4/A lésbica

 

 

 

 

 

 

 

 

 

De bom grado imaginamos a lésbica com um chapéu de feltro, de cabelos curtos e gravata; sua virilidade seria uma anomalia traduzindo um desequilíbrio hormonal. Nada mais errôneo do que essa confusão entre a invertida e a virago. Há muitas homossexuais entre as odaliscas, as cortesãs, entre as mulheres mais deliberadamente “femininas”; inversamente, numerosas mulheres “masculinas” são heterossexuais. Sexólogos e psiquiatras confirmam o que sugere a observação corrente: em sua imensa maioria, as mulheres “malditas” são constituídas exatamente como as outras mulheres. Nenhum “destino anatômico” determina sua sexualidade.

Há seguramente casos em que os dados fisiológicos criam situações singulares. Não existe distinção biológica rigorosa entre os dois sexos; um corpo celular idêntico é modificado por ações hormonais cuja orientação é genotipicamente definida, mas pode ser desviada no decurso da evolução do feto; disso resulta o aparecimento de indivíduos intermediários entre os machos e as fêmeas. Alguns homens apresentam uma aparência feminina porque a maturação de seus órgãos viris é tardia: do mesmo modo veem-se moças — em particular esportistas — transformarem-se em rapazes. H. Deutsch conta a história de uma moça que fez uma corte ardorosa a uma senhora casada, quis raptá-la e viver com ela: percebeu um dia que era na realidade um homem, o que lhe permitiu casar com a bem-amada e ter filhos dela. Mas disso não se deve concluir que toda invertida é um “homem escondido” sob formas enganosas. O hermafrodita, em quem os dois sistemas genitais se acham esboçados, tem muitas vezes uma sexualidade feminina: conheci uma, exilada de Viena pelos nazistas, que se desolava por não agradar nem aos heterossexuais nem aos pederastas, quando na verdade só gostava de homens. Sob a influência de hormônios masculinos, as mulheres “viriloides” apresentam caracteres sexuais secundários masculinos; nas mulheres infantis os hormônios femininos são deficientes e seu desenvolvimento permanece inacabado. Essas particularidades podem motivar mais ou menos diretamente uma vocação lésbica. Uma pessoa dotada de uma vitalidade vigorosa, agressiva, exuberante, almeja despender-se ativamente e recusa ordinariamente a passividade; desgraciosa, mal constituída, uma mulher pode tentar compensar sua inferioridade adquirindo qualidades viris; se sua sensibilidade erógena não está desenvolvida, ela não deseja as carícias masculinas. Mas anatomia e hormônios definem apenas uma situação e não colocam o objeto para o qual ela transcenderá. H. Deutsch ainda cita o caso de um legionário polonês ferido, de quem tratou durante a guerra de 1914-18, que era na realidade uma moça com caracteres viris acentuados; acompanhara o exército como enfermeira e conseguira depois envergar o uniforme. Com tudo isso se apaixonara por um soldado — que desposou mais tarde —, o que a fazia ser encarada como homossexual. Suas condutas viris não contradiziam um erotismo do tipo feminino. O próprio homem não deseja exclusivamente a mulher; o fato de que o organismo do homossexual macho pode ser perfeitamente viril implica que a virilidade de uma mulher não a impele necessariamente para a homossexualidade.

Até mesmo entre as mulheres fisiologicamente normais, pretendeu-se por vezes distinguir as clitoridianas das vaginais, estando as primeiras destinadas aos amores sáficos; mas verificou-se que, em todas, o erotismo infantil é clitoridiano; quer se fixe nesse estágio, quer se transforme, não depende de nenhum dado anatômico. Não é verdade tampouco, como se sustentou muitas vezes, que a masturbação infantil explique o privilégio ulterior do sistema clitoridiano: a sexologia reconhece hoje no onanismo da criança um fenômeno absolutamente normal e geralmente disseminado. A elaboração do erotismo feminino é — já o vimos — uma história psicológica em que os fatores fisiológicos estão envolvidos, mas que depende da atitude global do sujeito em face da existência. Marañón considera que a sexualidade tem uma “direção única” e que atinge no homem uma forma acabada, ao passo que na mulher fica “a meio caminho”; só a lésbica possuiria uma libido tão rica quanto a do homem, ela seria, pois, um tipo feminino “superior”. Na realidade, a sexualidade feminina tem uma estrutura original e a ideia de hierarquizar as libidos masculina e feminina é absurda; a escolha do objeto sexual não depende absolutamente da quantidade de energia de que a mulher disporia.

Os psicanalistas tiveram o grande mérito de ver na inversão um fenômeno psíquico e não orgânico; entretanto, ela se apresenta ainda para eles como determinada por circunstâncias exteriores. Eles, aliás, a estudaram pouco. Segundo Freud, a maturação do erotismo feminino exige a passagem do estágio clitoridiano ao estágio vaginal, passagem simétrica à que transferiu para o pai o amor que a menina a princípio sentia pela mãe. Razões diversas podem entravar esse desenvolvimento; a mulher não se resigna à castração, esconde de si mesma a ausência do pênis, permanece fixada à mãe, para a qual busca substitutos. Para Adler, essa parada não é um acidente suportado passivamente: é desejado pelo sujeito que, por vontade de poder, nega deliberadamente sua mutilação e procura identificar-se com o homem cujo domínio recusa. Fixação infantil ou protesto viril, a homossexualidade se apresentaria em todo caso como um inacabamento. Em verdade, a lésbica não é nem uma mulher “falhada” nem uma mulher “superior”. A história do indivíduo não é um progresso fatal: a cada momento o passado é retomado mediante uma nova escolha e a “normalidade” da escolha não lhe confere nenhum valor privilegiado: é pela sua autenticidade que cumpre julgá-lo. A homossexualidade pode ser para a mulher uma maneira de fugir de sua condição ou uma maneira de assumi-la. O grande erro dos psicanalistas está em, por conformismo moralizador, encará-lo somente como uma atitude inautêntica.

