2/A jovem

Durante toda a infância a menina foi reprimida e mutilada; entretanto, percebia-se como um indivíduo autônomo; em suas relações com os pais, os amigos, em seus estudos e jogos, descobria-se então como uma transcendência: nada fazia senão sonhar com sua futura passividade. Uma vez púbere, o futuro não somente se aproxima, instala-se em seu corpo, torna-se a realidade mais concreta. Conserva o caráter fatal que sempre teve; enquanto o adolescente se encaminha ativamente para a idade adulta, a jovem aguarda o início desse período novo, imprevisível, cuja trama já se acha traçada e para o qual o tempo a arrasta. Já desligada de seu passado de criança, o presente só lhe aparece como uma transição; ela não descobre nele nenhum fim válido, mas tão somente ocupações. De uma maneira mais ou menos velada, sua juventude consome-se na espera. Ela aguarda o Homem.

Sem dúvida, o adolescente também sonha com a mulher, deseja-a; mas ela será apenas um elemento de sua vida: não resume seu destino. Desde a infância, se desejou realizar-se como mulher ou superar as limitações de sua feminilidade, a menina esperou do macho realização e evasão: ele tem o semblante deslumbrante de Perseu, de são Jorge, é o libertador, é tão rico e poderoso que detém em suas mãos as chaves da felicidade: é o príncipe encantado. Ela pressente que sob suas carícias será levada pela grande corrente da Vida, como no tempo em que repousava no colo da mãe; submetida à sua doce autoridade, encontrará a mesma segurança que tinha nos braços do pai: a magia dos abraços e dos olhares a transformará novamente em ídolo. Sempre esteve convencida da superioridade viril; esse prestígio dos homens não é uma miragem pueril. Tem bases econômicas e sociais; são indiscutivelmente os senhores do mundo, tudo persuade a adolescente de que é de seu interesse tornar-se sua vassala; seus pais a incitam: o pai orgulha-se dos êxitos da filha, a mãe vê neles as promessas de um futuro próspero; as colegas invejam e admiram aquela que conquista mais homenagens masculinas; nos colégios norte-americanos o standard de uma estudante é medido pelo número de dates que acumula. O casamento não é apenas uma carreira honrosa e menos cansativa do que muitas outras: só ele permite à mulher atingir a sua integral dignidade social e realizar-se sexualmente como amante e mãe. É sob esse aspecto que os que a cercam encaram seu futuro e que ela própria o encara. Admite-se unanimemente que a conquista de um marido — ou, em certos casos, de um protetor —, é para ela o mais importante dos empreendimentos. No homem encarna-se a seus olhos o Outro, como este para o homem se encarna nela; mas esse Outro apresenta-se a ele como o essencial e ela se apreende perante ele como o inessencial. Ela se libertará do lar paterno, do domínio materno e abrirá o futuro para si, não através de uma conquista ativa e sim entregando-se, passiva e dócil, nas mãos de um novo senhor.

Afirmou-se frequentemente que se a jovem se resignava a essa renúncia é porque física e moralmente ela se torna então inferior aos rapazes e incapaz de rivalizar com eles: renunciando a uma vã competição, confiaria a um membro da casta superior o cuidado de lhe assegurar a felicidade. Em verdade, não é de uma inferioridade dada que provém sua humildade; esta, ao contrário, é que engendra todas as insuficiências; tem sua fonte no passado da adolescente, na sociedade que a cerca e, precisamente, nesse futuro que lhe é proposto.

Sem dúvida, a puberdade transforma o corpo da jovem. Ele se torna mais frágil do que antes: os órgãos são vulneráveis, seu funcionamento delicado; insólitos e incômodos, os seios são um fardo; lembram sua presença nos exercícios violentos, tremem, doem. Daí por diante a força muscular, a resistência, a agilidade da mulher tornam-se inferiores às do homem. O desequilíbrio das secreções hormonais cria uma instabilidade nervosa e vasomotora. A crise menstrual é dolorosa: dores de cabeça, dos músculos e do ventre tornam penosas e até impossíveis as atividades normais; a esses incômodos acrescem-se muitas vezes perturbações psíquicas; nervosa, irritável, é comum que a mulher passe mensalmente por um estado de semialienação; o controle do sistema nervoso e do sistema simpático não é mais assegurado pelos centros; as perturbações da circulação, certas autointoxicações fazem do corpo uma barreira entre a mulher e o mundo, uma bruma ardente que pesa sobre ela, que a abafa e a separa: através dessa carne dolente e passiva, o universo inteiro é um fardo por demais pesado. Oprimida, submergida, ela se torna estranha a si mesma pelo fato de ser estranha ao restante do mundo. As sínteses desagregam-se, os instantes não se ligam mais, o outro não é mais reconhecido senão mediante um reconhecimento abstrato; e embora permaneçam intatos como nos delírios melancólicos, o raciocínio e a lógica são, entretanto, colocados a serviço das evidências passionais que se produzem no seio da desordem orgânica. Tais fatos são extremamente importantes: mas é por sua maneira de tomar conhecimento deles que a mulher lhes dá o peso que têm.

É por volta dos 13 anos que os meninos fazem um verdadeiro aprendizado da violência, que desenvolvem sua agressividade, sua vontade de poder, seu gosto pelo desafio; é exatamente nesse mesmo momento que a menina renuncia aos jogos brutais. Alguns esportes continuam a lhes ser acessíveis; mas o esporte, que é especialização, submissão a regras artificiais, não oferece a equivalência de um recurso espontâneo e normal à força; situa-se à margem da vida: não informa acerca do mundo e de si mesmo tão intimamente quanto um combate desordenado, uma escalada imprevista. A esportista não sente nunca o orgulho conquistador de um menino que fez o outro encostar os ombros no chão. Ademais, em muitos países as moças não têm nenhum treinamento esportivo. Sendo-lhes proibidas as brigas, as escaladas, elas se atêm a suportar o corpo passivamente; muito mais nitidamente do que na infância, cumpre a elas renunciar a emergir além do mundo dado, a afirmar-se acima da humanidade; é proibido explorar, ousar, recuar os limites do possível. Em particular, a atitude do desafio, tão importante nos rapazes, é para as moças quase desconhecida. Por certo as mulheres se comparam, mas o desafio é diferente dessas confrontações passivas: duas liberdades se defrontam à medida que têm sobre o mundo um domínio cujas limitações desejam diminuir; subir mais alto do que um colega, dobrar um braço, é afirmar sua soberania sobre toda a Terra. Essas condutas conquistadoras não são permitidas à moça, principalmente a violência. Sem dúvida, no universo dos adultos a força brutal não desempenha, em períodos normais, um grande papel; mas, entretanto, ela o persegue, muitas são as condutas masculinas que se apoiam num fundo de violência possível: em todas as esquinas de rua, brigas e disputas se esboçam; na maioria das vezes abortam; mas basta ao homem sentir em seus punhos sua vontade de afirmação de si mesmo para sentir-se confirmado em sua soberania. Contra toda afronta, contra toda tentativa de reduzi-lo a objeto, o homem tem o recurso de bater, de se expor aos golpes: não se deixa transcender por outrem, reencontra-se no seio de sua subjetividade. A violência é a prova autêntica da adesão de cada um a si mesmo, a suas paixões, a sua própria vontade, recusá-la radicalmente é recusar-se toda verdade objetiva, é encerrar-se numa subjetividade abstrata; uma cólera, uma revolta que não passam pelos músculos permanecem imaginárias. É terrível frustração não poder inscrever os movimentos de seu coração na face da Terra. No sul dos Estados Unidos é rigorosamente impossível a um negro usar de violência contra os brancos; essa regra é que é a chave da misteriosa “alma negra”. A maneira pela qual o negro se sente no mundo branco, as condutas mediante as quais a ele se adapta, as compensações que busca, todo o seu modo de sentir e de agir se explicam por meio da passividade a que é condenado. Durante a ocupação, os franceses que tinham resolvido não se entregar a atos violentos contra os ocupantes, mesmo em caso de provocação — fosse por prudência egoísta ou porque tinham deveres exigentes —, sentiam sua situação profundamente transtornada nesse mundo: dependia do capricho de outrem que fossem transformados em objetos, sua subjetividade não tinha mais meios de se exprimir concretamente, não passava de um fenômeno secundário. Assim, tem o universo um aspecto inteiramente diferente para o adolescente a quem se permite testemunhar imperiosamente sobre si mesmo e para a adolescente cujos sentimentos se acham privados de eficiência imediata. Um pode pôr o mundo em discussão sem cessar, pode a cada instante insurgir-se contra o que lhe foi dado e tem, portanto, a impressão, quando o aceita, de o confirmar ativamente; a outra não faz senão suportá-lo: o mundo define-se sem ela e tem um aspecto imutável. Essa impotência física é traduzida por uma timidez mais geral: ela não acredita numa força que não experimentou em seu corpo; não ousa empreender, revoltar-se, inventar: votada à docilidade, à resignação, não pode senão aceitar, na sociedade, um lugar já preparado. Ela encara a ordem das coisas como dada. Uma mulher contava-me que durante toda a sua mocidade negara com selvagem má-fé sua fraqueza física. Admiti-la, fora perder a vontade e a coragem de empreender o que quer que fosse, ainda que apenas nos domínios intelectuais e políticos. Conheci uma jovem educada como um rapaz e excepcionalmente vigorosa que se imaginava tão forte quanto um homem; embora fosse muito bonita, e tivesse todos os meses regras dolorosas, não tomava em absoluto consciência de sua feminilidade: tinha o rompante, a exuberância de vida, as iniciativas de um menino. E também as ousadias, não hesitando em intervir na rua a socos, se via molestarem uma criança ou uma mulher. Uma ou duas experiências infelizes revelaram-lhe que a força brutal está com os homens. Quando mediu sua fraqueza, boa parte da confiança que tinha em si mesma esvaiu-se. Foi o início de uma evolução que a levou a se feminilizar, a realizar-se como passiva, a aceitar a dependência. Não ter mais confiança no corpo é perder confiança em si próprio. Basta ver a importância que os rapazes dão a seus músculos para compreender que todo indivíduo julga o corpo como sua expressão objetiva.

No rapaz, os impulsos eróticos só confirmam o orgulho que tira de seu corpo: neste ele descobre o sinal de sua transcendência e de seu poder. A moça pode conseguir assumir seus desejos, mas eles guardam, na maioria das vezes, um caráter vergonhoso. Seu corpo inteiro é aceito com embaraço. A desconfiança que, desde menina, ela sentia em relação a seus “interiores” contribui para dar à crise menstrual o caráter suspeito que a torna odiosa. É pela atitude psíquica que suscita que a servidão menstrual constitui um pesado handicap. A ameaça que pesa sobre a jovem, durante certos períodos, pode parecer-lhe tão intolerável que ela renunciará a expedições e a prazeres, por medo de que sua desgraça seja conhecida. O horror que esta lhe inspira repercute em seu organismo e aumenta-lhe os incômodos e as dores. Viu-se que uma das características da fisiologia feminina é a estreita ligação das secreções endócrinas com o equilíbrio nervoso: há uma ação recíproca; um corpo de mulher — e principalmente de moça — é um corpo “histérico”, no sentido de que não há, por assim dizer, distância entre a vida psíquica e sua realização fisiológica. O cataclismo que acarreta à jovem a descoberta das perturbações da puberdade a exaspera. Como o corpo lhe é suspeito, ela o espia com inquietação: parece-lhe doente, é doente. Viu-se que, efetivamente, esse corpo é frágil e que há desordens orgânicas que nele se produzem; mas os ginecologistas concordam em dizer que nove décimos de suas pacientes são doentes imaginárias, isto é, ou seus incômodos não têm nenhuma realidade fisiológica, ou a desordem orgânica é, ela própria, motivada por uma atitude psíquica. É em grande parte a angústia de ser mulher que corrói o corpo feminino.

Vê-se que, se a situação biológica da mulher constitui um handicap, é por causa da perspectiva em que ela se apreende. A fragilidade nervosa, a instabilidade vasomotora, quando não se tornam patológicas, não lhe vedam nenhum ofício: entre os próprios homens há uma grande diversidade de temperamentos. Uma indisposição de um ou dois dias por mês, mesmo dolorosa, não é tampouco um obstáculo; na realidade, numerosas mulheres acomodam-se a isso, e em particular as que a “maldição” mensal poderia atrapalhar mais: esportistas, viajantes, mulheres que exercem tarefas pesadas. A maioria das profissões não reclama uma energia superior à que a mulher pode fornecer. E nos esportes o fim visado não é um êxito independente das aptidões físicas: é a realização da perfeição peculiar a cada organismo. O campeão de peso-pena vale tanto quanto o de peso pesado; uma campeã de esqui não é inferior ao campeão mais rápido do que ela: pertencem a duas categorias diferentes. São precisamente as esportistas que, positivamente interessadas em sua própria realização, se sentem menos inferiorizadas em relação ao homem. Contudo, a fraqueza física não permite à mulher conhecer as lições da violência: se lhe fosse possível afirmar-se em seu corpo e emergir no mundo de outra maneira, essa deficiência seria facilmente compensada. Que escale picos, que nade, que pilote um avião, que lute contra os elementos, que assuma riscos e se aventure, ela não sentirá, diante do mundo, a timidez de que falei. É no conjunto de uma situação, que deixa muito poucas possibilidades, que tais singularidades assumem seu valor, e não imediatamente, mas confirmando o complexo de inferioridade por ela desenvolvido desde a infância.

