabado, renovado, o casal seria, em consequência de um dom recíproco e absoluto, indissolúvel: se a bem-amada é tudo, como haveria lugar para outra? Ela é essa outra também; e tanto mais plenamente quanto mais é ela mesma. “O insólito é inseparável do amor. Porque és única não podes deixar de ser sempre outra para mim, outra tu mesma. Através da diversidade dessas flores inumeráveis ao longe, é a ti cambiante que eu amo, de camisola vermelha, nua, de camisola cinzenta.” E, a propósito de uma mulher diferente mas igualmente única, Breton escreve: “O amor recíproco, tal qual o encaro, é um conjunto de espelhos que refletem, sob os mil ângulos que pode assumir para mim o desconhecido, a imagem fiel da pessoa que amo, sempre mais surpreendente de adivinhação de meu próprio desejo e mais dotada de vida.”
Essa mulher única, a um tempo carnal e artificial, natural e humana, tem o mesmo sortilégio que os objetos equívocos que amam os surrealistas: é semelhante à colher-sapato, à mesa-lobo, à pedra de açúcar de mármore que o poeta descobre no mercado de bugigangas ou inventa em sonho; ela participa do segredo dos objetos familiares repentinamente descobertos em sua verdade; e do das plantas e das pedras. Ela é todas as coisas:
Minha mulher de cabelos de fogueira
De pensamentos como relâmpagos de verão
De cintura de ampulheta
...Minha mulher de sexo de alga e confeitos antigos
...Minha mulher de olhos de savana
Mas principalmente ela é, para além de todas as coisas, a Beleza. A beleza não é para Breton uma ideia que se contempla e sim uma realidade que não se revela — portanto não existe — senão através da paixão; só pela mulher há beleza no mundo.
“É aí, bem no fundo do cadinho humano, nessa região paradoxal em que a fusão de dois seres que se escolheram realmente restitui a todas as coisas os valores perdidos do tempo dos antigos sóis, em que, entretanto, a solidão também reina violentamente, em virtude de uma dessas fantasias da Natureza que quer que em volta das crateras do Alasca a neve permaneça sob a cinza, aí foi que há anos pedi que fossem buscar a beleza nova, a beleza considerada exclusivamente para fins passionais.”
“A beleza convulsiva será erótica, velada, explosivo-fixa, mágico-circunstancial, ou não será.”
É da mulher que tudo o que é tira seu sentido. “É precisamente pelo amor e somente pelo amor que se realiza no mais alto grau a fusão da essência e da existência.” Ela se realiza para os amantes e, consequentemente, para todo o mundo. “A recriação, a recoloração perpétua do mundo em um só ser, tal como se realizam pelo amor, iluminam com mil raios de lua o mundo da terra.” Para todos os poetas — ou quase — a mulher encarna a Natureza; mas segundo Breton ela não a exprime somente: liberta-a. Porque a Natureza não fala uma linguagem clara, é preciso penetrar-lhe os arcanos para apreender sua verdade que é a mesma coisa que sua beleza: a poesia não é simplesmente o reflexo disso mas antes sua chave; e a mulher aqui não se distingue da poesia. Eis por que ela é a mediadora necessária, sem a qual toda a terra se cala: “A Natureza só está sujeita a iluminar-se e apagar-se, a me servir e desservir na medida em que se avivam e diminuem em mim as chamas de um fogo que é o amor, o único amor, o de um ser. Conheci, na ausência desse amor, verdadeiros céus vazios. Só faltava um grande íris de fogo saindo de mim para dar valor ao que existe... Contemplo até a vertigem tuas mãos abertas em cima da fogueira de cavacos que acabamos de acender e que crepita, tuas mãos encantadoras, tuas mãos transparentes que adejam sobre o fogo de minha vida.” Toda mulher amada por Breton é uma maravilha natural: “Uma pequena avenca inesquecível subindo pelo muro interno de um velhíssimo poço.” “...Não sei que haveria de ofuscante e de tão grave que ela só podia lembrar... a grande necessidade física natural fazendo ao mesmo tempo sonhar com a displicência de certas flores altas que principiam a desabrochar.” Mas, inversamente, toda maravilha natural confunde-se com a amada; é ela que exalta quando se comove com uma gruta, uma flor, uma montanha. Entre a mulher que aquece as mãos junto ao Teide e o próprio Teide toda distância se extingue. O poeta invoca ambos numa mesma prece: “Teide admirável! Toma minha vida! Boca do céu ao mesmo tempo que dos infernos, prefiro-te assim enigmática, assim capaz de elevar às nuvens a beleza natural e de tudo devorar.”
A beleza é mais ainda do que a beleza; ela confunde-se com a “noite profunda do conhecimento”; é a verdade, a eternidade, o absoluto; não é um aspecto temporal e contingente do mundo que a mulher liberta, é sua essência necessária, não uma essência imota como a imaginava Platão mas “explosivo-fixa”. “Não descubro em mim outro tesouro senão a chave que me abre esse prado sem limites desde que te conheci, esse prado feito da repetição de uma só planta sempre mais alta, cujo balancim de amplitude sempre maior me conduzirá até a morte... Pois uma mulher e um homem que até o fim dos tempos deverão ser tu e eu, deslizarão por sua vez até a perda do atalho, sem nunca retornar, na luz oblíqua, nos confins da vida e do esquecimento da vida... A maior esperança, isto é, a que resume todas as outras, é a esperança que isso aconteça para todos e que para todos dure, que o dom absoluto de um ser a outro, que não pode existir sem reciprocidade, seja aos olhos de todos a única ponte natural e sobrenatural jogada sobre a vida.”
