1/Infância

Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado, que qualificam de feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um Outro. Enquanto existe para si, a criança não pode apreender-se como sexualmente diferençada. Entre meninas e meninos, o corpo é, primeiramente, a irradiação de uma subjetividade, o instrumento que efetua a compreensão do mundo: é através dos olhos, das mãos e não das partes sexuais que apreendem o Universo. O drama do nascimento e o do desmame desenvolvem-se da mesma maneira para as crianças dos dois sexos; têm elas os mesmos interesses, os mesmos prazeres; a sucção é, inicialmente, a fonte de suas sensações mais agradáveis; passam depois por uma fase anal em que tiram, das funções excretórias que lhe são comuns, as maiores satisfações; seu desenvolvimento genital é análogo; exploram o corpo com a mesma curiosidade e a mesma indiferença; do clitóris e do pênis tiram o mesmo prazer incerto; à medida que já se objetiva sua sensibilidade, voltam-se para a mãe: é a carne feminina, suave, lisa, elástica que suscita os desejos sexuais, e esses desejos são preensivos; é de uma maneira agressiva que a menina, como o menino, beija a mãe, acaricia-a, apalpa-a; têm o mesmo ciúme se nasce outra criança; manifestam-no da mesma maneira: cólera, amuo, distúrbios urinários; recorrem aos mesmos ardis para captar o amor dos adultos. Até os 12 anos a menina é tão robusta quanto os irmãos e manifesta as mesmas capacidades intelectuais; não há terreno em que lhe seja proibido rivalizar com eles. Se, bem antes da puberdade e, às vezes, mesmo desde a primeira infância, ela já se apresenta como sexualmente especificada, não é porque misteriosos instintos a destinem imediatamente à passividade, ao coquetismo, à maternidade: é porque a intervenção de outrem na vida da criança é quase original e desde seus primeiros anos sua vocação lhe é imperiosamente insuflada.

O mundo apresenta-se, a princípio, ao recém-nascido sob a figura de sensações imanentes; ele ainda se acha mergulhado no seio do Todo como no tempo em que habitava as trevas de um ventre; seja criado no seio ou na mamadeira, é envolto pelo calor da carne materna. Pouco a pouco, aprende a perceber os objetos como distintos de si: distingue-se deles; ao mesmo tempo, de modo mais ou menos brutal, desprende-se do corpo nutriz; por vezes reage a essa separação com uma crise violenta.235 Em todo caso, é no momento em que ela se consuma — lá pela idade de seis meses mais ou menos — que a criança começa a manifestar em suas mímicas, que se tornam mais tarde verdadeiras exibições, o desejo de seduzir outrem. Por certo, essa atitude não é definida por uma escolha refletida; mas não é preciso pensar uma situação para que ela exista. De maneira imediata a criança de peito vive o drama original de todo existente, que é o drama de sua relação com o Outro. É na angústia que o homem sente seu abandono. Fugindo à sua liberdade, à sua subjetividade, ele gostaria de perder-se no seio do Todo: aí se encontra a origem de seus devaneios cósmicos e panteísticos, de seu desejo de esquecimento, de sono, de êxtase, de morte. Ele jamais consegue abolir seu eu separado: pelo menos deseja atingir a solidez do “em-si”, ser petrificado em coisa; é, singularmente, quando imobilizado pelo olhar de outrem que se revela a si mesmo como um ser. É nessa perspectiva que cumpre interpretar as condutas da criança: sob uma forma carnal, ela descobre a finitude, a solidão, o abandono em um mundo estranho; tenta compensar essa catástrofe alienando sua existência numa imagem de que outrem justificará a realidade e o valor. Parece que é a partir do momento em que percebe sua imagem no espelho — momento que coincide com o do desmame — que ela começa a afirmar sua identidade:236 seu eu se confunde com este reflexo, a tal ponto que só se forma ao se alienar. Desempenhe ou não o espelho propriamente dito um papel mais ou menos considerável, o certo é que a criança começa, por volta dos seis meses, a compreender as mímicas dos pais e a se apreender sob o olhar deles como um objeto. Ela já é um sujeito autônomo que se transcende para o mundo, mas é somente sob uma figura alienada que ela encontra a si mesma.

Quando cresce, a criança luta de duas maneiras contra o abandono original. Tenta negar a separação: aconchega-se nos braços da mãe, procura seu calor vivo, reclama suas carícias. Tenta fazer-se justificar pela aprovação de outrem. Os adultos se lhe afiguram deuses: têm o poder de lhe conferir o ser. Sente a magia do olhar que a metamorfoseia ora em delicioso anjinho, ora em monstro. Esses dois modos de defesa não se excluem: ao contrário, se completam e se penetram. Quando a sedução alcança êxito, o sentimento de justificação encontra uma confirmação carnal nos beijos e nas carícias recebidos: é uma mesma passividade feliz que a criança conhece no colo da mãe e sob seu olhar benevolente. Não há, durante os três ou quatro primeiros anos, diferença entre a atitude das meninas e a dos meninos; tentam todos perpetuar o estado feliz que precedeu o desmame; neles como nelas encontramos condutas de sedução e de exibição: eles desejam tanto quanto elas agradar, provocar sorrisos, ser admirados.

É mais satisfatório negar o rompimento do que superá-lo, mais radical perder-se no coração do Todo do que se fazer petrificar pela consciência de outrem: a fusão carnal cria uma alienação mais profunda do que qualquer renúncia perante o olhar alheio. A sedução, a exibição representam uma fase mais complexa, menos fácil do que o simples abandono nos braços maternos. A magia do olhar adulto é caprichosa; a criança finge ser invisível, os pais entram no jogo, procuram-na às apalpadelas, riem e depois bruscamente declaram: “Você está nos aborrecendo, você não é invisível.” Uma frase da criança divertiu, ela a repete; mas, dessa vez, dão de ombros. Neste mundo tão incerto, tão imprevisível quanto o universo de Kafka, tropeça-se a cada passo.237 É por isso que tantas crianças têm medo de crescer; desesperam-se quando os pais deixam de sentá-las nos joelhos, de aceitá-las na cama; através da frustração física, sentem cada vez mais cruelmente o abandono de que o ser humano nunca toma consciência senão com angústia.

Nesse ponto é que as meninas vão parecer, a princípio, privilegiadas. Um segundo desmame, menos brutal, mais lento do que o primeiro, subtrai o corpo da mãe aos carinhos da criança; mas é principalmente aos meninos que se recusam pouco a pouco beijos e carícias; quanto à menina, continuam a acariciá-la, permitem-lhe que viva grudada às saias da mãe, no colo do pai que lhe faz festas; vestem-na com roupas macias como beijos, são indulgentes com suas lágrimas e seus caprichos, penteiam-na com cuidado, divertem-se com seus trejeitos e seus coquetismos; contatos carnais e olhares complacentes protegem-na contra a angústia da solidão. Ao menino, ao contrário, proíbe-se até o coquetismo; suas manobras sedutoras, suas comédias aborrecem. “Um homem não pede beijos... Um homem não se olha no espelho... Um homem não chora”, dizem-lhe. Querem que ele seja “um homenzinho”; é libertando-se dos adultos que ele conquistará sua aprovação. Agradará se não demonstrar que procura agradar.

Muitos meninos, assustados com a dura independência a que são condenados, almejam então ser meninas; nos tempos em que no início os vestiam como elas, era muitas vezes com lágrimas que abandonavam o vestido pelas calças, e viam seus cachos serem cortados. Alguns escolhem obstinadamente a feminilidade, o que é uma das maneiras de se orientar para o homossexualismo: “Desejei apaixonadamente ser menina, e levei a inconsciência da grandeza de ser homem até desejar urinar sentado”, conta Maurice Sachs em Le Sabbat. Entretanto, se o menino se apresenta, a princípio, como menos favorecido do que as irmãs, é que lhe reservam maiores desígnios. As exigências a que o submetem implicam imediatamente uma valorização. Em suas recordações, Maurras conta que tinha ciúmes de um caçula que a mãe e a avó tratavam com mais carinho: o pai pegou-o pela mão e levou-o para fora do quarto: “Nós somos homens; deixemos aí essas mulheres”, disse o pai. Persuadem a criança de que é por causa da superioridade dos meninos que exigem mais deles; para encorajá-lo no caminho difícil que é o seu, insuflam-lhe o orgulho da virilidade; essa noção abstrata se reveste para ele de um aspecto concreto: encarna-se no pênis; não é espontaneamente que sente orgulho de seu pequeno sexo indolente; sente-o através da atitude dos que o cercam. Mães e amas perpetuam a tradição que assimila o falo à ideia de macho; seja porque lhe reconhecem o prestígio na gratidão amorosa ou na submissão, seja porque constitua para elas um revide reencontrá-lo na criança sob uma forma humilhada, o fato é que tratam o pênis infantil com uma complacência singular. Rabelais nos relata as brincadeiras e as conversas das amas de Gargântua;238 a história registrou as das amas de Luís XIII. Mulheres com menos pudor dão, entretanto, um apelido gentil ao sexo do menino e lhe falam dele como de uma pequena pessoa que é a um tempo ele próprio e um outro; fazem desse sexo, segundo a expressão já citada, “um alter ego geralmente mais esperto, mais inteligente e mais hábil do que o indivíduo”.239 Anatomicamente, o pênis presta-se muito bem a esse papel; separado do corpo, apresenta-se como um pequeno brinquedo natural, uma espécie de boneca. Valorizam, portanto, a criança valorizando-lhe o duplo. Um pai contava-me que um de seus filhos com a idade de três anos ainda urinava sentado; cercado de irmãs e primas, era uma criança tímida e triste; um dia o pai levou-o ao W.C. dizendo-lhe: “Vou lhe mostrar como fazem os homens.” A partir de então o menino, orgulhoso de urinar em pé, desprezou as meninas “que mijam por um buraco”; seu desdém provinha, originalmente, não do fato de carecerem de um órgão, mas sim do fato de não terem sido distinguidas e iniciadas pelo pai. Assim, longe de o pênis ser descoberto como um privilégio imediato de que o menino tiraria um sentimento de superioridade, sua valorização surge, ao contrário, como uma compensação — inventada pelos adultos e ardorosamente aceita pela criança — para as durezas do último desmame; deste modo, ela se acha defendida contra a saudade de não ser mais uma criança de peito, de não ser uma menina. Posteriormente, o menino encarnará em seu sexo sua transcendência e sua soberania orgulhosa.240

O destino da menina é muito diferente. Nem mães nem amas têm reverência e ternura por suas partes genitais; não chamam a atenção para esse órgão secreto de que só se vê o invólucro e que não se deixa pegar; em certo sentido, a menina não tem sexo. Não sente essa ausência como uma falha; seu corpo é evidentemente uma plenitude para ela, mas ela se acha situada no mundo de um modo diferente do menino e um conjunto de fatores pode transformar a seus olhos a diferença em inferioridade.

Há poucas questões mais discutidas pelos psicanalistas do que o famoso “complexo de castração” feminino. Em sua maioria, eles admitem hoje que o desejo de um pênis se apresenta, segundo os casos, de diferentes maneiras.241 Primeiramente, há muitas meninas que ignoram, até idade avançada, a anatomia masculina. A criança aceita naturalmente que haja homens e mulheres como há um sol e uma lua: ela acredita em essências contidas nas palavras e sua curiosidade não é a princípio analítica. Para muitas outras, o pedacinho de carne que pende entre as pernas do menino é insignificante e até irrisório; é uma singularidade que se confunde com a das roupas e do penteado; é, muitas vezes, num irmãozinho recém-nascido que ela descobre essa singularidade e, “quando a menina é muito pequena”, diz H. Deutsch, “não se impressiona com o pênis do irmãozinho”; e cita o exemplo de uma menina de 18 meses que permaneceu absolutamente indiferente à descoberta do pênis, e só lhe deu valor muito mais tarde, em relação às suas preocupações pessoais. Acontece mesmo que o pênis seja considerado uma anomalia: é uma excrescência, uma coisa vaga que pende como os quistos, as tetas, as verrugas; pode inspirar repugnância. Enfim, há casos numerosos em que a menina se interessa pelo pênis do irmão ou de um colega, mas isso não significa que sinta uma inveja propriamente sexual e ainda menos que se sinta profundamente atingida pela ausência desse órgão; ela deseja apossar-se dele como almeja apossar-se de qualquer objeto; mas esse desejo pode permanecer superficial.

É certo que as funções excretórias, e particularmente as funções urinárias, interessam apaixonadamente as crianças: urinar na cama é muitas vezes um protesto contra a preferência demonstrada pelos pais por outro filho. Há países em que os homens urinam sentados e acontece que mulheres urinem de pé: isso é feito habitualmente por muitas camponesas; mas, na sociedade ocidental contemporânea, querem geralmente os costumes que elas se agachem, ficando os homens de pé. Essa diferença é para a menina a diferenciação sexual mais impressionante. Para urinar, ela precisa agachar-se, despir-se e, portanto, esconder-se: é uma servidão vergonhosa e incômoda. A vergonha aumenta nos casos frequentes em que sofre de emissões urinárias involuntárias, nos casos de ataques de riso, por exemplo; o controle é menos seguro nela do que nos meninos. Nestes, a função urinária apresenta-se como um jogo livre que tem a atração de todos os jogos em que se exerce a liberdade; o pênis se deixa manipular e através dele pode-se agir, o que constitui um dos interesses profundos da criança. Uma menina, vendo um menino urinar, declarou com admiração: “Como é cômodo”.242 O jato pode ser dirigido à vontade, a urina lançada longe: o menino aufere disso um sentimento de onipotência. Freud falou “da ambição ardente dos antigos diuréticos”; Stekel discutiu com bom senso essa fórmula, mas é verdade, como diz Karen Horney,243 que “fantasias de onipotência, principalmente de caráter sádico, associam-se muitas vezes ao jato masculino de urina”; esses fantasmas que sobrevivem em alguns homens244 são importantes na criança. Abraham fala do grande prazer “que as mulheres experimentam em regar o jardim com uma mangueira”; e creio, de acordo com as teorias de Sartre e Bachelard,245 que não é necessariamente246 a associação da mangueira ao pênis que é fonte desse prazer; todo jato de água se apresenta como um milagre, um desafio à gravidade: dirigi-lo, governá-lo é obter uma pequena vitória sobre as leis naturais. Em todo caso, há nisso, para o menino, um divertimento cotidiano que não está ao alcance de suas irmãs. Ele permite, além disso, principalmente no campo, estabelecer através do jato urinário múltiplas relações com as coisas: água, terra, espuma, neve etc. Há meninas que, para conhecer tais experiências, se deitam de costas e tentam fazer a urina “esguichar para cima”, ou que se exercitam em urinar de pé. Segundo Karen Horney, invejariam igualmente nos meninos a possibilidade de exibição que lhes é dada. E conta: “Uma doente exclamou subitamente, depois de ter visto na rua um homem urinando: Se pudesse pedir alguma coisa à Providência, seria poder urinar, uma única vez na vida, como um homem.” Parece às meninas que o menino, tendo direito de bulir no pênis, pode servir-se dele como de um brinquedo, ao passo que os órgãos femininos são tabus. Que esse conjunto de fatores torne desejável a muitas delas a posse de um sexo masculino é um fato testemunhado por bom número de pesquisas e de confidências recolhidas por psiquiatras. Havelock Ellis247 cita essas palavras de uma paciente que designa pelo nome de Zênia: “O ruído de um jato de água, sobretudo quando sai de uma longa mangueira, sempre foi muito excitante para mim, lembrando-me o jato de urina observado durante minha infância em meu irmão e mesmo em outras pessoas.” Outra paciente, Mme R.S., conta que, quando criança, gostava de segurar o pênis de um coleguinha; um dia deram-lhe uma mangueira de jardim: “Pareceu-me delicioso segurá-la como se segurasse um pênis.” Ela insiste no fato de que o pênis não tinha para ela nenhum sentido sexual; só sabia que servia para urinar. O caso mais interessante é o de Florrie, recolhido por Havelock Ellis (Estudos de psicologia sexual, t. 13) e analisado posteriormente por Stekel. Dou portanto aqui o relato minucioso do caso:

 

Trata-se de uma mulher muito inteligente, artista, ativa, biologicamente normal e não invertida. Conta ela que a função urinária desempenhou papel importante em sua infância; brincava de jogos urinários com os irmãos e molhavam as mãos sem nenhuma repugnância: “Minhas primeiras concepções da superioridade dos homens relacionaram-se com os órgãos urinários. Ressentia-me da natureza por me ter privado de um órgão tão cômodo e tão decorativo. Nenhuma chaleira privada de seu bico jamais se achou tão miserável. Ninguém precisou insuflar em mim a teoria da predominância e da superioridade masculinas. Tinha uma prova constante diante dos olhos.” Ela própria experimentava grande prazer em urinar no campo. “Nada se afigurava a ela comparável ao ruído encantador do jato sobre as folhas mortas em um recanto de bosque e ela observava a absorção. Mas o que mais a fascinava era urinar na água.” É um prazer a que muitos meninos são sensíveis e há toda uma série de estampas pueris e vulgares que mostram meninos urinando em açudes ou regatos. Florrie queixa-se de que a forma de suas calças a impedia de se entregar às experiências que quisera tentar; muitas vezes durante os passeios no campo, acontecia de ela reter a urina o máximo possível e, bruscamente, aliviar-se de pé. “Recordo perfeitamente a sensação estranha e proibida desse prazer e também meu espanto de que o jato pudesse sair enquanto eu estivesse em pé.” A seu ver, as formas das roupas infantis têm muita importância na psicologia da mulher em geral. “Não foi apenas para mim uma fonte de aborrecimentos ter de tirar minha calça e depois abaixar-me para não lhe sujar a frente. A parte de trás, que deve ser puxada e deixa as nádegas nuas, explica por que, em muitas mulheres, o pudor situa-se atrás e não na frente. A primeira distinção sexual que se impôs a mim, na verdade, a grande diferença, foi verificar que os meninos urinavam de pé e as meninas, agachadas. Foi provavelmente assim que meus mais antigos sentimentos de pudor se associaram às minhas nádegas mais do que a meu púbis.” Todas essas impressões assumiram, em Florrie, uma grande importância, porque o pai a chicoteava frequentemente até sangrar e uma governanta, certa vez, a surrara a fim de obrigá-la a urinar; ela era obcecada por sonhos e fantasias masoquistas em que se via açoitada por uma professora diante dos olhos de toda a escola e urinando, então, contra a vontade, “ideia que me causava uma sensação de prazer realmente curiosa”. Aos 15 anos, aconteceu-lhe urinar de pé, numa rua deserta, premida por uma necessidade urgente. “Analisando minhas sensações, penso que a mais importante era a vergonha de estar em pé e o comprimento do trajeto que o jato deveria percorrer entre mim e a terra. Essa distância fazia disso algo importante e risível, ainda que o vestido o escondesse. Na atitude habitual havia um elemento de intimidade. Sendo criança, mesmo grande, o jato não podia percorrer um longo trajeto; mas, com 15 anos e alta, senti vergonha em pensar no comprimento do trajeto. Tenho certeza de que as senhoras às quais me referi,248 que fugiram apavoradas do mictório moderno de Portsmouth, consideraram muito indecente para uma mulher ficar em pé e de pernas abertas, levantar as saias e projetar tão longo jato por baixo.” Florrie recomeçou aos vinte anos a experiência e a repetiu, posteriormente, muitas vezes; sentia uma mistura de volúpia e de vergonha da ideia de que podia ser surpreendida, e de que seria impossível parar. “O jato parecia sair de mim sem meu consentimento e, no entanto, causava-me maior prazer do que se o houvesse feito voluntariamente.249 Essa sensação curiosa de que é tirado de nós por algum poder invisível, que decidiu que o faríamos, é um prazer exclusivamente feminino e de um encanto sutil. Há um encanto agudo em sentir a torrente sair em virtude de uma força mais poderosa do que nós mesmas.” Posteriormente, Florrie desenvolveu em si um erotismo flagelatório sempre acompanhado de obsessões urinárias.