É igualmente esse complexo que vai pesar sobre suas realizações intelectuais. Observou-se muitas vezes que a partir da puberdade a jovem perde terreno nos domínios intelectuais e artísticos. Há muitas razões para isso. Uma das mais frequentes está em que a adolescente não encontra em volta de si os incentivos que oferecem a seus irmãos; ao contrário: querem que ela seja também uma mulher, e para isso é preciso acumular as tarefas de seu trabalho profissional com as que sua feminilidade implica. A diretora de uma escola profissional faz a propósito as seguintes observações:

 

A jovem torna-se repentinamente um ser que ganha a vida trabalhando. Tem novos desejos, que nada têm a ver com a família. Acontece frequentemente que deva fazer um esforço bastante considerável... Ela volta à noite para seu lar tomada de um cansaço colossal e com a cabeça cheia das ocorrências do dia... Como é então recebida? A mãe manda-a logo fazer alguma compra. Há também que terminar as tarefas caseiras deixadas em suspenso e cumpre ainda cuidar de sua roupa. É impossível dar atenção a todos os pensamentos íntimos que continuam a preocupá-la. Sente-se infeliz, compara sua situação com a do irmão, que não tem deveres a cumprir em casa, e revolta-se.287

 

Os trabalhos caseiros ou as tarefas mundanas que a mãe não hesita em impor à estudante, à aprendiz, acabam por exauri-la. Vi, durante a guerra, alunas que eu preparava para Sèvres esmagadas pelas atividades familiares que se acrescentavam ao trabalho escolar: uma teve o mal de Pott, outra uma meningite. A mãe — veremos — mostra-se surdamente hostil à libertação da filha, e mais ou menos deliberadamente esforça-se por oprimi-la. Respeitam o esforço que o adolescente faz para se tornar homem e desde logo lhe dão uma grande liberdade. Da moça exigem que fique em casa, fiscalizam suas saídas: não a encorajam em absoluto a escolher seus divertimentos, seus prazeres. É raro ver mulheres organizarem sozinhas uma longa viagem, a pé ou de bicicleta, ou dedicar-se a um jogo como o de bilhar, de bolas etc. Além de uma falta de iniciativa que provém de sua educação, os costumes tornam sua independência difícil. Se passeiam pelas ruas, são olhadas, abordadas. Conheço moças que, sem serem absolutamente tímidas, não encontram nenhum prazer em passear sozinhas por Paris porque, importunadas sem cessar, precisam andar sempre atentas: com isso, todo o prazer se esvai. Se as estudantes correrem as ruas em bandos alegres, como fazem os estudantes, querem se mostrar; andar a passos largos, cantar, falar alto, rir, comer uma maçã são provocações, desde logo são insultadas ou seguidas ou abordadas. A despreocupação torna-se de imediato uma falta de compostura; esse controle de si a que a mulher é obrigada, e se torna uma segunda natureza na “moça bem-comportada”, mata a espontaneidade; a experiência viva é com isso reprimida, do que resultam tensão e tédio. Esse tédio é comunicativo: as moças aborrecem-se logo umas das outras; não se prendem mutuamente a sua prisão; e é uma das razões que fazem tão necessária a companhia dos rapazes. Essa incapacidade de bastar a si mesma engendra uma timidez que se estende por toda a vida e deixa marca em seu próprio trabalho: elas pensam que os triunfos brilhantes são reservados aos homens. Não ousam visar alto demais. Viu-se que, comparando-se com os meninos, as meninas de 14 anos diziam: “Os meninos são melhores.” Essa convicção é debilitante. Incita à preguiça e à mediocridade. Uma moça que não tinha nenhuma deferência particular pelo sexo forte criticava a covardia de um homem; observaram-lhe que ela era também muito medrosa: “Ora, uma mulher não é a mesma coisa”, declarou com complacência.

A razão profunda desse derrotismo está em que a adolescente não se imagina responsável por seu futuro; julga inútil exigir muito de si mesma, já que não é dela finalmente que deve depender seu destino. Longe de se dedicar ao homem porque se sente inferior a ele, é porque a ele se acha destinada que, aceitando a ideia de sua inferioridade, ela se torna inferior.

Não será, com efeito, aumentando seu valor humano que ela se valorizará aos olhos dos homens: será moldando-se aos sonhos deles. Quando é ainda inexperiente, ela nem sempre percebe isso. Acontece de ela manifestar a mesma agressividade que os rapazes; tenta conquistá-los com uma autoridade brutal, uma franqueza orgulhosa: essa atitude leva-a quase certamente ao malogro. Da mais servil à mais altiva, todas aprendem que para agradar é preciso abdicar. Suas mães as aconselham a não mais tratar os rapazes como colegas, a não darem os primeiros passos, a assumirem um papel passivo. Se desejam esboçar uma amizade, um namoro, devem evitar cuidadosamente parecer tomar a iniciativa; os homens não gostam de mulher masculinizada, nem de mulher culta, nem de mulher que sabe o que quer: ousadia demais, cultura, inteligência, personalidade, os assustam. Na maioria dos romances, como observa G. Eliot, é a heroína loura e tola que ganha da morena de caráter viril; e no Moinho à beira do Floss, Maggie tenta em vão inverter os papéis; morre finalmente e é Lucy, a loura, que casa com Stephen; no Último dos moicanos, é a insossa Alice que conquista o coração do herói e não a corajosa Clara; em Little Women, a simpática Joe não passa de uma amiga de infância para Laurie: ele dedica seu amor à insípida Amy de cabelos encaracolados. Ser feminina é mostrar-se impotente, fútil, passiva, dócil. A jovem deverá não somente enfeitar-se, arranjar-se, mas ainda reprimir sua espontaneidade e substituir, a esta, a graça e o encanto estudados que lhe ensinam as mais velhas. Toda afirmação de si própria diminui sua feminilidade e suas probabilidades de sedução. O que torna relativamente fácil o início do rapaz na existência é que sua vocação de ser humano não contraria a de macho: já sua infância anuncia esse destino feliz. É se realizando com independência e liberdade que ele adquire seu valor social e concomitantemente seu prestígio viril: o ambicioso, como Rastignac, visa ao dinheiro, à glória e às mulheres num mesmo movimento: uma das estereotipias que o estimulam é a do homem poderoso e célebre, que as mulheres adulam. Para a jovem, ao contrário, há divórcio entre sua condição propriamente humana e sua vocação feminina. E é por isso que a adolescência é para a mulher um momento tão difícil e tão decisivo. Até então, ela era um indivíduo autônomo: cumpre-lhe renunciar à sua soberania. Não somente ela é, como seus irmãos e de uma maneira mais aguda, dividida entre o passado e o futuro, mas ainda um conflito se estabelece entre sua reivindicação original, que é de ser indivíduo em atividade, liberdade, e suas tendências eróticas e solicitações sociais que a convidam a se assumir como objeto passivo. Ela se apreende espontaneamente como o essencial, de que maneira, pois, poderá concordar em tornar-se o inessencial? Mas se não posso realizar-me enquanto Outro, como renunciarei a meu Eu? Eis o angustiante dilema em face do qual a mulher em formação se debate. Oscilando do desejo à aversão, da esperança ao medo, recusando o que almeja, está ainda em suspenso entre o momento da independência infantil e o da submissão feminina: é essa incerteza que lhe dá, ao sair da idade ingrata, um gosto ácido de fruto verde.

A jovem reage de maneira muito diferente segundo suas escolhas anteriores. A mulher comum, a futura matrona, pode resignar-se facilmente à sua metamorfose; entretanto, ela pode também ter extraído, em sua condição de dona de casa, uma inclinação para autoridade que a leva a revoltar-se contra o jugo masculino: ei-la disposta a fundar um matriarcado e não a tornar-se objeto erótico e criada. Será esse, muitas vezes, o caso das irmãs mais velhas que assumiram, muito jovens, importantes responsabilidades. A “menina masculinizada”, ao descobrir que é mulher, experimenta por vezes uma decepção violenta que a pode conduzir diretamente à homossexualidade; entretanto, o que ela procurava, na independência e na violência, era a dominação do mundo, embora possa não querer renunciar ao poder de sua feminilidade, às experiências da maternidade, a toda uma parte de seu destino. Geralmente a jovem consente em sua feminilidade por meio de certas resistências: já no estágio do coquetismo infantil, em face do pai, em seus devaneios eróticos, ela conheceu o encanto da passividade; descobre seu poder; à vergonha que sua carne inspira, mistura-se muito cedo certa vaidade. Tal mão que a comoveu, tal olhar que a perturbou, era um chamado, uma prece; seu corpo se mostra como dotado de virtudes mágicas; é um tesouro, uma arma; tem orgulho dele. Seu coquetismo, que não raro desaparecera durante os anos de infância autônoma, ressuscita. Ela experimenta maquiagens e penteados; em lugar de esconder os seios, lhes faz massagens para que cresçam, estuda o sorriso no espelho. A ligação entre a inquietação e a sedução é tão estreita que, em todos os casos em que a sensibilidade erótica não se manifesta, não se observa no sujeito nenhum desejo de agradar. Experiências mostram que doentes sofrendo de insuficiência tireoidiana, e consequentemente apáticas, tristonhas, podiam ser transformadas mediante injeção de extratos glandulares: começam a sorrir, tornam-se alegres e dengosas. Ousadamente, os psicólogos imbuídos de metafísica materialista declararam que o coquetismo era um “instinto” secretado pela glândula tireoidiana; mas essa explicação obscura só é válida aqui para a primeira infância. O fato é que em todos os casos de deficiência orgânica — linfatismo, anemia etc. — o corpo é suportado como um fardo. Estranho, hostil, ele não espera nem promete nada; quando recobra seu equilíbrio e sua vitalidade, logo o sujeito o reconhece como seu e através dele transcende para outrem.

Para a jovem, a transcendência erótica consiste, com o intuito de pegar, em tornar-se presa. Ela se torna um objeto; e se apreende como objeto; é com surpresa que descobre esse novo aspecto de seu ser: parece-lhe que se desdobra. Ao invés de coincidir exatamente consigo, ei-la que começa a existir fora. Assim, em L’Invitation à la valse, de Rosamond Lehman, vê-se Olivia descobrir num espelho uma imagem desconhecida: é ela-objeto erguido repentinamente em face de si mesma; a emoção que experimenta é transtornante, mas dissipa-se depressa:

 

Há algum tempo, uma emoção particular acompanhava o minuto em que se olhava assim dos pés à cabeça; de maneira imprevista e rara, acontecia que visse diante de si uma estranha, um novo ser.

Isso produziu-se duas ou três vezes. Ela olhava-se num espelho, via-se. Mas que acontecia?... Agora o que via era outra coisa: um rosto misterioso, a um tempo sombrio e radioso; uma cabeleira transbordante de movimentos e de força e como que percorrida por correntes elétricas. Seu corpo — seria por causa do vestido — parecia encaixar-se harmoniosamente: centrado, desabrochado, flexível e estável ao mesmo tempo: vivo. Tinha diante de si, como um retrato, uma jovem de cor-de-rosa, cujos os objetos do quarto, refletidos no espelho, pareciam enquadrar, apresentar, murmurando: é você...

 

O que deslumbra Olivia são as promessas que acredita ler nessa imagem em que reconhece seus sonhos infantis e que é ela própria; mas a moça ama também, na sua presença carnal, esse corpo que a maravilha como o de uma outra. Ela acaricia a si própria, beija a curva do ombro, a concavidade do braço, contempla o seio, as pernas; o prazer solitário torna-se pretexto para devaneios, neles busca uma terna posse de si. No adolescente, há uma oposição entre o amor de si mesmo e o impulso erótico que o impele para o objeto a ser possuído: seu narcisismo desaparece geralmente no momento da maturidade sexual. Ao passo que na mulher, sendo ela um objeto passivo para o amante como para si mesma, há em seu erotismo uma indistinção primitiva. Num movimento complexo, ela visa à glorificação de seu corpo através das homenagens dos homens a quem se destina esse corpo; e seria simplificar as coisas dizer que ela quer ser bela para seduzir ou que busca seduzir para se assegurar de que é bela: na solidão de seu quarto, nos salões em que tenta atrair os olhares, não separa o desejo do homem do amor a seu próprio eu. Essa confusão é manifesta em Maria Bashkirtseff. Já vimos que um desmame tardio a predispôs, mais vivamente do que qualquer outra criança, a querer ser encarada e valorizada por outrem; desde a idade de 5 anos até sair da adolescência, ela dedica todo o seu amor à sua imagem; admira loucamente suas mãos, seu rosto, sua graça, escreve: “Sou minha heroína...” Quer ser cantora para ser olhada por um público deslumbrado e em compensação medi-lo altivamente; mas esse “autismo” traduz-se por sonhos romanescos; desde a idade de 12 anos sente-se amorosa: é que espera ser amada e não procura, na adoração que deseja inspirar, senão a confirmação daquela que dedica a si mesma. Sonha que o duque de H., por quem está apaixonada sem nunca ter falado com ele, se prosterna a seus pés: “Serás ofuscado pelo meu esplendor e me amarás... Só és digno de uma mulher como espero ser.” É a mesma ambivalência que encontramos em Natacha de Guerra e paz:

 

Mamãe tampouco me compreende. Deus meu, como sou espirituosa! Um verdadeiro encanto essa Natacha!, prosseguiu falando a si mesma na terceira pessoa e colocando a exclamação na boca de um personagem masculino que lhe atribuía todas as perfeições de seu sexo. Tem tudo, tudo para ela. É inteligente, gentil e bonita, e hábil. Nada, monta muito bem a cavalo, canta deliciosamente. Sim, pode-se dizer, deliciosamente...