Assim, pelo amor que inspira e partilha, a mulher é para todo homem a única salvação possível. Em Arcane 17, essa missão se amplia e precisa: a mulher deve salvar a humanidade. Breton desde sempre se inscreveu na tradição de Fourier que, reclamando a reabilitação da carne, exalta a mulher como objeto erótico; é normal que chegue à ideia saint-simoniana da mulher regeneradora. Na sociedade atual é o homem que domina, a ponto de constituir um insulto na boca de um Gourmont dizer de Rimbaud: “Temperamento de mulher!” Entretanto, “teria chegado o momento de valorizar as ideias da mulher em detrimento das do homem, cuja falência se consuma assaz tumultuosamente hoje... Sim, é sempre a mulher perdida, a que canta na imaginação do homem, mas, ao fim de tantas provações para ela e para ele, deve ser também a mulher reencontrada. E antes de tudo é preciso que a mulher se reencontre a si mesma, que ela aprenda a se reconhecer através dos infernos a que a votou, sem um socorro mais do que problemático, a ideia que o homem em geral tem dela”.
O papel que ela deveria desempenhar é antes de mais nada pacificador. “Sempre me estupidificou não ter sua voz se feito ouvir então, não ter ela pensado em tirar todo o proveito possível, todo o imenso proveito das duas inflexões irresistíveis e sem preço que lhe são dadas, uma para falar ao homem, outra para atrair a si toda a confiança da criança. Que prodígio, que futuro não teria tido o grande grito de recusa e de alarma da mulher, esse grito sempre em potência... Quando surgirá uma mulher simplesmente mulher para realizar o maior milagre, o de estender os braços entre os que vão lutar e dizer-lhes: Sois irmãos.” Se a mulher se apresenta hoje como inadaptada, mal equilibrada, é em consequência do tratamento que lhe infligiu a tirania masculina; mas ela conserva um poder milagroso pelo fato de mergulhar suas raízes nas fontes vivas da vida, cujos segredos os homens perderam. “Mélusine, semirretomada pela vida pânica, Mélusine de vínculos inferiores de pedregulhos ou ervas aquáticas, ou de penugem noturna, é a ela que eu invoco, só ela creio capaz de pôr fim à nossa época selvagem. É a mulher em sua totalidade, e no entanto tal qual é hoje, a mulher privada de seu alicerce humano, prisioneira de suas raízes movediças, como queiram, mas através destas em comunicação providencial com as forças elementares da natureza... A mulher privada de seu equilíbrio humano, assim o quer a lenda, pela impaciência e pelo ciúme do homem.”
Hoje convém, portanto, tomar o partido da mulher; enquanto se espera que lhe tenha sido restituído, na vida, seu verdadeiro valor, chegou a hora “de na arte pronunciar-se inequivocamente contra o homem em favor da mulher”. “A mulher-criança. A arte deve preparar sistematicamente seu advento a todo império do sensível.” Por que a mulher-criança? Breton explica-o: “Escolho a mulher-criança não em oposição à outra mulher, mas porque nela e somente nela me parece residir em estado de transparência absoluta o outro226 prisma de visão...”
Na medida em que é simplesmente assimilada a um ser humano, a mulher será tão incapaz quanto os seres humanos masculinos de salvar este mundo em perdição; é a feminilidade como tal que introduz na civilização esse elemento outro, que é a verdade da vida e da poesia e que pode, só ele, libertar a humanidade.
Sendo a perspectiva de Breton exclusivamente poética, é exclusivamente como poesia, portanto como outro, que a mulher é nela encarada. Na medida em que nos interrogaríamos do destino dela, a resposta estaria implicada no ideal do amor recíproco. Ela não tem outra vocação senão o amor; e isto não constitui nenhuma inferioridade, porquanto a vocação do homem é também o amor. Entretanto, gostaríamos de saber se, para ela também, o amor é a chave do mundo, revelação da beleza; encontrará ela essa beleza em seu amante? Ou em sua própria imagem? Será ela capaz da atividade poética que realiza a poesia através de um ser sensível ou se restringirá a aprovar a obra de seu homem? Ela é a poesia em si, no imediato, isto é, para o homem; não nos dizem se o é também para si. Breton não fala da mulher enquanto sujeito. Nunca evoca a imagem da mulher má. No conjunto de sua obra — a despeito de alguns manifestos e panfletos onde ele repreende o rebanho dos humanos — ele se dedica não a inventariar as resistências superficiais do mundo, mas sim a revelar-lhe a secreta verdade: a mulher só o interessa porque é uma “boca” privilegiada. Profundamente ancorada na natureza, bem próxima da terra, ela se apresenta também como a chave do além. Há em Breton o mesmo naturalismo esotérico que nos gnósticos, que viam na Sofia o princípio da Redenção e até da Criação, que em Dante, escolhendo Beatriz para guia, e em Petrarca, iluminado pelo amor de Laura. E é por isso que o ser mais ancorado na natureza, mais próximo da terra é também a chave do além. Verdade, Beleza, Poesia, ela é Tudo: uma vez mais, tudo na figura do Outro, Tudo exceto ela mesma.
V/STENDHAL OU O ROMANESCO DO VERDADEIRO
Se, deixando a época contemporânea, volto agora a Stendhal, é que ao sair desses carnavais em que a Mulher se fantasia ora de megera, ora de ninfa, estrela da manhã, sereia, é reconfortante chegar a um homem que vive entre mulheres de carne e osso.