 

Esse caso é muito interessante porque focaliza vários elementos da experiência infantil. Mas são evidentemente circunstâncias singulares que lhes conferem tão exagerada importância. Para as meninas normalmente educadas, o privilégio urinário do menino é coisa demasiado secundária para engendrar diretamente um sentimento de inferioridade. Os psicanalistas que supõem, segundo Freud, que a simples descoberta do pênis bastaria para engendrar um traumatismo, desconhecem profundamente a mentalidade infantil; esta é muito menos racional do que parecem imaginar; ela não estabelece categorias definitivas e não se embaraça com a contradição. Quando a menina, ainda muito pequena, declara ao ver um pênis: “Também tive um” ou “também terei um” ou até “também tenho um”, não se trata de uma defesa de má-fé; a presença e a ausência não se excluem; a criança — como o provam seus desenhos — acredita muito menos no que com seus olhos do que nos tipos significativos que fixou de uma vez por todas: desenha muitas vezes sem olhar e, em todo caso, só encontra em suas percepções o que nelas projeta. Saussure,250 que insiste justamente neste ponto, cita esta importante observação de Luquet: “Uma vez reconhecido errado, o traçado é como inexistente, a criança literalmente não mais o vê como que hipnotizada pelo traçado novo que o substitui, da mesma maneira que não leva em conta as linhas que podem encontrar-se acidentalmente em seu papel.” A anatomia masculina constitui uma forma forte que muitas vezes se impõe à menina; e literalmente ela não vê mais seu próprio corpo. Saussure cita o exemplo de uma menina de quatro anos que, tentando urinar como um menino por entre as barras de uma grade, dizia que desejava “um negocinho comprido que escorre”. Afirmava ao mesmo tempo possuir um pênis e não o possuir, o que concorda com o pensamento por “participação” que Piaget descreveu nas crianças. A menina pensa de bom grado que todas as crianças nascem com um pênis, mas que, depois, os pais cortam alguns para criar meninas; essa ideia satisfaz o artificialismo da criança que, divinizando os pais, “concebe-os como a causa de tudo o que ela possui”, diz Piaget. Não vê a princípio uma punição na castração. Para que esta assuma um caráter de frustração, é preciso que a menina já se ache, por uma razão qualquer, descontente com sua situação. Como justamente observa H. Deutsch, um acontecimento exterior, como a visão de um pênis, não poderia comandar um desenvolvimento interno: “A visão do órgão masculino pode ter um efeito traumático, mas somente com a condição de que tenha sido precedida por uma série de experiências anteriores, suscetíveis de provocar esse efeito.” A menina projetará sua insatisfação no órgão masculino se se sentir, por exemplo, incapaz de realizar seus desejos de masturbação ou exibição, se seus pais reprimirem seu onanismo, se ela tiver a impressão de ser menos querida, menos estimada do que seus irmãos. “A descoberta, feita pela menina, da diferença anatômica com o menino é a confirmação de uma necessidade que sentiu anteriormente, sua racionalização, por assim dizer.”251 E Adler insistiu justamente no fato de que é a valorização efetuada pelos pais e pelo ambiente que dá ao menino o prestígio de que o pênis se torna a explicação e o símbolo, aos olhos da menina. Consideram o irmão superior; ele próprio orgulha-se de sua virilidade; ela o inveja então e sente-se frustrada. Por vezes, é tomada de rancor contra a mãe, mais raramente contra o pai; ou então acusa a si própria de se ter mutilado, ou consola-se pensando que o pênis se acha escondido dentro de seu corpo e que um dia aparecerá.

É certo que a ausência do pênis desempenhará um papel importante no destino da menina, ainda que ela não inveje seriamente a posse dele. O grande privilégio que o menino aufere disso é o fato de que, dotado de um órgão que se mostra e pode ser pegado, tem a possibilidade de alienar-se nele ao menos parcialmente. Os mistérios de seu corpo, suas ameaças, ele os projeta fora de si, o que lhe permite mantê-los à distância: sem dúvida, sente-se em perigo com seu pênis, teme a castração, mas é um medo mais fácil de dominar do que o temor difuso da menina em relação a seus “interiores”, temor que amiúde se perpetua através de toda a sua vida de mulher. Ela tem uma grande preocupação por tudo o que ocorre dentro dela; é desde o início muito mais opaca a seus próprios olhos, mais profundamente assaltada pelo mistério perturbador da vida do que o homem. Possuindo um alter ego em que se reconhece, o menino pode ousadamente assumir sua subjetividade; o próprio objeto em que se aliena torna-se um símbolo de autonomia, de transcendência, de poder: o menino mede o comprimento de seu pênis, compara com os colegas a força do jato urinário; mais tarde, a ereção e a ejaculação são fontes de satisfação e desafio. A menina, entretanto, não pode encarnar-se em nenhuma parte de si mesma. Em compensação, põem-lhe nas mãos, a fim de que desempenhe junto dela o papel de alter ego, um objeto estranho: uma boneca. Cumpre notar que também é chamada de poupée (boneca) a atadura com que se envolve um dedo ferido: um dedo vestido, separado, é olhado com alegria e uma espécie de orgulho, a criança esboça com ele o processo de alienação. Mas é um boneco com cara humana — ou, em sua falta, um sabugo de milho ou um simples pedaço de pau — que substitui de maneira mais satisfatória esse duplo, esse brinquedo natural que é o pênis.

A grande diferença está em que, de um lado, a boneca representa um corpo na sua totalidade e, de outro, é uma coisa passiva. Por isso, a menina será encorajada a alienar-se em sua pessoa por inteiro e a considerá-la um dado inerte. Ao passo que o menino procura a si próprio no pênis enquanto sujeito autônomo, a menina embala sua boneca e enfeita-a como aspira a ser enfeitada e embalada; inversamente, ela pensa a si mesma como uma maravilhosa boneca.252 Por meio de cumprimentos e censuras, de imagens e palavras, ela descobre o sentido das palavras “bonita” e “feia”; sabe, desde logo, que para agradar é preciso ser “bonita como uma imagem”; ela procura assemelhar-se a uma imagem, fantasia-se, olha-se no espelho, compara-se às princesas e às fadas dos contos. Um exemplo impressionante desse coquetismo infantil nos é fornecido por Maria Bashkirtseff. Não é por certo um acaso se, tardiamente desmamada — tinha três anos e meio — experimentou tão fortemente, por volta de 4 a 5 anos, a necessidade de ser admirada, de existir para outrem; o choque deve ter sido violento numa criança mais madura e ela deve ter procurado com mais paixão vencer a separação infligida: “Com cinco anos, escreve ela em seu diário, eu me vestia com rendas da mamãe, flores nos cabelos e ia dançar no salão. Era a grande dançarina Patipa e toda a casa ali estava para me olhar...

Esse narcisismo aparece tão precocemente na menina, desempenha em sua vida de mulher um papel tão primordial, que pode ser considerado como emanação de um misterioso instinto feminino. Mas acabamos de ver que, na verdade, não é um destino anatômico que dita sua atitude. A diferença que a distingue dos meninos é um fato que ela poderia assumir de muitas maneiras. O pênis constitui certamente um privilégio, mas cujo preço naturalmente diminui quando a criança se desinteressa de suas funções excretórias e se socializa; se ainda o conserva a seus olhos, depois da idade de oito a nove anos, é porque se tornou o símbolo de uma virilidade que é socialmente valorizada. Em verdade, a influência da educação e do ambiente é aqui imensa. Todas as crianças tentam compensar a separação do desmame através de condutas de sedução e de exibição; ao menino obrigam a ultrapassar essa fase, libertam-no de seu narcisismo fixando-o no pênis; ao passo que a menina é confirmada na tendência de se fazer objeto, que é comum a todas as crianças. A boneca ajuda-a, mas não desempenha tampouco um papel determinante; o menino pode também querer bem a um urso, um polichinelo, nos quais se projeta; é na forma global de suas vidas que cada elemento — pênis, boneca — assume sua importância.

Assim, a passividade que caracterizará essencialmente a mulher “feminina” é um traço que se desenvolve nela desde os primeiros anos. Mas é um erro pretender que se trata de um dado biológico: na verdade, é um destino que lhe é imposto por seus educadores e pela sociedade. A imensa sorte do menino está em que sua maneira de existir para outrem encoraja-o a pôr-se para si. Ele faz o aprendizado de sua existência como livre movimento para o mundo; rivaliza-se em rudeza e em independência com os outros meninos, despreza as meninas. Subindo nas árvores, brigando com os colegas, enfrentando-os em jogos violentos, ele apreende seu corpo como um meio de dominar a natureza e um instrumento de luta; orgulha-se de seus músculos como de seu sexo; através de jogos, esportes, lutas, desafios, provas, encontra um emprego equilibrado para suas forças; ao mesmo tempo conhece as lições severas da violência; aprende a receber pancada, a desdenhar a dor, a recusar as lágrimas da primeira infância. Empreende, inventa, ousa. Sem dúvida, experimenta-se também como “para outrem”, põe em questão sua virilidade, do que decorrem, em relação aos adultos e a outros colegas, muitos problemas. Porém, o mais importante é que não há oposição fundamental entre a preocupação dessa figura objetiva, que é a sua, e sua vontade de se afirmar em projetos concretos. É fazendo que ele se faz ser, num só movimento. Ao contrário, na mulher há, no início, um conflito entre sua existência autônoma e seu “ser-outro”; ensinam-lhe que para agradar é preciso procurar agradar, fazer-se objeto; ela deve, portanto, renunciar à sua autonomia. Tratam-na como uma boneca viva e recusam-lhe a liberdade; fecha-se assim um círculo vicioso, pois quanto menos exercer sua liberdade para compreender, apreender e descobrir o mundo que a cerca, menos encontrará nele recursos, menos ousará afirmar-se como sujeito; se a encorajassem a isso, ela poderia manifestar a mesma exuberância viva, a mesma curiosidade, o mesmo espírito de iniciativa, a mesma ousadia que um menino. É o que acontece, por vezes, quando lhe dão uma formação viril; muitos problemas então lhe são poupados.253 É interessante observar que é um gênero de educação que o pai de bom grado dá à filha; as mulheres educadas por um homem escapam, em grande parte, às taras da feminilidade. Mas os costumes opõem-se a que as meninas sejam tratadas exatamente como meninos. Conheci numa aldeia meninas de três a quatro anos que o pai obrigava a usar calças; todas as crianças perseguiam-nas: “São meninas ou meninos?”, procurando verificar; a tal ponto que elas suplicavam que lhes pusessem vestidos. A não ser que levem uma vida muito solitária, mesmo quando os pais autorizam maneiras masculinas, os que cercam a menina, suas amigas, seus professores sentem-se chocados. Haverá sempre tias, avós, primas para contrabalançar a influência do pai. Normalmente, o papel deste em relação às filhas é secundário. Uma das maldições que pesam sobre a mulher — Michelet assinalou-a justamente — está em que, em sua infância, ela é abandonada nas mãos das mulheres. O menino também é, a princípio, educado pela mãe; mas ela respeita sua virilidade e ele lhe escapa desde logo;254 ao passo que ela almeja integrar a filha no mundo feminino.

Veremos adiante quanto são complexas as relações entre mãe e filha; a filha é para a mãe ao mesmo tempo seu duplo e uma outra, ao mesmo tempo a mãe a adora imperiosamente e lhe é hostil; impõe à criança seu próprio destino: é uma maneira de reivindicar orgulhosamente sua própria feminilidade e também uma maneira de se vingar desta. Encontra-se o mesmo processo entre os pederastas, os jogadores, os viciados em entorpecentes, entre todos os que se vangloriam de pertencer a uma determinada confraria e com isso se sentem humilhados: tentam conquistar adeptos com ardente proselitismo. Do mesmo modo, as mulheres, quando é confiada a elas uma menina, buscam, com um zelo em que a arrogância se mistura ao rancor, transformá-la em uma mulher semelhante a si próprias. E até uma mãe generosa, que deseja sinceramente o bem da criança, pensará em geral que é mais prudente fazer dela uma “mulher de verdade”, porquanto assim é que a sociedade a acolherá mais facilmente. Dão à menina por amigas outras meninas, entregam-na a professoras, ela vive entre matronas como no tempo do gineceu, escolhem para ela livros e jogos que a iniciem em seu destino, insuflam-lhe tesouros de sabedoria feminina, propõem-lhe virtudes femininas, ensinam-lhe a cozinhar, a costurar, a cuidar da casa ao mesmo tempo que da toalete, da arte de seduzir, do pudor; vestem-na com roupas incômodas e preciosas das quais precisa cuidar, penteiam-na de maneira complicada, impõem-lhe regras de comportamento: “Endireite o corpo, não ande como uma pata.” Para ser graciosa, ela deverá reprimir seus movimentos espontâneos; pedem-lhe que não tome atitudes de menino, proíbem-lhe exercícios violentos, brigas: em suma, a menina é incitada a tornar-se, como as mais velhas, uma serva e um ídolo. Hoje, graças às conquistas do feminismo, torna-se dia a dia mais normal encorajá-la a estudar, a praticar esporte; mas perdoam-lhe mais facilmente do que ao menino o fato de fracassar; tornam-lhe mais difícil o êxito, exigindo dela outro tipo de realização: querem, pelo menos, que ela seja também uma mulher, que não perca sua feminilidade.

