6/Situação e caráter da mulher

 

 

 

 

 

 

 

Hoje nos é possível compreender por que, nos requisitórios contra a mulher, dos gregos aos nossos dias, se encontram tantos traços comuns; sua condição permaneceu a mesma através de mudanças superficiais e define isso que se chama o “caráter” da mulher: esta “chafurda na imanência”, é prudente e mesquinha, tem espírito de contradição, não tem o senso da verdade nem da exatidão, carece de moralidade, é baixamente utilitária, mentirosa, comediante, interesseira... Há em todas estas afirmações uma verdade. Só que as condutas que se denunciam não são ditadas à mulher pelos seus hormônios nem prefiguradas nos compartimentos de seu cérebro: são marcadas pela sua situação. Dentro desta perspectiva, tentaremos esboçar um panorama sintético que nos obrigará a certas repetições, mas que nos permitirá apreender no conjunto de seu condicionamento econômico, social, histórico, “o eterno feminino”.

Opõe-se por vezes o “mundo feminino” ao universo masculino, mas é preciso sublinhar mais uma vez que as mulheres nunca constituíram uma sociedade autônoma e fechada; estão integradas na coletividade governada pelos homens e na qual ocupam um lugar de subordinadas; estão unidas somente enquanto semelhantes por uma solidariedade mecânica; não há entre elas essa solidariedade orgânica em que assenta toda uma comunidade unificada; elas se esforçaram sempre — nos tempos dos mistérios de Elêusis como hoje nos clubes, nos salões, nas reuniões beneficentes — por se ligar a fim de afirmarem um “contrauniverso”, mas é ainda no seio do universo masculino que o colocam. E daí vem o paradoxo de sua situação: elas pertencem ao mesmo tempo ao mundo masculino e a uma esfera em que esse mundo é contestado; encerradas nessa esfera, investidas por aquele mundo, não podem instalar-se em nenhum lugar com tranquilidade. Sua docilidade comporta sempre uma recusa, a recusa de uma aceitação; nisto sua atitude aproxima-se da atitude da moça; mas é mais difícil de sustentar porque não se trata somente para a mulher adulta de sonhar sua vida através do símbolos, e sim de vivê-la.

A própria mulher reconhece que o universo em seu conjunto é masculino; os homens modelaram-no, dirigiram-no e ainda hoje o dominam; ela não se considera responsável; está entendido que é inferior, dependente; não aprendeu as lições da violência, nunca emergiu, como um sujeito, em face dos outros membros da coletividade; fechada em sua carne, em sua casa, apreende-se como passiva em face desses deuses de figura humana que definem fins e valores. Neste sentido, há verdade no slogan que a condena a permanecer “uma eterna criança”; também se dizia dos operários, dos escravos negros, dos indígenas colonizados que eram “crianças grandes”, enquanto não os temeram; isso significava que deviam aceitar, sem discussão, verdades e leis que outros homens lhes propunham: o quinhão da mulher é a obediência e o respeito. Ela não tem domínio, nem sequer em pensamento, sobre essa realidade que a cerca. É essa realidade a seus olhos uma presença opaca. Efetivamente, ela não fez a aprendizagem das técnicas que lhe permitiriam dominar a matéria; não é com a matéria que lhe cabe lutar, e sim com a vida e esta não se deixa dominar pelas ferramentas; não se pode senão suportar-lhe as leis secretas. O mundo não se apresenta à mulher como um “conjunto de utensílios” intermediário entre sua vontade e seus fins, tal qual o define Heidegger: é ao contrário uma resistência obstinada, indomável; ele é dominado pela fatalidade e cortado de caprichos misteriosos. Esse mistério de um morango de sangue que se transforma em um ser humano no ventre da mãe, nenhuma matemática o põe em equação, nenhuma máquina o poderá apressar ou retardar; ela experimenta a resistência da duração que os mais engenhosos aparelhos não conseguem dividir ou multiplicar; experimenta-a em sua carne submetida ao ritmo da lua e que os anos amadurecem primeiramente e depois corroem. Cotidianamente, a cozinha ensina-lhe paciência e passividade; é uma alquimia; cabe-lhe obedecer ao fogo, à água; “esperar que o açúcar derreta”, que a pasta fermente e também que a roupa seque, que as frutas amadureçam. Os trabalhos caseiros aparentam-se a uma atividade técnica; mas são por demais rudimentares, por demais monótonos para convencer a mulher das leis da causalidade mecânica. Aliás, mesmo nesse campo, as coisas têm seus caprichos; há tecidos que encolhem e outros que não encolhem ao serem lavados, manchas que desaparecem e outras que não, objetos que se quebram sozinhos, poeiras que germinam como plantas. A mentalidade da mulher perpetua a das civilizações agrícolas que adoram as virtudes mágicas da terra: ela acredita na magia. Seu erotismo passivo desvenda-lhe o desejo, não como vontade e agressão, mas como uma atração análoga à que faz oscilar a varinha do pesquisador de nascentes; a simples presença de sua carne incha e entesa o sexo do macho, por que uma água escondida não faria tremer a vara da aveleira? Ela sente-se cercada de ondas, de radiações, de fluidos; acredita na telepatia, na astrologia, na radiestesia, na tina de Mesmer, na teosofia, nas mesas giratórias, nas videntes, nos curandeiros; ela introduz na religião as superstições primitivas: círios, ex-votos etc.; encarna nos santos os antigos espíritos da natureza: este protege os viajantes, aquele as parturientes, um outro encontra os objetos perdidos; e naturalmente nenhum prodígio a espanta; sua atitude será a da conjuração e da prece; para obter determinado resultado, obedecerá a certos ritos comprovados. É fácil compreender por que é rotineira; o tempo não tem para ela uma dimensão de novidade, não é um jorro criador; como é destinada à repetição só vê no futuro uma duplicata do passado; conhecendo-se a palavra e a fórmula, a duração alia-se às forças da fecundidade: mas mesmo esta obedece ao ritmo dos meses, das estações; o ciclo de cada gravidez, de cada floração reproduz identicamente o que o precedeu; neste movimento circular, o único devir do tempo é uma lenta degradação: ele corrói os móveis e as roupas, como estraga o rosto; as forças férteis são pouco a pouco destruídas pela fuga dos anos. Por isso, a mulher não confia nessa força que se obstina em desfazer.