Stendhal, desde a infância, amou as mulheres sensualmente; projetou nelas as aspirações de sua adolescência; imaginava-se de bom grado salvando de algum perigo uma bela desconhecida e conquistando-lhe o amor. Chegando a Paris, o que desejava mais ardentemente era “uma mulher encantadora; nós nos adoraremos, ela conhecerá minha alma”... Velho, escreve na poeira as iniciais das mulheres que mais amou. “Creio que foi o devaneio que preferi a tudo”, confia-nos ele. E são imagens de mulheres que lhe alimentaram os sonhos; a lembrança delas anima as paisagens. “A linha de rochedos aproximando-se de Arbois, creio, e vindo de Dôle pela estrada principal, foi para mim uma imagem sensível e evidente da alma de Métilde.” A música, a pintura, a arquitetura, tudo o que amou, amou-o com uma alma de amante infeliz; quando passeia em Roma, a cada página, uma mulher aparece; nas saudades, nos desejos, nas tristezas, nas alegrias que elas suscitaram-lhe, conheceu o gosto do próprio coração; a elas é que deseja como juízes. Frequenta-lhes os salões, procura mostrar-se brilhante aos seus olhos, deveu-lhes suas maiores felicidades, suas penas; foram sua principal ocupação. Prefere seu amor a toda amizade e sua amizade à dos homens; mulheres inspiram seus livros, figuras de mulheres os povoam; é em grande parte para elas que escreve. “Corro o risco de ser lido em 1900 pelas almas que amo, as Mme Roland, as Melanie Guibert...” Foram a própria subsistência de sua vida. De onde lhe veio esse privilégio?
Esse terno amigo das mulheres, e precisamente porque as ama em sua verdade, não crê no mistério feminino; nenhuma essência define de uma vez por todas a mulher; a ideia de um “eterno feminino” parece-lhe pedante e ridícula. “Pedantes repetem há dois mil anos que as mulheres têm o espírito mais vivo e os homens, mais solidez; que as mulheres têm mais delicadeza nas ideias e os homens, maior capacidade de atenção. Um tolo de Paris que passeava outrora pelos jardins de Versalhes concluía, do que via, que as árvores nascem podadas.” As diferenças que se observam entre os homens e as mulheres refletem as de sua situação. Por exemplo, por que não seriam as mulheres mais romanescas do que seus amantes? “Uma mulher com seu bastidor de bordar, trabalho insípido que só ocupa as mãos, pensa no amante, enquanto este galopando no campo com seu esquadrão é preso se faz um movimento em falso.” Acusam igualmente as mulheres de carecerem de bom senso. “As mulheres preferem as emoções à razão; é muito simples: como em virtude de nossos costumes vulgares elas não são encarregadas de nenhum negócio na família, a razão nunca lhes é útil... Encarregai vossa mulher de tratar de vossos interesses com os arrendatários de duas de vossas propriedades; aposto que as contas serão mais bem-feitas do que por vós.” Se a História revela-nos tão pequeno número de gênios femininos é porque a sociedade as priva de quaisquer meios de expressão. “Todos os gênios que nascem mulheres227 estão perdidos para a felicidade do público; desde que o acaso lhes dê os meios de se revelarem, vós as vereis desenvolver os mais difíceis talentos.” O pior handicap que devem suportar é a educação com que as embrutecem; o opressor esforça-se sempre por diminuir os que oprime; é propositadamente que o homem recusa às mulheres quaisquer possibilidades. “Deixemos ociosas nelas as qualidades mais brilhantes e mais ricas de felicidade para elas mesmas e para nós.” Aos dez anos, a menina é mais fina e viva do que seu irmão; com vinte, o moleque é homem de espírito e a moça “uma grande idiota desajeitada, tímida e com medo de uma aranha”; o erro está na formação que teve. Seria necessário dar à mulher exatamente a mesma instrução que se dá aos rapazes. Os antifeministas objetam que as mulheres cultas e inteligentes são uns monstros: todo o mal vem do fato de que estas permanecem ainda excepcionais; se pudessem todas ter acesso à cultura tão naturalmente como os homens, disso aproveitariam com a mesma naturalidade. Depois de as ter mutilado, escravizam-nas a leis antinaturais. Casadas contra sua vontade, querem que sejam fiéis e o próprio divórcio lhes é censurado como uma má conduta. Obrigam à ociosidade bom número delas, quando não há felicidade fora do trabalho. Essa condição indigna Stendhal e ele vê nela a fonte de todos os defeitos que se censuram às mulheres. Elas não são nem anjos nem demônios, nem esfinges, são seres humanos que costumes imbecis reduziram a uma semiescravidão.
É precisamente porque são umas oprimidas, que as melhores se preservam das taras que pesam sobre seus opressores; não são em si nem inferiores nem superiores ao homem; mas, por uma curiosa inversão, sua situação infeliz as favorece. Sabe-se quanto Stendhal detesta o espírito de gravidade: dinheiro, honrarias, prestígios, poder, parecem-lhes tristes ídolos; em sua imensa maioria, os homens alienam-se em proveito deles; o pedante, o importante, o burguês, o marido abafam em si todo impulso de vida e de verdade; armados de preconceitos, de sentimentos convencionais, obedientes às rotinas sociais, habita-os o vazio; um mundo povoado dessas criaturas sem alma é um deserto de tédio. Há, infelizmente, muitas mulheres que vivem atoladas nesses melancólicos pantanais; são bonecas de “ideias estreitas e parisienses” ou devotas hipócritas; Stendhal sente uma “repugnância mortal pelas mulheres honestas e a hipocrisia que lhes é indispensável”; elas emprestam a suas ocupações frívolas a mesma gravidade que seus maridos, mostram-se estúpidas por educação, invejosas, vaidosas, tagarelas, más por ociosidade, frias, secas, pretensiosas, maléficas, povoam Paris e a província; vemo-las formigar por trás das nobres figuras de uma Mme de Renal, de uma Mme de Chasteller. A que Stendhal pintou com mais atento ódio é, sem dúvida, Mme Grandet de que fez o negativo exato de uma Mme Roland, de uma Métilde. Bela mas sem expressão, desdenhosa e sem encanto, ela intimida por sua “virtude célebre”, mas não conhece o verdadeiro pudor que vem da alma; cheia de admiração por si mesma, imbuída de seu papel, só sabe copiar, de fora, a grandeza; no fundo é vulgar e vil; “não tem caráter... aborrece-me”, pensa Leuwen. “Perfeitamente sensata, preocupada com o êxito de seus projetos”, toda sua ambição é fazer do marido um ministro; “seu espírito era árido”; prudente, conformista, sempre evitou o amor; é incapaz de um impulso generoso; quando a paixão se introduz nessa alma seca, queima-a sem a iluminar.