Nos primeiros anos, ela se resigna sem grande dificuldade a esta sorte. A criança se move no plano do jogo e do sonho: brinca de ser, de fazer; fazer e ser não se distinguem nitidamente quando se trata de realizações imaginárias. A menina pode compensar a superioridade atual do menino mediante as promessas contidas em seu destino de mulher e que, já nesse momento, realiza em seus jogos. Como ela apenas conhece seu universo infantil, a mãe lhe parece, a princípio, dotada de maior autoridade do que o pai; ela imagina o mundo como uma espécie de matriarcado; imita a mãe, identifica-se com ela; muitas vezes até inverte os papéis: “Quando eu for grande e você pequena”, diz de bom grado. A boneca não é somente seu duplo: é também seu filho, funções que não se excluem porque a criança verdadeira é também para a mãe um alter ego; quando ralha, pune e depois consola a boneca, ela se defende contra a mãe e ao mesmo tempo assume a dignidade de mãe: resume os dois elementos do casal; faz confidências à boneca, educa-a, afirma sobre ela sua autoridade soberana, por vezes mesmo arranca-lhe os braços, bate nela, tortura-a: isso significa que realiza através dela a experiência da afirmação subjetiva e da alienação. Muitas vezes, a mãe associa-se a essa vida imaginária: a criança brinca de pai com a boneca e de mãe com a mãe, é um casal de que se exclui o homem. Não há nisso nenhum “instinto materno” inato e misterioso. A menina constata que o cuidado das crianças cabe à mãe, é o que lhe ensinam; relatos ouvidos, livros lidos, toda a sua pequena experiência o confirma; encorajam-na a encantar-se com essas riquezas futuras, dão-lhe bonecas para que tais riquezas assumam desde logo um aspecto tangível. Sua “vocação” é imperiosamente ditada a ela. Pelo fato de a criança lhe ser apresentada como seu quinhão, pelo fato também de se interessar mais do que o menino pelos seus “interiores”, a menina mostra-se mais particularmente curiosa em relação ao mistério da procriação; ela deixa rapidamente de acreditar que os bebês nascem nos repolhos ou são trazidos por cegonhas; principalmente nos casos em que a mãe lhe dá irmãos ou irmãs, logo aprende que os filhos se formam no ventre materno. Aliás, os pais de hoje cercam a coisa de menos mistério do que os pais de outrora; com essa revelação a menina se maravilha mais do que se atemoriza porque o fenômeno tem para ela algo mágico; ela não apreende ainda todas as implicações fisiológicas. Ignora primeiramente o papel do pai e supõe que é absorvendo certos alimentos que a mulher fica grávida, o que é tema lendário (veem-se rainhas de contos dar à luz uma menina ou um belo menino depois de terem comido certo fruto ou certo peixe) e que leva mais tarde algumas mulheres à ideia de uma ligação entre a gestação e o sistema digestivo. O conjunto desses problemas e dessas descobertas absorve grande parte dos interesses da menina e alimenta sua imaginação. Citarei como típico o exemplo escolhido por Jung255 e que apresenta notáveis analogias com o do pequeno Hans que Freud analisou mais ou menos na mesma época:

Foi por volta dos três anos que Ana começou a interrogar seus pais acerca da origem dos recém-nascidos; tendo ouvido dizer que eram “anjinhos”, pareceu primeiramente imaginar que, quando as pessoas morrem, vão para o céu e reencarnam sob a forma de bebês. Aos quatro anos, teve um irmãozinho; não parecera ter observado a gravidez da mãe, mas quando a viu deitada no dia seguinte ao parto, olhou-a com embaraço e desconfiança e acabou perguntando: “Você não vai morrer?” Mandaram-na passar algum tempo na casa da avó; na volta, uma nurse achava-se instalada junto ao leito; ela detestou-a de início, depois divertiu-se brincando de enfermeira; teve ciúmes do irmão: escarnecia, contava histórias para si mesma, desobedecia e ameaçava voltar para a casa da avó; acusava muitas vezes a mãe de não dizer a verdade porque suspeitava que ela havia mentido acerca do nascimento da criança; sentindo obscuramente que havia uma diferença entre “ter” um filho como nurse e como mãe, perguntava a esta: “Ficarei um dia uma mulher como você?” Adquiriu o hábito de chamar os pais aos berros durante a noite; e como falavam muito, perto dela, do tremor de terra de Messina, transformou isso num pretexto para suas angústias, fazendo continuamente perguntas a respeito. Um dia, pôs-se a indagar à queima-roupa: “Por que Sofia é mais nova do que eu? Onde se encontrava Fritz antes de nascer? Estava no céu? O que fazia lá? Por que é que só agora desceu?” A mãe acabou lhe explicando que o irmãozinho crescera em sua barriga como as plantas na terra. Ana pareceu encantada com essa ideia. Depois perguntou: “Saiu sozinho? — Saiu. — Mas como, se ele não anda? — Saiu rastejando. — Então tem um buraco aqui? (mostrou o peito) ou saiu pela boca?” Sem aguardar a resposta, declarou que sabia muito bem que fora a cegonha que o trouxera; mas à noite disse repentinamente: “Meu irmão256 está na Itália; ele tem uma casa de pano e de vidro que não pode desmoronar”; e deixou de se interessar pelo terremoto e de pedir para ver fotografias da erupção. Falava ainda muito das cegonhas com suas bonecas, mas sem convicção. Muito breve, entretanto, teve novas curiosidades. Tendo visto o pai na cama, disse: “Por que você está de cama? Você tem também uma planta na barriga?” Contou um sonho; sonhara com sua arca de Noé: “E embaixo havia uma tampa que se abria e todos os animais caíam pela abertura”; na realidade, sua arca de Noé abria-se pelo teto. Nessa época, teve novamente pesadelos: podia-se adivinhar que se interrogava acerca do papel do pai. Uma senhora grávida veio visitar sua mãe, e esta no dia seguinte viu Ana colocar uma boneca sob as saias, retirá-la devagar, de cabeça para baixo, dizendo: “Está vendo, o menininho que sai já está quase todo para fora.” Tempos depois, comendo uma laranja, disse: “Quero engoli-la e fazê-la descer até bem embaixo da minha barriga, então terei um filho.” Certa manhã, estando o pai no banheiro, ela pulou na cama, estendeu-se de bruços e agitou as pernas dizendo: “Não é assim que papai faz?” Durante cinco meses pareceu abandonar suas preocupações; depois passou a manifestar certa desconfiança contra o pai: pensou que ele quisera afogá-la etc. Um dia em que se divertia enfiando sementes na terra sob o olhar do jardineiro perguntou ao pai: “Os olhos foram plantados na cabeça? E os cabelos?” O pai explicou que já existiam em germe no corpo da criança antes de se desenvolver. Então ela perguntou: “Mas como foi que o pequeno Fritz entrou na mamãe? Quem o plantou no corpo dela? E você, quem foi que plantou você em sua mamãe? E por onde foi que o Fritz saiu?” O pai disse então, sorrindo: “Que é que você acha?” Então ela designou os órgãos sexuais: “Saiu por aqui? — Isso mesmo. — Mas como foi que entrou na mamãe? Plantaram a semente ali?” Então o pai explicou que era o pai quem dava a semente. Ela pareceu inteiramente satisfeita e no dia seguinte buliu com a mãe: “Papai me contou que o Fritz era um anjinho e que foi a cegonha quem o trouxe.” Mostrou-se desde então muito mais calma do que antes; teve, entretanto, um sonho em que via jardineiros urinando e entre eles o pai; sonhou também, depois de ver o jardineiro passar a plaina numa gaveta, que ele aplainava os órgãos genitais; estava evidentemente preocupada em conhecer o papel exato do pai. Parece que, mais ou menos instruída de tudo por volta dos cinco anos, não sentiu posteriormente nenhuma perturbação.

 

A história é característica, embora frequentemente a menina se interrogue menos precisamente acerca do papel do pai e, a esse respeito, os pais se mostrem muito evasivos. Muitas meninas escondem travesseiros sob o avental para brincar de mulher grávida, ou passeiam a boneca nas pregas do saiote e a deixam cair no berço, dão-lhe o seio. Os meninos, como as meninas, admiram o mistério da maternidade; todas as crianças têm uma imaginação “em profundidade” que as faz pressentir riquezas secretas no interior das coisas; todas são sensíveis ao milagre dos “encaixes”, bonecas que encerram outras menores, caixas contendo outras caixas, ornatos que se reproduzem sob formas reduzidas; todas se encantam quando a seus olhos se desfolha um botão, quando se mostra o pintinho na casca do ovo, ou quando se desdobra, numa bacia com água, a surpresa das “flores japonesas”. É o menininho abrindo um ovo de Páscoa cheio de ovinhos de açúcar que exclama extasiado: “Oh! uma mamãe!” Fazer sair uma criança do ventre é bonito como um truque de mágica. A mãe surge como que dotada da força mirífica das fadas. Muitos meninos desolam-se com o fato de um tal privilégio lhes ser recusado; mais tarde, se tiram ovos dos ninhos, esmagam plantinhas com os pés, destroem em torno de si a vida com uma espécie de raiva é porque se vingam de não ser capazes de fazê-la desabrochar, ao passo que a menina se encanta com poder criá-la um dia.

Além dessa esperança que a boneca concretiza, a vida caseira fornece também à menina possibilidade de afirmação. Grande parte do trabalho doméstico pode ser realizado por criança muito pequena; habitualmente os meninos são dispensados; mas permite-se, pede-se mesmo à irmã, que varra, tire o pó, descasque os legumes, lave um recém-nascido, tome conta da sopa. A irmã mais velha, em particular, é assim geralmente associada às tarefas maternas. Por comodidade, hostilidade ou sadismo, a mãe descarrega nela boa parte de suas funções; ela é então precocemente integrada no universo da seriedade; o sentido de sua importância a ajudará a assumir sua feminilidade, mas a gratuidade feliz, a despreocupação infantil são-lhe recusadas. Mulher antes da idade, ela conhece cedo demais os limites que essa especificação impõe ao ser humano; chega adulta à adolescência, o que dá à sua história um caráter singular. A menina sobrecarregada de tarefas pode ser prematuramente escrava, condenada a uma existência sem alegria. Mas se só lhe pedem um esforço ao seu alcance, ela experimenta o orgulho de ser eficiente como um adulto e regozija-se de ser solidária com as “pessoas grandes”. Essa solidariedade é possível pelo fato de não haver entre a menina e a dona de casa uma distância considerável. Um homem especializado em seu ofício acha-se separado da fase infantil por anos de aprendizado; as atividades paternas são profundamente misteriosas para o menino; neste, mal se esboça o homem que será mais tarde. Ao contrário, as atividades da mãe são acessíveis à menina; “já é uma mulherzinha”, dizem os pais; e julga-se por vezes que ela é mais precoce do que o menino: na verdade, se se acha mais próxima da fase adulta é porque esta fase permanece mais infantil na maioria das mulheres. O fato é que ela se sente precoce, que se sente lisonjeada por desempenhar junto dos irmãos mais jovens o papel de “mãezinha”; torna-se facilmente importante, fala sensatamente, dá ordens, assume ar de superioridade sobre os irmãos encerrados no círculo infantil, fala com a mãe em pé de igualdade.

Apesar dessas compensações, não aceita sem lamento o destino que lhe é apontado; crescendo, inveja a virilidade dos rapazes. Acontece que pais e avós escondem mal que teriam preferido um homem a uma mulher; ou demonstram maior afeição pelo irmão do que pela irmã: inquéritos provaram que os pais, em sua maioria, preferem ter filhos a ter filhas. Falam aos meninos com mais gravidade, mais estima, reconhecem-lhes mais direitos; os próprios meninos tratam as meninas com desprezo; brincam entre si, não admitem meninas em seus grupos, insultam-nas: entre outros insultos chamam-nas “mijonas”, reavivando com tais palavras a secreta humilhação infantil da menina. Na França, nas escolas mistas, a casta dos meninos oprime e persegue deliberadamente a das meninas. Entretanto, se estas querem entrar em competição com eles, bater-se com eles, censuram-nas. Elas invejam duplamente as atividades pelas quais os meninos se singularizam: elas sentem um desejo espontâneo de afirmar seu poder sobre o mundo e protestam contra a situação inferior à qual são condenadas. Sofrem, entre outras coisas, a proibição de subir nas árvores, nas escadas, nos telhados. Adler observa que as noções de alto e baixo têm grande importância, a ideia de elevação espacial implicando uma superioridade espiritual, como se vê através de numerosos mitos heroicos; atingir um cume, um pico, é emergir para além do mundo dado, como sujeito soberano; é entre meninos um pretexto frequente de desafio. A menina a quem essas proezas são proibidas e que, sentada ao pé de uma árvore ou de um rochedo, vê acima dela os meninos triunfantes, sente-se inferior de corpo e alma. Do mesmo modo, se é deixada para trás numa corrida ou numa prova de salto, se é jogada no chão numa briga, ou simplesmente mantida à margem.

Quanto mais a criança amadurece, mais seu universo se amplia e mais a superioridade masculina se afirma. Muitas vezes, a identificação com a mãe não mais se apresenta como solução satisfatória; se a menina aceita, a princípio, sua vocação feminina, não o faz porque pretenda abdicar: é, ao contrário, para reinar; ela quer ser matrona porque a sociedade das matronas parece-lhe privilegiada; mas quando suas frequentações, seus estudos, seus jogos e suas leituras a arrancam do círculo materno, ela compreende que não são as mulheres e sim os homens os senhores do mundo. É essa revelação — muito mais do que a descoberta do pênis — que modifica imperiosamente a consciência que ela toma de si mesma.

A hierarquia dos sexos manifesta-se a ela primeiramente na experiência familiar; compreende pouco a pouco que, se a autoridade do pai não é a que se faz sentir mais cotidianamente, é entretanto a mais soberana; reveste-se ainda de mais brilho pelo fato de não ser comprometida; mesmo se, na realidade, é a mulher que reina soberanamente em casa, tem ela, em geral, a habilidade de pôr à frente a vontade do pai; nos momentos importantes é em nome dele que ela exige, recompensa ou pune. A vida do pai é cercada de um prestígio misterioso: as horas que passa em casa, o cômodo em que trabalha, os objetos que o cercam, suas ocupações e manias têm um caráter sagrado. Ele é quem alimenta a família, é o responsável e o chefe. Habitualmente trabalha fora e é por intermédio dele que a casa se comunica com o restante do mundo: ele é a encarnação desse mundo aventuroso, imenso, difícil, maravilhoso; ele é a transcendência, ele é Deus.257 É o que experimenta carnalmente a criança na força dos braços que a levantam, na força do corpo no qual se aninha. Por ele a mãe é destronada como outrora Ísis pelo deus Rá e a Terra pelo Sol. Mas a situação da criança é, então, profundamente mudada: é chamada a tornar-se um dia uma mulher semelhante a sua mãe todo-poderosa — nunca será o pai soberano; o laço que a ligava à mãe era uma emulação ativa. Do pai ela só pode esperar passivamente uma valorização. O menino apreende a superioridade paterna através de um sentimento de rivalidade: ao passo que a menina a sofre com uma admiração impotente. Já disse que isso que Freud chama complexo de Electra não é, como ele pretende, um desejo sexual; é uma abdicação profunda do indivíduo que consente em ser objeto na submissão e na adoração. Se o pai demonstra ternura pela filha, esta sente a existência magnificamente justificada; sente-se dotada de todos os méritos que as outras procuram adquirir com dificuldade; sente-se satisfeita e divinizada. É possível que durante toda a sua vida volte a procurar, com nostalgia, essa plenitude e essa paz. Se esse amor lhe é recusado, pode sentir-se para sempre culpada e condenada, ou buscar em outros lugares uma valorização de si e tornar-se indiferente ao pai, e até hostil. O pai não é, de resto, o único a deter as chaves do mundo; todos os homens participam normalmente do prestígio viril; não há como considerá-los “substitutos” do pai. É imediatamente na qualidade de homens que avôs, irmãos mais velhos, tios, pais das colegas, amigos da casa, professores, padres, médicos fascinam a menina. A consideração comovida que as mulheres adultas testemunham ao Homem bastaria para colocá-lo num pedestal.258

Tudo contribui para confirmar essa hierarquia aos olhos da menina. Sua cultura histórica, literária, as canções, as lendas com que a embalam são uma exaltação do homem. São os homens que fizeram a Grécia, o Império Romano, a França e todas as nações, que descobriram a Terra e inventaram os instrumentos que permitem explorá-la, que a governaram, que a povoaram de estátuas, de quadros e de livros. A literatura infantil, a mitologia, contos, narrativas, refletem os mitos criados pelo orgulho e os desejos dos homens: é através de olhos masculinos que a menina explora o mundo e nele decifra seu destino. A superioridade masculina é esmagadora: Perseu, Hércules, Davi, Aquiles, Lancelot, Duguesclin, Bayard, Napoleão, quantos homens para uma Joana d’Arc; e, por trás desta, perfila-se a grande figura masculina de são Miguel Arcanjo! Nada mais tedioso do que os livros que traçam vidas de mulheres ilustres: são pálidas figuras ao lado das dos grandes homens; e em sua maioria banham-se na sombra de algum herói masculino. Eva não foi criada para si mesma e sim como companheira de Adão, e de uma costela dele; na Bíblia há poucas mulheres cujas ações sejam notáveis: Rute não fez outra coisa senão encontrar um marido. Ester obteve a graça dos judeus ajoelhando-se diante de Assuero, e ainda assim não passava de um instrumento dócil nas mãos de Mardoqueu; Judite teve mais ousadia, mas ela também obedecia aos sacerdotes e sua proeza tem um vago sabor equívoco: não se poderia compará-la ao triunfo puro e brilhante do jovem Davi. As deusas da mitologia são frívolas ou caprichosas e todas tremem diante de Júpiter; enquanto Prometeu rouba soberbamente o fogo do céu, Pandora abre a caixa das desgraças. Há, é certo, algumas feiticeiras, algumas mulheres velhas que exercem nos contos um poder temível. Entre outras, no Jardim do Paraíso de Andersen, a figura da Mãe dos ventos lembra a Grande Deusa primitiva: seus quatro enormes filhos obedecem-lhe tremendo, ela os surra e os encerra em sacos quando se conduzem mal. Mas tais personagens não são atraentes. Mais poderosas são as fadas, as sereias, as ondinas que escapam ao domínio do homem. Sua existência é incerta, porém, e apenas individualizada; elas intervêm no mundo humano sem ter destino próprio: a partir do dia em que se torna mulher, a pequena sereia de Andersen conhece o jugo do amor e o sofrimento passa a ser seu quinhão. Nas narrativas contemporâneas, como nas lendas antigas, o homem é o herói privilegiado. Os livros de Mme de Ségur são uma curiosa exceção: descrevem uma sociedade matriarcal em que o marido, quando não está ausente, desempenha um papel ridículo; mas de costume a imagem do pai é, como no mundo real, aureolada de glória. É sob a égide do pai divinizado pela ausência que se desenrolam os dramas femininos de Little Women. Nos romances de aventura são os meninos que fazem a volta ao mundo, que viajam como marinheiros nos navios, que se alimentam na floresta com a fruta-pão. Todos os acontecimentos importantes ocorrem por intermédio dos homens. A realidade confirma esses romances e essas lendas. Se a menina lê os jornais, se ouve a conversa dos adultos, constata que hoje, como outrora, os homens dirigem o mundo. Os chefes de Estado, os generais, os exploradores, os músicos, os pintores que ela admira são homens; são homens que fazem seu coração bater de entusiasmo.

Esse prestígio reflete-se no mundo sobrenatural. Geral-mente, em virtude do papel que a religião assume na vida das mulheres, a menina, mais dominada pela mãe do que o irmão, sofre mais, igualmente, as influências religiosas. Ora, nas religiões ocidentais, Deus Pai é um homem, um ancião dotado de um atributo especificamente viril: uma opulenta barba branca.259 Para os cristãos, Cristo é mais concretamente ainda um homem de carne e osso e de longa barba loura. Os anjos, segundo os teólogos, não têm sexo, mas têm nomes masculinos e manifestam-se sob a forma de belos jovens. Os emissários de Deus na Terra: o papa, os bispos de quem se beija o anel, o padre que diz a missa, o que prega, aquele perante o qual se ajoelham no segredo do confessionário, são homens. Para uma menina piedosa, as relações com o pai eterno são análogas às que ela mantém com o pai terrestre; como se desenvolvem no plano do imaginário, ela experimenta até uma abdicação mais completa. A religião católica, entre outras, exerce sobre ela a mais perturbadora das influências.260 A Virgem acolhe de joelhos as palavras do anjo: “Sou a serva do Senhor”, responde. Maria Madalena prostra-se aos pés de Cristo e os enxuga com seus longos cabelos de mulher. As santas declaram de joelhos seu amor ao Cristo radioso. De joelhos no odor do incenso, a criança abandona-se ao olhar de Deus e dos anjos: um olhar de homem. Insistiu-se muitas vezes a respeito das analogias entre a linguagem erótica e a linguagem mística como as citam as mulheres. Assim é, por exemplo, que santa Teresa do Menino Jesus escreve:

Ó meu Bem Amado, por teu amor aceito não ver nesta terra a doçura de teu olhar, não sentir o inexprimível beijo de tua boca, mas suplico-te que me abrases com teu amor...