Não somente ela ignora o que seja uma verdadeira ação, capaz de mudar a face do mundo, mas ainda perde-se no meio desse mundo como no centro de uma imensa e confusa nebulosa. Sabe servir-se mal da lógica masculina. Stendhal observava que a manejava tão espertamente quanto o homem, quando a necessidade a obrigava a isso, mas trata-se de um instrumento que ela quase não tem a oportunidade de utilizar. Um silogismo não serve nem para acertar uma maionese nem para acalmar o choro da criança; os raciocínios masculinos não são adequados à realidade de quem tem experiência. E no reino dos homens, desde que não faz nada, seu pensamento, não aderindo a nenhum projeto, não se distingue do sonho; por falta de eficiência, ela não tem o senso da verdade; só anda às voltas com imagens e palavras, eis por que acolhe sem embaraço as assertivas mais contraditórias; preocupa-se pouco com elucidar os mistérios de um campo que de toda maneira está fora de seu alcance, contenta-se com conhecimentos terrivelmente vagos: confunde os partidos, as opiniões, os lugares, as pessoas, os acontecimentos; há em sua cabeça uma estranha bagunça. Afinal, ver com clareza isso tudo não é de sua alçada: ensinaram-lhe a aceitar a autoridade masculina; renuncia pois a criticar, a examinar, a julgar por sua conta. Confia na casta superior. Eis por que o mundo masculino se apresenta a ela como uma realidade transcendente, um absoluto. “Os homens fazem os deuses, diz Frazer, as mulheres adoram-nos.” Eles não podem ajoelhar-se com total convicção diante dos ídolos que forjaram; mas quando as mulheres encontram em seu caminho essas grandes estátuas, não imaginam que uma mão as fabricou e prosternam-se docilmente.437 Em particular, gostam que a Ordem, o Direito se encarnem em um chefe. Em todo Olimpo há um deus soberano; a prestigiosa essência viril deve reunir-se em um arquétipo do qual pai, marido, amantes são apenas um pálido reflexo. É um tanto humorístico dizer que o culto que rendem a esse grande totem é sexual; o que é verdade é que em face dele satisfazem plenamente o sonho infantil de renúncia e de genuflexão. Na França os generais: Boulanger, Pétain, De Gaulle438 sempre tiveram as mulheres para eles; cumpre lembrar com que entusiasmo as jornalistas do Humanité evocavam outrora Tito e seu belo uniforme. O general, o ditador — olhar de águia, queixo voluntarioso — é o pai celeste que exige o universo da seriedade, garantia absoluta de todos os valores. É da própria ineficiência e da ignorância que nasce o respeito das mulheres pelos heróis e pelas leis do mundo masculino; reconhecem-nos não por um julgamento, mas por um ato de fé. A fé tira sua força fanática do fato de que não é um saber: ela é cega, apaixonada, obstinada, estúpida; o que ela afirma, ela o afirma incondicionalmente, contra a razão, contra a história, contra todos os desmentidos. Essa reverência obstinada pode assumir segundo as circunstâncias dois aspectos: ora é ao conteúdo da lei, ora unicamente à sua forma vazia que a mulher adere com paixão. Se pertence à elite privilegiada que tira benefícios da ordem social estabelecida, ela a quer inabalável e faz-se notar pela sua intransigência. O homem sabe que pode reconstruir outras instituições, outra ética, outro código; apreendendo-se como transcendência, encara também a história como um devir; o mais conservador sabe que certa evolução é fatal e que a ela deve adaptar sua ação e seu pensamento; a mulher, não participando da história, não lhe compreende as necessidades; desconfia do futuro e almeja sustar o tempo. Não pressente nenhum meio de repovoar o céu se abaterem os ídolos propostos por seu pai, seus irmãos, seu marido; esforça-se encarniçadamente por defendê-los. Durante a guerra de Secessão ninguém entre os sulistas foi tão apaixonadamente escravocrata quanto as mulheres; na Inglaterra, no momento da guerra dos Bôeres, na França contra a Comuna, foram elas as mais ferozes; procuram compensar sua inação pela intensidade dos sentimentos que exibem; em caso de vitória, lançam-se como hienas contra o inimigo abatido; em caso de derrota, recusam-se ferozmente a qualquer conciliação; não passando suas ideias de atitudes, é para elas indiferente defender as causas mais obsoletas: podem ser legitimistas em 1914, tsaristas em 1949. O homem encoraja-as por vezes sorrindo: agrada-lhe ver refletidas sob uma forma fanática as opiniões que exprime de forma mais contida; mas por vezes ele se aborrece também com o aspecto estúpido e obstinado que revestem então suas próprias ideias.