Basta inverter essa imagem para descobrir o que Stendhal pede às mulheres: primeiramente, não se deixarem cair nas armadilhas da gravidade; pelo fato de as coisas pretensamente importantes encontrarem-se fora de seu alcance, correm, menos do que os homens, o risco de se alienarem nelas; têm maiores possibilidades de preservar essa naturalidade, essa ingenuidade, essa generosidade que Stendhal coloca mais alto do que qualquer outro mérito; o que ele aprecia nelas é isso que chamaríamos hoje autenticidade: é o traço comum a todas as mulheres que ele amou ou inventou com amor. São todas seres livres e verdadeiros. Sua liberdade exibe-se em algumas de uma maneira brilhante: Ângela Pietragua, “puta sublime, à italiana, à Lucrecia Bórgia” ou Mme Azur, “puta à du Barry... uma dessas francesas menos bonecas que encontrei” revolucionam abertamente os costumes. Lamiel ri-se das convenções, dos costumes, das leis: a Sanseverina atira-se com ardor à intriga e não recua diante do crime. É pelo vigor de seu espírito que outras se erguem acima do vulgar. Assim é Menta, assim é Mathilde de la Mole, que critica, difama, despreza a sociedade que a cerca e quer distinguir-se dela. Em outras ainda, a liberdade assume formas negativas; o que há de notável em Mme de Chasteller é seu desapego por tudo o que é secundário; obediente às vontades do pai e mesmo a suas opiniões, nem por isso deixa de contestar os valores burgueses com a indiferença que lhe censuram como puerilidade e é a fonte de sua alegria despreocupada; Clélia Conti distingue-se também por sua reserva; o baile, os divertimentos habituais das moças são-lhe indiferentes; ela parece sempre distante “ou por desprezo do que a cerca ou por saudade de alguma quimera ausente”; julga o mundo e indigna-se com tanta baixeza. É em Mme de Renal que a independência da alma se acha mais profundamente escondida; ignora, ela própria, que se resigna mal a seu destino; sua extrema delicadeza e aguda sensibilidade é que manifestam sua repugnância pela vulgaridade de seu meio; não tem hipocrisia; conservou um coração generoso, capaz de emoções violentas e aprecia a felicidade; do fogo que mina dentro dela mal se sente o calor de fora, mas bastará um sopro para que ela se incendeie inteiramente. Essas mulheres são vivas, muito simplesmente; sabem que a fonte dos valores verdadeiros não está nas coisas exteriores e sim nos corações; é o que faz o encanto do mundo em que habitam: rechaçam-lhe o tédio pelo simples fato de que nele estão presentes com seus sonhos, desejos, prazeres, emoções e invenções. A Sanseverina, essa “alma ativa”, teme o tédio mais do que a morte. Estagnar no tédio “é impedir-se de morrer, não é viver”; ela está “sempre apaixonada por alguma coisa, sempre agindo, alegre também”. Inconscientes, pueris ou profundas, alegres ou graves, ousadas ou secretas, todas recusam o pesado sono em que a humanidade se atola. E essas mulheres que souberam preservar por nada sua liberdade, logo que encontrarem um objeto digno delas, elevarão-se pela paixão até o heroísmo; sua força de alma e energia traduzem a pureza selvagem de uma participação total.
Mas somente a liberdade não bastaria para dotá-las de tantos atrativos romanescos: uma simples liberdade reconhece-se na estima mas não na emoção; o que comove é seu esforço por se realizar através dos obstáculos que a freiam, e esse esforço é nas mulheres tanto mais patético quanto mais difícil a luta. A vitória conquistada contra as coerções exteriores já basta para encantar Stendhal; em Chroniques italiennes, ele encerra suas heroínas no fundo dos conventos, ou no palácio de um esposo ciumento: cumpre-lhes inventar mil ardis para se juntarem a seus amantes; portas escondidas, escadas de corda, arcas sangrentas, raptos, sequestros, assassínios, os ímpetos da paixão e da desobediência são servidos por uma engenhosidade em que se empregam todos os recursos do espírito; a morte, as torturas ameaçadoras dão mais brilho ainda às audácias das almas arrebatadas que nos pinta. Mesmo nas obras mais maduras, Stendhal permanece sensível a esse romanesco aparente: é a figura manifesta do romanesco que nasce do coração; não se pode distingui-los um do outro, como não se pode separar uma boca de seu sorriso. Clélia reinventa o amor inventando o alfabeto que lhe permite corresponder-se com Fabrice; a Sanseverina é-nos descrita como “uma alma sempre sincera que nunca agiu com prudência, que se entrega inteiramente à impressão do momento”; é quando intriga, quando envenena o príncipe e que inunda Parma que essa alma se descobre a nós: não é outra coisa senão a aventura sublime e louca que quis viver. A escada que Mathilde de la Mole apoia à janela nada tem de um acessório de teatro: é, numa forma tangível, sua imprudência orgulhosa, seu pendor pelo extraordinário, sua coragem provocante. As qualidades dessas almas não seriam descobertas se elas não estivessem cercadas de inimigos: os muros da prisão, a vontade de um soberano, a severidade de uma família.