 

Meu bem Amado, de teu sorriso

faze-me logo entrever a doçura.

Ah! deixa-me em meu ardente delírio,

Sim, deixa esconder-me em teu coração!261

 

Quero ser fascinada por teu olhar divino, quero tornar-me a presa de teu amor. Um dia, tenho a esperança, cairás impetuosamente sobre mim transportando-me para o lume do amor, tu me imergirás, enfim, nesse ardente abismo a fim de fazer de mim, e para sempre, a sua feliz vítima.

 

Mas disso não se deve concluir que essas efusões sejam sempre sexuais; quando a sexualidade feminina se desenvolve, vê-se antes tomada pelo sentimento religioso que a mulher votou ao homem desde a infância. É verdade que a menina conhece junto do confessor, e até ao pé do altar deserto, uma sensação muito próxima da que experimentará mais tarde nos braços de seu amante: é que o amor feminino é uma das formas da experiência em que uma consciência se faz objeto para um ser que a transcende; e são também essas delícias passivas que a jovem devota degusta na sombra da igreja.

Prostrada, com o rosto afundado nas mãos, ela conhece o milagre da renúncia; de joelhos, sobe ao céu; seu abandono nos braços de Deus assegura-lhe uma Assunção envolvida em nuvens e anjos. É sobre essa maravilhosa experiência que ela calca seu futuro terrestre. A criança pode também descobrir isso por outros caminhos: tudo a convida a entregar-se em sonho aos braços dos homens a fim de ser transportada para um céu de glória. Ela aprende que para ser feliz é preciso ser amada; para ser amada é preciso aguardar o amor. A mulher é a Bela Adormecida, Cinderela, Branca de Neve, a que recebe e suporta. Nas canções, nos contos, vê-se o jovem partir aventurosamente em busca da mulher; ele mata dragões, luta contra gigantes; ela se acha encerrada em uma torre, um palácio, um jardim, uma caverna, acorrentada a um rochedo, cativa, adormecida: ela espera. Um dia meu príncipe virá... Some day he’ll come along, the man I love... Os refrões populares insuflam-lhe sonhos de paciência e esperança. A suprema necessidade para a mulher é seduzir um coração masculino; mesmo intrépidas, aventurosas, é a recompensa a que todas as heroínas aspiram; e o mais das vezes não lhes é pedida outra virtude senão a beleza. Compreende-se que a preocupação da aparência física possa tornar-se para a menina uma verdadeira obsessão; princesas ou pastoras, é preciso sempre ser bonita para conquistar o amor e a felicidade; a feiura associa-se cruelmente à maldade, e, quando as desgraças desabam sobre as feias, não se sabe muito bem se são seus crimes ou sua feiura que o destino pune. Muitas vezes, as jovens belezas destinadas a um futuro glorioso começam aparecendo num papel de vítima; as histórias de Geneviève de Brabant, de Grisélidis não são tão inocentes como parecem; amor e sofrimento nelas se entrelaçam de maneira perturbadora; é caindo no fundo da abjeção que a mulher assegura para si mesma os mais deliciosos triunfos; quer se trate de Deus, quer de um homem, a menina aprende que, aceitando as mais profundas renúncias, se tornará todo-poderosa; ela se compraz em um masoquismo que lhe promete supremas conquistas. Santa Blandina, branca e ensanguentada nas garras dos leões, Branca de Neve jazendo como uma morta em um esquife de vidro, a Bela Adormecida, Atala desfalecida, toda uma coorte de ternas heroínas machucadas, passivas, feridas, ajoelhadas, humilhadas, ensinam à jovem irmã o fascinante prestígio da beleza martirizada, abandonada, resignada. Não é de espantar que, enquanto o irmão brinca de herói, a menina desempenhe de bom grado papel de mártir: os pagãos a jogam às feras, Barba Azul a arrasta pelos cabelos, o rei seu marido a exila no fundo da floresta; ela se resigna, sofre, morre e sua fronte cobre-se de glória. “Ainda muito menina, eu almejava conquistar a ternura dos homens, inquietá-los, ser salva por eles, morrer em todos os braços”, escreve Mme de Noailles. Encontra-se um exemplo notável desses devaneios masoquistas em La Voile Noire, de Marie Le Hardouin.

 

Aos sete anos, não sei com que costela fabricava meu primeiro homem. Era grande, esbelto, extremamente jovem, vestido de cetim preto e com longas mangas arrastando pelo chão. Seus belos cabelos louros caíam-lhe em pesados cachos sobre os ombros... Chamava-o, Edmond... Aconteceu um dia que lhe dei dois irmãos... Esses três irmãos, Edmond, Charles e Cédric, todos três vestidos de cetim preto, todos três louros e esbeltos, fizeram-me conhecer estranhas beatitudes. Seus pés calçados de seda eram tão belos e suas mãos tão frágeis que toda espécie de impulso subia-me à alma... Tornei-me sua irmã Marguerite... Gostava de me representar submissa à vontade de meus irmãos e totalmente à mercê deles. Sonhava que meu irmão mais velho, Edmond, tinha direito de vida e morte sobre mim. Eu não tinha nunca a permissão de erguer os olhos para seu rosto. Ele mandava açoitar-me por qualquer pretexto. Quando me dirigia a palavra, eu ficava tão transtornada pelo temor e o respeito que não achava o que lhe responder e balbuciava sem cessar “Sim, meu senhor”, “Não, meu senhor” e saboreava a estranha delícia de me sentir idiota... Quando o sofrimento que ele me impunha era forte demais, eu murmurava “Obrigada, meu senhor” e ocorria um momento em que, quase desfalecendo de sofrimento, para não gritar, eu pousava os lábios na mão dele enquanto, com algum impulso a quebrar-me enfim o coração, eu atingia um desses estados em que se deseja morrer por excesso de felicidade.

 

Numa idade mais ou menos precoce, a menina sonha que já atingiu a idade do amor; aos nove ou dez anos ela se diverte se maquiando, forjando volume no corpete, fantasiando-se de senhora. Não procura, entretanto, realizar nenhuma experiência erótica com os meninos: se lhe acontece ir com eles aos cantinhos e brincar de “mostrar coisas”, é somente por curiosidade sexual. Mas o parceiro dos devaneios eróticos é um adulto, ou puramente imaginário, ou evocado a partir de indivíduos reais. Neste último caso, a criança satisfaz-se com amar a distância. Encontra-se nas recordações de Colette Audry262 um exemplo muito bom desses devaneios infantis: ela nos conta que descobriu o amor com a idade de cinco anos.

 

Isso não tinha nada a ver com os pequenos prazeres sexuais da infância, a satisfação que eu sentia, por exemplo, em cavalgar certa cadeira da sala de jantar ou em me acariciar antes de dormir... O único traço comum entre o sentimento e o prazer era que eu os dissimulava cuidadosamente aos que me cercavam... Meu amor por esse jovem consistia em pensar nele antes de adormecer, imaginando histórias maravilhosas... em Privas, amei sucessivamente todos os chefes de gabinete de meu pai... Nunca me sentia profundamente agoniada com a saída deles porque constituíam apenas um pretexto para fixar meus devaneios amorosos... À noite, deitada, tirava minha desforra de tanta juventude e timidez. Preparava tudo com cuidado, não tinha nenhuma dificuldade em torná-lo presente, mas tratava-se de me transformar de maneira que pudesse ver-me de meu interior, pois ficava sendo ela, deixava de ser eu. Primeiramente era bonita e tinha 18 anos. Uma caixa de balas ajudou-me muito: uma caixa retangular de drágeas comprida e achatada e que representava duas moças cercadas de pombas. Eu era a morena com cachos curtos, vestido comprido de musselina. Uma ausência de dez anos nos separara. Ele voltava muito pouco envelhecido e a visão dessa maravilhosa criatura transtornava-o. Ela mal parecia lembrar-se dele, agia com naturalidade, indiferença, espírito. Eu preparava para esse primeiro encontro conversas realmente brilhantes. Seguiam-se mal-entendidos, toda uma conquista difícil, horas cruéis de desânimo e ciúmes para ele. Acuado enfim, ele confessava seu amor. Ela ouvia-o em silêncio e no momento em que ele acreditava estar tudo perdido, ela lhe comunicava que nunca deixara de amá-lo, e eles se abraçavam ligeiramente. A cena ocorria em geral num banco do parque, à noite. Eu via as duas formas juntas uma da outra, ouvia o murmúrio das vozes, sentia ao mesmo tempo o contato quente dos corpos. Mas daí por diante tudo se diluía... Nunca falei de casamento.263 No dia seguinte pensava um pouco nisso ao me lavar. Não sei por quê, o rosto ensaboado que eu contemplava no espelho me encantava (nos outros momentos não me achava bonita) e me enchia de esperança. Teria olhado durante horas aquelas faces cobertas de nuvens, aquela cabeça um pouco inclinada que parecia esperar-me, ao longe, no caminho do futuro. Mas era preciso apressar-me; uma vez enxugada, tudo estava acabado, reencontrava meu rosto banal de criança que não me interessava mais.

 

Jogos e sonhos orientam a menina para a passividade; mas ela é um ser humano antes de se tornar uma mulher; e já sabe que aceitar a si mesma como mulher é renunciar e mutilar-se; e se a renúncia é tentadora, a mutilação é odiosa. O Homem, o Amor encontram-se muito longe ainda nas brumas do futuro; no presente, a menina busca, como seus irmãos, atividade, autonomia. O fardo da liberdade não é pesado para as crianças porque não implica responsabilidade; elas se sentem em segurança junto dos adultos: não têm a tentação de fugir delas próprias. Seu impulso espontâneo para a vida, seu gosto pelo jogo, pelo riso, pela aventura levam a menina a achar o círculo materno estreito, sufocante. Ela gostaria de escapar da autoridade da mãe. É uma autoridade que se exerce de maneira muito mais cotidiana e íntima do que a que os meninos precisam aceitar. Raros são os casos em que ela é tão compreensiva e discreta como a dessa “Sido” que Colette pinta com amor. Sem falar dos casos quase patológicos — são frequentes264 — em que a mãe é uma espécie de carrasco, satisfazendo na criança seus instintos de domínio e seu sadismo, em que a filha é o objeto privilegiado em face do qual a mãe pretende afirmar-se como sujeito soberano; essa pretensão leva a criança a revoltar-se. C. Audry descreve a rebelião de uma menina normal contra uma mãe normal:

 

Nunca teria sabido dizer a verdade, por inocente que fosses, porque nunca me sentia inocente diante de mamãe. Ela era a adulta essencial e lhe queria tanto mal, que até agora não me curei. Havia no fundo de mim uma espécie de chaga tumultuosa e feroz que eu tinha certeza de encontrar sempre aberta... Não pensava: “Ela é severa demais”; nem: “Ela não tem o direito”. Pensava: “não, não, não”, com todas as forças. Não lhe censurava a autoridade, nem as ordens ou as proibições arbitrárias; censurava-lhe querer me domar. Às vezes, ela o dizia, quando não, seus olhos, sua voz o diziam. Ou então tinha contado a outras mulheres que as crianças se tornam bem mais maleáveis após um corretivo. Essas palavras paravam-me na garganta, inesquecíveis: não as podia vomitar nem engolir. Era essa cólera, minha culpabilidade perante ela, e também minha vergonha diante de mim mesma (porque afinal ela não me amedrontava, e eu não tinha a meu favor, à guisa de represálias, senão algumas palavras violentas ou algumas insolências), mas também, apesar de tudo, minha glória: enquanto existisse a chaga, enquanto fosse viva a loucura muda que me levava a repetir somente: domar, maleável, corretivo, humilhação, eu não seria domada.

 

A revolta é tanto mais violenta quanto mais vezes a mãe perdeu o prestígio. Ela se apresenta como a que espera, suporta, se queixa, chora, faz cenas: e, na realidade cotidiana, esse papel ingrato não conduz a nenhuma apoteose; vítima, ela é desprezada; megera, detestada. Seu destino aparece como protótipo da insossa repetição: por ela a vida apenas se repete estupidamente sem levar a lugar algum. Presa a seu papel de dona de casa, ela detém a expansão da existência, é obstáculo e negação. A filha não quer assemelhar-se a ela e rende culto às mulheres que escaparam da servidão feminina: atrizes, escritoras, professoras. Entrega-se com ardor aos esportes, aos estudos, sobe nas árvores, rasga vestidos, tenta rivalizar com os meninos. Quase sempre escolhe uma amiga para confidente e essa amizade é exclusiva como uma paixão amorosa e comporta em geral a partilha de segredos sexuais; as meninas trocam informações que conseguiram obter e as comentam. Ocorre, muitas vezes, a formação de um triângulo, uma das amigas gostando do irmão da amiga: assim Sônia em Guerra e paz é a amiga querida de Natacha e ama o irmão desta, Nicolau. Em todo caso, essa amizade cerca-se de mistério, e de um modo geral a criança, nesse período, gosta de ter segredos: faz segredo da coisa mais insignificante; desse modo, reage contra as reservas que opõem à sua curiosidade; é uma maneira também de se dar importância, o que ela procura adquirir por todos os meios: tenta intervir na vida dos adultos, inventa, acerca deles, romances em que ela própria não acredita muito, mas nos quais desempenha um papel importante. Com suas amigas, aparenta desprezar os meninos que as desprezam; isolam-se deles e deles caçoam. Mas, na realidade, ela se sente lisonjeada quando eles a tratam em pé de igualdade, e almeja aprovação deles. Desejaria pertencer à casta privilegiada. O mesmo impulso, que nas hordas primitivas submete a mulher à supremacia masculina, traduz-se com cada nova iniciada por uma recusa de seu destino: nela, a transcendência condena o absurdo da imanência. Ela se irrita por ser freada pelas regras da decência, incomodada com suas roupas, escravizada aos cuidados da casa, detida em todos os seus impulsos. A esse respeito fizeram-se numerosos inquéritos que, quase todos,265 deram o mesmo resultado: todos os meninos — como Platão outrora — declaram que teriam horror de ser meninas; quase todas as meninas lamentam não ser meninos. Segundo as estatísticas de Havelock Ellis, um menino em cem desejaria ser menina; mais de 75% das meninas gostariam de trocar de sexo. Segundo uma pesquisa de Karl Pipal (citado por Baudouin em L’Âme enfantine), de vinte meninos de 12 a 14 anos, 18 disseram que prefeririam qualquer coisa no mundo a ser meninas; em 22 meninas, 19 gostariam de ser meninos, e davam as seguintes razões para justificá-lo: “Os homens não sofrem como as mulheres... Minha mãe gostaria mais de mim... O trabalho do homem é mais interessante... Um homem tem mais capacidade para o estudo... Eu me divertiria amedrontando as meninas... Não teria mais medo dos meninos... Eles são mais livres... Os jogos dos meninos são mais divertidos... Eles não são perturbados pelas roupas...” Esta última observação repete-se muito: as meninas queixam-se quase todas de que os vestidos as atrapalham, de que não têm liberdade de movimentos, de que são obrigadas a cuidar da saia ou dos vestidos claros que se sujam tão facilmente. Por volta dos dez ou 12 anos as meninas são em sua maioria “meninos falhados”, isto é, crianças que não têm licença para ser meninos. Não somente sofrem com isso como sendo uma privação e uma injustiça, mas ainda o regime a que as condenam não é saudável. A exuberância da vida é nelas barrada, seu vigor inutilizado transforma-se em nervosismo; suas ocupações demasiado sensatas não esgotam seu excesso de energia; se aborrecem; por tédio e para compensar a inferioridade de que sofrem, entregam-se a devaneios melancólicos e romanescos; tomam gosto por essas evasões fáceis e perdem o sentido da realidade; abandonam-se a suas emoções com uma exaltação desordenada; não podendo agir, falam, entremeando geralmente coisas sérias com palavras absurdas; largadas, “incompreendidas”, buscam um consolo nos sentimentos narcisistas: olham-se como heroínas de romance, admiram-se, lamentam-se; é natural que se tornem coquetes e comediantes, e esses defeitos se acentuarão no momento da puberdade. Seu mal-estar traduz-se por impaciências, cóleras, lágrimas; gostam das lágrimas — gosto que se perpetua em muitas mulheres — em grande parte porque lhes apraz fazerem-se de vítimas: é a um tempo um protesto contra a dureza do destino e uma maneira de se tornarem comoventes. “As meninas gostam tanto de chorar que conheci algumas que o faziam na frente do espelho para gozar duplamente esse estado”, conta monsenhor Dupanloup. A maioria de seus dramas diz respeito às relações com a família; elas procuram desfazer os laços que as prendem à mãe: ora são hostis, ora sentem uma aguda necessidade de sua proteção; gostariam de monoplolizar o amor do pai; são ciumentas, suscetíveis, exigentes. Amiúde inventam romances; imaginam que são uma criança adotada, que os pais não são realmente seus pais; atribui a eles uma vida secreta; sonham com as relações deles; comprazem-se em supor que o pai é incompreendido, infeliz, que não encontra na mulher a companheira ideal que a filha poderia ser; ou, ao contrário, que a mãe o acha, com razão, grosseiro e brutal, que tem horror de manter qualquer relação física com ele. Fantasias, comédias, tragédias pueris, falsos entusiasmos, extravagâncias, cumpre buscar as razões disso tudo, não numa misteriosa alma feminina e sim na situação da criança.