Tinha voltado naquela manhã àquele amor a si mesma, àquela admiração por sua pessoa, que constituíam seu estado de espírito habitual. “Que encanto essa Natacha!, dizia ela, fazendo falar um terceiro personagem coletivo e masculino. É jovem, é bonita, tem uma bela voz, não incomoda ninguém: deixem-na portanto sossegada!”

 

Katherine Mansfield descreveu também, no personagem de Beryl, um caso em que o narcisismo e o desejo romanesco de um destino de mulher se misturam estreitamente:

 

Na sala de jantar, à luz bruxuleante do fogo da lareira, Beryl tocava violão sentada numa almofada. Tocava para si mesma, cantava à meia-voz e se observava. O brilho das chamas refletia em seu sapato, no ventre rubicundo do violão e em seus dedos brancos...

“Se estivesse lá fora e olhasse para dentro pela janela, me espantaria bastante em me ver assim”, pensava. Tocou o acompanhamento em surdina; não cantava mais, escutava.

“Da primeira vez que a vi, menina, você se acreditava muito só! Estava sentada com seus pezinhos sobre a almofada e tocava violão. Deus meu! Nunca poderei esquecer...” Beryl ergueu a cabeça e pôs-se a cantar:

Até a lua está lassa.

 Mas batiam fortemente na porta. A cara avermelhada da criada surgiu... Não, não suportaria aquela mulher estúpida. Fugiu para o salão escuro e pôs-se a andar de um lado para outro. Oh! estava agitada, agitada. Em cima da lareira havia um espelho. Apoiando-se nos braços contemplou sua pálida imagem. Como era bela! Mas não havia ninguém para perceber isso, ninguém... — Beryl sorriu e realmente seu sorriso era tão adorável que sorriu de novo... (Prelúdio).

 

Esse culto do eu não se traduz, na jovem, somente pela adoração de sua pessoa física. Ela almeja também possuir e incensar todo seu eu. Esse é o objetivo visado através desses diários íntimos em que ela derrama de bom grado a alma. O de Maria Bashkirtseff é célebre e um modelo no gênero. A jovem fala com seus cadernos como falava antes com suas bonecas, é um amigo, um confidente, interpela-o como se fora uma pessoa. Entre as páginas inscreve-se uma verdade escondida aos pais, aos colegas, aos professores, e com a qual a autora se embriaga solitariamente. Uma jovem de 12 anos que escreveu seu diário até a idade de vinte pusera-lhe como epígrafe:

 

Sou o caderninho

gentil, bonito e discreto,

confia-me todos os teus segredos

Sou o caderninho.288

 

Outras proclamam: “Para ser lido somente depois da minha morte” ou “para ser queimado depois da minha morte”. O sentido do segredo desenvolvido na menina, no momento da pré-puberdade, aumenta sempre. Ela se encerra numa solidão arisca; recusa-se a desvendar aos que a cercam o eu recôndito que considera seu verdadeiro eu e que na realidade é um personagem imaginário: finge ser uma dançarina como a Natacha de Tolstoi, ou uma santa como fazia Marie Lenéru, ou simplesmente essa maravilha singular que é ela própria. Há sempre uma enorme diferença entre essa heroína e a figura objetiva que seus pais e amigos reconhecem nela. Por isso, ela se persuade de que é incompreendida: suas relações consigo mesma são ainda mais apaixonadas. Ela se embriaga com seu isolamento, sente-se diferente, superior, excepcional: promete a si mesma que seu futuro será um revide à mediocridade de sua vida presente. Desta existência estreita e mesquinha, ela se evade nos sonhos. Sempre gostou de sonhar: não abandonará nunca mais esse pendor: mascara com clichês poéticos um universo que a intimida, aureola o sexo masculino de luar, de nuvens róseas, de noites aveludadas; faz do corpo um templo de mármore, de jaspe, de madrepérola; conta a si própria tolas histórias mágicas. É por falta de um domínio sobre o mundo que se afunda tantas vezes na tolice. Se devesse agir teria de enxergar claramente, ao passo que pode esperar no meio do nevoeiro. O rapaz também sonha: sonha principalmente com aventuras em que desempenha um papel ativo. A jovem prefere o maravilhoso à aventura; ela espalha sobre as pessoas e as coisas uma luz mágica incerta. A ideia de magia é a de uma força passiva; como é destinada à passividade e no entanto aspira ao poder, é preciso que a adolescente acredite na magia: a de seu corpo que submeterá os homens a seu jugo, a do destino em geral que a satisfará sem que precise fazer nada. Quanto ao mundo real, tenta esquecê-lo.

 

“Por vezes, na escola, fujo, não sei como, do assunto explicado e me elevo ao país dos sonhos...”, escreve uma jovem.289 “Absorvo-me então a tal ponto em deliciosas quimeras que perco completamente a noção da realidade. Fico pregada a meu banco e, quando acordo, espanta-me reencontrar-me entre quatro paredes.”

 

“Prefiro devanear a fazer versos”, escreve outra, “esboçar em minha imaginação lindos contos sem pé nem cabeça ou inventar uma lenda, olhando as montanhas à luz das estrelas. É bem mais bonito porque é mais vago e deixa uma impressão de repouso, de frescor”.

 

O devaneio pode assumir uma forma mórbida e invadir toda a existência, como no seguinte caso:290

 

Maria B., menina inteligente e sonhadora, no momento da puberdade, que se manifesta por volta dos 14 anos, sofre uma crise de excitação psíquica com ideias de grandeza. “Repentinamente, declara a seus pais que é rainha da Espanha, toma atitudes altivas, envolve-se em cortinados, ri, canta, manda, ordena.” Durante dois anos esse estado se repete no período das regras; em seguida, durante oito anos, leva uma vida normal, mas é muito sonhadora, adora o luxo e diz muitas vezes com amargura: “Sou a filha de um empregado.” Por volta dos 23 anos torna-se apática, despreza os que a cercam, dá mostra de concepções ambiciosas; definha a tal ponto que a internam em Sainte-Anne, onde permanece oito meses. Volta para a casa de sua família, onde durante três anos fica de cama, “desagradável, má, violenta, caprichosa, desocupada, fazendo que toda gente ao redor dela leve uma vida verdadeiramente infernal”. É internada novamente em Sainte-Anne, de onde não sai mais. Fica de cama e não se interessa por nada. Em certos períodos, que parecem corresponder aos da menstruação, levanta-se, envolve-se nas suas cobertas, toma atitudes teatrais, poses, sorri aos médicos e olha-os ironicamente... Suas palavras exprimem muitas vezes certo erotismo e sua atitude altiva traduz ideias megalomaníacas. Entrega-se cada vez mais ao devaneio, durante o qual sorrisos de satisfação assomam-lhe ao rosto; não se lava mais e até suja a cama. “Exibe ornatos estranhos. Sem camisa, com frequência sem lençóis, enrolada nas cobertas quando não se expõe nua, arvora um diadema de papel de estanho na cabeça e numerosas pulseiras de barbante e fita nos punhos, nos ombros, nos tornozelos. Anéis do mesmo tipo enfeitam seus dedos.” Entretanto, faz às vezes confidências inteiramente lúcidas acerca de seu estado. “Lembro-me da crise que tive outrora. No fundo eu sabia que não era verdade. Era como uma criança que brinca com boneca, que sabe que a boneca não é viva, mas quer persuadir-se do contrário... Penteava-me, vestia-me com cobertas. Isso me divertia e depois, pouco a pouco, como contra minha vontade, ficava enfeitiçada, era como um sonho que eu vivia... Era uma comediante desempenhando um papel. Estava num mundo imaginário. Vivia várias vidas e em todas elas era o personagem principal... Ah! Tive tantas vidas diferentes! De uma feita casei-me com um americano muito bonito que usava óculos de ouro... Tínhamos um grande palacete e cada qual tinha seu quarto. Quantas festas dei!... Vivi no tempo do homem das cavernas... Fiz farra outrora. Não contei todos com quem dormi. Aqui são um pouco atrasados. Não compreendem que eu fique nua com uma pulseira de ouro na coxa. Outrora tinha amigos de que gostava muito. Fazíamos festas em minha casa. Havia flores, perfumes, mantos de arminho. Meus amigos me davam objetos de arte, estátuas, automóveis... Quando fico nua entre os lençóis, recordo a vida de outrora. Adorava-me no espelho, como uma artista... Nesse encantamento fui tudo o que quis. Fiz até tolices. Fui morfinômana, cocainômana. Tive amantes... Introduziam-se à noite em minha casa. Vinham dois juntos, traziam cabeleireiros e olhávamos cartões-postais.” Ela gosta também de um dos médicos, de quem se diz amante. Teria tido uma filha de três anos. Tem também outra de seis, muito rica, e que está viajando. O pai é um homem muito chique. “Há muitas outras histórias semelhantes. Cada uma é a narrativa de uma existência fictícia que ela vive em sua imaginação.”

 

Vê-se que esse devaneio mórbido destinava-se essencialmente a satisfazer o narcisismo da jovem que considera sua vida insatisfatória e teme enfrentar a verdade da existência; Maria B. não fez senão levar ao extremo um processo de compensação que é comum em numerosas adolescentes.

Entretanto, esse culto solitário que rende a si mesma não basta à jovem. Para se realizar, ela precisa existir numa outra consciência. Busca muitas vezes o auxílio de suas companheiras. Quando era mais nova, a amiga mais íntima servia-lhe de ponto de apoio para evadir-se do círculo materno, para explorar o mundo e em particular o mundo sexual; agora ela é, ao mesmo tempo, um objeto que arranca a adolescente dos limites de seu eu e uma testemunha que lhe restitui este limite. Certas meninas exibem sua nudez umas às outras, comparam os seios. Talvez se lembrem da cena de Jeunes filles en uniforme que mostrava esses folguedos ousados das internas; trocam carícias difusas ou precisas. Como Colette relata em Claudine à l’école, e menos francamente Rosamond Lehman em Poussière, há tendências lésbicas em quase todas as jovens. Essas tendências mal se distinguem da deleitação narcisista: o que cada uma deseja na outra é a doçura da própria pele, o modelado das curvas que cada uma cobiça e, reciprocamente, na adoração que tem por si mesma, está implicado o culto da feminilidade em geral. Sexualmente o homem é sujeito; os homens acham-se, portanto, normalmente separados pelo desejo que os impele para um objeto diferente deles; mas a mulher é objeto absoluto de desejo; eis por que em liceus, escolas, internatos, ateliers, florescem tantas “amizades especiais”; algumas são puramente espirituais, outras fortemente carnais. No primeiro caso, trata-se principalmente de abrir o coração entre amigas, de trocar confidências; a prova de confiança mais apaixonada consiste em mostrar o diário íntimo à amiga; na falta de carícias sexuais, as amigas trocam manifestações de extremada ternura e muitas vezes trocam provas físicas de seus sentimentos: assim é que Natacha queima o braço com uma régua em brasa para provar a Sônia seu amor; mas, sobretudo, elas se chamam por mil nomes carinhosos, trocam cartas fervorosas. Eis, por exemplo, o que escrevia à amada Emily Dickinson, uma jovem puritana da Nova Inglaterra:

 

Penso em você todo dia e sonhei com você durante toda a noite passada. Estávamos passeando no mais maravilhoso dos jardins, ajudava-a a colher rosas e meu cesto nunca se enchia. Assim, durante todo o dia rezo para passear com você e quando a noite se aproxima fico feliz e conto impacientemente as horas que se interpõem entre mim e a escuridão, meus sonhos e o cesto que nunca se enche...

 

Em sua obra L’Âme de l’adolescente, Mendousse cita numerosas cartas análogas:

 

Minha querida Susana... Gostaria de transcrever aqui alguns versículos do Cântico dos cânticos: como és bela, minha amiga, como és bela! Como a noiva mística, você era semelhante à rosa de Saron, ao lírio do vale, e como ela você foi para mim mais do que uma moça comum; você foi símbolo, o símbolo de muitas coisas belas e elevadas... e por causa disso, branca Susana, eu a amo com um amor puro e desinteressado em que há algo religioso.

 

Outra confessa em seu diário emoções menos elevadas:

 

Estava ali, a cintura tomada por aquela mãozinha branca, minha mão repousando em seu ombro redondo, meu braço em seu braço morno e nu, aconchegada à doçura de seu seio, tendo à minha frente sua linda boca entreaberta sobre seus dentinhos... Tremia e sentia meu rosto em fogo.291

 

Em seu livro L’Adolescente, Mme Évard recolheu também bom número dessas efusões íntimas:

 

A minha fada bem-amada, minha querida muito querida. Minha linda fada! Diga-me que me ama ainda, diga-me que continuo a ser sempre sua amiga devotada. Estou triste, a amo tanto, minha L... e não posso falar com você, formular suficientemente minha afeição; não há palavras que descrevam meu amor. Idolatrar é dizer pouco em relação ao que sinto; parece-me, por vezes, que meu coração vai rebentar. Ser amada por você é belo demais, não posso acreditar nisso. Oh!, minha mimosa, diga-me, você me amará ainda durante muito tempo?... etc.