A mulher é um existente a quem se pede que se faça objeto; enquanto sujeito, ela tem uma sensualidade agressiva que não se satisfaz com o corpo masculino: daí nascem os conflitos que seu erotismo deve superar. Consideram normal o sistema que, entregando-a como presa a um homem, lhe restitui a soberania, colocando em seus braços um filho; mas esse “naturalismo” é comandado por um interesse social mais ou menos bem compreendido. A própria heterossexualidade permite outras soluções. A homossexualidade da mulher é uma tentativa, entre outras, de conciliar sua autonomia com a passividade de sua carne. E se se invoca a natureza, pode-se dizer que toda mulher é homossexual. A lésbica caracteriza-se, com efeito, pela recusa do macho e seu gosto pela carne feminina; mas toda adolescente receia a penetração, o domínio masculino, experimenta em relação ao homem certa repulsa; em compensação, o corpo feminino é para ela, como para o homem, um objeto de desejo. Já disse: pondo-se como sujeitos, os homens põem-se ao mesmo tempo como separados; considerar o outro como uma coisa a ser possuída é atentar nele, e solidariamente em si, contra o ideal viril; ao contrário, a mulher que se reconhece como objeto vê em suas semelhantes e em si uma presa. O pederasta inspira hostilidade aos heterossexuais masculinos e femininos porque estes exigem que o homem seja um sujeito dominador;326 ao contrário, ambos os sexos consideram as lésbicas com indulgência. “Confesso, diz o conde de Tilly, que é uma rivalidade que não me aborrece em absoluto; ao contrário, isso me diverte e tenho a imoralidade de rir da coisa.” Colette atribuiu a mesma indiferença divertida a Renaud diante do casal que Claudine constitui com Rézi.327 O homem irrita-se mais com uma heterossexual agressiva e autônoma do que com uma homossexual não agressiva; só a primeira contesta as prerrogativas masculinas; os amores sáficos estão longe de contradizer a forma tradicional da divisão dos sexos; são em sua maioria casos de uma assumpção da feminilidade, não sua recusa. Vimos que aparecem muitas vezes na adolescente como um ersatz das relações heterossexuais que ela não tem ainda a oportunidade ou a ousadia de viver: é uma etapa, um aprendizado, e quem a isso se entrega com mais ardor pode amanhã ser a mais ardorosa das esposas, das amantes, das mães. O que é preciso explicar na invertida não é, portanto, o aspecto positivo de sua escolha, é sua face negativa: ela não se caracteriza por seu gosto pelas mulheres e sim pela exclusividade desse gosto.

Distinguem-se frequentemente — depois de Jones e Hesnard — dois tipos de lésbicas: umas “masculinas” que “querem imitar o homem”, outras “femininas” que “têm medo do homem”. É verdade que se podem considerar, grosso modo, duas tendências na inversão; certas mulheres recusam a passividade, enquanto outras escolhem braços femininos para a eles se entregarem passivamente. Mas essas atitudes reagem uma sobre a outra; as relações ante o objeto escolhido e ante o objeto recusado explicam-se uma pela outra. Por muitas razões, como veremos, a distinção indicada parece-nos assaz arbitrária.

Definir a lésbica “viril” pela sua vontade de “imitar o homem” é votá-la à inautenticidade. Já disse a que ponto os psicanalistas criam equívocos aceitando as categorias masculina-feminina tais como a sociedade atual as define. Com efeito, o homem representa hoje o positivo e o neutro, isto é, o masculino e o ser humano, ao passo que a mulher é unicamente o negativo, a fêmea. Cada vez que ela se conduz como ser humano, declara-se que ela se identifica com o macho. Suas atividades esportivas são interpretadas como um “protesto viril”; recusam-se a levar em consideração os valores para os quais ela transcende, o que conduz evidentemente a considerar que ela faz a escolha inautêntica de uma atitude subjetiva. O grande mal-entendido em que repousa esse sistema de interpretação está em que se admite que é natural para o ser humano feminino fazer de si uma mulher feminina: não basta ser uma heterossexual, nem mesmo uma mãe, para realizar esse ideal; a “verdadeira mulher” é um produto artificial que a civilização fabrica, como outrora eram fabricados castrados; seus pretensos “instintos” de coquetismo, de docilidade são nela insuflados, como ao homem o orgulho fálico. Ele nem sempre aceita sua vocação viril; ela tem boas razões para aceitar menos docilmente ainda a que lhe é designada. As noções “complexo de inferioridade”, “complexo de masculinidade” me fazem pensar na anedota que Denis de Rougemont conta em La Part du Diable: uma senhora imaginava que, quando passeava no campo, os pássaros a atacavam; depois de vários meses de um tratamento psicanalítico que não conseguiu curá-la de sua obsessão, o médico acompanhando-a no jardim da clínica verificou que os pássaros a atacavam. A mulher sente-se diminuída porque, na verdade, as determinações da feminilidade a diminuem. Espontaneamente, ela escolhe ser um indivíduo completo, um sujeito e uma liberdade diante de quem se abrem o mundo e o futuro: se essa escolha se confunde com a da virilidade, é na medida em que a feminilidade significa hoje mutilação. Vê-se claramente nas confissões de invertidas — platônica no primeiro caso, declarada no segundo — recolhidas por Havelock Ellis e Stekel que é a especificação feminina que indignou os dois sujeitos.

 

Por mais que recue no tempo, diz uma delas, nunca me encarei como uma moça e me encontrei em face de uma perturbação perpétua. Por volta dos cinco ou seis anos, disse a mim mesma que, fosse qual fosse a opinião das pessoas, se não era um menino, não era em todo caso uma menina... Olhava a conformação de meu corpo como um acidente misterioso... Quando ainda mal podia andar já me interessava por martelos e pregos, queria estar sentada no lombo dos cavalos. Pelos sete anos verifiquei que tudo o que eu apreciava era errado para uma menina. Não era absolutamente feliz e muitas vezes chorava e me encolerizava, a tal ponto ficava furiosa com as conversas acerca de meninos e meninas... Todos os domingos, saía com os meninos da escola de meus irmãos... Por volta dos 11 anos... para me punir, por ser o que era, puseram-me interna no colégio... Com cerca de 15 anos, quaisquer que fossem meus pensamentos, meu ponto de vista era sempre o de um rapaz... Sentia-me cheia de compaixão pelas mulheres... Tornei-me protetora delas...