É uma estranha experiência, para um indivíduo que se sente como sujeito, autonomia, transcendência, como um absoluto, descobrir em si, a título de essência dada, a inferioridade: é uma estranha experiência para quem, para si, se arvora em Um, ser revelado a si mesmo como alteridade. É o que acontece à menina quando, fazendo o aprendizado do mundo, nele se percebe mulher. A esfera a que pertence é cercada por todos os lados, limitada, dominada pelo universo masculino: por mais alto que se eleve, por mais longe que se aventure, haverá sempre um teto acima de sua cabeça, muros que lhe barrarão o caminho. Os deuses do homem acham-se em um céu tão longínquo que, na verdade, não há deuses para ele: a menina vive entre deuses de fisionomia humana.

Essa situação não é única. É também a que os negros da América do Norte conhecem, parcialmente integrados numa civilização que os considera, entretanto, como casta inferior. O que Big Thomas266 sente com tamanho rancor na aurora de sua vida é essa definitiva inferioridade, essa alteridade maldita que se inscreve na cor da pele: ele olha os aviões passarem e sabe que por ser negro o céu lhe é vedado. Por ser mulher, a menina sabe que o mar e os pólos, mil aventuras e mil alegrias lhe são proibidas: nasceu do lado errado. A grande diferença está em que os negros sofrem sua sorte com revolta: nenhum privilégio compensa sua dureza, ao passo que a mulher é convidada à cumplicidade. Já lembrei267 que, ao lado da autêntica reivindicação do sujeito que quer para si liberdade soberana, há no existente um desejo inautêntico de renúncia e de fuga. São as delícias da passividade que pais e educadores, livros e mitos, mulheres e homens fazem brilhar aos olhos da menina; ensinam a ela já na primeira infância a apreciá-las; a tentação torna-se dia a dia mais insidiosa; ela cede mais fatalmente porque o impulso de sua transcendência se choca contra resistências mais severas. Mas, aceitando a passividade, ela aceita também suportar, sem resistência, um destino que lhe será imposto de fora, e essa fatalidade a amedronta. Seja ele ambicioso, estouvado ou tímido, é para um futuro aberto que o menino se atira; será marinheiro ou engenheiro, ficará no campo ou irá para a cidade, verá o mundo, será rico; sente-se livre em face de um futuro em que possibilidades imprevistas o aguardam. A menina será esposa, mãe, avó; tratará da casa, exatamente como fez sua mãe, cuidará dos filhos como foi cuidada: tem 12 anos e sua história já está escrita no céu; ela a descobrirá dia após dia sem nunca fazê-la; mostra-se curiosa, mas assustada, quando evoca essa vida cujas etapas estão todas previstas de antemão e para a qual cada dia a encaminha inelutavelmente.

Eis porque, muito mais ainda que os irmãos, a menina se preocupa com os mistérios sexuais; eles também se interessam apaixonadamente por isso, mas, em seu futuro, o papel de marido, de pai, não é aquilo com que mais se preocupam; no casamento, na maternidade é todo o destino da menina que é posto em xeque; e logo que ela principia a pressentir-lhe os segredos, o próprio corpo apresenta-se a ela odiosamente ameaçado. A magia da maternidade dissipou-se; se ela foi informada mais ou menos cedo, de maneira mais ou menos coerente, já sabe que o filho não surge por acaso no ventre materno e que não é com um golpe de vara de condão que daí sai. Ela interroga-se com angústia. Muitas vezes parece maravilhoso, mas horrível, que um corpo parasita deva proliferar dentro de seu corpo; a ideia dessa monstruosa inchação a apavora. E como sairá o bebê? Mesmo que ninguém lhe tenha falado dos gritos e sofrimentos da maternidade, ela ouviu conversas e leu o trecho da Bíblia: “Conceberás na dor”; pressente torturas que não seria sequer capaz de imaginar; inventa estranhas operações na região do umbigo; se supõe que o feto será expulso pelo ânus não fica mais tranquila. Viram-se meninas terem crises de constipação neurótica quando pensaram haver descoberto o processo do nascimento. Explicações exatas não serão de grande valia: as imagens de inchaço, de ferimento, de hemorragia irão permanecer. A menina será tanto mais sensível a essas visões quanto mais imaginação tiver; mas nenhuma poderá olhá-las de frente sem tremer. Colette conta que a mãe a encontrou desfalecida porque ela, Colette, lera em Zola a descrição de um nascimento.

 

O autor pintava o parto com um luxo brusco e cru de pormenores, uma minúcia anatômica, uma complacência na cor, na atitude, no grito, que não reconheci mais nada de minha tranquila competência de moça do campo. Senti-me crédula, assustada, ameaçada em meu destino de femeazinha... Outras palavras que tinha sob os olhos pintavam a carne esquartejada, o excremento, o sangue maculado... O gramado recebeu-me estendida e mole como essas lebrezinhas mortas há pouco que os caçadores clandestinos traziam para a cozinha.

 

As palavras de conforto oferecidas pelos adultos deixam a criança inquieta; ao crescer, ela aprende a não mais acreditar neles sob palavra; muitas vezes foi acerca dos próprios mistérios de sua geração que ela surpreendeu as mentiras deles; ela sabe também que eles consideram normais as coisas mais apavorantes; se experimentou algum choque físico violento — amígdalas extraídas, dente arrancado, panarício cortado a bisturi —, ela projetará no parto a angústia cuja lembrança guardou.

O caráter físico da gravidez, do parto, sugere desde logo que entre os esposos “alguma coisa de físico ocorre”. A palavra “sangue” que se encontra frequentemente em expressões como “filhos do mesmo sangue, puro-sangue, sangue mestiço” orienta por vezes a imaginação infantil; supõe-se que o casamento é acompanhado de alguma transfusão solene. Mais comumente, porém, a “coisa física” apresenta-se como ligada ao sistema urinário e excremental; em particular, as crianças comprazem-se em supor que o homem urina na mulher. A operação sexual é pensada como coisa suja. É o que desnorteia a criança para a qual as coisas “sujas” foram cercadas dos mais severos tabus: como é possível então que os adultos as integrem em suas vidas? A criança defende-se a princípio contra o escândalo pelo próprio absurdo do que descobre: não acha nenhum sentido no que ouve contarem, no que lê, no que escreve; tudo lhe parece irreal. No livro encantador de Carson MacCullers, The Member of the Wedding, a jovem heroína surpreende dois vizinhos nus na cama; a própria anomalia da história impede que ela lhe atribua importância.

 

Era um domingo de verão e a porta dos Marlowe estava aberta. Ela só podia ver uma parte do quarto, uma parte da cômoda e unicamente o pé da cama sobre a qual se achava o espartilho de Mrs. Marlowe. Mas havia no quarto tranquilo um ruído que ela não compreendia, e quando se adiantou para a soleira foi tomada de espanto ante um espetáculo que desde o primeiro momento a repeliu até a cozinha gritando: Mrs. Marlowe teve um ataque! Berenice precipitara-se no saguão, mas quando olhou para o quarto apenas cerrou os lábios e bateu a porta... Frankie tentara questionar Berenice para descobrir do que se tratava. Mas Berenice dissera somente que eram gente ordinária e acrescentara que, por consideração para com certa pessoa, deveriam ao menos ter fechado a porta. Frankie sabia que era ela própria essa pessoa e no entanto não compreendia. Que espécie de ataque seria?, indagou. Mas Berenice respondeu somente: “Um ataque comum, meu bem.” E Frankie compreendeu pelo tom de sua voz que não lhe dizia tudo. Posteriormente, só recordava os Marlowe como gente ordinária...

 

Quando alertam as crianças contra desconhecidos, quando interpretam na frente delas um incidente sexual, lhes falam de bom grado de doentes, de maníacos, de loucos; é uma explicação cômoda; a menina apalpada por um desconhecido no cinema, a menina diante de quem um passante desabotoa a braguilha pensa que enfrentou loucos. Sem dúvida, o encontro com a loucura é desagradável: um ataque de epilepsia, uma crise de histeria, uma disputa violenta revelam a desordem do mundo adulto e a criança que a testemunha sente-se em perigo; mas enfim, assim como há, em uma sociedade harmônica, vagabundos, mendigos, enfermos com feridas horrorosas, nela se podem encontrar também certos anormais sem que os alicerces dessa sociedade sejam abalados. É quando suspeita-se que os pais, os amigos, os mestres celebram missas negras às escondidas que a criança sente realmente medo.

 

Quando me falaram pela primeira vez de relações sexuais entre homem e mulher, declarei que eram impossíveis, posto que meus pais as deveriam ter tido também e eu os estimava demasiado para acreditar nisso. Eu dizia que era por demais repugnante para que o viesse a fazer um dia. Infelizmente iria ser desiludida pouco depois, ouvindo o que meus pais faziam... Esse instante foi pavoroso; escondi o rosto na coberta, tapando os ouvidos, e desejei estar a mil quilômetros dali.268

 

Como passar da imagem de pessoas vestidas e dignas, pessoas que ensinam a decência, a discrição, a razão, à de dois animais nus que se enfrentam? Há nisso uma contestação dos adultos por si próprios que frequentemente lhes abala o pedestal, enche de trevas o céu. Muitas vezes a criança recusa com obstinação a odiosa revelação: “Meus pais não fazem isso”, declara. Ou tenta dar a si mesma uma imagem decente do coito: “Quando se quer um filho”, dizia uma menina, “a gente vai ao médico, despe-se, põe uma venda nos olhos, porque não se deve olhar; o médico amarra os pais um ao outro e ajuda para que tudo dê certo”; ela transformara o ato amoroso em uma operação cirúrgica, sem dúvida pouco agradável, mas tão honrosa como uma visita ao dentista. Entretanto, apesar de recusas e fugas, o mal-estar e a dúvida insinuam-se no coração da criança; produz-se um fenômeno tão doloroso quanto o do desmame: não mais porque a criança é separada da carne materna, mas porque, em torno dela, o universo protetor desmorona; ela se vê sem teto sobre a cabeça, abandonada, absolutamente só em face de um futuro cheio de trevas. O que aumenta a angústia da menina é o fato de que ela não consegue delimitar exatamente os contornos da maldição equívoca que pesa sobre ela. As informações obtidas são incoerentes, os livros, contraditórios. As próprias exposições técnicas não dissipam a sombra espessa; cem perguntas se apresentam: o ato sexual é doloroso? Ou delicioso? Quanto tempo dura? Cinco minutos ou uma noite inteira? Lê-se por vezes que uma mulher ficou grávida com um só abraço e outras vezes que permaneceu estéril após horas de volúpia. As pessoas “fazem isso” todos os dias? Ou raramente? A criança tenta informar-se lendo a Bíblia, consultando dicionários, interrogando colegas e move-se às apalpadelas na escuridão e na repugnância. A esse respeito é um documento muito interessante o inquérito levado a efeito pelo dr. Liepmann. Eis algumas das respostas que lhe foram dadas por moças acerca da iniciação sexual:

 

Continuei a perambular com minhas ideias nebulosas e absurdas. Ninguém ventilava o assunto, nem minha mãe, nem minha professora; nenhum livro tratava da questão a fundo. Pouco a pouco tecia-se uma espécie de mistério e horror em torno do ato que se afigurava a princípio tão natural. As meninas mais velhas, de 12 anos, valiam-se de brincadeiras grosseiras para criar como que uma ponte entre elas e nossas companheiras de classe. Tudo isso era ainda tão vago e tão repugnante que discutíamos sobre onde as crianças se formavam; se a coisa só acontecia uma vez para o homem, pois o casamento era a causa de tal confusão. Minhas regras, que apareceram quando fiz 15 anos, foram para mim uma nova surpresa. Agora, de uma certa maneira, eu também entrava na dança...

 

...Iniciação sexual! Era uma expressão a que não se devia aludir em casa de meus pais!... Procurava nos livros mas atormentava-me e me enervava procurando sem saber onde encontrar o caminho que devia seguir... Frequentava uma escola de meninos: para o professor a coisa parecia não existir... A obra de Horlam, Garçonnet et fillette, trouxe enfim a verdade. Meu estado de crispação, de superexcitação insuportável dissipou-se, embora eu estivesse então muito infeliz e tivesse sido necessário muito tempo para reconhecer e compreender que somente o erotismo e a sexualidade constituíam o verdadeiro amor.

 

Etapas de minha iniciação: 1a) Primeiras perguntas e algumas noções vagas (nada satisfatórias). De 3 anos e meio até os 11 anos... Nenhuma resposta às perguntas que eu fiz nos anos seguintes. Quando tinha 7 anos eis que vi, ao dar de comer a uma coelha, filhotes se arrastarem por baixo dela... Minha mãe disse-me que entre os animais, e também entre os homens, os filhos cresciam no ventre da mãe e saíam pelos flancos. Esse nascimento pelo flanco pareceu-me absurdo... Uma ama-seca contou-me muitas coisas acerca da gravidez, da gestação, da menstruação... Finalmente, a última pergunta que fiz a meu pai sobre sua função real foi-me respondida com histórias obscuras de pólen e pistilo. 2a) Algumas tentativas de iniciação pessoal (11 a 13 anos). Descobri uma enciclopédia e um livro de medicina... Não passou de uma informação teórica constituída de gigantescas palavras estranhas. 3a) Controle dos conhecimentos adquiridos (13 a 20 anos): a) na vida cotidiana; b) nos trabalhos científicos.

 

Quando eu tinha oito anos brincava frequentemente com um menino de minha idade. Uma vez tratamos do assunto. Eu já sabia, porque minha mãe tinha me dito, que uma mulher tem muitos ovos no corpo... e que um filho nascia de um desses ovos todas as vezes que a mãe sentia um desejo agudo... Tendo dado a mesma explicação a meu colega, dele recebi esta resposta: “Você é completamente estúpida! Quando nosso açougueiro e sua mulher querem ter um filho eles se enfiam na cama e fazem porcarias.” Fiquei indignada... Tínhamos então (por volta de 12 anos e meio) uma criada que nos contava toda espécie de histórias sujas. Eu não dizia uma palavra sequer a mamãe porque tinha vergonha; mas perguntei-lhe se a gente pegava um filho sentando no colo de um homem. Ela explicou tudo o melhor que pôde.

 

Por onde saíam as crianças, aprendi na escola e tive a sensação de que era uma coisa horrível. Mas como vinham ao mundo? Tínhamos da coisa uma ideia até certo ponto monstruosa, principalmente depois que, indo à escola, certa manhã de inverno, em plena escuridão, tínhamos juntas encontrado um sujeito que nos mostrara suas partes sexuais e nos dissera, aproximando-se de nós: “Não lhes parece gostoso de mastigar?” Nossa repugnância fora inconcebível e ficamos literalmente revoltadas. Até os 21 anos eu imaginava que a vinda das crianças ao mundo se efetuava pelo umbigo.

 

Uma menina chamou-me de lado e perguntou: “Sabe de onde saem as crianças?” Finalmente resolveu declarar: “Puxa! Como você é boba! As crianças saem da barriga das mães e para que nasçam é preciso que as mulheres façam com os homens uma coisa repugnante!” Depois me explicou mais minuciosamente essa nojeira. Mas eu estava transtornada, recusando-me absolutamente a considerar possível que ocorressem coisas semelhantes. Dormíamos no mesmo quarto que nossos pais... Numa das noites que se seguiram, ouvi acontecer o que não considerara possível e tive vergonha, sim, vergonha de meus pais. Tudo isso fez de mim como que um outro ser. Senti horríveis sofrimentos morais. Considerava-me uma criatura profundamente depravada por estar a par dessas coisas.

 

É preciso dizer que mesmo uma informação coerente não resolveria o problema; apesar de toda a boa vontade dos pais e dos professores, não se poderia traduzir em palavras e conceitos a experiência erótica; esta só se compreende vivendo-a; qualquer análise, por mais séria que fosse, teria um aspecto humorístico e deixaria de desvendar a verdade. Partindo dos poéticos amores das flores, das núpcias dos peixes, passando pelos pintinhos, o gato, o cabrito, e chegando até a espécie humana, pode-se teoricamente esclarecer o mistério da geração: o da volúpia e do amor carnal permanece total. Como se explicaria a uma criança de sangue calmo o prazer de uma carícia ou de um beijo? Em família dão-se e recebem-se beijos, às vezes até nos lábios: por que em certos casos esse encontro de mucosas provoca vertigens? É como descrever cores a um cego. Enquanto falta a intuição da perturbação e do desejo que dá à função erótica sentido e unidade, os diferentes elementos que a constituem parecem chocantes e monstruosos. A menina revolta-se principalmente quando compreende que é virgem e selada e que, para transformá-la em mulher, será necessário que um sexo de homem a penetre. Sendo o exibicionismo uma perversão bastante comum, muitas meninas já viram um pênis em estado de ereção. Em todo caso observaram o sexo de animais e é lamentável que tantas vezes o do cavalo lhes atraia o olhar; concebe-se que se sintam apavoradas. Medo do parto, medo do sexo masculino, medo dos “ataques” que ameaçam os casados, repugnância por certas práticas sujas, zombaria em relação a gestos desprovidos de qualquer significação, tudo isso leva muitas vezes a menina a declarar: “Não casarei nunca.”269 É a defesa mais segura contra a dor, a loucura, a obscenidade. Em vão tentam explicar-lhe que, chegado o dia, nem a defloração nem o parto lhe parecerão tão terríveis, que milhões de mulheres a isso se resignaram e nem por isso passam menos bem. Quando a criança tem medo de um acontecimento exterior, libertam-na, mas não predizendo que mais tarde o aceitará naturalmente: é sua própria pessoa que ela teme então encontrar alienada, perdida no fundo do futuro. As metamorfoses da lagarta que se transforma em crisálida e borboleta põem certo mal-estar no coração: será a mesma lagarta após tão longo sono? Ela se reconhece sob as asas brilhantes? Conheci meninas para as quais o espetáculo de uma crisálida mergulhava em um devaneio assustado.