 

Dessas ternuras exaltadas, passa-se facilmente a amores juvenis culposos. Por vezes, uma das duas amigas domina a outra e exerce seu poder com sadismo; mas, muitas vezes, trata-se de amores recíprocos, sem humilhação nem luta. O prazer dado e recebido permanece tão inocente como no tempo em que cada uma se amava solitariamente sem se desdobrar num casal. Mas essa brancura é insossa; quando a adolescente almeja enfrentar a vida, atingir o Outro, quer ressuscitar em seu proveito a magia do olhar paterno, exige o amor e as carícias de uma divindade. Vai se voltar para uma mulher, menos estranha e menos temível do que o homem, mas que participará do prestígio viril: uma mulher com uma profissão, ganhando a vida, com certo prestígio social, será facilmente tão fascinante quanto um homem. Sabe-se quantas paixões se acendem no coração das estudantes pelas professoras e as inspetoras. Em Régiment de femmes, Clémence Dane descreve, de maneira casta, paixões ardorosas. Por vezes, a jovem faz à sua amiga íntima a confidência de sua grande paixão: acontece mesmo que ambas a partilhem e que cada qual se vanglorie de senti-la mais fortemente. Assim é que uma estudante escreve à sua colega predileta:

 

Estou de cama, com gripe, nada faço senão pensar em Mlle X. Nunca amei uma professora a esse ponto. Já no primeiro ano gostava muito dela; mas agora é realmente amor. Creio que estou mais apaixonada do que você. Parece-me que a beijo; quase desfaleço e alegro-me em voltar à escola para vê-la.292

 

Mais comumente ela ousa confessar seus sentimentos ao seu próprio ídolo:

 

Acho-me diante da senhora, minha querida Mademoiselle, num estado indescritível... Quando não a vejo, daria tudo no mundo para encontrá-la. Penso na senhora a cada instante. Se a encontro, fico com os olhos rasos de lágrimas, tenho vontade de me esconder; sou tão pequena, tão ignorante perto da senhora. Quando a senhora fala comigo, fico embaraçada, comovida, parece-me ouvir a doce voz de uma fada e um zunido de coisas amorosas, impossíveis de serem traduzidos; espio seus menores gestos, não presto mais atenção à conversa, murmuro alguma tolice; a senhora convirá, querida Mademoiselle, em que isso é bastante complicado. Só vejo uma coisa com nitidez, é que a amo do fundo do coração.293

 

A diretora de uma escola profissional conta:294

 

Lembro-me de que, em minha própria juventude, disputávamos o papel em que uma de nossas jovens professoras trazia o almoço e pagávamos os pedaços até vinte pfennings. Seus bilhetes de metrô, já usados, eram igualmente objeto de nossa mania de colecionadoras.

 

Como deve desempenhar um papel viril, é preferível que a mulher amada não seja casada: o casamento nem sempre desanima a jovem amorosa, mas a incomoda. Ela detesta que o objeto de sua adoração se apresente como submissa ao poder de um marido ou de um amante. Muitas vezes, essas paixões desenvolvem-se em segredo, ou pelo menos num plano puramente platônico; mas a passagem para um erotismo concreto é muito mais fácil, no caso, do que se o objeto amado pertencer ao sexo masculino. Mesmo quando não teve experiências fáceis com amigas de sua idade, o corpo feminino não assusta a jovem; esta conheceu muitas vezes com as irmãs e a mãe uma intimidade em que a ternura se impregnava sutilmente de sensualidade, e, junto da amada que admira, a passagem da ternura ao prazer será feita também de maneira insensível. Quando em Jeunes filles en uniforme, Dorothy Wieck beijava Herta Thill na boca, o beijo era maternal e sexual a um só tempo. Há entre mulheres uma cumplicidade que desarma o pudor; a perturbação que uma desperta na outra é geralmente sem violência; as carícias homossexuais não implicam defloração nem penetração: satisfazem o erotismo clitoridiano da infância sem reclamar novas e inquietantes metamorfoses. A jovem pode realizar sua vocação de objeto passivo sem se sentir profundamente alienada. É o que exprime Renée Vivien em seus versos, em que descreve relações de “mulheres malditas” com suas amantes:

 

Nossos corpos são para seus corpos um espelho fraternal,

Nossos beijos lunares têm pálidas doçuras,

Nossos dedos não magoam a penugem de um rosto

E podemos, quando o cinto se solta,

Ser a um tempo amantes e irmãs.295

 

E nestes igualmente:

 

Porque amamos a graça e a delicadeza.

E minha posse não te machuca os seios...

Minha boca não poderia morder asperamente tua boca.296

 

Através da impropriedade poética das palavras “seios” e “boca”, o que ela promete realmente à amiga é não a violentar. E é em parte por medo da violência, da violação, que a adolescente dedica amiúde seu primeiro amor a uma amiga mais velha antes do que a um homem. A mulher viril reencarna para ela ao mesmo tempo o pai e a mãe: do pai tem a autoridade, a transcendência, é fonte e medida dos valores, emerge para além do mundo dado, é divina. Mas permanece mulher: se na infância foi demasiadamente privada das carícias maternas ou, ao contrário, se a mãe a mimou durante um tempo demasiado longo, a adolescente sonha, como seus irmãos, com o calor do seio. Nesta carne próxima da sua, ela reencontra com abandono essa fusão imediata com a vida que o desmame destruiu; e, através desse olhar estranho que a envolve, a separação que a individualiza é superada. Naturalmente, toda relação humana implica conflitos; todo amor, ciúmes. Mas muitas dificuldades que surgem entre a virgem e seu primeiro amante são assim resolvidas. A experiência homossexual pode assumir o aspecto de um verdadeiro amor: pode dar à jovem um equilíbrio tão feliz que ela o desejará perpetuar, repetir, que dele conservará uma recordação nostálgica; ele poderá revelar ou dar origem a uma vocação lésbica.297 Porém, o mais das vezes, não representa senão uma etapa: sua própria facilidade o condena. No amor que dedica a uma amiga mais velha, a jovem visa seu próprio futuro: quer identificar-se com o ídolo, mas este, exceto no caso de uma superioridade excepcional, logo perderá sua aura; quando começa a afirmar-se, a mais moça julga, compara: a outra, que fora escolhida exatamente porque era mais próxima e não intimidava, não é bastante outro para se impor durante muito tempo; os deuses masculinos estão mais solidamente instalados porque seu céu é mais longínquo. A curiosidade, a sensualidade incitam a jovem a desejar carícias mais violentas. Muitas vezes ela só encarou, desde o início, a aventura homossexual como uma transição, uma iniciação, uma espera; representou o amor, o ciúme, a cólera, o orgulho, a alegria, a dor com a ideia mais ou menos confessada de que imitava sem grandes riscos as aventuras com que sonhava, mas que não ousava ainda ou não tinha a oportunidade de viver. Sabe que é destinada ao homem. E quer um destino de mulher normal e completa.

O homem a fascina, entretanto a amedronta. Para conciliar os sentimentos contraditórios que lhe dedica, vai dissociar nele o macho que a assusta e a divindade radiosa que adora piedosamente. Brusca, selvagem com colegas masculinos, ela adora longínquos príncipes encantados: atores de cinema cuja fotografia pendura em cima da cama, heróis mortos ou vivos, mas em todo caso inacessíveis, desconhecidos vistos por acaso e que ela sabe que não tornará a ver. Tais amores não suscitam nenhum problema. Com frequência é a um homem dotado de prestígio social ou intelectual, mas cujo físico não a pode perturbar, que se dedica; a um velho professor um tanto ridículo, por exemplo; esses homens idosos emergem além do mundo em que a adolescência está confinada, é possível destinar-se a eles em segredo, consagrar-se a eles como se consagraria a Deus: um tal dom nada tem de humilhante, é livremente consentido, já que não desejado na carne. A amorosa romanesca aceita até de bom grado que o eleito tenha um aspecto humilde, seja feio, até insignificante: sente-se, com isso, ainda mais segura. Finge deplorar os obstáculos que a separam dele, mas na verdade ela o escolheu exatamente porque nenhuma relação efetiva era possível entre ambos. Assim ela pode ter do amor uma experiência abstrata, puramente subjetiva, que não atenta contra sua integridade; seu coração bate, ela conhece a dor da ausência, as angústias da presença, o despeito, a esperança, o rancor, o entusiasmo, mas sem consequências; nada de si mesma se acha empenhado. É engraçado constatar que o ídolo escolhido é tanto mais brilhante quanto mais distante estiver: é útil que o professor de piano com quem ela se encontra cotidianamente seja ridículo e feio; mas se se apaixona por um estranho que se movimenta em esferas inacessíveis, prefere-o belo e macho. O importante é que, de uma maneira ou de outra, a questão sexual não se coloque. Esses amores de imaginação prolongam e confirmam a atitude narcisista em que o erotismo só aparece em sua imanência, sem a presença real do Outro. É porque encontra um álibi, que lhe permite esquivar-se das experiências concretas, que muitas vezes a adolescente desenvolve uma vida imaginária de extraordinária intensidade. Ela escolhe confundir seus fantasmas com a realidade. Entre outros exemplos, H. Deutsch298 relata um muito significativo: é o de uma jovem bonita e sedutora que teria podido ser facilmente cortejada e que se recusava a qualquer relação com os jovens de seu meio; entretanto, no segredo de seu coração, tinha, aos 13 anos, decidido render culto a um rapaz de 17, mais ou menos sem encantos e que nunca lhe endereçara uma palavra. Obteve uma fotografia dele, dedicou-a a si mesma, e durante três anos redigiu um diário em que relatava suas experiências imaginárias: trocavam beijos e abraços apaixonados; havia, às vezes, entre eles, cenas de lágrimas que lhe deixavam os olhos realmente vermelhos e inchados; depois se reconciliavam, ela mandava flores a si mesma etc. Quando uma mudança de residência a separou dele, ela lhe escreveu cartas, que nunca lhe enviou, mas a que ela mesma respondia. Essa história era, evidentemente, uma defesa contra experiências reais de que tinha medo.

Esse caso é quase patológico. Mas ilustra, de modo exagerado, um processo comum. Vemos em Maria Bashkirtseff um exemplo surpreendente de vida sentimental imaginária. Nunca falou com o duque de H., por quem acha estar apaixonada. O que almeja na verdade é a exaltação de seu eu; mas sendo mulher, e principalmente na época e na classe a que pertencia, não podia alcançar êxitos por meio de uma existência autônoma. Com a idade de 18 anos ela anota lucidamente: “Escrevo a C. que gostaria de ser um homem. Sei que poderia tornar-me alguém; mas com saias aonde se quer chegar? O casamento é a única carreira para as mulheres; os homens têm 36 possibilidades, a mulher uma só; o zero, como na roleta.” Ela precisa, portanto, do amor de um homem; mas, para que este seja capaz de lhe conferir um valor soberano, deve ser ele próprio consciência soberana. “Nunca um homem abaixo de minha posição poderia agradar-me, escreve. Um homem rico, independente, traz consigo o orgulho e certo aspecto confortável. A segurança tem certo ar vitorioso. Gosto em H. dessa atitude caprichosa, pretensiosa e cruel; tem algo de Nero.” E mais ainda: “Esse aniquilamento da mulher diante da superioridade do homem amado deve ser o maior gozo de amor-próprio que pode uma mulher superior experimentar.” Assim, o narcisismo conduz ao masoquismo: essa ligação já se encontrava na criança sonhando com Barba Azul, Grisélides, as santas mártires. O eu é constituído como para outrem, por outrem: quanto mais poderoso é esse outrem tanto mais o eu tem riquezas e poderes; cativando seu senhor, ele envolve em si todas as virtudes que aquele detém; amada por Nero, Maria Bashkirtseff seria Nero; aniquilar-se diante de outrem, é realizar outrem em si e para si ao mesmo tempo; em verdade, esse sonho do nada é uma orgulhosa vontade de ser. Na verdade Maria Bashkirtseff jamais encontrou homem maravilhoso o bastante para que aceitasse alienar-se através dele. Uma coisa é ajoelhar-se diante de um deus forjado por si mesma e que permanece distante, e outra entregar-se a um macho de carne e osso. Muitas moças obstinam-se durante muito tempo a continuar seu sonho através do mundo real: procuram um homem que lhes pareça superior a todos os outros pela posição, o mérito, a inteligência; querem-no mais velho do que elas, tendo já conquistado um lugar na Terra, gozando de autoridade e prestígio. A fortuna e a celebridade as fascinam: o eleito apresenta-se como o Sujeito absoluto que pelo amor lhes comunicará seu esplendor e sua necessidade. Sua superioridade idealiza o amor que a jovem lhe dedica: não é porque ele é homem que ela deseja unir-se a ele, é por esse ser de elite. “Eu quisera gigantes e só encontro homens”, dizia-me outrora uma amiga. Em nome dessas grandes exigências, a jovem desdenha pretendentes demasiado cotidianos e foge dos problemas da sexualidade. Ela adora também, em seus sonhos, sem riscos, uma imagem de si própria que a encanta enquanto imagem, embora não consinta em absoluto adaptar-se a ela. Assim, Marie Le Hardouin299 conta que se comprazia em se ver como vítima, inteiramente dedicada a um homem, quando na verdade era autoritária.

 

Por uma espécie de pudor nunca pude exprimir na realidade essas tendências ocultas de minha natureza, que tanto vivi em sonho. Tal como aprendi a me conhecer, sou efetivamente autoritária, violenta, incapaz, no fundo, de me dobrar.

 

Obedecendo sempre a uma necessidade de me abolir, eu me imaginava por vezes que era uma mulher admirável, vivendo somente pelo dever e amorosa até a imbecilidade de um homem a cujos menores desejos me esforçava por atender. Debatíamo-nos em meio a uma existência desagradável. Ele matava-se de trabalho e voltava à noite pálido e em desalinho. Eu gastava meus olhos perto de uma janela sem luz a consertar-lhe as roupas. Numa estreita cozinha enfumaçada arranjava-lhe alguns pratos miseráveis. A doença ameaçava de morte, sem cessar, nosso único filho. Entretanto, um sorriso crucificado de doçura palpitava sempre em meus lábios, e sempre viam em meus olhos essa expressão insuportável de coragem silenciosa que nunca pude suportar sem repugnância na realidade.