É somente nas civilizações e nas classes fortemente integradas que a mulher se apresenta assim irredutível. Geralmente, sendo sua fé cega, ela respeita a lei simplesmente por ser a lei; mesmo que a lei mude, ela conserva seu prestígio; aos olhos da mulher, a força cria o direito pois os direitos que reconhece aos homens decorrem da força masculina; eis por que, quando uma coletividade se decompõe, são elas as primeiras a se lançar aos pés dos vencedores. De uma maneira geral aceitam o que é. Um dos traços que as caracterizam é a resignação. Quando desenterraram as estátuas de Pompeia, observaram que os homens estavam imobilizados em movimentos de revolta, desafiando o céu ou procurando fugir, ao passo que as mulheres, curvadas, encolhidas sobre si mesmas, voltavam o rosto para a terra. Elas sabem que são impotentes contra as coisas: os vulcões, os policiais, os patrões, os homens. “As mulheres são feitas para sofrer, dizem elas. É a vida... nada se pode contra ela.” Essa resignação engendra a paciência que frequentemente se admira nelas. Suportam muito melhor do que o homem o sofrimento físico: são capazes de uma coragem estoica quando as circunstâncias o exigem: sem a coragem agressiva do homem, muitas mulheres distinguem-se pela calma tenacidade de sua resistência passiva; enfrentam as crises, a miséria, a desgraça mais energicamente do que os maridos; respeitosas do tempo que nenhuma pressa pode vencer, não medem sua duração; quando aplicam sua obstinação serena a algum empreendimento, obtêm, por vezes, resultados brilhantes. “O que a mulher quer...”, diz o provérbio. Numa mulher generosa, a resignação assume a forma da indulgência: ela admite tudo, não condena ninguém porque julga que nem as pessoas nem as coisas podem ser diferentes do que são. Uma orgulhosa pode fazer disso uma virtude altiva, como Mme de Charrière endurecida em seu estoicismo. Mas ela engendra também uma prudência estéril; as mulheres sempre preferem conservar, consertar, arranjar, a destruir e reconstruir. Preferem os acordos e as transações às revoluções. No século XIX, constituíram um dos maiores obstáculos ao esforço de emancipação proletária; para uma Flora Tristan, uma Louise Michel, quantas donas de casa perdidas em sua timidez não suplicavam ao marido que não corresse nenhum risco! Tinham medo, não somente das greves mas ainda da falta de trabalho, da miséria: temiam que a revolta fosse um erro. Compreende-se que, suportar por suportar, prefiram a rotina à aventura: alcançam mais facilmente sua parte de magra felicidade em casa do que nas estradas. Seu destino confunde-se com o das coisas perecíveis; perdendo-as, perderiam tudo. Só um sujeito livre, afirmando-se para além do tempo, pode vencer toda ruína; esse supremo recurso, proibiram-no à mulher. É essencialmente porque nunca experimentou os poderes da liberdade que ela não acredita em uma libertação: o mundo parece-lhe regido por um destino obscuro que seria presunçoso desafiar. Esses caminhos perigosos que a querem obrigar a seguir, não foi ela que os abriu: é normal que neles não se precipite com entusiasmo.439 Que lhe franqueiem o futuro e ela não mais se agarrará ao passado. Quando chamam concretamente as mulheres à ação, quando elas se reconhecem nos objetivos que lhes designam, são tão ousadas e corajosas quanto os homens.440