 

Quanto à travestida de Stekel:

 

Até a idade de seis anos, apesar das asserções dos que a cercavam, ela se acreditava menino vestido de menina, por motivos que lhe permaneciam desconhecidos... Aos seis anos, ela se dizia: “Serei tenente, e se Deus me der tempo, marechal.” Sonhava muitas vezes que montava a cavalo e saía da cidade à frente de um exército. Muito inteligente, sentiu-se infeliz por ter sido transferida da escola normal para um liceu, tinha medo de se tornar efeminada.

 

Essa revolta não implica absolutamente uma predestinação sáfica; em sua maioria, as meninas conhecem o mesmo escândalo, o mesmo desespero quando sabem que a conformação acidental de seu corpo condena seus gostos e suas aspirações; é com raiva que Colette Audry328 descobre aos 12 anos que nunca poderia tornar-se um marinheiro. Muito naturalmente, a futura mulher se indigna com as limitações que o sexo lhe impõe. Perguntar por que as recusa é formular mal a questão: o problema é antes compreender por que ela as aceita. Seu conformismo vem de sua docilidade, de sua timidez; mas essa resignação irá se transformar facilmente em revolta se as compensações oferecidas pela sociedade não forem julgadas suficientes. É o que acontece no caso em que a adolescente se julga desgraciosa como mulher: é principalmente por esse lado que os dados anatômicos assumem importância; feia, malfeita, ou acreditando sê-lo, a mulher recusa um destino feminino para o qual não se sente dotada; mas seria um erro dizer que a atitude viril é adotada para compensar uma carência de feminilidade: cumpre antes dizer que, em troca das vantagens viris que lhe pedem que sacrifique, as possibilidades concedidas à adolescente parecem-lhe muito diminutas. Todas as meninas invejam as roupas cômodas dos meninos; é sua imagem no espelho, as promessas que nela adivinham que tornam pouco a pouco preciosos seus vestidos; se o espelho reflete secamente uma fisionomia cotidiana, se nada promete, rendas e fitas se constituem em libré incômoda, ridícula mesmo, a “menina masculinizada” obstina-se em continuar menino.

Ainda que bem-feita e bonita, a mulher que se empenha em projetos singulares ou que reivindica sua liberdade, recusa-se geralmente a abdicar em proveito de outro ser humano; ela se reconhece em seus atos, mas não em sua presença imanente: o desejo masculino que a reduz aos limites de seu corpo a choca tanto quanto choca o jovem rapaz; pelas suas companheiras submissas ela sente a mesma repugnância que o homem viril pelo pederasta passivo. É em parte para repudiar toda cumplicidade com elas que adota uma atitude masculina; fantasia a roupa, muda de atitude, forma com uma amiga feminina um casal em que encarna o personagem masculino: essa comédia é, com efeito, um “protesto viril”, mas apresenta-se como um fenômeno secundário; o que é espontâneo é o escândalo do sujeito conquistador e soberano à ideia de se transformar em presa carnal. Numerosas esportistas são homossexuais; esse corpo que é músculo, movimento, distensão, impulso, elas não o apreendem como uma carne passiva; ele não atrai magicamente as carícias: é domínio sobre o mundo, não uma coisa do mundo. O fosso que existe entre o corpo para si e o corpo para outrem parece, no caso, intransponível. Encontram-se resistências análogas na mulher de ação, a mulher de “cabeça” para a qual a renúncia, ainda que sob a forma carnal, é impossível. Se a igualdade dos sexos estivesse concretamente realizada, em grande número de casos esse obstáculo seria abolido; mas o homem ainda está imbuído de sua superioridade e é uma convicção incômoda para a mulher se ela não a partilha. Cumpre observar, entretanto, que as mulheres mais voluntárias, mais dominadoras, não hesitam muito em enfrentar o homem: a mulher dita “viril” é muitas vezes francamente heterossexual. Ela não quer renegar sua reivindicação de ser humano, mas não deseja tampouco mutilar-se na sua feminilidade; escolhe ascender ao mundo masculino e até anexá-lo. Sua sensualidade robusta não se assusta com a aspereza do macho; para encontrar sua alegria em um corpo de homem, ela tem menos resistências a vencer do que a virgem tímida. Uma natureza muito rude, muito animal, não sentirá a humilhação do coito; uma intelectual de espírito intrépido a contestará; segura de si, de humor briguento, a mulher se empenhará alegremente em um duelo que tem certeza de ganhar. George Sand tinha predileção pelos rapazinhos, os homens “femininos”; mas Mme de Staël só tardiamente procurou mocidade e beleza em seus amantes; dominando os homens pelo vigor de seu espírito, acolhendo com orgulho a admiração deles, quase não devia sentir-se presa em seus braços. Uma soberana, como Catarina da Rússia, podia até permitir-se uma embriaguez masoquista: continuava senhora absoluta em seus jogos. Isabel Eberhardt, que, vestida de homem, percorreu o Saara a cavalo, não se sentia em nada diminuída quando se entregava a algum soldado vigoroso. A mulher que não quer ser vassala do homem está longe de sempre o evitar: tenta antes fazer dele o instrumento de seu prazer. Nessas circunstâncias favoráveis — dependendo em grande parte do parceiro — será abolida a própria ideia de competição e ela se comprazerá em viver plenamente sua condição de mulher, como o homem vive sua condição de homem.

Mas essa conciliação de sua personalidade ativa com seu papel de fêmea passiva é, apesar de tudo, muito mais difícil para ela do que para o homem: muitas mulheres renunciarão a tentar esse esforço de preferência a consumir-se nele. Entre os artistas e escritores femininos, encontram-se numerosas lésbicas. Não porque sua singularidade sexual seja fonte de energia criadora ou manifeste a existência dessa energia superior; é antes porque, absorvidas por um trabalho sério, não querem perder seu tempo desempenhando um papel de mulher nem lutando contra os homens. Não admitindo a superioridade masculina, não querem nem fingir reconhecê-la nem se cansar contestando-a; procuram na volúpia relaxamento, serenidade, diversão: acham mais cômodo desviar-se de um parceiro que se apresenta como um adversário; com isso, libertam-se dos entraves que a feminilidade implica. Bem entendido, é muitas vezes a natureza de suas experiências heterossexuais que leva a mulher “viril” a escolher assumir ou repudiar o seu sexo. O desdém masculino confirma na mulher feia o sentimento de sua falta de graça; a arrogância de um amante fere a orgulhosa. Todos os motivos de frigidez que já consideramos: rancor, despeito, temor da gravidez, trauma provocado por um aborto etc., se encontram aqui. Assumem tanto maior peso quanto maior for a desconfiança com que a mulher trata o homem.