 

Além dessas complacências narcisistas, certas moças experimentam mais concretamente a necessidade de um guia, de um senhor. No momento em que escapam ao domínio dos pais, sentem-se inteiramente embaraçadas com uma autonomia a que não foram habituadas; quase não sabem, em geral, usá-la senão negativamente, caem no capricho e na extravagância, aspiram a abdicar novamente de sua liberdade. A história da jovem caprichosa orgulhosa, rebelde, insuportável, e que é amorosamente domada por um homem sensato é um lugar-comum da literatura barata e do cinema: é um clichê que lisonjeia ao mesmo tempo os homens e as mulheres. É a história que conta, entre outras, Mme de Ségur em Quel amour d’enfant!. Decepcionada em criança por um pai demasiado indulgente, Gisele apegou-se a uma velha tia severa; moça, sofre a ascendência de um rapaz rabugento, Julien, que lhe diz duras verdades, que a humilha e tenta corrigi-la; ela se casa com um duque rico e sem caráter com quem é muito infeliz, e quando, viúva, aceita o amor exigente de seu mentor, é que encontra enfim alegria e sossego. Em Good Wives, de Louisa Alcott, a independente Joe começa a gostar de seu futuro marido porque ele lhe censura severamente uma leviandade cometida; ele a repreende também e ela se apressa em se desculpar, em se submeter. Apesar do orgulho crispado das mulheres norte-americanas, os filmes de Hollywood nos apresentaram, cem vezes, meninas insuportáveis domadas pela brutalidade sadia de um namorado ou de um marido: um par de bofetões, umas boas palmadas são apresentados como meios eficientes de sedução. Mas na realidade a passagem do amor ideal ao amor sexual não é simples. Muitas mulheres evitam cuidadosamente aproximar-se do objeto de sua paixão, por um medo mais ou menos confessado de uma decepção. Se o herói, o gigante, o semideus responde ao amor que inspira e o transforma numa experiência real, a jovem se assusta; seu ídolo torna-se um macho de quem ela se afasta enojada. Há adolescentes coquetes que tudo fazem para seduzir um homem que lhes parece “interessante” ou “fascinante”, mas que paradoxalmente se irritam se ele lhes retribuiu um sentimento demasiado vivo: ele agradava porque parecia inacessível; amoroso, vulgariza-se. “É um homem como os outros.” A jovem censura nele a decadência, vale-se do pretexto para recusar os contatos físicos que assustam sua sensibilidade virginal. Se cede a seu “Ideal”, fica insensível nos braços dele e “acontece”, diz Stekel,300 “que jovens exaltadas se suicidem após tais cenas em que toda a construção da imaginação amorosa se desmorona porque o Ideal se revela sob a forma de um “animal brutal”. É também por amor ao impossível que muitas vezes a jovem se apaixona por um homem quando ele começa a cortejar uma de suas amigas, e é também por isso que muitas vezes escolhe um homem casado. Ela é facilmente atraída pelos don juans; sonha em submeter e dominar esse sedutor que nenhuma mulher consegue reter, acalenta a esperança de transformá-lo. Na realidade sabe que fracassará em seu empreendimento, e esta é uma das razões de sua escolha. Certas jovens mostram-se incapazes de conhecer alguma vez um amor real e completo. Durante toda a vida procurarão um ideal inacessível.

É que há conflito entre o narcisismo da jovem e as experiências a que a sexualidade a destina. A mulher só se aceita como o inessencial com a condição de se reencontrar como o essencial em sua abdicação. Fazendo-se objeto, ei-la que se torna um ídolo em que se reconhece orgulhosamente; mas ela recusa a implacável dialética que lhe determina retornar ao inessencial. Quer ser um tesouro fascinante, não uma coisa a ser possuída. Gosta de apresentar-se como um maravilhoso fetiche carregado de eflúvios mágicos, e não se encarar como uma carne que se deixa ver, apalpar, machucar: e o homem ama a mulher como presa mas foge da ogra Deméter.

Orgulhosa por captar o interesse masculino, por suscitar a admiração, o que a revolta é ser em troca aprisionada. Com a puberdade ela aprendeu a vergonha, e a vergonha continua misturada a seu coquetismo e a sua vaidade; os olhares dos homens lisonjeiam-na e ferem-na ao mesmo tempo; gostaria de ser vista apenas na medida em que se mostra: os olhos são sempre demasiado penetrantes. Daí as incoerências que desnorteiam os homens: ela exibe seu decote, suas pernas e logo que as olham enrubesce, se irrita. Diverte-se provocando o macho, mas, se percebe que despertou nele o desejo, recua com aversão: o desejo masculino é uma ofensa tanto quanto uma homenagem; à medida que se sente responsável por seu encanto, em que lhe parece exercê-lo livremente, ela se encanta com suas vitórias, mas, à medida que sua carne, suas formas, seus traços são dados e suportados, deseja roubá-los a essa liberdade estranha e indiscreta que os deseja. Esse é o sentido profundo desse pudor original que interfere de maneira desconcertante nos coquetismos mais ousados. Uma menina pode ter ousadias espantosas porque não percebe que suas iniciativas a revelam em sua passividade. Logo que o percebe, se assusta e se zanga. Nada é mais equívoco do que um olhar; ele existe à distância e graças a essa distância parece respeitoso: mas ele se apodera matreiramente da imagem percebida. A mulher em formação debate-se nessas armadilhas. Começa a abandonar-se, mas logo se crispa e mata o desejo em si. Em seu corpo ainda incerto, a carícia é sentida ora como um prazer terno, ora como uma cócega desagradável; um beijo comove-a primeiramente, e repentinamente a faz rir; ela faz com que, a cada complacência, suceda uma revolta; deixa-se beijar, mas limpa a boca com afetação; sorridente e terna, torna-se subitamente irônica e hostil; faz promessas e deliberadamente as esquece. Assim é Mathilde de la Môle, seduzida pela beleza e as raras qualidades de Julien, desejosa de alcançar pelo amor um destino excepcional, mas recusando selvagemente o domínio dos sentidos e de uma consciência estranha; passa do servilismo à arrogância, da súplica ao desprezo; tudo o que dá pede imediatamente de volta. Assim é também essa “Monique”, cujo retrato Marcel Arland traçou, que confunde a inquietação com o pecado, para quem o amor é uma abdicação vergonhosa, cujo sangue queima mas que detesta esse ardor e só se submete rebelando-se.

É exibindo uma natureza infantil e perversa que o “fruto verde” se defende contra o homem. Sob essa forma semisselvagem e semissensata, foi a jovem descrita muitas vezes. Colette, entre outros, pintou-a em Claudine à l’école e igualmente em Blé en herbe com os traços da sedutora Vinca. Ela conserva um interesse fervoroso pelo mundo colocado à frente dela e sobre o qual reina como soberana; mas tem também curiosidade, um desejo sensual e romanesco pelo homem. Vinca arranha-se nas sarças, pesca camarões, sobe nas árvores e no entanto estremece quando seu colega Phil lhe toca a mão; ela conhece a inquietação em que o corpo se faz carne e que é a primeira revelação da mulher como mulher; perturbada, começa a querer ser bonita: às vezes penteia-se, maquia-se, veste-se de organdi vaporoso, diverte-se em ser coquete e em seduzir; mas como quer também existir para si e não somente para outrem, outras vezes se veste com vestidos velhos e desgraciosos, com calças que não lhe caem bem; há toda uma parte de si própria que condena o coquetismo e o considera uma abdicação: por isso, propositadamente anda com os dedos sujos de tinta, mostra-se despenteada, desmazelada. Essas rebeliões causam-lhe um embaraço que ela sente com despeito: se aborrece com isso, enrubesce, torna-se duplamente desajeitada e fica com horror dessas tentativas frustradas de sedução. Nesse estágio, a jovem não quer mais ser criança, mas também não quer tornar-se adulta, censura em si mesma ora sua puerilidade, ora sua resignação de fêmea. Ela encontra-se em atitude de constante recusa.

Esse é o traço que caracteriza a jovem e nos dá a chave da maior parte de suas condutas; não aceita o destino que a natureza e a sociedade lhe designam; e no entanto não o repudia positivamente: acha-se interiormente dividida para entrar em luta com o mundo; limita-se a fugir da realidade ou a contestá-la simbolicamente. Cada desejo seu comporta uma angústia: está ávida por entrar na posse de seu futuro, mas teme romper com o passado; almeja “ter” um homem, repugna-lhe ser sua presa. E atrás de cada temor dissimula-se um desejo: a violação causa-lhe horror, mas ela aspira à passividade. Por isso está votada à má-fé e a todos os ardis desta; por isso está predisposta a toda espécie de obsessões negativas que traduzem a ambivalência do desejo e da ansiedade.