Muitos defeitos que lhes censuram — mediocridade, pequenez, timidez, mesquinharia, preguiça, frivolidade, servilismo — exprimem simplesmente o fato de que o horizonte lhes está barrado. A mulher é, dizem, sensual, chafurda na imanência; mas antes de mais nada aí a encerraram. A escrava presa no harém não experimenta nenhuma paixão mórbida pela geleia de rosas, pelos banhos perfumados: precisa passar o tempo; na medida em que sufoca em um morno gineceu — bordel ou lar burguês — a mulher se refugiará no conforto e no bem-estar; aliás, se busca avidamente a volúpia é muitas vezes porque dela se acha frustrada; sexualmente insatisfeita, fadada à violência do macho, “condenada às indignidades masculinas”, consola-se com molhos cremosos, vinhos capitosos, veludos, carícias da água, do sol, de uma amiga, de um jovem amante. Se se apresenta ao homem como um ser “tão físico”, é porque sua condição a incita a dar extrema importância à própria animalidade. A carne não grita mais forte nela do que no homem: mas fica atenta aos seus mais insignificantes murmúrios e os amplia; a volúpia, como a dor do sofrimento, é o fulminante triunfo do imediato; pela violência do instante, o futuro e o universo são negados: fora da centelha carnal, o que existe não é nada; durante essa breve apoteose ela não é mutilada nem frustrada. Mais uma vez, ela só empresta tão grande valor a esses triunfos porque a imanência é seu quinhão. Sua frivolidade tem a mesma causa que seu “materialismo sórdido”; ela dá importância às pequenas coisas por não ter acesso às grandes: além disso, as futilidades que lhe enchem os dias são, muitas vezes, das mais sérias; à sua toalete, à sua beleza, deve seu encanto e suas possibilidades. Mostra-se frequentemente indolente, preguiçosa, mas as ocupações que a ela se propõem são tão vãs quanto o simples escoar do tempo; se é tagarela, escrevinhadora, é para evitar a ociosidade: substitui palavras a atos impossíveis. O fato é que, quando se empenha num empreendimento digno de um ser humano, a mulher sabe mostrar-se tão ativa, eficiente, silenciosa, ascética quanto um homem. Acusam-na de ser servil. Está sempre disposta, dizem, a deitar-se aos pés do senhor e a beijar a mão que lhe bateu; é verdade que carece geralmente de um verdadeiro orgulho; os conselhos que os “consultórios sentimentais” dispensam às mulheres enganadas, às amantes abandonadas são inspirados por um espírito de abjeta submissão; a mulher esgota-se em cenas arrogantes e acaba recolhendo as migalhas que o macho consente em lhe jogar. Mas o que pode fazer sem o apoio masculino uma mulher para quem o homem é ao mesmo tempo o único meio e a única razão de viver? Ela é obrigada a aceitar todas as humilhações; a escrava não poderia ter o sentido da “dignidade humana”; para ele, tirar o corpo fora é suficiente. Enfim, se é “terra a terra”, caseira, baixamente utilitária, é porque lhe impõem consagrar sua existência a preparar alimentos e limpar sujeiras: não é disso que ela pode tirar o sentido da grandeza. Ela deve assegurar a monótona repetição da vida em sua contingência e sua facticidade: é natural que ela própria repita, recomece, sem jamais inventar, que o tempo lhe pareça girar sobre si mesmo sem conduzir a nenhum lugar; ocupa-se sem nunca fazer nada; aliena-se pois no que tem; essa dependência em relação às coisas, consequência da dependência em relação aos homens, explica sua prudente economia, sua avareza. Sua vida não é dirigida para fins; absorve-se em produzir ou manter coisas que nunca passam de meios: alimento, roupas, residência; são intermediários inessenciais entre a vida animal e a livre existência; o único valor ligado ao meio inessencial é a utilidade; é no nível do útil que vive a dona de casa e ela só se vangloria de ser útil a seus parentes. Mas nenhum existente poderia satisfazer-se com um papel inessencial: logo transforma os meios em fins — como se verifica entre os políticos — e o valor dos meios torna-se a seus olhos valor absoluto. Assim a utilidade reina no céu da dona de casa mais alto do que a verdade, a beleza, a liberdade e é nessa perspectiva, que é a sua, que ela encara todo o universo; e é porque adota a moral aristotélica do meio-termo, da mediocridade. Como encontraria em si audácia, ardor, desapego, grandeza? Tais qualidades só aparecem no caso em que uma liberdade se lança através de um futuro aberto, emergindo além de todo o dado. Fecham a mulher numa cozinha ou num budoar e se espantam de que seu horizonte seja limitado; cortam-lhe as asas e lamentam que não saiba voar. Que lhe abram o futuro e ela não será mais obrigada a instalar-se no presente.