Entretanto, os obstáculos mais difíceis de transpor são os que cada um encontra em si mesmo: é então que a aventura da liberdade se faz mais incerta, mais pungente, mais excitante. É evidente que a simpatia de Stendhal por suas heroínas é tanto maior quanto mais estreitamente presas se encontram. Sem dúvida, ele aprecia as prostitutas, sublimes ou não, que uma vez por todas espezinharam as convenções; mas ele ama mais ternamente Métilde freada por seus escrúpulos e seu pudor. Lucien Leuwen compraz-se ao lado dessa mulher liberta que é Mme de Hocquincourt: mas é a Mme Chasteller, casta, reservada, hesitante que ele ama com paixão; ele admira a alma altiva da Sanseverina que não recua diante de nada, mas prefere Clélia e é a moça que conquista o coração de Fabrice. E Mme de Renal, atada por sua altivez, seus preconceitos, sua ignorância, é talvez de todas as mulheres criadas por Stendhal a que mais o espanta. Ele situa de bom grado suas heroínas na província, em um meio estreito, sob a mão de ferro de um marido ou um pai imbecil; agrada-lhe que sejam incultas e até imbuídas de ideias falsas. Mme de Renal e Mme de Chasteller são ambas obstinadamente legitimistas; a primeira é de espírito tímido e sem nenhuma experiência, a segunda de inteligência brilhante, mas cujo valor desconhece; não são, portanto, responsáveis por seus erros mas, antes, vítimas deles tanto quanto das instituições e dos costumes; e é do erro que jorra o romanesco, como a poesia nasce do fracasso. Um espírito lúcido que decide seus atos com pleno conhecimento de causa, nós o aprovamos ou censuramos secamente; ao passo que é com temor, piedade, ironia, amor que admiramos a coragem e os ardis de um coração generoso procurando seu caminho nas trevas. É porque elas são mistificadas, que vemos florescerem nas mulheres virtudes inúteis e encantadoras tais como o pudor, o orgulho, a delicadeza exagerada; em certo sentido são defeitos: engendram mentiras, suscetibilidades, cóleras, mas explicam-se facilmente pela situação em que são colocadas as mulheres; estas são levadas a pôr seu orgulho nas pequenas coisas, ou, pelo menos, “nas coisas que só têm importância pelo sentimento”, porque todos os objetos “ditos importantes” acham-se fora de seu alcance; seu pudor resulta da dependência em que se acham: porque lhes é proibido dar o que podem em seus atos, é seu próprio ser que elas põem em jogo; parece-lhes que a consciência de outrem, e em particular a de seus amantes, as revelam em sua verdade; têm medo disso e tentam escapar-lhes, e, em sua fuga, suas hesitações, suas revoltas, e até em suas mentiras, exprime-se uma autêntica preocupação do valor; e é o que as torna respeitáveis. Mas esse sentimento exprime-se com embaraço, e mesmo com má-fé, e é o que as torna comoventes e até discretamente cômicas. É quando a liberdade cai em suas próprias armadilhas e trapaceia com ela mesma que é mais profundamente humana e portanto, aos olhos de Stendhal, mais atraente. As mulheres de Stendhal são patéticas quando seu coração lhes propõe problemas inesperados: nenhuma lei, nenhuma receita, nenhum raciocínio, nenhum exemplo vindo de fora pode guiá-las; cumpre que decidam sozinhas: esse abandono é o momento extremo da liberdade. Clélia é educada com ideias liberais, é lúcida e sensata: mas opiniões aprendidas, justas ou não, não são de nenhum auxílio num conflito moral; Mme de Renal ama Julien a despeito de sua moral, Clélia salva Fabrice contra sua razão. Há, nos dois casos, a mesma superação de todos os valores admitidos. É essa ousadia que exalta Stendhal; mas ela é tanto mais comovente quanto mal ousa confessar-se. Torna-se ainda mais natural, mais autêntica, mais espontânea. Em Mme de Renal, a ousadia esconde-se atrás da inocência: por não conhecer o amor, ela não sabe reconhecê-lo e cede sem resistência: diria-se que por ter vivido nas trevas não tem defesa diante da fulgurante luz da paixão; acolhe-a deslumbrada até contra Deus, contra o inferno. Quando essa fogueira se apaga, ela recai nas trevas que os maridos e os padres governam; não tem confiança em seus próprios juízos, mas a evidência a fulmina; logo que encontra Julien entrega-lhe de novo a alma. Seus remorsos, a carta que o confessor lhe arranca, permitem medir que distância essa alma ardente e sincera tinha de vencer para se arrancar à prisão em que a encerrava a sociedade e ascender ao céu da felicidade. O conflito é mais consciente em Clélia: ela hesita entre sua lealdade para com o pai e sua piedade amorosa; ela procura razões para si mesma; o triunfo dos valores em que Stendhal acredita parece-lhe tanto mais evidente quanto é sentido como uma derrota pelas vítimas de uma civilização hipócrita; e ele se encanta vendo-as empregarem a malícia e a má-fé para fazer prevalecer a verdade da paixão e da felicidade contra as mentiras em que elas creem: Clélia, prometendo à Madona não mais ver Fabrice e aceitando durante dois anos seus beijos, seus abraços, à condição de manter os olhos fechados, é a um tempo ridículo e perturbador. É com a mesma ironia que Stendhal considera as hesitações de Mme de Chasteller e as incoerências de Mathilde de la Mole; tantas idas e voltas, tantos meandros e escrúpulos, tantas vitórias e derrotas secretas para alcançar fins simples e legítimos, constitui para ele a mais adorável das comédias; há comicidade nesses dramas porque a atriz é a um tempo juiz e parte, porque ela é sua própria vítima, porque ela se impõe caminhos complicados, quando bastaria um decreto para que o nó górdio fosse cortado; entretanto, eles evidenciam a mais respeitável preocupação que possa torturar uma alma nobre: ela quer permanecer digna de sua própria estima; ela coloca seu próprio sufrágio mais alto que o dos outros e com isso se realiza como um absoluto. Esses debates solitários, sem eco, têm mais gravidade do que uma crise ministerial; quando ela se pergunta se vai ou não corresponder ao amor de Lucien Leuwen, Mme de Chasteller julga a si mesma e ao mundo: pode-se ter confiança em outrem? Pode-se confiar no próprio coração? Qual é o valor do amor e dos juramentos humanos? É loucura ou generosidade acreditar e amar? Essas interrogações põem em dúvida o próprio sentido da vida, a vida de cada um e de todos. O homem dito sério é na realidade fútil porque aceita justificações convencionais para sua vida; ao passo que uma mulher apaixonada e profunda revisa a cada instante os valores estabelecidos; conhece a constante tensão de uma liberdade sem apoio. Com isso, sente-se sem cessar em perigo: em um momento pode tudo ganhar ou tudo perder. É esse risco assumido na inquietação que dá à sua história as cores de uma aventura heroica. E a aposta é a maior que pode existir: o próprio sentido dessa existência, que é a parte de cada um, sua única parte. A aventura de Mina de Vanghel pode em certo sentido parecer absurda; mas ela empenha toda uma ética. “Foi sua vida um erro de cálculo? Sua felicidade durara oito meses. Era uma alma demasiado ardente para se contentar com o real da vida.” Mathilde de la Mole é menos sincera do que Clélia ou Mme de Chasteller; ela regula seus atos mais pela ideia que faz de si mesma do que pela evidência do amor, da felicidade; haverá mais orgulho, mais grandeza em se defender do que em se entregar, em se humilhar do que em resistir a quem se ama? Ela acha-se só no meio dessas dúvidas e arrisca essa estima de si mesma de que faz mais questão do que da vida. É a ardente procura das verdadeiras razões de viver através das trevas da ignorância, dos preconceitos, das mistificações, na luz vacilante e febril da paixão, é o risco infinito da felicidade ou da morte, da grandeza ou da vergonha que confere a esses destinos de mulher sua glória romanesca.