Uma das formas de contestação que se encontram mais frequentemente na adolescente é o escárnio. Estudantes, midinettes, morrem de rir contando entre si histórias sentimentais ou escabrosas, falando de namoros, cruzando com homens na rua ou vendo namorados se beijarem; conheci colegiais que passavam propositadamente pela alameda dos namorados no Jardim do Luxemburgo só para rir; e outras que frequentavam banhos turcos para zombar das mulheres gordas, barrigudas e de seios caídos que lá encontravam: escarnecer do corpo feminino, ridicularizar os homens, rir do amor, é uma maneira de negar a sexualidade; há nesses risos como que um desafio aos adultos, uma maneira de superar o próprio embaraço; brinca-se com imagens e palavras para destruir-lhes a magia perigosa: assim é que vi jovens de uns 14 anos morrerem de rir ao depararem com a palavra fêmur no texto latino. Com muito mais razão a jovem se vinga rindo na cara do parceiro ou com colegas quando se deixa beijar ou bolinar. Lembro-me, uma noite, em um compartimento de trem em que duas moças se deixavam acariciar, cada uma por sua vez, por um caixeiro-viajante muito feliz com a sua sorte: entre cada sessão riam histericamente, reencontrando, num ajuste de sexualidade e vergonha, as condutas da idade ingrata. Juntamente com a gargalhada, as jovens apelam para a linguagem: valem-se algumas delas de um vocabulário cuja grosseria faria seus irmãos corarem; isso as perturba tanto menos quanto as expressões que usam não lhes evocam, em consequência de sua semi-ignorância, nenhuma imagem precisa; o objetivo é, aliás, apenas o de impedir que as imagens se formem, pelo menos o de as desmontar; as histórias grosseiras que as colegiais contam umas para as outras destinam-se muito menos a satisfazer instintos sexuais do que a negar a sexualidade: querem encará-la apenas sob um aspecto humorístico, como uma operação mecânica e quase cirúrgica. Mas, como o riso, o emprego de uma linguagem obscena não é unicamente uma contestação: é também um desafio aos adultos, uma espécie de sacrilégio, uma conduta deliberadamente perversa. Recusando a natureza e a sociedade, a jovem as provoca e as enfrenta mediante numerosas singularidades. Observaram-se nela muitas vezes manias alimentares: come pontas de lápis, pedaços de lacre, pauzinhos, camarões vivos, comprimidos de aspirina às dúzias, e até moscas e aranhas; conheci uma, muito bem-comportada que entretanto compunha com café e vinho branco horríveis misturas que se esforçava para beber; outras vezes comia açúcar embebido de vinagre. Vi uma outra que mastigou resolutamente um vermezinho encontrado na salada. Todas as crianças se esforçam por experimentar o mundo com os olhos, as mãos, e mais intimamente com a boca e o estômago: mas na idade ingrata a menina compraz-se mais particularmente em explorá-lo no que tem de indigesto e repugnante. Muitas vezes o que é “nojento” a atrai. Uma delas, que era bonita, não raro coquete e limpa, mostrava-se realmente fascinada por tudo o que lhe parecia “sujo”: tocava em insetos, contemplava suas toalhinhas maculadas, chupava o sangue das feridas. Brincar com coisas sujas é, evidentemente, uma maneira de superar o nojo; esse sentimento assumiu grande importância no momento da puberdade; a jovem tem repugnância por seu corpo demasiado carnal, pelo sangue menstrual, pelas práticas sexuais dos adultos, pelo macho a que se destina; nega-o comprazendo-se precisamente na familiaridade de tudo o que a enoja. “Como é preciso que sangre todos os meses, bebendo o sangue de minhas feridas provo que o sangue não me amedronta. Se deverei submeter-me a uma experiência tão revoltante, por que não mastigar um vermezinho?” Essa atitude afirma-se de maneira mais nítida nas automutilações tão frequentes nessa idade. A jovem corta as coxas com navalha, queima-se com cigarros, arranha-se; para não ir a um garden-party aborrecido, uma amiga de minha juventude abriu o pé com um golpe de machadinha, a ponto de ter de ficar de cama durante seis semanas. Essas práticas sadomasoquistas são, ao mesmo tempo, uma antecipação da experiência sexual e uma revolta contra ela; é preciso, suportando essas provações, enrijecer-se contra toda provação possível e assim torná-las todas anódinas, inclusive a da noite nupcial. Quando põe uma lesma no peito, quando engole um tubo de aspirina, quando se fere, a jovem desafia o futuro amante: não me infligirás nada mais odioso do que o que eu me inflijo a mim mesma. Trata-se de iniciações melancólicas e orgulhosas na aventura sexual. Destinada a ser uma presa passiva, ela reivindica sua liberdade até no fato de suportar a dor e o nojo. Quando se impõe a ferida da faca, a queimadura da brasa, protesta contra a penetração que a deflorará: protesta anulando-a. Masoquista, porquanto em sua conduta aceita a dor, ela é principalmente sádica: enquanto sujeito autônomo, atormenta, insulta, tortura essa carne dependente, essa carne condenada à submissão que detesta, sem querer entretanto distinguir-se dela. Porque ela não escolhe em todas essas conjunturas recusar autenticamente seu destino. As manias sadomasoquistas implicam uma má-fé fundamental: e se a menina a elas se entrega, é porque aceita, através das recusas, seu futuro de mulher; não mutilaria com ódio sua carne se antes não se reconhecesse como carne. Até suas explosões de violência partem de um fundo de resignação. Quando se revolta contra o pai, contra o mundo, o rapaz entrega-se a violências eficientes; procura briga com um camarada, bate-se, afirma-se a socos como sujeito: impõe-se ao mundo, supera-o. Mas afirmar-se, impor-se é proibido à adolescente, e é isso que põe em seu coração tanta revolta: ela não espera nem mudar o mundo, nem emergir dele; sabe-se, acredita-se, e talvez se queira amarrada: só pode destruir; há desespero em sua cólera; durante uma noitada irritante, ela quebra copos, vidros, vasos; não é para vencer o destino; é apenas um protesto simbólico. É através de sua impotência presente que a jovem se rebela contra sua servidão futura; e suas vãs explosões, longe de a libertarem de seus laços, não fazem muito senão recerrá-los. Violências contra si própria ou contra o universo que a cerca tem sempre um caráter negativo: são mais espetaculares do que eficazes. O rapaz que escala rochedos, que briga com os companheiros, encara a dor física, os ferimentos e pancadas como uma consequência insignificante das atividades positivas a que se entrega; não as procura nem delas foge por si mesmas (salvo em caso de um complexo de inferioridade que o coloca numa situação análoga à das mulheres). A jovem olha-se sofrer: busca em seu próprio coração o gosto da violência e da revolta mais do que se interessa pelos resultados. Sua perversidade vem do fato de que permanece ancorada no universo infantil de onde não pode nem quer verdadeiramente evadir-se; debate-se na gaiola, dela não procura sair; suas atitudes são negativas, reflexivas, simbólicas. Há casos em que essa perversidade assume formas inquietantes. Numerosas jovens virgens são cleptomaníacas; a cleptomania é uma “sublimação sexual” de natureza muito equívoca; a vontade de infringir as leis, de violar um tabu, a vertigem do ato proibido e perigoso são certamente essenciais na ladra: mas isso tem uma dupla face. Apropriar-se de objetos sem ter o direito de fazê-lo é afirmar com arrogância sua autonomia, é pôr-se como sujeito perante as coisas roubadas e a sociedade que condena o roubo; é recusar a ordem estabelecida e desafiar os que a defendem. Mas esse desafio tem também um aspecto masoquista; a ladra é fascinada pelo risco que corre, pelo abismo em que será precipitada se a pegarem; é o perigo de ser apanhada que dá ao ato de roubar um encanto tão voluptuoso; sob os olhares cheios de censura, sob a mão pousada no ombro, na vergonha, ela se realizaria plena e irremediavelmente como objeto. Pegar sem ser pega, na angústia de se tornar a presa, eis o jogo perigoso da sexualidade adolescente feminina. Todas as condutas perversas e delituosas com que se depara nas jovens têm essa mesma significação. Algumas especializam-se em enviar cartas anônimas, outras se divertem com mistificar os que a cercam; uma menina de 14 anos persuadira toda a aldeia de que uma casa era mal-assombrada. Elas gozam o mesmo tempo do exercício clandestino de seu poder, de sua desobediência, de seu desafio à sociedade, e do risco de serem desmascaradas; é um elemento tão importante em seu prazer que muitas vezes desmascaram a si próprias e se acusam de faltas ou crimes que não cometeram. Não é espantoso que a recusa em se tornar objeto conduza a se constituir em objeto: é um processo comum em todas as obsessões negativas. É num mesmo movimento que, numa paralisia histérica, a vítima receia a paralisia, a deseja e a realiza: só se cura deixando de pensar nela; o mesmo ocorre com os tiques dos psicastênicos. É a profundidade de sua má-fé que faz a jovem se parecer com esses tipos de neuróticos: manias, tiques, maquinações, perversidades, encontram-se nela muitos sintomas neuróticos por causa dessa ambivalência do desejo e da angústia que assinalamos. É bastante frequente, por exemplo, que “fuja”: sai ao acaso, perambula longe da casa paterna e, ao fim de dois ou três dias, volta espontaneamente. Não se trata de uma partida verdadeira, de uma ruptura com a família; é somente uma comédia de evasão e, muitas vezes, a jovem fica inteiramente desnorteada se lhe propõem tirá-la definitivamente de seu meio: ela quer deixá-lo sem o querer. A fuga liga-se por vezes a fantasmas de prostituição: a jovem sonha que é uma prostituta, desempenha o papel mais ou menos timidamente; se maquia exageradamente, debruça-se à janela e deita olhares aos passantes; em certos casos abandona o lar e leva tão longe a comédia que esta acaba se confundindo com a realidade. Essas condutas traduzem muitas vezes um nojo pelo desejo sexual, um sentimento de culpa: se tenho tais pensamentos, tais apetites, não valho mais do que uma prostituta, sou uma prostituta, pensa a jovem. Por vezes, ela procura libertar-se: acabemos com isso, vamos até o fim, e quer provar a si mesma que a sexualidade tem pouca importância, entregando-se a qualquer um. Ao mesmo tempo uma tal atitude manifesta muitas vezes hostilidade à mãe, ou porque a jovem tenha horror à austera virtude dela, ou porque suspeita que ela tenha maus costumes; ou então exprime rancor contra o pai que se mostrou por demais indiferente. Como quer que seja, nessa obsessão — como nos fantasmas de gravidez de que já falamos e que a ela, não raro, se associam — encontra-se essa inextricável confusão da revolta e da cumplicidade, que caracteriza as vertigens psicastênicas. É de notar que em todas essas condutas a jovem não procura ultrapassar a ordem natural e social, não pretende recuar as fronteiras do possível nem operar uma transmutação de valores; contenta-se com manifestar sua revolta no seio de um mundo estabelecido cujas fronteiras e leis são conservadas; é essa atitude que se definiu muitas vezes como “demoníaca” e que implica uma trapaça fundamental: o bem é reconhecido a fim de ser escarnecido, a regra é posta a fim de ser violada, o sagrado é respeitado a fim de que seja possível cometer sacrilégios. A atitude da jovem define-se essencialmente pelo fato de que, nas trevas angustiantes da má-fé, ela recusa, aceitando-o, o mundo e seu próprio destino.

Entretanto, não se restringe a contestar negativamente a situação que lhe é imposta; procura também compensar as insuficiências. Se o futuro a assusta, não a satisfaz o presente; ela hesita em se tornar mulher; ela se aborrece por ser ainda uma criança; já largou o passado mas não se empenhou ainda numa vida nova. Ocupa-se mas não faz nada, e porque não faz nada não tem nada, não é nada. É com comédias e mistificações que ela se esforça por encher esse vazio. É censurada muitas vezes por ser dissimulada, mentirosa, por inventar “histórias”. O fato é que está destinada ao segredo e à mentira. Com 16 anos uma mulher já passou por penosas provações: puberdade, regras, despertar da sexualidade, primeiras inquietações, primeiras febres, medos, nojos, experiências equívocas, encerrou todas essas coisas no coração; aprendeu a guardar cuidadosamente seus segredos. O simples fato de ter de esconder suas toalhinhas higiênicas, de dissimular as regras já a conduz à mentira. Na novela Old Mortality, C. A. Porter conta que, por volta de 1900, as jovens do sul dos Estados Unidos adoeciam engolindo misturas de sal e limão para interromper as regras quando iam ao baile: tinham medo de que os rapazes percebessem seu estado pelas olheiras, o contato das mãos, um odor talvez, e esse pensamento as transtornava. É difícil desempenhar o papel de ídolo, de fada, de princesa longínqua quando se tem entre as pernas uma toalhinha sanguinolenta; e de uma maneira mais genérica quando se conhece a desgraça original de ser corpo. O pudor, que é uma recusa espontânea de se deixar apreender como carne, beira a hipocrisia. Mas a mentira a que se condena a adolescente consiste principalmente em que é preciso fingir ser objeto, e objeto prestigioso, quando se sente como uma existência incerta, dispersa, e que conhece seus defeitos. Maquiagens, fivelas, cintas, “soutiens reforçados” são mentiras; o próprio rosto vira máscara: nele suscitam com habilidade expressões espontâneas, ou uma passividade maravilhada; nada mais espantoso do que descobrir subitamente, no exercício de sua função feminina, uma fisionomia de que se conhece o aspecto familiar; sua transcendência se renega e imita a imanência; o olhar não mais penetra, ele reflete; o corpo não vive mais, ele espera; todos os gestos e sorrisos são apelos; desarmada, disponível, a jovem nada mais é do que uma flor que se oferece, um fruto a ser colhido. É o homem que a incita a tais enganos desejando ser enganado; depois, ele se irrita, acusa. Mas para com a menina sem ardis ele só demonstra indiferença e até hostilidade. Ele só é seduzido por aquela que lhe prepara armadilhas: oferecendo-se, é ela quem vigia a presa; sua passividade está a serviço de um empreendimento, ela faz de sua franqueza o instrumento de sua força; sendo-lhe proibido atacar francamente, fica restrita às manobras e aos cálculos; e seu interesse consiste em parecer se dar gratuitamente; por isso a censuram por ser pérfida e traiçoeira: é verdade. Mas é verdade que é obrigada a oferecer ao homem o mito de sua submissão, pois ele quer dominar. E pode-se exigir que ela abafe então suas reivindicações mais essenciais? Sua complacência só poderia ser pervertida desde a origem. Aliás, não é apenas mediante artifício calculado que ela trapaceia. Pelo fato de todos os caminhos lhe serem impedidos, de não poder fazer, de ter que ser, uma maldição pesa sobre ela. Quando criança, ela brincava de ser dançarina, de santa; mais tarde brinca de ser ela própria. O que é, ao certo, a verdade? No universo em que se acha encerrada, é uma palavra sem sentido. A verdade é a realidade desvendada, e essa revelação se opera através de atos: mas ela não age. Os romances que conta sobre si mesma, e que não raro conta também a outrem, parecem traduzir melhor as possibilidades que sente em si do que o medíocre relato de sua vida cotidiana. Ela não tem os meios de apreender sua medida: consola-se disso com comédias; constrói um personagem ao qual procura dar importância; tenta singularizar-se através de extravagâncias porque não lhe é permitido individualizar-se em atividades definidas. Sabe-se sem responsabilidade, insignificante num mundo de homens: é por não ter nada de sério a fazer que “inventa histórias”. Electra, de Giraudoux, é uma mulher cheia de histórias, porque é a Orestes somente que é permitido realizar um homicídio com uma espada de verdade. Como a criança, a jovem consome-se em cenas e cóleras, torna-se doente, tem perturbações histéricas a fim de chamar a atenção, de ser alguém importante. É para ter importância que ela intervém no destino de outrem; qualquer arma lhe serve; revela segredos, inventa-os, trai, calunia; precisa de tragédia em torno de si para se sentir viva, posto que não encontra socorro em sua própria vida. Por essa mesma razão é que é caprichosa; os fantasmas que criamos, as imagens com que nos embalamos são contraditórias; só a ação unifica a diversidade do tempo. A jovem não tem uma vontade verdadeira e sim desejos, e salta de um a outro com incoerência. O que torna suas inconsequências por vezes perigosas é que, a cada momento, empenhando-se apenas em sonho, ela se empenha por inteiro. Situa-se num plano de intransigência, de exigência: tem o gosto do definitivo, do absoluto: na impossibilidade de dispor do futuro, quer atingir o eterno. “Não abdicarei nunca. Desejarei sempre tudo. Tenho necessidade de preferir minha vida para aceitá-la”, escreve Marie Lenéru. E tais palavras encontram eco na Antígona de Anouilh: “Quero tudo, imediatamente.” Esse imperialismo infantil só pode ser encontrado num indivíduo que sonha seu destino: o sonho abole o tempo e os obstáculos, precisa exasperar-se para compensar sua diminuta realidade; quem quer que tenha verdadeiros projetos conhece uma finitude que é o penhor de seu poder concreto. A jovem quer receber tudo porque nada depende dela. Daí seu caráter de “criança endiabrada” em face dos adultos e do homem em particular. Ela não admite as limitações que a inserção no mundo real impõem ao indivíduo; desafia-o a superá-las. Assim é que Hilde301 espera que Solness lhe dê um reino: não cabe a ela conquistá-lo, por isso o quer sem fronteiras; ela exige dele que construa a torre mais alta do mundo “e que suba tão alto quanto o que constrói”: ele hesita em subir, tem medo da vertigem; ela, que fica no solo e o contempla, nega a contingência e a fraqueza humana, não aceita que a realidade imponha um limite a seus sonhos de grandeza. Os adultos parecem sempre mesquinhos e prudentes a quem não recua diante de nenhum risco pelo fato de nada arriscar; permitindo-se em sonho as mais extraordinárias audácias, desafia-os a se igualarem a ela na verdade. Não tendo oportunidade de se pôr à prova, enfeita-se com as mais espantosas virtudes sem receio de ser desmentida.