Dão prova da mesma inconsequência quando, fechando-a dentro dos limites de seu eu ou do lar, censuram-lhe o narcisismo, o egoísmo com seu cortejo: vaidade, suscetibilidade, maldade etc.; tiram-lhe toda possibilidade concreta de comunicação com outrem; ela não sente em sua experiência o apelo nem os benefícios da solidariedade, porquanto está inteiramente consagrada à sua própria família, separada; não se pode, portanto, esperar que se supere em prol do interesse geral. Confina-se obstinadamente no único terreno que lhe é familiar, em que ela pode exercer um domínio sobre as coisas e no seio do qual reencontra uma soberania precária.

Entretanto, por mais que feche as portas e as janelas, a mulher não encontra, em seu lar, uma segurança absoluta; esse universo masculino que ela respeita de longe, sem nele ousar se aventurar, bloqueia-a; e justamente porque é incapaz de apreendê-lo através de técnicas, de uma lógica segura, de conhecimentos articulados, ela se sente como a criança e o primitivo cercada de mistérios perigosos. Neles projeta sua concepção mágica da realidade: o curso das coisas parece-lhe fatal e, no entanto, tudo pode acontecer; ela mal distingue o possível do impossível; está disposta a acreditar em qualquer coisa; acolhe e propaga todos os boatos, provoca pânicos. Mesmo nos períodos de calma vive preocupada; à noite, na sonolência, deitada, inerte, assusta-se com figuras de pesadelo que reveste a realidade; assim, para a mulher condenada à passividade, o futuro opaco é povoado pelos fantasmas da guerra, da revolução, da fome, da miséria; não podendo agir, ela se inquieta. O marido, o filho, quando se lançam num empreendimento, quando são arrastados por um acontecimento, assumem seus riscos por sua própria conta: seus projetos, as normas a que obedecem, traçam na obscuridade um caminho seguro; mas a mulher debate-se numa noite confusa; ela “se preocupa” porque não faz nada; na imaginação, todos os possíveis têm a mesma realidade: o trem pode descarrilar, a operação pode falhar, o negócio malograr; o que ela tenta em vão conjurar, em suas longas ruminações melancólicas, é o espectro de sua própria impotência.