A mulher, bem entendido, ignora a sedução que tem; contemplar-se a si mesma, desempenhar um papel, é sempre uma atitude inautêntica; Mme Grandet comparando-se a Mme Roland prova com isso mesmo que não se assemelha a ela. Se Mathilde de la Mole permanece atraente é porque se embrulha em suas comédias e é vítima, muitas vezes, de seu coração, nos momentos em que se acredita governá-lo; ela nos comove na medida em que escapa à própria vontade. Mas as heroínas mais puras não têm consciência de si mesmas. Mme de Renal ignora sua graça, como Mme de Chasteller sua inteligência. Nisso reside uma das alegrias profundas do amante com quem o autor e o leitor se identificam: ele é a testemunha através da qual essas riquezas secretas são reveladas; essa vivacidade que Mme de Renal exibe longe dos olhares dos outros, esse espírito “vivo, versátil, profundo”, que desconhece o ambiente de Mme de Chasteller e que ele é o único a admirar. E ainda que outros apreciem o espírito da Sanseverina, é ele quem penetra mais fundo na alma dela. Diante da mulher, o homem saboreia o prazer da contemplação; embriaga-se dela como de uma paisagem ou de um quadro; ela canta em seu coração e matiza o céu. Essa revelação revela-o a si mesmo: não se pode compreender a delicadeza das mulheres, sua sensibilidade, seu ardor sem se construir uma alma delicada, sensível, ardente; os sentimentos femininos criam um mundo de matizes, de exigências, cuja descoberta enriquece o amante. Perto de Mme de Renal, Julien torna-se diferente do ambicioso que resolvera ser, faz-se de novo. Se o homem tem pela mulher apenas um desejo superficial, achará divertido seduzi-la. Mas é o verdadeiro amor que transfigura a vida: “O amor de Werther abre a alma... ao sentimento e ao gozo do belo sob qualquer forma que se apresente, ainda que sob um hábito de burel. Faz que se encontre a felicidade até sem riquezas...” “É um novo objetivo na vida a que tudo se prende e que muda a face de tudo. O amor-paixão joga aos olhos de um homem toda a natureza com seus aspectos sublimes como uma novidade inventada ontem.” O amor quebra a rotina quotidiana, afasta o tédio, esse tédio em que Stendhal vê um mal tão profundo porque é a ausência de todas as razões de viver ou morrer; o amante tem um fim e isso basta para que cada dia se torne uma aventura. Que prazer para Stendhal passar três dias escondido na adega de Menta! As escadas de corda, as arcas sangrentas traduzem esse gosto pelo extraordinário em seus romances. O amor, isto é, a mulher, revela os verdadeiros fins da existência: o belo, a felicidade, o frescor das sensações e do mundo. Arranca a alma ao homem e dá-lhe assim a posse dela; o amante conhece a mesma tensão, os mesmos riscos que sua amante e experimenta-se mais autenticamente do que no curso de toda uma carreira calculada. Quando hesita ao pé da escada erguida por Mathilde, Julien põe em jogo todo seu destino: é nesse instante que revela sua verdadeira medida. É através das mulheres, sob sua influência, reagindo às condutas delas que Julien, Fabrice, Lucien fazem o aprendizado do mundo e de si mesmos. Provação, recompensa, juiz, amiga, a mulher é realmente em Stendhal o que Hegel em dado momento se viu tentado a considerá-la: essa consciência outra que, no reconhecimento recíproco, dá ao sujeito outro a mesma verdade que recebe dele. O casal feliz que se reconhece no amor desafia o universo e o tempo; basta a si próprio, realiza o absoluto.
Mas isso pressupõe que a mulher não é simples alteridade; é, ela própria, sujeito. Nunca Stendhal se restringe a descrever suas heroínas em função de seus heróis: dá-lhes um destino próprio. Tentou uma empresa mais rara e que nenhum romancista, creio, jamais se propôs: projetou-se ele próprio numa personagem feminina. Não se debruça sobre Lamiel como Marivaux sobre Marianne, ou Richardson sobre Clarisse Harlow: desposa-lhe o destino como desposara o destino de Julien. Por causa disso mesmo, a figura de Lamiel permanece um pouco teórica, mas é singularmente significativa. Stendhal ergueu em torno da moça todos os obstáculos imagináveis: ela é pobre, camponesa, grosseiramente educada por pessoas imbuídas de todos os preconceitos; mas ela afasta de seu caminho todas as barreiras morais a partir do dia em que compreende o alcance destas simples palavras: “é tolo”. A liberdade de seu espírito permite-lhe reconsiderar todos os movimentos de sua curiosidade, de sua ambição, de sua alegria; diante de um coração tão resoluto, os obstáculos materiais não podem deixar de se renovar; seu único problema será conquistar, em um mundo medíocre, um destino feito sob medida. Ela devia realizar-se no crime e na morte; mas é também a sorte que aguarda Julien. Não há lugar para as grandes almas na sociedade tal qual é: homens e mulheres acham-se em pé de igualdade.