E, no entanto, a metamorfose ocorre. A menina não percebe o sentido, mas percebe que em suas relações com o mundo e com o próprio corpo alguma coisa vai mudando sutilmente: é sensível a contatos, gostos, odores que antes a deixavam indiferente; imagens barrocas vêm-lhe à cabeça; nos espelhos ela mal se reconhece; sente-se “estranha”, as coisas parecem-lhe “estranhas”; assim acontece com a pequena Emily que Richard Hughes descreve em Um ciclone na Jamaica:

Para refrescar-se, Emily sentara-se na água até o ventre e centenas de peixinhos titilavam-lhe cada polegada do corpo com suas bocas curiosas: era como se fossem beijos leves e sem sentido. Nos últimos tempos, ela começara a detestar que a tocassem, mas aquilo era abominável. Não pôde suportar mais tempo: saiu da água e tornou a vestir-se.

Até a harmoniosa Tessa de Margaret Kennedy conhece essa estranha perturbação:

Subitamente, sentiu-se profundamente infeliz. Seus olhos contemplaram fixamente a escuridão do saguão cortado em dois pelo luar que entrava como uma onda pela porta aberta. Não pôde se controlar. Ergueu-se de um salto com um gritinho exagerado: “Oh!”, exclamou, “como detesto o mundo inteiro!” Correu então a esconder-se na montanha, assustada e furiosa, atormentada por um triste pressentimento que parecia encher a casa sossegada. Aos tropeços pelo atalho, recomeçou a murmurar para si mesma: “Quisera morrer, quisera estar morta.”

Sabia que não pensava o que dizia, não tinha a menor vontade de morrer. Mas a violência dessas palavras parecia satisfazê-la...

No livro já citado de Carson MacCullers esse momento inquietante é longamente descrito.

Era no verão que Frankie se sentia enjoada e cansada de ser Frankie. Odiava-se, tornara-se uma vagabunda, uma inútil que rodava pela cozinha: suja e esfomeada, miserável e triste. Além disso, era uma criminosa... Aquela primavera fora uma estação estranha, que não acabava. As coisas puseram-se a mudar e Frankie não compreendia a mudança... Havia algo nas árvores verdejantes e nas flores de abril que a entristecia. Não sabia por que estava triste, mas por causa dessa tristeza singular pensou que deveria ter saído da cidade... Deveria ter saído da cidade e ido para longe. Pois naquele ano a primavera tardia estava indolente e suave. As longas tardes passavam devagar e a doçura verde da estação a enojava... Muitas coisas lhe davam, de repente, vontade de chorar. Cedo pela manhã ia, às vezes, ao pátio e ficava um bom momento a olhar a alvorada; e era como uma pergunta que lhe surgia no coração e à qual o céu não respondia. Coisas que antes nunca notara começaram a impressioná-la: as luzes das casas que percebia à noite quando passeava, uma voz desconhecida saindo de um beco. Olhava as luzes, ouvia as vozes e algo dentro dela retesava-se à espera. Mas as luzes apagavam-se, a voz calava e, apesar de sua espera, era tudo. Tinha medo dessas coisas que a levavam a perguntar-se repentinamente quem era, o que iria tornar-se no mundo, e por que se achava ali a ver uma luz, a escutar e a fixar o céu: sozinha. Tinha medo e o peito oprimia-se estranhamente.

...Passeava na cidade e as coisas que via e ouvia pareciam-lhe inacabadas e havia nela aquela angústia. Apressava-se em fazer alguma coisa: mas não era nunca o que deveria ter feito... Após os longos crepúsculos da estação, depois de ter perambulado pela cidade toda, seus nervos vibravam como uma melodia melancólica de jazz, seu coração endurecia-se e parecia parar.

 

O que ocorre nesse período perturbado é que o corpo infantil se torna corpo de mulher, faz-se carne. Salvo em casos de deficiência glandular, em que o paciente permanece fixado em seu estágio infantil, a crise da puberdade inicia-se por volta dos 12 ou 13 anos.270 Tal crise principia muito antes na menina do que no menino e provoca mudanças muito mais importantes. A menina a enfrenta com inquietação, com desprazer. No momento em que se desenvolvem os seios e o sistema piloso, nasce um sentimento que por vezes se transforma em orgulho, mas que é originalmente de vergonha; subitamente a criança enche-se de pudor, recusa-se a mostrar-se nua, mesmo às irmãs ou à mãe, examina-se com um misto de espanto e horror e é com angústia que espia a turgidez do caroço duro, um pouco doloroso, que surge sob as mamas antes tão inofensivas quanto o umbigo. Ela inquieta-se por sentir em si um ponto vulnerável: provavelmente a dor é pequena se comparada a uma queimadura ou uma dor de dentes, mas, acidentes ou doenças, as dores eram sempre anomalias, ao passo que o jovem seio é habitado normalmente por não se sabe que surdo rancor. Alguma coisa está ocorrendo, que não é doença, que está implicada na própria lei da existência e que no entanto é luta, dilaceração. Por certo, do nascimento à puberdade a menina cresceu, mas nunca se sentiu crescer: dia após dia, seu corpo lhe foi apresentado como uma coisa exata, acabada; e eis que agora ela “se forma”: a própria palavra a horroriza; os fenômenos vitais só são tranquilizadores quando encontram um equilíbrio e assumem o aspecto imóvel de uma flor fresca, de um animal lustroso; mas na germinação de seu seio a menina experimenta a ambiguidade da palavra: vivo. Ela não é ouro nem diamante e sim uma estranha matéria, móvel, incerta, no fundo da qual impuras alquimias se elaboram. Está habituada a uma cabeleira que se desenrola com a tranquilidade de uma meada de seda, mas essa nova vegetação sob as axilas e no baixo-ventre a metamorfoseia em bicho ou em alga. Estando mais ou menos informada, ela pressente nessas mudanças uma finalidade que a arranca de si mesma; ei-la jogada em um ciclo vital que ultrapassa o momento de sua própria existência; ela adivinha uma dependência que a destina ao homem, ao filho, ao túmulo. Em si mesmos os seios apresentam-se como uma proliferação inútil, indiscreta. Braços, pernas, pele, músculos, até as nádegas redondas sobre as quais se senta, tudo tinha até então um uso determinado; somente o sexo, definido como órgão urinário, era um tanto equívoco, mas secreto, invisível a outrem. Por baixo do suéter, da blusa, os seios se exibem e esse corpo, que a menina confundia com seu eu, aparece como carne; é um objeto que os outros olham e veem. “Durante dois anos usei capas para esconder o peito, tal era minha vergonha”, disse-me uma mulher. E outra contou-me: “Lembro-me ainda do estranho desnorteamento que senti quando uma amiga de minha idade, porém mais precocemente formada, ao abaixar-se para apanhar uma bola deixou-me entrever, pela abertura do corpete, dois seios já pesados: através desse corpo tão próximo do meu e pelo qual o meu iria se moldar, era de mim mesma que eu corava.” “Com 13 anos passeava de pernas nuas e vestido curto”, disse-me uma outra mulher, “um homem fez, zombando, uma reflexão acerca de minhas pernas grossas. No dia seguinte minha mãe obrigou-me a pôr meias e a alongar a saia; mas não esquecerei nunca o choque recebido subitamente ao me ver vista.” A menina sente que o corpo lhe escapa, não é mais a expressão clara de sua individualidade; torna-se estranho para ela; e, no mesmo momento, ela é encarada por outrem como uma coisa: na rua, acompanham-na com o olhar, comentam sobre sua anatomia; ela gostaria de ficar invisível; tem medo de tornar-se carne e medo de mostrar essa carne.

Essa repugnância traduz-se em muitas moças pela vontade de emagrecer: não querem mais comer; se as obrigam a isso, vomitam; controlam o peso sem cessar. Outras tornam-se doentiamente tímidas; entrar num salão e mesmo sair à rua é um suplício. A partir daí, desenvolvem-se por vezes psicoses. Um exemplo típico é o da doente que Janet descreve, sob o nome de Nádia, em Les Obsessions et la psychasthénie:

 

Nádia era uma moça de família rica e notavelmente inteligente; elegante, artista, era principalmente uma excelente musicista; mas desde a infância mostrou-se voluntariosa e irritável: “Fazia muita questão de ser amada e exigia um amor louco de todo mundo, dos pais, das irmãs, dos criados: mas logo que conquistava alguma afeição, era tão exigente, tão dominadora que não demorava em afastar as pessoas; horrivelmente suscetível, as zombarias dos primos, que desejavam modificar-lhe o gênio, infundiram-lhe um sentimento de vergonha que se localizou no corpo.” Por outro lado, sua necessidade de ser amada inspirava-lhe o desejo de permanecer criança, de ser sempre uma menina que se acarinha e pode exigir tudo; inspirava-lhe, em suma, terror a ideia de crescer... A chegada precoce da puberdade agravou singularmente as coisas, misturando ao seu temor de crescer receios de pudor: como os homens gostam de mulheres gordas, quero ficar eternamente magra. O medo dos pelos do púbis, do desenvolvimento do seio, acrescentou-se aos temores precedentes. Desde a idade de 11 anos, como usava saias curtas, parecia-lhe que todos a olhavam; deram-lhe saias compridas e ela teve vergonha dos pés, das ancas etc. O aparecimento das regras deixou-a meio louca; quando os pelos do púbis começaram a crescer, ela ficou convencida de que era a única pessoa no mundo com tal monstruosidade e, até a idade de 20 anos, esforçou-se por se depilar a fim de “fazer desaparecer esse adorno de selvagem”. O desenvolvimento do seio agravou essas obsessões porque sempre tivera horror à obesidade; não a detestava nos outros, mas considerava que nela teria sido uma tara. “Não faço questão de ser bonita, mas teria vergonha demais se me tornasse balofa, teria horror; se por infelicidade engordasse, não ousaria mais mostrar-me a ninguém.” Pôs-se então em busca de todos os meios de não crescer, tomava precauções, amarrava-se a promessas, se entregava a conjurações: recomeçar cinco ou seis vezes a mesma oração, pular cinco vezes sobre um pé. “Se tocar quatro vezes a mesma nota no piano, consinto em crescer e não ser mais amada por ninguém.” Acabou resolvendo não comer mais. “Não queria nem engordar nem crescer, nem me assemelhar a uma mulher porque gostaria de continuar menina para sempre.” Promete solenemente não mais aceitar qualquer alimento; cedendo às súplicas da mãe, quebra a promessa, mas passa então horas de joelhos a escrever promessas e a rasgá-las. Quando perdeu a mãe, aos 18 anos, impôs a si mesma o regime seguinte: dois pratos de caldo magro, uma gema de ovo, uma colher de vinagre, uma xícara de chá com suco de um limão inteiro. Era tudo o que comia durante o dia todo. Morria de fome. “Às vezes passava horas inteiras a pensar em comida, de tanto que tinha fome: engolia a saliva, mastigava o lenço, rolava no chão, tal minha vontade de comer.” Mas resistia às tentações. Embora fosse bonita, afirmava que tinha o rosto balofo e cheio de espinhas; se o médico lhe dizia não perceber nada, ela retorquia que ele não entendia disso, que não sabia “descobrir as espinhas que se encontram entre a pele e a carne”. Acabou separando-se da família e fechando-se em um pequeno apartamento onde só via a enfermeira e o médico; não saía nunca; só dificilmente aceitava a visita do pai, que uma vez provocou uma grave recaída, ao lhe dizer que ela estava com boa aparência; ela temia ter um rosto gordo, uma tez brilhante, bons músculos. Vivia quase sempre na escuridão a tal ponto lhe era intolerável ser vista ou simplesmente visível.

 

Muitas vezes a atitude dos pais contribui para inculcar na menina a vergonha de sua aparência física. Uma mulher confessa:271

 

Sofria de um sentimento de inferioridade física alimentado por críticas incessantes em casa... Minha mãe, em sua vaidade exagerada, queria sempre me ver com a melhor aparência e tinha sempre uma porção de pormenores a dizer à costureira a fim de dissimular meus defeitos: ombros caídos, ancas avantajadas, traseiro chato, seios grandes demais etc. Tendo tido durante anos o pescoço inchado, não me era permitido mostrá-lo... Eu me envergonhava principalmente de meus pés, que, no momento de minha puberdade, eram muito feios; caçoavam de mim por causa de minha maneira de andar... Havia certamente alguma verdade nisso tudo, mas tinham me tornado tão infeliz, principalmente como backfisch, uma jovem, e eu me sentia às vezes tão intimidada que não sabia absolutamente mais como me portar; se encontrava alguém, minha primeira ideia era sempre “se ao menos pudesse esconder meus pés!”.

 

Essa vergonha leva a menina a agir com embaraço, a corar a todo instante; esses rubores aumentam-lhe a timidez e tornam-se eles próprios objeto de uma fobia. Stekel conta, entre outros casos,272 o de uma mulher que “quando moça, corava de maneira tão doentia e violenta que, durante um ano, usou ataduras em volta do rosto alegando dores de dente”.

Por vezes, no período que se pode chamar da pré-puberdade e que precede o aparecimento das regras, a menina não sente ainda repugnância pelo corpo; orgulha-se de se tornar mulher, espia com satisfação o amadurecimento do seio, enche o corpete com lenços e vangloria-se junto das companheiras mais velhas; não apreende ainda a significação dos fenômenos que se produzem nela. Sua primeira menstruação revela-lhe essa significação e os sentimentos de vergonha aparecem. Se já existiam, confirmam-se e ampliam-se a partir desse momento. Todos os testemunhos concordam: a criança tenha ou não sido avisada, a ocorrência apresenta-se sempre a ela como repugnante e humilhante. É muito frequente que a mãe tenha negligenciado de preveni-la: verificou-se273 que as mães revelam mais facilmente às filhas os mistérios da gravidez, do parto e até das relações sexuais que o da menstruação; é que elas próprias têm horror a essa servidão feminina, horror que reflete os antigos terrores místicos dos homens e que elas transmitem a sua descendência. Quando encontra manchas suspeitas em suas roupas de baixo, a menina imagina-se vítima de uma diarreia, de uma hemorragia mortal, de uma doença vergonhosa. Segundo um inquérito apresentado em 1896 por Havelock Ellis, em 125 alunas de uma high school norte-americana, 36, no momento de suas primeiras regras, nada sabiam a respeito, 39 tinham vagas noções. Isso significa que mais da metade dessas alunas viviam na ignorância. Segundo Helen Deutsch, as coisas em 1946 não se teriam modificado muito. H. Ellis cita o caso de uma jovem que se atirou no Sena em Saint-Ouen porque imaginava ter contraído “uma doença desconhecida”. Stekel em “cartas a uma mãe” conta também a história de uma menina que tentou suicidar-se, vendo no fluxo menstrual o sinal e o castigo das impurezas que lhe maculavam a alma. É natural que a moça tenha medo: parece que é sua vida que lhe foge. Segundo Klein, e a escola psicanalítica inglesa, o sangue seria para ela a manifestação de um ferimento nos órgãos internos. Ainda que advertências prudentes lhe poupem angústias demasiado agudas, ela tem vergonha e sente-se suja: precipita-se no banheiro, trata de lavar ou esconder suas roupas maculadas. Encontra-se um relato típico dessa experiência no livro de Colette Audry, Aux yeux du souvenir:

 

No centro dessa exaltação, o drama brutal e definido. Uma noite, ao despir-me, acreditei estar doente: não tive medo e evitei contá-lo, na esperança de que passaria até o dia seguinte... Quatro semanas depois a coisa recomeçou, com maior violência. Fui bem devagar jogar minha calça na cesta de roupa suja atrás da porta do banheiro. Fazia tanto calor que o ladrilho vermelho do corredor estava morno sob meus pés descalços. Como me enfiasse na cama ao voltar, mamãe abriu a porta do meu quarto: vinha explicar as coisas. Sou incapaz de lembrar-me do efeito que suas palavras produziram então em mim, mas enquanto ela cochichava Kaki mostrou subitamente a cabeça. A vista daquela cara redonda e curiosa exasperou-me. Gritei-lhe que se fosse e ela saiu, apavorada. Supliquei a mamãe que batesse nela porque ela não pedira para entrar... A calma de minha mãe, seu ar de sabida e docemente feliz acabaram por me fazer perder a cabeça. Quando ela saiu, penetrei numa noite selvagem.

Duas recordações ocorreram-me de repente: meses antes, quando voltávamos do passeio com Kaki, mamãe e eu encontramos o velho médico de Privas, atarracado como um lenhador e com uma grande barba branca. “Sua filha está crescendo, minha senhora”, disse examinando-me; eu o detestara de imediato sem nada compreender. Pouco tempo depois, de volta de Paris, mamãe arrumou numa cômoda um pacote de toalhinhas novas. “Que é isso?”, indagara Kaki. Mamãe tomara aquele ar natural dos adultos quando nos revelam uma parte da verdade e guardam as outras: “É para Colette muito brevemente.” Muda, incapaz de fazer uma pergunta, detestara minha mãe.

Durante toda essa noite me virei e revirei na cama. Não era possível. Ia acordar. Mamãe se enganara, aquilo passaria e não voltaria mais... No dia seguinte, secretamente mudada e maculada, foi preciso enfrentar os outros. Olhei com ódio para minha irmã porque ela não sabia ainda, porque ela se achava dotada repentinamente, e sem o saber, de uma esmagadora superioridade em relação a mim. Depois, pus-me a odiar os homens que nunca experimentariam isso, e que sabiam. Por fim, detestei também as mulheres que tão tranquilamente se conformavam. Tinha certeza de que se tivessem sido avisadas do que me acontecia todas se teriam regozijado: “Bem, é tua vez”, teriam pensado. Essa também, dizia a mim mesma, quando via uma. E a outra. O mundo me pegara na curva. Andava desajeitadamente e não ousava correr. A terra, as verduras quentes de sol, os alimentos pareciam desprender um odor suspeito... A crise passou e eu voltei a esperar contra o bom senso que não se reproduziria mais. Um mês depois tive de aceitar a evidência e admitir a desgraça definitivamente, mergulhada em um pesado estupor dessa vez. Haveria desde então um “antes” em minha memória. Todo o resto de minha existência não seria senão um “depois”.