Entretanto, a homossexualidade, quando se trata de uma mulher dominadora, nem sempre se apresenta como uma solução inteiramente satisfatória; como procura afirmar-se, desagrada-lhe não realizar integralmente suas possibilidades femininas; as relações heterossexuais se afiguram para ela a um tempo diminuição e enriquecimento; repudiando as limitações implicadas em seu sexo, acontece que de um modo ou de outro ela se limita. Assim como a mulher frígida almeja o prazer, embora o recusando, a lésbica gostaria muitas vezes de ser uma mulher normal e completa, embora não o querendo. Essa hesitação é manifesta no caso da travestida descrita por Stekel.

 

Viu-se que ela só se comprazia com rapazes e não queria “efeminar-se”. Aos 16 anos travou suas primeiras relações com moças; tinha por elas um profundo desprezo, o que de imediato deu a seu erotismo um caráter sádico. A uma colega que respeitava fez uma corte ardente, mas platônica; pelas que possuía, sentia nojo. Entregou-se furiosamente a estudos difíceis. Decepcionada em seu primeiro grande amor sáfico, entregou-se com loucura a experiências puramente sensuais e pôs-se a beber. Aos 17 anos, conheceu um rapaz com quem casou, mas o considerava sua mulher: vestia-se de maneira masculina e continuava a beber e a estudar. Sofreu inicialmente de vaginismo e nunca o coito a levou ao orgasmo. Achava sua posição “humilhante” e era sempre ela quem desempenhava o papel agressivo e ativo. Abandonou o marido, embora “amando-o loucamente”, e reatou relações com mulheres. Conheceu um artista a quem se entregou, mas igualmente sem orgasmo. Sua vida dividia-se em períodos nitidamente separados: durante certo tempo escrevia, realizava um trabalho criador e sentia-se totalmente masculina: dormia então sadicamente, de maneira episódica, com mulheres. Em seguida tinha um período de feminilidade. Fez-se analisar porque desejava chegar ao orgasmo.

 

A lésbica poderia facilmente consentir na perda de sua feminilidade se com isso adquirisse uma virilidade triunfante. Mas não. Ela permanece evidentemente privada de órgão viril: pode deflorar a amiga com a mão ou usar um pênis artificial para imitar a posse: não deixa contudo de ser um castrado. Pode sofrer profundamente por isso. Inacabada como mulher, impotente como homem, seu mal-estar traduz-se às vezes por psicoses. Uma doente dizia a Dalbiez:329 “Se tivesse alguma coisa para introduzir, seria melhor.” Outra gostaria que seus seios fossem rígidos. Frequentemente a lésbica tentará compensar sua inferioridade viril com uma arrogância e um exibicionismo reveladores de um desequilíbrio interior. Por vezes, também, ela conseguirá criar com as outras mulheres um tipo de relação inteiramente análoga às que com elas mantém um homem “feminino” ou um adolescente ainda pouco seguro de sua virilidade. Um caso impressionante de um tal destino é o de “Sandor”, como relata Krafft-Ebbing. Ela conseguira desse jeito alcançar um equilíbrio perfeito que só a intervenção da sociedade veio destruir.

 

Sarolta era originária de uma família húngara nobre, reputada pelas suas excentricidades. O pai a educara como um menino: montava a cavalo, caçava etc. Essa influência prolongou-se até a idade de 13 anos, quando a enviaram para um internato: apaixonou-se então por uma inglesinha, e raptou-a, fingindo que era um rapaz. Voltou para casa de sua mãe, mas pouco depois, com o nome de “Sandor” e vestida de homem, partiu para uma viagem com o pai; dedicava-se a esportes viris, bebia e frequentava os bordéis. Sentia-se particularmente atraída pelas atrizes ou pelas mulheres solitárias, tanto quanto possível já não na primeira mocidade; amava-as na medida em que eram “femininas”. “Amava”, diz, “a paixão feminina manifestando-se sob um véu poético. Qualquer impudência da parte de uma mulher me inspirava repugnância... Tinha uma aversão indizível pelas roupas de mulher e em geral por tudo o que era feminino, mas tão somente em mim e sobre mim; pois, ao contrário, tinha entusiasmo pelo belo sexo”. Teve numerosas ligações com mulheres e com elas gastou muito dinheiro. Colaborava, contudo, em dois grandes jornais da capital. Viveu maritalmente durante três anos com uma mulher dez anos mais velha e teve bastante trabalho para que ela aceitasse o rompimento. Inspirava paixões violentas. Apaixonada por uma jovem professora, a ela uniu-se mediante um simulacro de casamento: a noiva e a família da noiva tomavam-na por homem: o sogro pensara ter visto um membro em ereção no futuro genro (provavelmente um pênis artificial); fingia barbear-se, mas a criada de quarto encontrara manchas de sangue menstrual na sua roupa branca e, pelo buraco da fechadura, convencera-se de que Sandor era mulher. Desmascarada, foi presa mas absolvida. Sentiu imensa tristeza por se separar de sua bem-amada Maria, a quem escrevia, da cela, as cartas mais apaixonadas. Não tinha um corpo inteiramente feminino: a bacia era muito estreita e faltava-lhe cintura. Os seios eram desenvolvidos, as partes genitais bem femininas mas imperfeitamente desenvolvidas. As regras só tinham aparecido aos 17 anos e ela sentia profundo horror pelo fenômeno menstrual. A ideia de relações sexuais com homens causava-lhe horror. Somente com as mulheres é que tinha pudor, a ponto de preferir partilhar o leito de um homem a dormir com uma mulher. Muito perturbada quando a tratavam como mulher, foi tomada de verdadeira angústia quando teve de voltar às roupas femininas. Sentia-se “atraída como por uma força magnética para as mulheres de 24 a trinta anos”. Só encontrava satisfação sexual acariciando a amiga, mas nunca se deixando acariciar. Ocasionalmente servia-se de uma meia recheada de estopa como membro. Detestava os homens. Muito sensível à estima moral de outrem, tinha muito talento literário, grande cultura e uma memória colossal.