É notável que Stendhal seja a um tempo tão profundamente romanesco e tão decididamente feminista; habitualmente, os feministas são espíritos racionais que adotam, em todas as coisas, o ponto de vista do universal; mas é não somente em nome da liberdade em geral como também em nome da felicidade individual que Stendhal reclama a emancipação das mulheres. O amor nada terá a perder com isso, pensa ele; ao contrário, será tanto mais verdadeiro quanto, sendo a mulher um igual para o homem, poderá entendê-lo mais completamente. Provavelmente, algumas das qualidades que apreciamos na mulher desaparecerão, mas seu valor provém da liberdade que nelas se exprime, mas essa liberdade se manifestará de outras maneiras e o romanesco não se dissipará do mundo. Dois seres separados, colocados em situações diferentes, defrontando-se em sua liberdade e procurando a justificação da existência, um através do outro, viverão sempre uma aventura cheia de riscos e de promessas. Stendhal confia na verdade; desde que se fuja dela, morre-se vivo; mas onde ela brilha, brilham a beleza, a felicidade, o amor, uma alegria que traz em si sua justificação. Eis por que, tanto quanto as mistificações da gravidade, ele recusa a falsa poesia dos mitos. A realidade humana basta-lhe. A mulher a seus olhos é simplesmente um ser humano: os sonhos nada poderiam forjar de mais embriagante.
Vê-se por esses exemplos que, em cada escritor singular, se refletem os grandes mitos coletivos: a mulher foi-nos apresentada como carne; a carne do homem é gerada pelo ventre materno e recriada nos abraços da amante; por esse aspecto a mulher aparenta-se à natureza, encarna-a: animal, vale de sangue, rosa desabrochada, sereia, curva de uma colina, ela dá ao homem o humo, a seiva, a beleza sensível e a alma do mundo; ela pode possuir as chaves da poesia; pode ser mediadora entre este mundo e o além: graça ou pítia, estrela ou feiticeira, abre a porta do sobrenatural, do suprarreal; está votada à imanência; e com isso sua passividade distribui a paz, a harmonia, mas, se recusa esse papel, ei-la fêmea de louva-a-deus, mulher de ogro. Em todo caso, ela se apresenta como o Outro privilegiado através do qual o sujeito se realiza: uma das medidas do homem, seu equilíbrio, salvação, aventura e felicidade.
Mas esses mitos orquestram-se para cada um de maneira diferente. O Outro é singularmente definido segundo o modo singular que o Um escolhe para se pôr. Todo homem afirma-se como uma liberdade e uma transcendência, mas não dão todos os homens o mesmo sentido a essas palavras. Para Montherlant, a transcendência é um estado; é ele o transcendente e paira no céu dos heróis; a mulher vegeta na terra a seus pés; compraz-se em medir a distância que o separa dela; de vez em quando, ele a leva até junto de si, a possui e depois a rejeita; nunca se abaixa à esfera de viscosas trevas em que ela se acha. Lawrence situa a transcendência no falo; o falo não é vida e força senão graças à mulher; a imanência é, portanto, boa e necessária; o falso herói, que pretende não tocar o solo, longe de ser um semideus, não chega sequer a ser um homem; a mulher não é desprezível, é riqueza profunda, cálida nascente; mas ela deve renunciar a toda transcendência pessoal e limita-se a nutrir a de seu homem. Idêntico devotamento lhe é exigido por Claudel. A mulher, para ele, é também quem mantém a vida, enquanto o homem lhe prolonga o impulso como seus atos; mas, para o católico, tudo o que se passa na terra banha-se na vã imanência: só Deus transcende; aos olhos de Deus o homem que age e a mulher que o serve são exatamente iguais; cabe a cada um superar sua condição terrestre: a salvação é, em todo caso, uma empresa autônoma. Para Breton, a hierarquia dos sexos inverte-se; a ação, o pensamento consciente em que o homem situa sua transcendência parecem-lhe uma estúpida mistificação que engendra a guerra, a tolice, a burocracia, a negação do humano; é a imanência, a simples presença opaca do real que é a verdade; a verdadeira transcendência se realizaria pela volta à imanência. Sua atitude é exatamente oposta à de Montherlant: este ama a guerra porque nela está livre das mulheres, Breton venera a mulher porque ela traz a paz; um confunde espírito e subjetividade, recusa o universo dado; o outro pensa que o espírito se acha objetivamente presente no coração do mundo; a mulher compromete Montherlant porque lhe perturba a solidão; ela é para Breton revelação porque o tira da subjetividade. Quanto a Stendhal, vimos que a mulher mal assume nele um valor mítico. Ele a considera como sendo ela também uma transcendência; para esse humanista, é em suas relações recíprocas que as liberdades se realizam; basta-lhe que o Outro seja simplesmente um outro para que a vida tenha a seu ver “um sal picante”; não procura um “equilíbrio estelar”, não se alimenta com o pão do nojo; não espera milagre; não deseja ter que se haver com o cosmo ou a poesia, mas sim com as liberdades.