 

As coisas passam-se de maneira análoga com a maioria das meninas. Muitas dentre elas têm horror de revelar o segredo aos que a cercam. Uma amiga contou-me que, vivendo sem mãe, entre o pai e uma preceptora, passou três meses com medo e vergonha, escondendo sua roupa maculada, antes que descobrissem que estava menstruada. Mesmo as camponesas, que poderíamos acreditar endurecidas pelo conhecimento que têm dos mais rudes aspectos da vida animal, sentem com horror essa maldição, pois no campo a menstruação é ainda um tabu: conheci uma jovem sitiante que durante todo um inverno lavou suas roupas às escondidas no regato gelado, vestindo a camisa molhada para dissimular o inconfessável segredo. Poderia citar cem casos análogos. Mesmo a confissão dessa desgraça espantosa não é uma libertação. Sem dúvida, a mãe que esbofeteou a filha, dizendo: “Idiota, és criança demais”, é uma exceção. Porém muitas mães demonstram mau humor; a maioria não dá à criança esclarecimentos suficientes e esta continua cheia de ansiedade ante o novo estado que a menstruação inaugura. Ela se pergunta se o futuro não lhe reserva dolorosas surpresas; ou imagina que a partir de então pode tornar-se grávida pela simples presença ou contato de um homem, e sente em relação aos machos um verdadeiro terror. Ainda que lhe poupem tal angústia mediante explicações inteligentes, não a tranquilizam tão facilmente. Antes a menina podia, com alguma má-fé, acreditar-se ainda um ser assexuado, podia não se pensar; acontecia até de sonhar que despertaria certa manhã transformada em homem; agora, as mães e as tias cochicham com ares lisonjeados: “é uma moça agora”; a confraria das matronas ganhou: ela lhes pertence. Ei-la instalada sem apelo do lado das mulheres. Acontece que se orgulhe disso; pensa que se tornou uma adulta e que se vai produzir uma reviravolta em sua existência. Thyde Monnier, por exemplo, conta:274

Muitas de nós tinham se tornado “grandes” durante as férias; outras o ficavam no liceu e então uma após outra íamos “ver o sangue” nas privadas do pátio, onde elas se pavoneavam como rainhas recebendo seus súditos.

 

Mas a menina logo se desilude, pois percebe que não adquiriu nenhum privilégio e a vida continua. A única novidade é o acontecimento sujo que ocorre todos os meses; há crianças que choram durante horas quando vêm a saber que estão condenadas a um tal destino; o que agrava ainda mais sua revolta é o fato de ser essa tara vergonhosa conhecida dos próprios homens; desejariam pelo menos que a humilhante condição feminina permanecesse velada de mistério para eles. Mas não, pais, irmãos, primos sabem e chegam até a zombar. É então que nasce ou se exaspera na menina a repugnância por seu corpo demasiado carnal. E passada a primeira surpresa, o aborrecimento mensal nem por isso se dissipa: toda vez a moça sente o mesmo nojo ante o odor insosso e fétido que sobe de si própria — cheiro de pântano, de violetas murchas — ante esse sangue menos vermelho, mais suspeito do que o que flui de seus machucados infantis. Dia e noite terá de pensar em mudar de roupa, cuidar de seus lençóis, resolver mil pequenos problemas práticos e repugnantes; nas famílias econômicas, as toalhas higiênicas são lavadas mensalmente e voltam a seu lugar entre pilhas de lenços; será preciso, portanto, entregar às mãos das lavadeiras, criadas, mãe, irmã mais velha, essas dejeções saídas de si mesma. Os diferentes curativos que vendem os farmacêuticos em caixas com nomes de flores, “Camélia”, “Edelweis”, são jogados fora após o uso; mas em viagem, durante as férias, em excursão não é tão cômodo assim desembaraçar-se disso por ser expressamente proibido jogá-los na privada. A pequena heroína do Journal Psychanalytique275 descreve seu horror pela toalha higiênica; mesmo diante da irmã só consente em despir-se no escuro, no momento das regras. O objeto incômodo, embaraçoso, pode destacar-se durante um exercício violento; é maior humilhação do que perder as calças na rua: essa perspectiva atroz engendra, por vezes, manias psicastênicas. Por uma espécie de maldade da natureza, os incômodos, as dores só começam muitas vezes depois da hemorragia, que a princípio pode passar despercebida. As regras das jovens nem sempre são regulares: elas se arriscam a ser surpreendidas durante um passeio, na rua, em casa de amigos; arriscam-se — como Mme de Chevreuse276 — a sujar as roupas, o assento. Há quem, ante essa possibilidade, viva numa constante angústia. Quanto mais a moça sente repulsa por essa tara feminina, mais é obrigada a pensar nela com cuidado para não se expor à horrível humilhação de um acidente ou de uma confidência.

Eis a série de respostas que o dr. Liepmann obteve a propósito277 durante um inquérito acerca da sexualidade juvenil:

 

Aos 16 anos, quando me senti indisposta pela primeira vez, fiquei muito assustada ao verificá-lo certa manhã. Na verdade sabia que isso deveria acontecer; mas tive tal vergonha que permaneci deitada durante metade do dia e a todas as perguntas respondia unicamente: não posso levantar-me.

 

Fiquei muda de espanto quando, não tendo ainda 12 anos, me senti indisposta pela primeira vez. Apavorei-me, e como minha mãe se contentou em me dizer num tom seco que aconteceria todos os meses, considerei isso uma grande safadeza e recusei-me a admitir que o mesmo não acontecesse com os homens.

 

Essa aventura levou minha mãe a fazer minha iniciação, sem esquecer ao mesmo tempo a menstruação. Tive então meu segundo desapontamento porque logo que fiquei indisposta precipitei-me louca de alegria ao encontro de minha mãe que ainda dormia e a acordei gritando: “Mamãe, já tenho! — E é para isso que você me acorda?”, limitou-se ela a responder. Apesar de tudo considerei a coisa como um verdadeiro terremoto em minha existência.

 

Por isso senti o pavor mais intenso quando fiquei indisposta pela primeira vez ao constatar que a hemorragia não parava ao fim de alguns minutos. Ainda assim não disse uma palavra a ninguém, nem a minha mãe. Acabava de fazer exatamente 15 anos. De resto, sofri muito pouco. Uma só vez senti dores tão tremendas que desfaleci e permaneci cerca de três horas estendida no soalho de meu quarto. Mas não comentei nada sobre isso tampouco.

 

Quando senti pela primeira vez essa indisposição, tinha mais ou menos 13 anos. Já tínhamos falado disso, minhas colegas de classe e eu, e me senti muito orgulhosa por me ter tornado também uma das grandes. Cheia de importância, expliquei à professora de ginástica que naquele dia não podia participar dos exercícios porque estava indisposta.

 

Não foi minha mãe quem me iniciou. Esta só teve suas regras com 19 anos, e com medo de ser repreendida por ter sujado a roupa, enterrou-a num campo.

 

Atingi a idade de 18 anos e tive pela primeira vez minhas regras.278 Nada sabia a respeito... À noite, tive hemorragias violentas acompanhadas de fortes cólicas e não pude descansar um só momento. Logo pela manhã, corri a minha mãe com o coração batendo, e sem parar de soluçar pedi-lhe conselho. Mas só obtive esta severa repreensão: “Bem que você poderia ter percebido antes, para não sujar assim os lençóis e a cama.” Foi tudo, à guisa de explicações. Naturalmente quebrei a cabeça para saber que crime poderia ter cometido e experimentei uma angústia terrível.

 

Já sabia de que se tratava. Aguardava a coisa com impaciência porque esperava que minha mãe me revelasse então como se fabricavam as crianças. O famigerado dia chegou: mas minha mãe manteve o silêncio. Ainda assim, eu me sentia muito alegre: “Agora”, dizia comigo mesma, “você também pode fazer filhos, já é mulher.”

 

Essa crise ocorre numa idade ainda tenra; o menino só atinge a adolescência por volta dos 15 ou 16 anos; é dos 13 aos 14 que a menina se transforma em mulher. Mas não é daí que vem a diferença essencial de sua experiência; ela não reside tampouco nas manifestações fisiológicas que, no caso da moça, lhe dão sua horrível aparência: a puberdade assume nos dois sexos uma significação radicalmente diferente porque não é um mesmo futuro que se anuncia a eles.

Sem dúvida, os meninos também sentem, no momento da puberdade, seu corpo como uma presença embaraçosa, mas, orgulhosos desde a infância de sua virilidade, é para ela que orgulhosamente transcendem no momento da transformação; mostram-se envaidecidos com o pelo que lhes cresce nas pernas e os torna homens. Mais do que nunca, o sexo é então objeto de comparação e desafio. Tornar-se adulto é uma metamorfose que os intimida: muitos adolescentes sentem-se angustiados quando se anuncia uma liberdade exigente; mas é com alegria que alcançam a dignidade de machos. Ao contrário, para transformar-se em adulto, é preciso que a menina se confine nos limites impostos por sua feminilidade. O menino admira em seus novos pelos promessas indefinidas: ela fica confundida diante do “drama brutal e definido” que detém seu destino. Assim como o pênis tira do contexto social seu valor privilegiado, é o contexto social que faz da menstruação uma maldição. Um simboliza a virilidade, a outra, a feminilidade. E é porque a feminilidade significa alteridade e inferioridade que sua revelação é acolhida com escândalo. A vida da menina sempre lhe apareceu como determinada por essa impalpável essência à qual a ausência do pênis não conseguia dar uma figura positiva: é esta que se descobre no fluxo de sangue que lhe escorre entre as coxas. Se já assumiu sua condição, é com alegria que ela acolhe o acontecimento... “Agora, você é uma mulher.” Se sempre a recusou, o veredicto sangrento a fulmina; o mais das vezes ela hesitava: a mácula menstrual a inclina para a repugnância e o medo: “Então é isso o que significam estas palavras: ser mulher!” A fatalidade que até então pesava sobre ela confusamente, e de fora, escondeu-se em seu ventre; não há mais meio de escapar; ela se sente acuada. Em uma sociedade sexualmente igualitária, ela só encararia a menstruação como sua maneira particular de atingir a vida adulta; o corpo humano conhece nos homens e nas mulheres muitas outras servidões mais repugnantes: eles se acomodam facilmente porque, sendo comuns a todos, não representam uma tara para ninguém. As regras inspiram horror à adolescente porque a precipitam numa categoria inferior e mutilada. Esse sentimento de decadência pesará fortemente sobre ela. Conservaria o orgulho de seu corpo sangrento se não perdesse seu orgulho de ser humano. E se consegue conservar este, sente menos vivamente a humilhação de sua carne: a moça que abre os caminhos da transcendência em atividades esportivas, sociais, intelectuais, místicas, não verá uma mutilação em sua especificação e a superará facilmente. Se por volta dessa época a moça desenvolve tantas vezes psicoses é porque se sente sem defesa diante de uma fatalidade surda que a condena a provações inimagináveis; sua feminilidade significa a seus olhos doença, sofrimento, morte, e esse destino a subjuga.

Um exemplo que ilustra de maneira impressionante essas angústias é o da doente descrita por H. Deutsch sob o nome de Molly.

 

Molly tinha 14 anos quando começou a sofrer de perturbações psíquicas; era a quarta filha de uma família de cinco filhos; o pai, muito severo, criticava as filhas em todas as refeições, a mãe era infeliz e muitas vezes pai e mãe não se falavam. Um dos irmãos fugira de casa. Molly era muito talentosa, dançava o sapateado muito bem mas era tímida e ressentia penosamente a atmosfera familiar; os meninos a amedrontavam. Sua irmã mais velha casou-se contra a vontade da mãe e Molly interessou-se muito pela gravidez da irmã; esta teve um parto difícil, em que foi necessário empregar o fórceps; Molly, que soube dos detalhes e foi informada de que muitas vezes as mulheres morriam de parto, ficou muito impressionada. Durante dois meses tomou conta do bebê; quando a irmã deixou a casa, houve uma cena terrível em que a mãe desmaiou; Molly desmaiou também; vira colegas desmaiar na classe, e as ideias de morte e desmaio obcecavam-na. Quando chegaram as regras, disse à mãe com um ar de embaraço: “A coisa aconteceu.” E foi comprar toalhas higiênicas com a irmã; encontrando um homem na rua, baixou a cabeça; de uma maneira geral manifestava repugnância por si mesma. Não sofria durante esses períodos, mas tentava sempre escondê-los da mãe. De uma feita, tendo visto uma mancha nos lençóis, a mãe lhe perguntou se estava indisposta e ela negou, embora fosse verdade. Um dia disse à irmã: “Tudo pode acontecer agora, posso ter um filho. — Para isso, você precisaria viver com um homem, respondeu a irmã. — Mas eu vivo com dois homens: papai e seu marido.”

O pai não permitia às filhas que saíssem sozinhas à noite, com medo que as violentassem. Esses temores contribuíam para dar a Molly a ideia de que os homens eram seres perigosos. O medo de ficar grávida, de morrer de parto, assumiu tal intensidade a partir do momento em que as regras vieram que, pouco a pouco, ela se recusou a sair do quarto, queria permanecer o dia inteiro na cama; tem crises terríveis de ansiedade se a obrigam a sair; se precisa afastar-se da casa, tem uma crise e desmaia. Tem medo dos automóveis, dos táxis, não pode mais dormir, acredita que ladrões entram em casa à noite, grita e chora. Tem manias alimentares, por momentos come demais para não desfalecer; tem medo igualmente quando se sente fechada em algum lugar. Não pode mais ir à escola nem levar uma vida normal.

 

História análoga, que não se liga à crise da menstruação mas em que se manifesta a ansiedade que a menina experimenta em relação a seus “interiores”, é a de Nancy.279

 

Com mais ou menos 13 anos a menina era íntima da irmã mais velha e ficou muito orgulhosa por ter sido a confidente quando esta se tornou noiva secretamente e depois casou: compartilhar o segredo de uma pessoa mais velha, era ser aceita entre os adultos. Viveu durante algum tempo na casa da irmã; mas quando esta lhe disse que ia “comprar” um bebê, Nancy teve ciúmes do cunhado e da criança que ia chegar; ser novamente tratada como uma criança a quem se contam lorotas fora insuportável para ela. Começou a sentir perturbações internas e quis que a operassem de apendicite; a operação correu bem, mas, durante sua estada no hospital, Nancy viveu em meio a uma terrível agitação; tinha cenas violentas com a enfermeira que detestava; tentava seduzir o médico, marcava encontros com ele, mostrava-se provocante, exigia com crises nervosas que ele a tratasse como mulher; acusava-se de ser responsável pela morte de um irmãozinho ocorrida anos antes; e principalmente tinha certeza de que não lhe haviam tirado o apêndice, que tinham esquecido o bisturi no seu estômago: quis por força que a examinassem pelos raios X a pretexto de que engolira um penny (uma moeda).

 

Esse desejo de operação — em particular da extirpação do apêndice — é comum nessa idade; as meninas exprimem assim seu medo da violação, da gravidez, do parto. Sentem no ventre obscuras ameaças e esperam que o cirurgião as salve do perigo desconhecido que as aguarda.

Não é somente o aparecimento das regras que anuncia à menina seu destino de mulher. Outros fenômenos suspeitos produzem-se nela. Até então seu erotismo era clitoridiano. É difícil saber se as práticas solitárias são menos comuns nela do que nos meninos; a essas práticas ela se entrega durante os dois primeiros anos de vida, talvez mesmo desde os primeiros meses; parece que as abandona por volta dos dois anos para voltar a elas mais tarde; pela sua conformação anatômica, essa haste plantada na carne masculina solicita, mais do que uma mucosa secreta, toques e apalpadelas: mas os acasos de uma esfregadela — a criança subindo em barras, em árvores, montando em bicicleta — de um contato vestimentar, de um jogo, ou ainda a iniciação por colegas mais velhos, por adultos, revelam frequentemente à menina sensações que ela se esforça por ressuscitar. Em todo caso, o prazer, quando alcançado, é uma sensação autônoma: tem a leveza e a inocência de todos os divertimentos infantis.280 Ela quase não estabelece relações entre as deleitações íntimas e seu destino de mulher; suas relações sexuais com meninos, se é que existem, são baseadas essencialmente na curiosidade. E ei-la que se sente tomada de perturbadoras emoções em que não se reconhece. A sensibilidade das zonas erógenas desenvolve-se, e estas são na mulher tão numerosas que se pode considerar todo o corpo como erógeno: é o que lhe revelam carícias familiares, beijos inocentes, toques indiferentes de uma costureira, de um médico, de um cabeleireiro, uma mão amiga pousada nos cabelos ou na nuca; ela descobre, e muitas vezes procura deliberadamente, uma perturbação mais profunda nos contatos de jogo, de luta com meninos e meninas: como Gilberte lutando nos Champs-Elysées com Proust. Nos braços dos dançarinos, sob o olhar ingênuo da mãe, ela conhece estranhos langores. Além disso, mesmo uma juventude bem protegida expõe-se a experiências mais precisas. Nos meios “bem” silenciam-se de comum acordo tais incidentes lamentáveis; mas é frequente que certas carícias de amigos da casa, de tios, de primos, para não falar dos avôs e dos pais, sejam muito menos inofensivas do que a mãe supõe; um professor, um padre, um médico podem ter sido ousados, indiscretos. Encontram-se relatos de semelhantes experiências em L’Asphyxie, de Violette Leduc, em La Haine maternelle, de S. de Tervagnes, e em L’Orange bleue, de Yassu Gauclère. Stekel estima que os avôs, entre outros, são frequentemente muito perigosos.