 

Sandor não foi psicanalisada, mas pela simples exposição dos fatos alguns pontos ressaltam. Parece que sem “protesto viril”, da maneira mais espontânea, ela sempre se tenha considerado homem graças à educação que recebeu e à constituição de seu organismo. A maneira por que seu pai a associou às viagens, à sua vida, teve evidentemente influência decisiva; sua virilidade de tal modo se afirmara que não manifestava nenhuma ambivalência em relação às mulheres: gostava delas como um homem, sem se sentir comprometida por elas, de uma maneira dominadora e ativa, sem aceitar reciprocidade. É impressionante, entretanto, que “detestasse” os homens e amasse particularmente as mulheres idosas. Isso sugere que Sandor tinha em relação à mãe um complexo de Édipo masculino; perpetuava a atitude infantil da menina que, formando casal com a mãe, alimenta a esperança de protegê-la e dominá-la um dia. É, muitas vezes, quando a criança se viu frustrada da ternura materna, que a necessidade dessa ternura a persegue durante toda a sua vida adulta; educada pelo pai, Sandor deve ter sonhado com uma mãe amorosa e querida, que procurou em seguida nas outras mulheres. Isso explica seu ciúme profundo dos outros homens, ligado a seu respeito e seu amor “poético” pelas mulheres “solitárias” e idosas que apresentavam a seus olhos um caráter sagrado. Sua atitude era exatamente a de Rousseau com Mme de Warens, a do jovem Benjamin Constant com Mme de Charrière: os adolescentes sensíveis, “femininos” voltam-se também para amantes maternais. Sob aspectos mais ou menos acentuados, encontra-se com frequência esse tipo de lésbica que nunca se identificou com a mãe — porque a admirava ou detestava demais —, mas que, recusando ser mulher, aspira à doçura de uma proteção feminina em torno de si; do seio dessa matriz protetora ela pode emergir no mundo com audácias masculinas; conduz-se como um homem, mas como homem tem uma fragilidade que lhe faz almejar o amor de uma amante mais velha; o casal reproduzirá, assim, o casal heterossexual clássico: matrona e adolescente.

Os psicanalistas acentuaram bem a importância das relações que a homossexual teve anteriormente com a mãe. Há dois casos em que a adolescente tem dificuldade em escapar à sua influência: se foi mimada com ardor por uma mãe ansiosa; ou se foi maltratada por uma “mãe má” que lhe insuflou profundo sentimento de culpa. No primeiro caso, tais relações beiram a homossexualidade: dormiam juntas, acariciavam-se, beijavam-se os seios. A jovem buscará essa mesma felicidade em outros braços. No segundo caso, ela sentirá a necessidade de uma “boa mãe”, que a proteja contra a primeira, que afaste a maldição que sente pesar sobre sua cabeça. Uma das pacientes, cuja história Havelock Ellis conta, e que detestara a mãe durante toda a infância, descreve assim o amor que sentiu aos 16 anos por uma mulher mais velha.

 

Sentia-me como uma órfã que subitamente adquiriu uma mãe e comecei a me sentir menos hostil aos adultos, a ter respeito por eles... Meu amor por ela era inteiramente puro e pensava nisso como se fosse com uma mãe... Gostava que ela me tocasse e por vezes ela me apertava nos braços e me fazia sentar no colo... Quando eu me deitava, ela vinha dizer-me boa-noite e beijava-me na boca.

 

Se a mais velha se presta a isso, a mais jovem se entregará com alegria a carícias mais ardentes. É comumente o papel passivo que então desempenhará porque deseja ser dominada, protegida, embalada e acariciada como uma criança. Tais relações, quer permaneçam platônicas, quer se tornem carnais, têm muitas vezes as características de uma verdadeira paixão amorosa. Mas pelo próprio fato de que se apresentam na evolução da adolescente como uma etapa clássica, não poderiam bastar para explicar uma escolha decidida da homossexualidade. A jovem procura nela ao mesmo tempo uma libertação e uma segurança que também poderá encontrar em braços masculinos. Passado o período de entusiasmo amoroso, a mais jovem experimentará muitas vezes em relação à mais velha o sentimento ambivalente que experimentava com a mãe; sujeita-se ao seu domínio almejando contudo libertar-se; se a outra se obstinar em retê-la, continuará durante algum tempo “prisioneira”;330 mas com cenas violentas ou amigavelmente, acabará por se evadir; tendo terminado de liquidar sua adolescência, sente-se madura para enfrentar uma vida de mulher normal. Para que sua vocação lésbica se afirme é preciso que — como Sandor — recuse sua feminilidade ou que sua feminilidade desabroche com maior felicidade em braços femininos. A fixação na mãe não basta, portanto, para explicar a inversão. E esta pode ser escolhida por motivos inteiramente diversos. A mulher pode descobrir ou pressentir por meio de experiências completas ou esboçadas que não tirará prazer das relações heterossexuais, que somente uma outra mulher será capaz de satisfazê-la: e particularmente para a mulher que tem o culto de sua feminilidade é o abraço sáfico que se evidencia como o mais satisfatório.

É muito importante sublinhar: nem sempre é a recusa de se fazer objeto que conduz a mulher à homossexualidade; a maioria das lésbicas procura, ao contrário, apropriar-se dos tesouros de sua feminilidade. Consentir em se metamorfosear em coisa passiva não é renunciar a toda reivindicação subjetiva: a mulher espera, assim, atingir-se sob a figura do em-si; mas então procurará reassumir-se em sua alteridade. Na solidão, ela não consegue realmente se desdobrar; pode acariciar seus seios, não sabe como se revelariam a uma mão estranha nem como nessa mão se sentiriam viver; um homem pode descobrir-lhe a existência para si de sua carne, mas não o que ela é para outrem. É somente quando seus próprios dedos modelam o corpo de uma mulher cujos dedos modelam o seu que o milagre do espelho se realiza. Entre o homem e a mulher o amor é um ato; cada um arrancado de si torna-se outro: o que maravilha a amante é que o langor passivo de sua carne se reflita sob a figura do ímpeto viril; mas a narcisista, nesse sexo ereto, não reconhece senão muito confusamente seus atrativos. Entre mulheres, o amor é contemplação: as carícias são menos destinadas a se apropriar do outro do que a recriar-se lentamente através dele; a separação está abolida, não há nem luta, nem vitória, nem derrota; dentro de uma exata reciprocidade cada qual é ao mesmo tempo sujeito e objeto, a soberana e a escrava; a dualidade é cumplicidade. “A estreita semelhança, diz Colette,331 dá confiança à própria volúpia. A amiga se compraz na certeza de acariciar um corpo de que conhece os segredos e cujas preferências seu próprio corpo indica.” E Renée Vivien em Sortilèges:

 

Nosso coração é semelhante em nosso seio de mulher

Querida! Nosso corpo é igualmente feito

Um mesmo destino difícil pesou em nossa alma

Traduzo teu sorriso e a sombra em teu rosto

Minha doçura é igual a tua grande doçura

Por vezes parece até que somos da mesma raça

Amo em ti minha filha, minha amiga e minha irmã.332

 

Esse desdobramento pode assumir uma figura materna; a mãe que se reconhece e se aliena na filha tem muitas vezes por ela um apego sexual: ela tem em comum com a lésbica o gosto de proteger e embalar nos braços um doce objeto de carne. Colette sublinha essa analogia quando escreve em Vrilles de la Vigne.

 

Dar-me-ás a volúpia, debruçada sobre mim, os olhos cheios de uma ansiedade maternal, tu que procuras, através de tua amiga apaixonada, a filha que não tiveste.

 

E Renée Vivien exprime o mesmo sentimento em L’Heure des mains jointes:

 

Vem, eu te carregarei como uma criança doente

Como uma criança queixosa e tímida e doente

Nos meus braços nervosos aperto teu corpo leve

Verás que sei curar e proteger

E que meus braços são feitos para melhor te proteger.

 

E ainda:

 

Amo-te por seres fraca e calma em meus braços

Assim como um berço morno em que descansarás.333

 

Em todo amor — amor sexual ou amor materno — há,334 ao mesmo tempo, avareza e generosidade, desejo de possuir o outro e de tudo lhe dar; mas é na medida em que ambas são narcisistas, acariciando na filha, na amante, seu prolongamento ou seu reflexo, que a mãe e a lésbica se encontram singularmente.

Entretanto, o narcisismo não conduz sempre à homossexualidade: o exemplo de Maria Bashkirtseff prova isso; não se encontra em seus escritos o menor vestígio de um sentimento afetuoso para com uma mulher; cerebral mais do que sensual, extremamente vaidosa, ela sonha desde a infância ser valorizada pelo homem: nada a interessa, senão o que pode contribuir para sua glória. A mulher que se idolatra exclusivamente e que visa a um êxito abstrato é incapaz de ardorosa cumplicidade em relação a outras mulheres; só vê nelas rivais e inimigas.

Em verdade, nenhum fator é determinante, trata-se sempre de uma escolha efetuada em meio a um conjunto complexo e assentando numa livre decisão; nenhum destino sexual governa a vida do indivíduo: seu erotismo traduz, ao contrário, sua atitude global para com a existência.

As circunstâncias, entretanto, têm também um lugar importante nessa escolha. Ainda hoje os dois sexos vivem em grande parte separados; nos internatos, nas escolas de moças, passa-se facilmente da intimidade à sexualidade; encontram-se muito menos lésbicas nos meios em que a camaradagem entre rapazes e moças facilita experiências heterossexuais. Muitas mulheres que trabalham em oficinas e escritórios, entre mulheres, sem muitas oportunidades de encontrar homens, estabelecem ligações amorosas entre si: material e moralmente é cômodo para eles associar suas vidas. A ausência ou o fracasso de relações heterossexuais as entregará à inversão. É difícil traçar uma fronteira entre resignação e predileção: uma mulher pode dedicar-se às mulheres porque um homem a desiludiu, mas por vezes ele a desilude porque era uma mulher que ela procurava nele. Por todas essas razões é falso estabelecer uma distinção radical entre heterossexual e homossexual. Passado o tempo indeciso da adolescência, o homem normal não se permite mais uma extravagância pederástica; mas muitas vezes a mulher normal retorna aos amores que — platonicamente ou não — a encantaram na mocidade. Decepcionada pelo homem, procurará em braços femininos o amante que a traiu; Colette indicou em La Vagabonde esse papel consolador que desempenham muitas vezes na vida das mulheres as volúpias condenadas: acontece que algumas passam a existência inteira a se consolar. Mesmo uma mulher satisfeita com os abraços masculinos pode não desdenhar volúpias mais calmas. Passiva e sensual, as carícias de uma amiga não a desgostarão, porquanto lhe bastará entregar-se, deixar-se satisfazer. Ativa, ardente, ela aparecerá como “andrógina”, não em virtude de uma misteriosa combinação de hormônios, mas sim pelo fato de se encararem a agressividade e o gosto da posse como qualidades viris; Claudine amando Renaud nem por isso deixa de desejar os encantos de Rézi; é plenamente mulher sem deixar de desejar ela também possuir e acariciar. Bem entendido, entre as mulheres “decentes” tais desejos “perversos” são cuidadosamente recalcados: manifestam-se, entretanto, sob a forma de amizades puras mas apaixonadas, ou sob a máscara da ternura maternal: algumas vezes revelam-se violentamente no decurso de uma psicose ou durante a crise da menopausa.