É que também ele se sente, ele próprio, como uma liberdade translúcida. Os outros — e é um ponto dos mais importantes — se põem como transcendências mas sentem-se prisioneiros de uma presença opaca no fundo de si mesmos: projetam na mulher esse “inquebrável núcleo de noite”. Há, em Montherlant, um complexo adleriano de onde nasce uma má-fé espessa: é esse conjunto de pretensões e de temores que ele encarna na mulher; a repugnância que sente por ela é a que receia sentir por si mesmo; pretende espezinhar nela a prova sempre possível de sua própria insuficiência; pede ao desprezo que o salve. A mulher é a fossa em que ele precipita todos os monstros que o habitam.228 A vida de Lawrence mostra-nos que sofria de um complexo análogo, mas puramente sexual: a mulher tem em sua obra o valor de um mito de compensação; por ela se acha exaltada uma virilidade de que o escritor não estava muito seguro; quando descreve Kate aos pés de Don Cipriano acredita ter conquistado um triunfo de macho contra Frieda; não admite, ele tampouco, que sua companheira o ponha em dúvida: se ela lhe contestasse os fins, perderia, talvez, confiança neles; ela tem por função tranquilizá-lo. Ele lhe pede paz, repouso, fé, como Montherlant pede a certeza de sua superioridade: exigem os que lhes falta. A confiança em si não é o de que carece Claudel: se é tímido, ele o é apenas no segredo de Deus. Por isso não há nele nenhum vestígio de luta de sexos. O homem carrega ousadamente o fardo da mulher: ela é possibilidade de tentação e de salvação. Tem-se a impressão de que, para Breton, o homem só é verdadeiro pelo mistério que o habita; apraz-lhe que Nadja veja essa estrela para a qual ele caminha e que é como “o coração de uma flor sem coração”; seus sonhos, seus pressentimentos, o desenvolvimento espontâneo de sua linguagem interior, é nessas atividades que escapam ao controle da vontade e da razão que ele se reconhece: a mulher é a figura sensível dessa presença velada, infinitamente mais essencial do que sua personalidade consciente.
Stendhal coincide tranquilamente consigo mesmo, mas precisa da mulher como ela dele, a fim de que sua existência dispersa se reúna na unidade de uma figura e de um destino; é como para-outrem que o homem atinge o ser mas é preciso, contudo, que esse outro lhe empreste sua consciência: os outros homens têm demasiado indiferença para com seus semelhantes; só a mulher amorosa abre o coração ao amante e nele o abriga inteiramente. Com exceção de Claudel, que encontra em Deus uma testemunha superior, todos os escritores que consideramos esperam que, segundo as palavras de Malraux, a mulher adore neles esse “monstro incomparável” só deles conhecido. Na colaboração ou na luta, os homens enfrentam-se em sua generalidade. Montherlant é para seus semelhantes um escritor, Lawrence um doutrinador, Breton um chefe de escola, Stendhal um diplomata ou um homem de espírito; é a mulher que revela em um o príncipe magnífico e cruel, noutro um fauno inquietante, noutro um deus ou um sol, ou um ser “negro e frio como um homem fulminado aos pés da Esfinge”,229 noutro, enfim, um sedutor, um amante.
Para cada um deles, a mulher ideal será a que encarnar mais exatamente o Outro capaz de o revelar a si mesmo. Montherlant, espírito solar, busca nela a animalidade pura; Lawrence, o fálico, pede-lhe que resuma o sexo feminino em sua generalidade; Claudel define-a como uma alma irmã; Breton adora Mélusine arraigada na natureza e põe sua esperança na mulher-criança: Stendhal deseja uma amante inteligente, culta, livre de espírito e de costumes: uma igual. Mas para a igual, a mulher-criança, a alma-irmã, a mulher-sexo, o animal feminino, o único destino terrestre que se lhes reserva é sempre o homem. Qualquer que seja o ego que se procura através dela, esse ego só pode ser atingido se ela consente em lhe servir de cadinho. Exige-se dela, em todo caso, a renúncia a si mesma, e o amor. Montherlant consente em se enternecer com a mulher que lhe permite medir sua força viril; Lawrence compõe um hino entusiasta à que renuncia a si mesma a seu favor; Claudel exalta a vassala, a serva, a devotada que se submete a Deus submetendo-se ao homem; Breton espera da mulher a salvação da humanidade, porque ela é capaz do amor mais total em relação ao filho, ao amante; e até em Stendhal as heroínas são mais comoventes do que os heróis porque se entregam a sua paixão com a mais desenfreada violência; elas ajudam o homem a cumprir seu destino, como Prouhèze contribui para a salvação de Rodrigo; nos romances de Stendhal acontece muitas vezes que elas salvem o amante da ruína, da prisão ou da morte. A dedicação feminina é exigida como um dever por Montherlant, por Lawrence; menos arrogantes, Claudel, Breton, Stendhal admiram-na como uma generosa escolha: desejam-na, essa escolha, sem pretender merecê-la. Mas, a não ser o espantoso Lamiel, todas as suas obras mostram que esperam da mulher esse altruísmo que Comte admirava nela e lhe impunha, e que a seu ver também constituía a um tempo uma inferioridade flagrante e uma equívoca superioridade.
Poderíamos multiplicar os exemplos: nos conduziriam sempre às mesmas conclusões. Definindo a mulher, cada escritor define sua ética geral e a ideia singular que faz de si mesmo. É também nela que, muitas vezes, ele inscreve a distância entre seu ponto de vista sobre o mundo e seus sonhos egotistas. A ausência ou a insignificância do elemento feminino no conjunto de uma obra já é sintomática; esse elemento tem uma extrema importância quando resume em sua totalidade todos os aspectos do Outro como ocorre em Lawrence; conserva parte dessa importância quando a mulher é encarada simplesmente como uma outra, mas que o escritor se interessa pela aventura individual de sua vida, como é o caso de Stendhal; perde-a em uma época como a nossa em que os problemas singulares de cada um passam a segundo plano. Entretanto, a mulher enquanto outra desempenha ainda um papel na medida em que, embora seja tão somente para se superar, todo homem tem ainda necessidade de tomar consciência de si.