 

Tinha 15 anos. Na véspera do enterro, meu avô viera dormir em casa. No dia seguinte, minha mãe já se tendo levantado, ele me perguntou se não podia deitar na minha cama para brincar comigo; levantei-me imediatamente sem responder... Comecei a ter medo dos homens, conta uma mulher.281

 

Outra jovem lembra-se de ter sofrido um sério choque com a idade de oito ou dez anos quando o avô, um velho de setenta anos, bulira seus órgãos genitais. Ele a sentara no colo enfiando-lhe o dedo na vagina. A criança sentira uma imensa angústia, mas não ousou, entretanto, dizer nada. Desde então teve muito medo de tudo o que é sexual.282

 

Tais incidentes são geralmente silenciados pela menina por causa da vergonha que lhe inspiram. Muitas vezes, ao se abrir com os pais, a reação destes é ralhar com ela: “Não diga tolices... Está pensando bobagens.” Ela se cala também acerca dos gestos estranhos de certos desconhecidos. Uma menina contou ao dr. Liepmann:283

 

Tínhamos alugado um quarto no porão da casa de um sapateiro. Muitas vezes, quando estava sozinho, nosso proprietário vinha me buscar, me tomava nos braços e me beijava longamente mexendo-se para a frente e para trás. Além disso, seu beijo não era superficial; enfiava-me a língua na boca. Eu o detestava por causa dessas coisas. Mas nunca disse nada porque era muito tímida.

 

Além dos colegas salientes, das amigas perversas, há o joelho que no cinema pressiona o da menina, a mão que à noite no trem desliza ao longo da perna, os rapazes que zombam quando ela passa, os homens que a seguem na rua, os abraços, os toques furtivos. Ela compreende mal o sentido dessas aventuras. Há, muitas vezes, numa cabeça de 15 anos, uma estranha confusão, porque os conhecimentos teóricos e as experiências concretas não se ajustam. Uma menina já experimentou todas as sensações da perturbação e do desejo, mas imagina — como Clara d’Ellébeuse, inventada por Francis Jammes — que bastaria um beijo masculino para torná-la mãe; outra tem noções exatas acerca da anatomia genital, mas, quando seu parceiro na dança a aperta nos braços, acredita ser enxaqueca a emoção que sente. Seguramente, as moças estão hoje mais bem informadas do que outrora. Entretanto, certos psiquiatras afirmam que várias adolescentes ignoram ainda que os órgãos sexuais sirvam para algo mais que urinar.284 De qualquer modo, elas estabelecem pouca relação entre as emoções sexuais e a existência de seus órgãos genitais, pois nenhum sinal tão preciso como a ereção masculina lhes indica essa correlação. Entre seus devaneios romanescos acerca do homem, do amor, e a crueza de certos fatos que lhes são revelados, existe um tal hiato que elas não veem nenhuma relação entre eles. Thyde Monnier conta285 que fizera, com algumas amigas, a promessa de olhar como era feito um homem e contar às outras:

 

Tendo entrado propositadamente no quarto de meus pais, sem bater, assim o descrevi: “É como um negócio de segurar pernil, isto é, um rolo que no fim tem uma coisa redonda.” Era difícil explicar. Fiz um desenho, fiz mesmo três e cada uma delas levou o seu escondido no corpete e de quando em quando morria de rir, olhando-o, e depois ficava sonhando... Como meninas inocentes como nós poderiam estabelecer uma ligação entre esse objeto e as canções sentimentais, as bonitas histórias romanescas em que o amor, feito de respeito, timidez, suspiros, beija-mão é sublimado até tornar-se eunuco?

 

Contudo, através de suas leituras, de suas conversas, dos espetáculos e das palavras que surpreende, a moça dá um sentido à perturbação de sua carne; esta faz-se apelo, desejo. Em suas febres, arrepios, suores, incômodos incertos, seu corpo assume uma nova e inquietante dimensão. O rapaz reivindica suas tendências eróticas porque assume alegremente sua virilidade; nele o desejo sexual é agressivo, preênsil; ele vê nesse desejo uma afirmação de sua subjetividade e de sua transcendência; vangloria-se disso junto dos amigos; o sexo permanece para ele uma perturbação de que se orgulha; o impulso que o impele para a mulher é da mesma natureza daquele que o impele para o mundo, por isso nele se reconhece. Ao contrário, a vida sexual da menina sempre foi clandestina; quando seu erotismo se transforma e invade toda a carne, o mistério vira angústia: ela suporta a perturbação como se se tratasse de uma doença vergonhosa; não é ativa: é um estado, e nem mesmo em imaginação ela pode livrar-se dela por uma decisão autônoma; não sonha com pegar, amassar, violentar: é espera e apelo; sente-se dependente; e em perigo na sua carne alienada.

Isso porque sua esperança difusa, seu sonho de passividade feliz lhe revelam com evidência o corpo como um objeto destinado a outrem. Ela não quer conhecer a experiência sexual senão em sua imanência; é o contato da mão, da boca, de uma outra carne que ela pede e não a mão, a boca, a carne alheia; ela deixa na sombra a imagem de seu parceiro, ou a afoga em devaneios ideais; não pode, entretanto, impedir que a presença dele a obsidie. Seus terrores, suas repulsas juvenis em relação ao homem assumiram um caráter mais equívoco do que antes, e por isso mesmo mais angustiante. Nasciam outrora de um divórcio profundo entre o organismo infantil e seu futuro de adulta; agora, eles têm sua fonte nessa complexidade que a moça experimenta em sua carne. Ela compreende que se destina à posse já que a chama: e revolta-se contra seus próprios desejos. Ela almeja e teme a um tempo a vergonhosa passividade da presa que consente. A ideia de se pôr nua diante de um homem a perturba profundamente; mas ela sente também que será então entregue sem apelo ao olhar dele. A mão que pega, que toca, tem uma presença ainda mais imperiosa que a dos olhos: ela assusta mais. Mas o símbolo mais evidente e mais detestável da posse física é a penetração pelo sexo do macho. Esse corpo que ela confunde consigo mesma, a jovem detesta que o possam perfurar como se perfura um couro, rasgá-lo como se rasga um tecido. Porém, mais do que o ferimento e a dor que o acompanha, o que a moça recusa é que ferimento e dor sejam infligidos. “É horrível a ideia de ser furada por um homem”, dizia-me um dia uma jovem. Não é o medo do membro viril que engendra o horror ao homem, esse medo é a confirmação e o símbolo; a ideia de penetração assume seu sentido obsceno e humilhante no interior de uma forma mais geral, da qual ela é, em compensação, um elemento essencial.

A ansiedade da menina é traduzida por pesadelos que a atormentam e fantasias que a perseguem: é no momento em que ela sente em si uma insidiosa complacência que a ideia de violação se torna em muitos casos obsessiva. Manifesta-se nos sonhos e nas condutas através de numerosos símbolos mais ou menos claros. A jovem explora o quarto antes de se deitar, com medo de descobrir algum ladrão de intenções equívocas; acredita estar ouvindo gatunos dentro de casa; um agressor entra pela janela com uma faca e a traspassa. De uma maneira mais ou menos aguda, os homens inspiram-lhe pavor. Ela começa a sentir certa repugnância do pai; não pode mais suportar o cheiro de seu fumo, detesta entrar no banheiro depois dele; ainda que continue a amá-lo, a repulsa física é frequente; toma uma forma exasperada como se a menina já fosse hostil ao pai, como acontece não raro com as caçulas. Há um sonho que os psiquiatras dizem ser comum nas jovens pacientes: imaginam ser violentadas por um homem sob as vistas de uma mulher idosa e com o consentimento dela. É claro que pedem simbolicamente à mãe a permissão de se entregarem a seus desejos. Pois um dos constrangimentos que pesam mais odiosamente sobre elas é o da hipocrisia. A jovem acha-se votada à “pureza”, à inocência, precisamente no momento em que descobre em si e à sua volta os perturbadores mistérios da vida e do sexo. Querem-na branca como o arminho, transparente como um cristal, vestem-na de vaporoso organdi, cobrem-lhe as paredes do quarto com cortinas cor de confeitos, abaixam a voz perto dela, proíbem-lhe os livros escabrosos; ora, não há uma só filha de Maria que não acarinhe imagens e desejos “abomináveis”. Ela se esforça por dissimulá-los até para a melhor amiga, para si mesma; não quer mais viver nem pensar senão em obediência a ordens recebidas; sua desconfiança de si própria lhe dá um ar dissimulado, infeliz, doentio; e mais tarde nada lhe será mais difícil do que combater essas inibições. Mas apesar de todos os recalques, sente-se acabrunhada pelo peso de faltas indizíveis. Suporta sua metamorfose em mulher, não somente na vergonha, mas também no remorso.

Compreende-se que a idade ingrata seja para a menina um período de confusão dolorosa. Ela não quer continuar criança. Mas o mundo dos adultos parece-lhe assustador ou tedioso:

 

Procurava crescer portanto, mas nunca pensava seriamente em levar a vida que via os adultos levarem, diz Colette Audry... E ainda assim alimentava-se em mim a vontade de crescer sem jamais assumir a condição de adulto, sem nunca me tornar solidária com os pais, donas de casa, mulheres caseiras, chefes de família.

 

Gostaria de libertar-se do jugo da mãe; mas tem também uma necessidade ardente de sua proteção. São as faltas que lhe pesam na consciência: práticas solitárias, amizades equívocas, más leituras que tornam tal refúgio necessário. A carta seguinte,286 escrita a uma amiga por uma jovem de 15 anos, é característica:

 

Mamãe quer que eu use vestido comprido no grande baile dos X; meu primeiro vestido comprido. Está espantada por eu não querer. Supliquei que me deixasse usar meu vestidinho cor-de-rosa pela última vez. Tenho tanto medo. Parece, pondo o vestido comprido, que mamãe vai partir para uma longa viagem e que eu não sei quando voltará. Não é idiotice? E às vezes ela me olha como se eu fosse uma menininha. Ah! Se ela soubesse! Amarraria minhas mãos à cama e me desprezaria!

 

Encontra-se no livro de Stekel, A mulher frígida, um documento notável acerca de uma infância feminina. Trata-se de uma “Süssel Mädel” vienense que redigiu por volta dos 21 anos uma confissão pormenorizada, a qual constitui uma síntese concreta de todos os momentos que estudamos separadamente.

 

“Com a idade de cinco anos escolhi meu primeiro companheiro de brinquedo, um menino, Ricardo, que tinha seis ou sete. Eu queria sempre saber como se reconhece que uma criança é menino ou menina. Diziam que era pelos brincos, pelo nariz... Contentava-me com essa explicação, embora com a sensação de que me escondiam alguma coisa. Subitamente Ricardo desejou fazer xixi... Tive a ideia de lhe emprestar meu urinol. Vendo seu membro, algo inteiramente surpreendente para mim, exclamei cheia de alegria: ‘Mas que é que você tem aí? Como é bonito! Meu Deus, gostaria de ter um também.’ Ao mesmo tempo toquei-o corajosamente...” Uma tia surpreendeu-os e desde então as crianças passaram a ser muito vigiadas. Com nove anos, ela brinca de casamento com dois meninos de oito e dez anos; e também de médico. Bolem em seus órgãos genitais e um dia um dos meninos a toca com o sexo dizendo depois que os pais dela haviam feito a mesma coisa quando se casaram: “Estava francamente indignada: não, não fizeram coisa tão feia!” Ela continua com esses brinquedos e tem uma grande amizade amorosa e sexual com os dois meninos. A tia vem um dia a saber e acontece uma cena horrível em que a ameaçam de botá-la num reformatório. Ela deixa de ver Artur, que era seu predileto, e sofre muito com isso: põe-se a trabalhar mal, sua letra deforma-se, fica vesga. Reinicia outra amizade, com Valter e Francisco. “Valter ocupava todos os meus pensamentos e todos os meus sentidos. Permiti que me tocasse por baixo da saia, de pé ou sentada diante dele enquanto fazia minhas lições de caligrafia... Logo que minha mãe abria a porta ele retirava a mão e eu continuava escrevendo... Enfim tivemos relações normais entre homem e mulher, mas não lhe permitia muita coisa; logo que ele pensava ter penetrado em minha vagina eu me afastava dizendo que havia alguém... Não imaginava que fosse um pecado.”

Suas amizades com meninos acabam e sobram somente amizades com moças. “Apeguei-me a Emmy, jovem bem-educada e instruída. Certa vez, no Natal, quando eu tinha 12 anos, trocamos pequenos corações de ouro com nossos nomes gravados dentro. Considerávamos isso uma espécie de noivado, jurando-nos ‘fidelidade eterna’. Devo parte de minha instrução a Emmy. Ela me informou também acerca dos problemas sexuais. No quinto ano, eu já começara a duvidar das histórias de cegonha que traz as crianças. Acreditava que os filhos vinham do ventre e que era preciso abri-lo para que pudessem sair. Emmy assustava-me principalmente por causa da masturbação. Na escola, vários evangelhos nos abriram os olhos acerca das questões sexuais. Por exemplo, quando a Virgem Maria ia visitar santa Isabel. ‘O filho em seu seio pulava de alegria’ e outros trechos curiosos da Bíblia. Sublinhávamos esses trechos e por pouco a classe não teve uma má nota de comportamento quando descobriram isso. Ela mostrava-me também a ‘recordação de nove meses’ de que fala Schiller em Os salteadores. O pai de Emmy foi transferido e fiquei novamente só. Escrevemo-nos num código secreto que havíamos inventado, mas, como me sentia muito sozinha, liguei-me a uma menina judia, Hedl. Uma vez, Emmy me surpreendeu saindo da escola com Hedl. Fez uma cena de ciúmes. Continuei com Hedl até entrarmos para a escola de comércio e éramos as melhores amigas, sonhando tornarmo-nos cunhadas, pois eu gostava de um de seus irmãos que era estudante. Quando ele falava comigo, eu ficava confusa a ponto de lhe responder de um modo ridículo. Ao crepúsculo, abraçada com Hedl num pequeno sofá, chorava copiosamente, sem saber por quê, quando ele tocava piano.

“Antes de minha amizade com Hedl, convivi durante várias semanas com uma certa Ella, filha de gente pobre. Ela observara os pais ‘a sós’, despertada pelo barulho da cama. Veio dizer-me que o pai se deitara sobre a mãe, que gritara muito, e que o pai dissera: ‘Vá se lavar depressa para que não haja nada.’ Fiquei intrigada com a conduta do pai, evitava-o na rua e sentia muita pena da mãe (devia ter sofrido cruelmente para gritar tanto). Conversei com outra colega acerca do comprimento do pênis; ouvi de uma feita falarem de 12 a 15 centímetros; durante a lição de costura pegávamos o metro para medir a partir do lugar em questão ao longo do ventre por cima da saia. Chegávamos, evidentemente, pelo menos ao umbigo e ficávamos apavoradas com a ideia de sermos literalmente empaladas quando nos casássemos.”

Ela vê um cão cobrir uma cadela. “Se na rua eu via um cavalo urinar, não podia desviar o olhar, acho que o comprimento do pênis me impressionava.” Observava as moscas e os animais no campo.

“Com a idade de 12 anos tive uma forte angina e consultaram um médico amigo; sentado perto da cama, ele colocou de repente a mão sob as cobertas, me tocando quase no ‘lugar’. Sobressaltei-me gritando: ‘Não tem respeito!’ Minha mãe se precipitou, o doutor estava horrivelmente embaraçado e afirmou que eu era uma pequena impertinente e que ele quisera apenas beliscar-me a perna. Fui obrigada a pedir-lhe perdão... Quando tive, enfim, minhas regras e meu pai descobriu minhas toalhas manchadas de sangue, houve uma cena terrível. Porque ele, homem limpo, era ‘forçado a viver entre tantas mulheres sujas’ e parecia que era minha culpa ficar indisposta.” Aos 15 anos tem outra amiguinha com quem se comunica em estenografia “para que em casa ninguém pudesse ler nossas cartas. Havia tanta coisa a escrever sobre nossas conquistas. Ela me comunicava também grande número de versos que lera nas paredes das privadas; lembro-me de um porque degradava até à imundície o amor que era tão sublime em minha imaginação: ‘Qual o fim supremo do amor? Quatro nádegas suspensas a uma haste.’ Resolvi não chegar nunca a esse ponto; um homem que ama uma moça não pode pedir-lhe semelhante coisa. Com 15 anos e meio tive um irmão. Senti muito ciúme porque sempre fora filha única. Minha amiga pedia sempre que eu olhasse como meu irmão era feito, mas não podia absolutamente lhe dar as informações que me solicitava. Nessa época uma outra amiga fez-me a descrição de uma noite de núpcias e depois disso tive a ideia de me casar por curiosidade; só que ‘resfolegar como um cavalo’, segundo a descrição, ofendia meu senso estético... Qual de nós não quisera casar para se deixar despir pelo marido amado e ser carregada para a cama por ele. Era tão tentador...”

 

Dirão talvez — embora se trate de um caso normal e não patológico — que essa menina era de uma “perversidade” excepcional; era apenas menos fiscalizada do que outras. Se as curiosidades e os desejos das jovens “bem-educadas” não se traduzem por atos, nem por isso deixam de existir sob a forma de fantasias e de jogos. Conheci outrora uma moça devota e de uma desconcertante inocência — que se tornou depois uma mulher perfeita, cristalizada na maternidade e na devoção — que certa noite confiou toda trêmula a uma amiga mais velha: “Como deve ser maravilhoso despir-se diante de um homem! Suponhamos que você seja meu marido”; e pôs-se a despir-se muito comovida. Nenhuma educação pode impedir a menina de tomar consciência de seu corpo e de sonhar com seu destino; quando muito poderão impor-lhe estritos recalques que pesarão mais tarde sobre toda a sua vida sexual. Seria desejável, isso sim, que lhe ensinassem o contrário: a se aceitar sem complacência nem vergonha.

Compreende-se agora que drama dilacera a adolescente no momento da puberdade: ela não pode tornar-se adulta sem aceitar sua feminilidade; ela já sabia que seu sexo a condenava a uma existência mutilada e paralisada; descobre isso agora sob a forma de uma doença impura e de um crime obscuro. Sua inferioridade era somente apreendida, a princípio, como uma privação: a ausência do pênis converteu-se em mácula e em falta. É ferida, envergonhada, inquieta, culpada que ela se encaminha para o futuro.