Muito mais absurdo, portanto, seria pretender classificar as lésbicas em duas categorias estanques. Pelo fato de que uma comédia social se superpõe muitas vezes a suas verdadeiras relações, elas próprias sugerem a divisão em “viris” e “femininas”, comprazendo-se em imitar um casal bissexuado. Mas não se deve iludir porque uma usa um tailleur severo e outra um vestido vaporoso. Olhando de perto, a não ser em casos-limites, verifica-se que sua sexualidade é ambígua. A mulher que se faz lésbica porque recusa o domínio do homem experimenta muitas vezes a alegria de reconhecer em outra a mesma amazona orgulhosa; outrora muitos amores culposos floresciam entre as estudantes de Sèvres, que viviam juntas longe dos homens; tinham orgulho de pertencer a uma elite feminina e queriam permanecer sujeitos autônomos. Essa cumplicidade que as reunia contra a casta privilegiada permitia a cada uma admirar numa amiga esse ser prestigioso que amava em si mesma; abraçando-se mutuamente, era cada uma homem e mulher ao mesmo tempo e se encantava com suas virtudes andróginas. Inversamente, uma mulher que quer gozar de sua feminilidade em braços femininos, conhece também o orgulho de não obedecer a nenhum senhor. Renée Vivien amava ardentemente a beleza feminina e queria ser bela; enfeitava-se, orgulhava-se de seus cabelos compridos, mas agradava-lhe também sentir-se livre, intata. Em seus poemas ela exprime seu desprezo por aquelas que consentem em se tornar escravas de um homem pelo casamento. Seu pendor pelos licores fortes, sua linguagem por vezes grosseira e suja eram manifestações de seu desejo de virilidade. Na realidade, na imensa maioria dos casais, as carícias são recíprocas. Disso decorre que os papéis se distribuem de maneira muito incerta: a mulher mais infantil pode desempenhar o papel de um adolescente em face de uma matrona protetora, ou o da amante apoiada ao braço do amante. Elas podem amar-se em igualdade. Sendo os parceiros homólogos, todas as combinações, transposições, trocas, comédias são possíveis. As relações equilibram-se segundo as tendências psicológicas de cada uma das amigas e segundo o conjunto da situação. Se há uma que ajuda ou sustenta a outra, ela assume as funções do homem: protetor tirânico, tolo que se explora, suserano respeitado ou às vezes cafetão. Uma superioridade moral, social, intelectual outorga-lhe muitas vezes a autoridade; entretanto a mais amada gozará dos privilégios de que a reveste o apego apaixonado da mais amorosa. A associação de duas mulheres, como a de um homem com uma mulher, apresenta numerosos aspectos diferentes; assenta no sentimento, no interesse ou no hábito; é conjugal ou romanesca; dá ensejo ao sadismo, ao masoquismo, à generosidade, à fidelidade, à devoção, ao capricho, ao egoísmo, à traição; há, entre as lésbicas, prostitutas, como também grandes amorosas.

Entretanto, certas circunstâncias dão a essas ligações caracteres singulares. Elas não são consagradas por uma instituição ou pelos costumes, nem reguladas por convenções: são vividas, consequentemente, com mais sinceridade. Homem e mulher — ainda que esposos — representam mais ou menos sempre um para outro, e principalmente a mulher a quem o homem impõe sempre alguma norma de conduta: virtude exemplar, encanto, coquetismo, puerilidade ou austeridade. Ela nunca se sente ela mesma na frente do marido ou do amante. Junto de uma amiga ela não se exibe, não precisa fingir, são demasiado semelhantes para não se mostrarem a descoberto. Essa similitude engendra a intimidade mais total. O erotismo muitas vezes importa muito pouco nessas uniões: a volúpia tem um caráter menos fulminante, menos vertiginoso do que entre o homem e a mulher, não provoca metamorfoses tão violentas. Quando se separam carnalmente, os amantes voltam a ser estranhos; o corpo masculino chega a parecer repugnante à mulher, e o homem experimenta por vezes um certo fastio diante do de sua companheira. Entre mulheres, a ternura carnal é mais igual, mais contínua; nunca são arrebatadas em êxtases frenéticos; mas jamais caem numa indiferença hostil; verem-se, tocarem-se constitui um prazer tranquilo que prolonga, em surdina, o prazer da cama. A união de Sarah Posonby com sua bem-amada durou quase cinquenta anos sem uma nuvem: parece que souberam criar um éden sereno à margem do mundo. Mas a sinceridade também se paga. Como se mostram abertamente sem preocupação de se dissimularem ou se controlarem, as mulheres são levadas entre si a violências incríveis. O homem e a mulher intimidam-se pelo fato de serem diferentes; ele sente piedade diante dela, inquietação, esforça-se por tratá-la com cortesia, indulgência, distinção; ela respeita-o e teme-o um pouco, procura dominar-se diante dele; cada qual se preocupa em poupar o outro misterioso cujos sentimentos e reações não avalia direito. Entre elas, as mulheres são implacáveis; frustram-se, provocam-se, perseguem-se, enfurecem-se e se arrastam mutuamente para o fundo da abjeção. A calma masculina, seja indiferença ou domínio sobre si mesmo, é um dique contra o qual se quebram as cenas femininas; mas, entre duas amigas, há sobreposição de lágrimas e convulsões: sua paciência em remoer censuras e explicações é insaciável. Exigências, recriminações, ciúme, tirania, todas essas pragas da vida conjugal se desencadeiam de forma exasperada. Se tais amores são por vezes tempestuosos é também porque são geralmente mais ameaçados do que os amores heterossexuais. São condenados pela sociedade, mal conseguem integrar-se nela. A mulher que assume a atitude viril — pelo seu caráter, sua situação, a força de sua paixão — lamentará não poder dar a sua amiga uma vida normal e respeitável, não poder desposá-la, de arrastá-la por caminhos insólitos: são os sentimentos que Radcliffe Hall atribui a sua heroína em Poço de solidão; esses remorsos traduzem-se por uma ansiedade mórbida e, principalmente por um ciúme torturante. Por seu lado, a amiga, mais passiva ou menos apaixonada, sofrerá em consequência da censura da sociedade; se julgará degradada, pervertida, frustrada, terá rancor contra quem lhe impõe um tal destino. É possível que uma das duas mulheres deseje um filho; ou ela se resigna com tristeza à esterilidade, ou ambas adotam uma criança, ou a que deseja a maternidade pede os serviços de um homem; a criança é por vezes um traço de união, mas também por vezes uma causa de atrito.