Entretanto, é também dessa ausência de controle que nasce sua incerteza; ela sonha que é infinita; nem por isso é menos alienada no personagem que oferece à admiração de outrem; ele depende dessas consciências estranhas; ela está em perigo nesse duplo que identifica a si mesma mas cuja presença suporta passivamente. Eis por que é suscetível e vaidosa. A menor crítica, uma zombaria põem-na totalmente em xeque. Não é de seu próprio esforço, é de uma aprovação caprichosa que ela extrai seu valor. Este não é definido por atividades singulares e sim constituído pela voz geral da reputação; ela parece, portanto, quantitativamente mensurável; o preço de uma mercadoria diminui quando esta se torna demasiadamente comum: do mesmo modo uma jovem só é rara, excepcional, notável, extraordinária se nenhuma outra o é. Suas companheiras são rivais, inimigas; ela procura desvalorizá-las, negá-las; é ciumenta e maldosa.

Vê-se que todos os defeitos censurados na adolescente apenas exprimem sua situação. É uma condição penosa saber-se passiva e dependente na idade da esperança e da ambição, na idade em que se exalta a vontade de viver e de conseguir um lugar na Terra; é nessa idade conquistadora que a mulher aprende que nenhuma conquista lhe é permitida, que deve renegar-se, que seu futuro depende do bel-prazer dos homens. No plano social, como no plano sexual, novas aspirações nela só despertam para permanecerem insatisfeitas; todos os seus impulsos de ordem vital ou espiritual são imediatamente freados. Compreende-se que tenha dificuldade em restabelecer seu equilíbrio. Seu humor instável, suas lágrimas, suas crises nervosas são menos a consequência de uma fragilidade fisiológica do que o sinal de sua profunda inadaptação.

Entretanto, acontece que a jovem assuma autenticamente essa situação da qual foge por mil caminhos inautênticos. Ela aborrece por seus defeitos, mas espanta por vezes pelas suas qualidades singulares. Uns e outras têm a mesma origem. De sua recusa do mundo, de sua espera inquieta, de seu vazio, pode ela fazer um trampolim e emergir então em sua solidão e sua liberdade.

A jovem é secreta, atormentada, presa de conflitos difíceis. Essa complexidade enriquece-a; sua vida interior desenvolve-se mais profundamente que a de seus irmãos; mostra-se mais atenta aos movimentos de seu coração, que assim se tornam mais matizados, mais diversos; tem mais sentido psicológico do que os rapazes voltados para objetivos exteriores. É capaz de dar peso a essas revoltas que a opõem ao mundo. Evita as armadilhas da seriedade e do conformismo. As mentiras convencionais de seu meio encontram-na irônica e clarividente. Ela põe à prova cotidianamente a ambiguidade de sua condição: para além dos protestos estéreis pode ter a coragem de questionar novamente o otimismo estabelecido, os valores já prontos, a moral hipócrita e tranquilizadora. Esse é o exemplo comovente que, no Moinho à beira do Floss, apresenta essa Maggie em que George Eliot reencarnou as dúvidas e as corajosas revoltas de sua mocidade contra a Inglaterra vitoriana; os heróis — e em particular Tom, irmão de Maggie — afirmam com obstinação os princípios aceitos, petrificam a moral em regras formais: Maggie tenta reintroduzir nisso tudo um sopro de vida, derruba-os, vai ao fundo de sua solidão e emerge como uma liberdade pura para além do universo esclerosado dos homens.

Dessa liberdade, a adolescente só sabe, por assim dizer, tirar um proveito negativo. Entretanto, sua disponibilidade pode engendrar uma faculdade de receptividade preciosa. Ela se mostrará então dedicada, atenta, compreensiva, amorosa. É por essa generosidade dócil que se distinguem as heroínas de Rosamond Lehman. Em Invitation à la Valse, vê-se Olivia, ainda tímida e desajeitada, pouco coquete, observar com curiosidade comovida esse mundo em que entrará amanhã. Escuta atentamente os dançarinos que se sucedem junto dela, esforça-se por dar-lhes respostas que os satisfaçam, faz-se eco, vibra, acolhe tudo o que se oferece. A heroína de Poussière, Judy, tem a mesma qualidade atraente. Não renegou as alegrias da infância; gosta de banhar-se nua, à noite, no regato do parque; ama a natureza, os livros, a beleza, a vida; não rende a si mesma um culto narcisista; sem mentira, sem egoísmo, não procura uma exaltação de seu eu através dos homens: seu amor é dom. Dedica-o a todo ser que a seduz, homem ou mulher, Jennifer ou Rody. Dá-se sem se perder: leva uma vida de estudante independente, tem seu mundo próprio, seus projetos. Mas o que a distingue de um rapaz é sua atitude de espera, sua terna docilidade. De uma maneira sutil, é, apesar de tudo, ao Outro que se destina: o Outro tem a seus olhos uma dimensão maravilhosa, a ponto de se estar apaixonada, ao mesmo tempo, por todos os rapazes da família vizinha, pela casa, pela irmã, pelo universo deles; não é como colega, é como Outro que Jennifer sente-se fascinada. E ela encanta Rody e os primos pela sua aptidão a submeter-se a eles, a moldar-se segundo os desejos deles: ela é paciência, doçura, aceitação e silencioso sofrimento.

Diferente, mas cativante também por sua maneira de acolher em seu coração as pessoas a quem ama, é como se nos apresenta Tessa em Ninfa de coração fiel, de Margaret Kennedy: a um tempo espontânea, arisca e dada. Recusa-se a abdicar do que quer que seja de si mesma: adornos, cosméticos, fantasias, hipocrisia, graças aprendidas, prudência e submissão de fêmea repugnam-lhe; deseja ser amada, mas não sob uma máscara; sujeita-se aos desejos de Lewis, mas sem servilismo; compreende-o, vibra com ele, mas, se acontece de brigarem, Lewis sabe que não é com carícias que poderá submetê-la. Enquanto Florence, autoritária e vaidosa, se deixa vencer por beijos, Tessa consegue o prodígio de permanecer livre em seu amor, o que lhe permite amar sem hostilidade nem orgulho. Sua naturalidade tem todas as seduções do artifício; para agradar não se mutila nunca, não se diminui, não se imobiliza em objeto. Cercada de artistas que empenharam toda a existência na criação musical, não sente em si esse demônio devorador; dedica-se inteiramente a amá-los, compreendê-los, ajudá-los: faz isso sem esforço, por uma generosidade terna e espontânea, e é por isso que permanece perfeitamente autônoma até nos momentos em que se esquece de si mesma em favor de outrem. Graças a essa pura autenticidade, os conflitos da adolescência lhe são poupados: pode sofrer com a dureza do mundo, não se acha dividida no interior de si mesma; é harmoniosa como uma criança despreocupada e como uma mulher muito sábia. A jovem sensível e generosa, receptiva e ardente, está absolutamente preparada para se tornar uma grande amorosa.

Quando não encontra o amor, encontra a poesia. Como não age, ela olha, sente, registra; uma cor, um sorriso encontram nela ecos profundos; porque é fora de si, nas cidades já construídas, no rosto dos homens feitos que se espalha seu destino; ela apalpa, aprecia de uma maneira a um tempo apaixonada e mais gratuita do que o rapaz. Mal integrada no universo humano, tendo dificuldade em se adaptar a ele, ela é, como a criança, capaz de vê-lo; em lugar de se interessar somente pelo domínio sobre as coisas, esforça-se por compreendê-las; apreende-lhes os perfis singulares, as metamorfoses imprevistas. É raro que sinta uma audácia criadora e muitas vezes carece das técnicas que lhe permitiriam exprimir-se; mas nas suas conversas, nas suas cartas, seus ensaios literários, seus esboços, manifesta uma sensibilidade original. A jovem atira-se com ardor às coisas porque ainda não está mutilada em sua transcendência, e o fato de não realizar nada, de não ser nada, tornará seu impulso ainda mais apaixonado. Vazia e ilimitada, é Tudo que ela procurará atingir do fundo de seu nada. Eis por que dedicará um amor especial à Natureza: mais ainda do que o adolescente, ela lhe rende um culto. Indomada, inumana, é a natureza que resume com mais evidência a totalidade do que é. A adolescente não se anexou ainda a nenhuma parcela do Universo: graças a essa carência, ele é por inteiro seu reino; quando toma posse dele, toma também orgulhosamente posse de si mesma. Colette302 descreveu-nos muitas vezes essas orgias juvenis:

 

Pois já gostava tanto da alvorada que minha mãe a concedia para mim como recompensa. Conseguia que me acordasse às três e meia e eu partia, com um cesto vazio em cada braço, para o lado das hortas que se refugiavam na curva estreita do riacho, à cata de morangos, cassis e groselhas peludas.

Às três e meia tudo dormia em um azul original, úmido e confuso, e quando eu descia o caminho arenoso, a névoa retida pelo próprio peso banhava-me primeiramente as pernas, em seguida meu tronco bem-feito, atingindo meus lábios, minhas orelhas e minhas narinas, mais sensíveis do que o restante do corpo... Nesse caminho, nessa hora é que eu tomava consciência de meu valor, de um estado de graça indizível e de minha conivência com o primeiro sopro que surgia, o primeiro pássaro, o sol ainda oval, deformado pela sua eclosão... Voltava ao ouvir o sino da primeira missa. Mas não antes de ter comido à farta, não antes de ter traçado no bosque um grande circuito de cão que caça sozinho e ter saboreado a água de duas nascentes perdidas que eu venerava...

 

Mary Webb descreve-nos também em Peso das sombras as alegrias ardentes que uma jovem pode conhecer na intimidade de uma paisagem familiar:

 

Quando a atmosfera do lar se tornava muito carregada, os nervos de Ambre crispavam-se até quase rebentar. Nesses momentos ela ia até o bosque pela colina. Parecia-lhe então que, enquanto a gente de Dormer vivia sob a férula da lei, a floresta só vivia de impulsos. Ao contemplar a beleza da natureza, ela chegou a uma percepção particular da beleza. Pôs-se a ver analogias; a natureza não era mais um conjunto fortuito de pormenores e sim uma harmonia, um poema austero e majestoso. A beleza nela reinava, uma luz brilhava, que não era a da flor nem a da estrela... Um tremor leve, misterioso e avassalador parecia correr como a luz através de toda a floresta... Os passeios de Ambre nesse mundo de vegetação tinham algo de um rito religioso. Uma manhã em que tudo estava calmo, ela subiu ao Pomar dos Pássaros. Era o que fazia frequentemente antes que começasse o dia cheio de irritações mesquinhas... tirava algum consolo da absurda inconsequência do mundo dos pássaros... Chegou enfim ao coração da floresta e logo se sentiu em luta com a beleza. Havia literalmente para ela nessas conversas com a natureza algo de uma batalha, alguma coisa daquele humor que assim falou: “Não te deixarei partir enquanto não me tiveres abençoado...” Como se apoiasse ao tronco de uma macieira selvagem, subitamente, tomou consciência, por essa espécie de audição interior, da subida da seiva, tão viva e tão forte que a imaginava roncando como a maré. Depois um arrepio de vento passou sobre a copa florida da árvore e ela despertou de novo para a realidade dos sons, os discursos estranhos das folhas... Cada pétala, cada folha parecia cantarolar uma música, que lembrava também as profundezas de onde jorrara. Cada uma das flores levemente estufadas lhe parecia cheia de ecos graves demais para sua fragilidade... Do alto das colinas veio uma lufada de ar perfumado que deslizou por entre os galhos. As coisas que tinham forma e conheciam a mortalidade das formas tremeram ante essa coisa que passava, sem forma e inexprimível. Por causa dela, a floresta não era mais um simples agrupamento, mas um conjunto glorioso como uma constelação... Ela se possuía a si mesma numa existência contínua e imutável. Era isso que atraía Ambre, tomada de uma curiosidade que a fazia prender a respiração, nesses lugares assombrados pela natureza. Era o que a imobilizava agora num êxtase singular...

 

Mulheres tão diferentes como Emily Brontë e Anna de Noailles conheceram em sua juventude semelhantes fervores — e os prolongaram em seguida durante a vida.

Os textos que citei mostram bem o socorro que a adolescente encontra nos campos e nos bosques. Na casa paterna reinam a mãe, as leis, o costume, a rotina, e ela quer se livrar desse passado; quer tornar-se por sua vez um sujeito soberano: mas socialmente só atinge a vida adulta fazendo-se mulher; paga sua libertação com uma abdicação, ao passo que no meio das plantas e dos animais ela é um ser humano; libertou-se ao mesmo tempo da família e dos homens, é um sujeito, uma liberdade. Encontra no segredo das florestas uma imagem da solidão de sua alma e nos vastos horizontes das planícies a figura sensível de sua transcendência; é ela mesma a charneca ilimitada, o pico voltado para o céu. Ela pode seguir essas estradas que partem para o futuro desconhecido, ela as seguirá; sentada no alto da colina, domina todas as riquezas do mundo jogadas a seus pés, oferecidas. Através das palpitações da água, do frêmito da luz, pressente alegrias, lágrimas, êxtases que ainda ignora; são as aventuras de seu próprio coração que confusamente lhe prometem as ondulações da água, as manchas de sol. Odores e cores falam uma linguagem misteriosa, mas da qual se destaca com triunfante evidência uma palavra: a palavra “vida”. A existência não é somente um destino abstrato que se inscreve nos registros civis, é futuro e riqueza carnal. Ter um corpo não surge mais como um defeito vergonhoso; nesses desejos que repudia ante o olhar materno, a adolescente reconhece a seiva que sobe nas árvores; não é mais maldita, reivindica orgulhosamente seu parentesco com as folhagens e as flores; amassa uma corola, e sabe que uma presa viva encherá um dia suas mãos vazias. A carne não é mais impureza: é alegria e beleza. Confundida com o céu e a planície, a jovem é esse sopro indistinto que anima e abrasa o Universo, ela é cada raminho de urze; indivíduo arraigado ao solo e consciência infinita, ela é a um tempo espírito e vida; sua presença é imperiosa e triunfante como a da própria terra.