O que dá às mulheres encerradas na homossexualidade um caráter viril não é sua vida erótica que, ao contrário, as confina num universo feminino: é o conjunto das responsabilidades que elas são obrigadas a assumir pelo fato de dispensarem homens. Sua situação é inversa à da cortesã que adquire por vezes um espírito viril à força de conviver com os homens — Ninon de Lenclos, por exemplo —, mas que depende deles. A atmosfera singular reinante em torno das lésbicas provém do contraste entre o clima de gineceu em que se desenrola sua vida privada e a independência masculina de sua vida pública. Conduzem-se como homens em um mundo sem homem. A mulher só apresenta-se sempre como um pouco insólita; não é verdade que os homens respeitem as mulheres: eles se respeitam mutuamente através de suas mulheres — esposas, amantes, teúdas e manteúdas; quando a proteção masculina não se projeta mais sobre ela, a mulher fica desarmada em face de uma casta superior que se mostra agressiva, debochada ou hostil. Como “perversão erótica”, a homossexualidade feminina mais faz sorrir do que outra coisa; mas se implica um modo de vida, suscita desprezo ou escândalo. Se há muita provocação e afetação na atitude das lésbicas, é porque elas não têm nenhum meio de viver sua situação com naturalidade: a naturalidade implica não refletir sobre si mesmo, agir sem representar seus atos; mas as condutas de outrem levam sem cessar a lésbica a tomar consciência de si. Somente sendo bastante idosa ou dotada de grande prestígio social é que ela pode seguir o seu caminho com uma indiferença tranquila.

É difícil decretar, por exemplo, se é por gosto ou reação de defesa que tão frequentemente ela se veste de maneira masculina. Há certamente nisso, em boa parte, uma escolha espontânea. Nada é menos natural do que se vestir como mulher; provavelmente, a roupa masculina é também artificial, mas é mais cômoda e mais simples, favorece a ação ao invés de a entravar; George Sand, Isabel Eberhardt usavam roupas de homem; Thyde Monnier em seu último livro335 fala de sua predileção pelas calças; toda mulher ativa gosta de saltos baixos, de tecidos grossos. O sentido da toalete feminina é evidente: trata-se de se “enfeitar” e enfeitar-se é se oferecer; as feministas heterossexuais mostraram-se outrora tão intransigentes a esse respeito quanto as lésbicas: recusavam-se a fazer de si mesmas uma mercadoria que se exibe, adotavam tailleurs e chapéus de feltro sem adornos; os vestidos enfeitados, decotados, pareciam-lhes o símbolo da ordem social que combatiam. Hoje, elas conseguiram dominar a realidade e o símbolo tem a seus olhos menor importância. Ele a conserva para a lésbica na medida em que esta se sente ainda com reivindicações a fazer. Ocorre também — quando particularidades físicas lhe motivam a vocação — que as roupas austeras lhe assentem melhor. Cumpre acrescentar que um dos papéis desempenhados pelo adorno é satisfazer a sensualidade preênsil da mulher; mas a lésbica desdenha o consolo dos veludos, da seda; como Sandor, ela os apreciará em suas amigas, ou o próprio corpo delas os substituirá. É também por essa razão que a lésbica gosta muitas vezes de bebidas fortes, de fumos fortes, de usar uma linguagem rude, de impor a si mesma exercícios violentos: eroticamente ela partilha a doçura feminina, mas ama, por contraste, um clima sem pieguismos. Por esse expediente pode ser levada a comprazer-se na companhia dos homens. Mas aqui um novo fator intervém: a relação muitas vezes ambígua que mantém com eles. Uma mulher muito convencida de sua virilidade apenas desejará homens como amigos e camaradas: essa segurança quase só se encontra naquela que tem interesses comuns com eles, que — nos negócios, na ação ou na arte — trabalha e vence como um deles. Gertrude Stein, quando recebia os amigos, só conversava com os homens e deixava a Alice Toklas o cuidado de entreter as mulheres.336 É com as mulheres que a homossexual muito viril terá uma atitude ambivalente: despreza-as, mas tem diante delas um complexo de inferioridade como mulher e como homem; receia aparecer-lhes como uma mulher falhada, um homem inacabado, o que a leva a exibir uma superioridade altiva ou a manifestar contra elas — como a travestida de Stekel — uma agressividade sádica. Mas este caso é bastante raro. Vimos que em sua maioria as lésbicas recusam o homem com reticência: há nelas, como na mulher frígida, nojo, rancor, timidez, orgulho; elas não se sentem realmente iguais a ele; a seu rancor feminino acrescenta-se um complexo de inferioridade viril: o homem é um rival mais bem armado para seduzir, para possuir e conservar a presa; elas detestam seu poder sobre as mulheres, detestam a “mácula” que o macho impõe à mulher. Irritam-se ao vê-lo deter os privilégios sociais e ao senti-lo mais forte do que elas: é uma humilhação pungente não poder lutar com um rival, saber que ele é capaz de a esmagar com um soco. Essa complexa hostilidade é uma das razões que levam certas homossexuais a se exibirem; só entre si mantêm relações, organizam espécies de clubes para mostrar que não têm necessidade social nem sexual de homens. Passam desse modo facilmente a fanfarronadas inúteis e a todas as comédias da inautenticidade. A lésbica representa primeiramente o papel de homem; posteriormente, ser lésbica já se torna um jogo; o disfarce transforma-se em sinal de submissão e a mulher, a pretexto de subtrair-se à opressão do homem, faz-se escrava de seu personagem; não quis encerrar-se na situação de mulher, torna-se prisioneira da de lésbica. Nada dá pior impressão de estreiteza de espírito e de mutilação do que esses clãs de mulheres libertas. Cumpre acrescentar que muitas mulheres só se declaram homossexuais por complacência interessada: por isso mesmo adotam mais conscientemente atitudes equívocas, esperando além disso excitar os homens que gostam de “viciosas”. Essas que tamanho zelo mostram — e são evidentemente as que mais despertam a atenção — contribuem para lançar o descrédito sobre o que a opinião encara como um vício ou uma atitude.

Na realidade, a homossexualidade não é nem uma perversão deliberada nem uma maldição fatal.337 É uma atitude escolhida em situação, isto é, a um tempo motivada e livremente adotada. Nenhum dos fatores que o sujeito assume com essa escolha — dados fisiológicos, história psicológica, circunstâncias sociais — é determinante, embora todos contribuam para explicá-la. É para a mulher uma maneira, entre outras, de resolver os problemas postos por sua condição em geral, por sua situação erótica em particular. Como todas as condutas humanas, ela acarretará comédias, desequilíbrio, fracasso, mentira ou, ao contrário, será fonte de experiências fecundas, segundo seja vivida na má-fé, na preguiça, na inautenticidade ou na lucidez, na generosidade e na liberdade.