Para além da Natureza, ela busca por vezes uma realidade mais longínqua e mais deslumbrante ainda; está disposta a perder-se em êxtases místicos; nas épocas de fé, numerosas jovens almas femininas pediam a Deus que enchesse o vazio de seu ser; foi muito cedo que se revelou a vocação de Catarina de Siena, de Teresa d’Ávila.303 Joana d’Arc era uma moça. Noutros tempos, é a humanidade que aparece como fim supremo; então o impulso místico funde-se em projetos definidos; mas foi também um jovem desejo de absoluto que fez nascer em Mme Roland, em Rosa Luxemburgo, a chama que alimentou suas vidas. Em sua servidão, em sua carência, do fundo de sua recusa, a jovem pode tirar as maiores audácias. Ela encontra a poesia; encontra também o heroísmo. Uma das maneiras de assumir o fato de que está mal integrada na sociedade é ultrapassar os seus horizontes mesquinhos.

A riqueza e a força de sua natureza, circunstâncias felizes, permitiram a algumas mulheres perpetuarem em sua vida de adulto os projetos apaixonados de sua adolescência. Mas trata-se de exceções. Não é sem razão que George Eliot faz morrer Maggie Tulliver, e Margaret Kennedy faz o mesmo com Tessa. Áspero destino conheceram as irmãs Brontë. A jovem é patética porque se ergue, frágil e só, contra o mundo; mas o mundo é poderoso demais; se ela se obstina em o recusar, é quebrada. Belle de Zuylen, que deslumbrava a Europa pela força cáustica e a originalidade de seu espírito, assustava todos os pretendentes: sua recusa a quaisquer concessões condenou-a durante longos anos a um celibato que lhe pesava, pois declarava que a expressão “virgem e mártir” é um pleonasmo. Essa obstinação é rara. Na imensa maioria dos casos a jovem se dá conta de que o combate é por demais desigual e acaba cedendo. “Vocês morrem todas aos 15 anos”, escreve Diderot a Sophie Volland. Quando o combate não passou — como acontece o mais das vezes — de uma revolta simbólica, a derrota é certa. Exigente em sonho, cheia de esperança mas passiva, a jovem faz os adultos sorrirem com um pouco de piedade. Eles a destinam à resignação. E, com efeito, a criança rebelde e barroca que haviam deixado, é encontrada dois anos mais tarde recatada, disposta a consentir com sua vida de mulher. É o futuro que Colette prediz para Vinca; assim aparecem as heroínas dos primeiros romances de Mauriac. A crise da adolescência é uma espécie de “trabalho”, análogo ao que o dr. Lagache chama “trabalho do luto”. A jovem enterra lentamente sua infância, o indivíduo autônomo e imperioso que foi; e entra submissa na existência adulta.

 

Naturalmente não se pode estabelecer somente pela idade categorias bem nítidas. Há mulheres que permanecem infantis durante toda a vida; os comportamentos que descrevemos perpetuam-se por vezes até uma idade avançada. Entretanto há, no conjunto, uma grande diferença entre o “broto” de 15 anos e uma “moça feita”. Esta está adaptada à realidade. Quase não se move mais no plano do imaginário; é menos dividida em si mesma do que antes. Maria Bashkirtseff escreve, por volta dos 18 anos:

 

Quanto mais avanço para a velhice de minha mocidade, mais me cubro de indiferença. Poucas coisas me agitam e tudo me agitava.

 

Irene Reweliotty anota:

 

Para ser aceita pelos homens é preciso pensar e agir como eles, sem o quê eles nos tratam como ovelha negra e a solidão se torna o nosso quinhão. E eu, agora, estou farta da solidão, quero gente, não apenas ao redor de mim, mas comigo... Viver agora, e não mais existir e esperar, e sonhar o tudo contar a si mesma de boca fechada e corpo imóvel.

 

E mais adiante:

 

De tanto ser lisonjeada, cortejada etc., estou me tornando terrivelmente ambiciosa. Não é mais a felicidade, temerosa, maravilhada de meus 15 anos. É uma espécie de embriaguez fria e dura de me vingar da vida, de subir. Namoro, brinco de amar. Não amo... Ganho em inteligência, sangue-frio, lucidez habitual. Perco meu coração. Foi como uma rachadura... Em dois meses abandonei minha infância.

 

É mais ou menos o mesmo tom destas confidências de uma jovem de 19 anos:304

 

Outrora ah! que conflito entre uma mentalidade que parecia incompatível com esse século e os apelos do próprio século! Agora tenho a impressão de um sossego. Cada nova grande ideia que entra em mim, em lugar de provocar um desmoronamento penoso, uma destruição e uma reconstrução incessante, vem adaptar-se maravilhosamente ao que já está em mim... Agora, passo insensivelmente dos pensamentos teóricos à vida corrente sem solução de continuidade.

 

A jovem, a não ser que seja particularmente desgraciosa, acabou por aceitar sua feminilidade; e não raro ela se sente feliz por gozar gratuitamente dos prazeres, dos triunfos que disso tira, antes de se instalar definitivamente em seu destino. Não sendo ainda exigida por nenhum dever, irresponsável, disponível, o presente não lhe parece entretanto nem vazio nem decepcionante, porque não passa de uma etapa; a elegância e o namoro têm ainda a leveza de um jogo, e seus sonhos de futuro mascaram-lhe a futilidade. Assim é que V. Woolf descreve, em As vagas, impressões de uma jovem coquete durante uma festa:

 

Sinto-me toda brilhante na escuridão. Minhas pernas sedosas esfregam-se docemente uma na outra. As pedras frias de um colar repousam no meu colo. Estou enfeitada, estou pronta... Meus cabelos têm a ondulação que devem ter, meus lábios são tão vermelhos quanto eu quero. Estou preparada para juntar-me a esses homens e essas mulheres que sobem a escada. São meus pares. Passo diante deles, exposta aos seus olhares como eles estão aos meus... Nessa atmosfera de perfumes, de luzes, desabrocho como uma avenca que exibe suas folhas crespas... Sinto mil possibilidades nascerem em mim. Sou respectivamente travessa, alegre, langorosa, melancólica. Flutuo acima de minhas raízes profundas. Inclinada para a direita, toda dourada, digo a esse rapaz: “Aproxime-se”... Ele vem. Ele se aproxima, vem para meu lado. É o momento mais excitante que jamais vivi. Tremo, ondulo... Não estamos encantadores sentados juntos, eu vestida de cetim e ele todo de preto e branco? Meus pares, quem quer que sejam, homens ou mulheres, podem encarar-me agora. Devolvo seus olhares, sou uma de vocês. Estou aqui, no meu universo... A porta abre-se. A porta abre-se sem parar. Na próxima vez que se abrir talvez minha vida inteira mude por completo... A porta abre-se. “Aproxime-se”, digo ao jovem inclinando-me para ele como uma grande flor de ouro. “Aproxime-se”, lhe digo, e ele vem a mim.

 

Entretanto, quanto mais a jovem amadurece, mais a autoridade materna lhe pesa. Se leva, em casa, uma vida doméstica, sofre por não passar de uma assistente, gostaria de consagrar seu trabalho a seu próprio lar, a seus próprios filhos. Muitas vezes a rivalidade com a mãe a exaspera: uma primogênita em particular irrita-se se nascem ainda jovens irmãos ou irmãs; ela considera que a mãe já “teve sua vez”. Cabe agora a ela engendrar, reinar. Se trabalha fora de casa, sofre quando volta para o lar por ser ainda tratada como um simples membro da família e não como um indivíduo autônomo.

Menos romanesca do que outrora, começa a pensar muito mais no casamento do que no amor. Não envolve mais seu futuro esposo numa auréola prestigiosa: o que almeja é ter neste mundo uma situação estável, começar a viver sua vida de mulher. Virgínia Woolf assim descreve as fantasias de uma camponesa rica e jovem:

 

Dentro em pouco, na hora quente de meio-dia em que as abelhas zunem em torno da madressilva, meu bem-amado virá. Não dirá mais do que uma palavra e uma palavra lhe responderei. Darei a ele tudo o que cresceu em mim. Terei filhos, terei criadas de avental e operárias carregando tochas. Terei uma cozinha para onde trarão, dentro de cestos, cordeiros doentes a fim de serem aquecidos, onde haverá presuntos pendurados às vigas e onde brilharão rosários de cebolas. Serei como minha mãe, silenciosa, com um avental azul e tendo na mão as chaves dos armários.305

Sonho semelhante tem a pobre Prue Sarn:306

 

Pensava que nunca se casar fosse um destino horrível. Todas as moças se casam. E quando uma moça se casa, tem um lar e talvez uma lâmpada que acende à noite, na hora em que seu homem chega; se tem apenas velas dá na mesma, pois pode colocá-las perto da janela; então ele diz para si mesmo: “Minha mulher está em casa, acendeu as velas.” E chega um dia em que Mrs. Beguildy lhe confecciona um berço de vime; e depois vê-se nele um bebê belo e grave, e mandam-se convites para o batizado; e os vizinhos acorrem para perto da mãe como as abelhas para junto da rainha. Muitas vezes quando as coisas iam mal eu me dizia: “Não faz mal, Prue Sarn, um dia serás rainha em tua própria colmeia.”

 

Para a maioria das jovens — tenham elas uma vida laboriosa ou frívola, estejam confinadas ao lar paterno ou dele se evadam parcialmente — a conquista de um marido — ou, a rigor, a de um amante sério — torna-se um empreendimento cada dia mais urgente. Essa preocupação é muitas vezes nefasta às amizades femininas. A “amiga íntima” perde seu lugar privilegiado. A jovem vê, em suas companheiras, antes cúmplices do que rivais. Conheci uma, inteligente e bem-dotada, mas que resolvera imaginar-se a “princesa distante”: era assim que se descrevia em poemas e ensaios literários; confessava sinceramente que não conservava nenhum apego a suas amigas de infância: feias e tolas, elas lhe desagradavam; sedutoras, ela as temia. A espera impaciente do homem que implica não raro manobras, ardis e humilhações fecha o horizonte da jovem; ela se torna egoísta e dura. E se o príncipe encantado tarda a surgir, nascem o desgosto e a amargura.

A personalidade e os comportamentos da jovem exprimem sua situação: se esta se modifica, a figura da adolescente apresenta-se também diferente. Hoje em dia, lhe é possível tomar o destino nas mãos, em vez de entregá-lo ao homem. Se está absorvida pelos estudos, os esportes, um aprendizado profissional, liberta-se da obsessão do homem, preocupa-se muito menos com seus conflitos sentimentais e sexuais. Entretanto, tem muito mais dificuldade do que o rapaz em se realizar como indivíduo autônomo. Já disse que nem a família nem os costumes favoreciam seu esforço. Além disso, mesmo que escolha a independência, reserva um lugar em sua vida para o homem, para o amor. Terá muitas vezes medo de falhar em seu destino de mulher dedicando-se por inteira a algum empreendimento. Tal sentimento permanece inconfessado; mas está presente, perverte as vontades decididas, estabelece limites. Em todo caso, a mulher que trabalha quer conciliar seu êxito com êxitos puramente femininos; isso não exige que consagre um tempo considerável a sua elegância, a sua beleza, porém, o que é mais grave, implica que seus interesses vitais estejam divididos. À margem dos programas, o estudante diverte-se com jogos gratuitos de ideias e daí nascem seus melhores achados; os devaneios da mulher orientam-se de maneira inteiramente diversa: ela pensará em sua aparência física, no homem, no amor; só dará o estritamente necessário a seus estudos, a sua carreira, quando nessas áreas nada é tão necessário quanto o supérfluo. Não se trata de uma fraqueza mental, de uma incapacidade de se concentrar, e sim de uma partilha de interesses que se conciliam mal. Forma-se um círculo vicioso: espantamo-nos muitas vezes ao ver com que facilidade uma mulher pode abandonar a música, os estudos, a profissão logo que encontra um marido; é que empenhara muito pouco de si mesma em seus projetos para descobrir grande proveito na sua realização. Tudo contribui para frear sua ambição pessoal, enquanto uma enorme pressão social a convida a encontrar no casamento uma posição social, uma justificação. É natural que não procure criar por si mesma seu lugar neste mundo, ou que só o faça timidamente. Enquanto não houver uma perfeita igualdade econômica na sociedade e enquanto os costumes autorizarem a mulher, como esposa ou amante, a aproveitar-se dos privilégios de certos homens, o sonho de um êxito passivo continuará e ela freará suas próprias realizações.

Entretanto, seja qual for a maneira pela qual a jovem encare sua existência de adulta, o aprendizado ainda não terminou. Por lentas gradações ou brutalmente, será necessário passar pela iniciação sexual. Há jovens que se recusam a isso. Se incidentes sexualmente penosos marcaram sua infância, se uma educação infeliz lentamente arraigou nelas o horror à sexualidade, conservarão sua repugnância de menina púbere em relação ao homem. Acontece também que as circunstâncias conduzam, contra sua vontade, certas mulheres a uma virgindade prolongada. Mas, na maioria dos casos, a jovem realiza, numa idade mais ou menos avançada, seu destino sexual. A maneira pela qual o enfrenta está evidentemente em estreita ligação com seu passado. Mas há também nisso uma experiência nova que se propõe em circunstâncias imprevistas e à qual ela reage livremente. É esta nova etapa que nos cumpre encarar agora.