A preocupação traduz a desconfiança em relação ao mundo dado; se ele se lhe afigura carregado de ameaças, prestes a afundar em obscuras catástrofes, é porque ela não se sente feliz. Na maior parte do tempo ela não se resigna em se resignar; sabe muito bem o que suporta, e o suporta contra sua vontade; é mulher sem ter sido consultada; não ousa revoltar-se; é irritada que se submete; sua atitude é uma recriminação constante. Todos os que recebem as confidências das mulheres — médicos, padres, assistentes sociais — sabem que a maneira mais comum é a queixa; entre amigas, geme cada uma sobre seus próprios males e todas juntas sobre a injustiça da sorte, o mundo e os homens em geral. Um indivíduo livre somente a si censura seus fracassos, assume-os, mas é através de outrem que tudo acontece à mulher, é outro que é responsável por suas desgraças. Seu desespero furioso recusa todos os remédios; propor soluções a uma mulher resolvida a queixar-se não adianta nada; nenhuma lhe parece aceitável. Ela quer viver sua situação precisamente como a vive: numa cólera impotente. Que lhe proponham uma mudança, ergue os braços ao céu: “Não faltava mais nada!” Sabe que seu mal-estar é mais profundo do que os pretextos que dá, e que não basta um expediente para libertá-la: ressente-se contra o mundo inteiro, porque foi edificado sem ela e contra ela; desde a adolescência, desde a infância, protesta contra sua condição; prometeram-lhe compensações, asseguraram-lhe que, se abdicasse de suas possibilidades nas mãos de um homem, elas lhe seriam devolvidas centuplicadas e considera-se mistificada; acusa todo o universo masculino; o rancor é o reverso da dependência: quando se dá tudo, nunca se recebe bastante de volta. Entretanto, ela também tem necessidade de respeitar o universo masculino; se sentiria em perigo sem um teto em cima da cabeça, se o contestasse inteiramente: ela adota a atitude maniqueís-ta que também lhe é sugerida pela sua experiência caseira. O indivíduo que age se reconhece responsável do mesmo modo que os outros pelo mal e pelo bem, sabe que lhe cabe definir os fins e fazer com que triunfem; sente na ação a ambiguidade de toda solução; justiça e injustiça, lucros e perdas acham-se inextricavelmente misturados. Mas quem é passivo coloca-se fora do jogo e recusa-se a colocar, ainda que em pensamento, os problemas éticos: o bem deve ser realizado e, se não o é, há uma falta cujos culpados devem ser punidos. Como a criança, a mulher representa o bem e o mal em simples imagens de Epinal; o maniqueísmo tranquiliza o espírito, suprimindo a angústia da escolha; escolher entre uma praga e outra menor, entre um benefício presente e um benefício ainda maior no futuro, ter que definir o que é derrota, o que é vitória, é assumir riscos terríveis; para o maniqueísta, o trigo bom está claramente separado do joio e basta arrancar este último; a poeira condena-se a si própria e a limpeza é a perfeita ausência de sujeira; limpar é expulsar detritos e lama. Assim a mulher pensa que “tudo é culpa dos judeus” ou dos maçons, ou dos bolcheviques, ou do governo; ela é sempre contra alguém ou alguma coisa; entre os antidreyfusistas, as mulheres eram mais encarniçadas ainda do que os homens; elas nem sempre sabem onde reside o princípio maligno, mas o que esperam de um bom governo é que ele o expulse, como se expulsa a poeira da casa. Para as gaullistas fervorosas, De Gaulle se apresenta como o rei dos varredores; de espanadores e trapos nas mãos, elas o imaginam limpando e fazendo brilhar uma França “limpa”.

Mas essas esperanças situam-se sempre num futuro incerto; enquanto se espera, o mal continua a roer o bem; e como não tem à mão os judeus, os maçons, os bolcheviques, a mulher procura um responsável contra quem possa concretamente indignar-se: o marido é a vítima predileta. É nele que se encarna o universo masculino, é através dele que a sociedade masculina assumiu o encargo da mulher e a mistificou; ele suporta o peso do mundo e, se as coisas vão mal, é culpa dele. Quando volta, à noite, ela se queixa dos filhos, dos fornecedores, do trabalho doméstico, do custo de vida, de seu reumatismo, do tempo que faz: e quer que o esposo se sinta culpado. Muitas vezes alimenta em relação a ele ressentimentos particulares; mas o marido é culpado antes de tudo de ser um homem; também pode ter suas doenças, suas preocupações: “Não é a mesma coisa”; ele detém um privilégio que ela sente constantemente como uma injustiça. É de notar que a hostilidade que ela experimenta em relação ao marido, ao amante, a prenda a eles ao invés de afastá-la; um homem que começou a detestar a mulher ou a amante procura fugir dela: mas ela quer ter na mão o homem que odeia, para fazê-lo pagar. Escolher recriminar não é escolher desembaraçar-se de seus males, e sim chafurdar neles; seu supremo consolo é apresentar-se como mártir. A vida, os homens venceram-na: ela fará dessa derrota uma vitória. Eis por que, como em sua infância, ela se entregará com tanto entusiasmo ao frenesi das lágrimas e das cenas.

É sem dúvida porque sua vida se constrói sobre um fundo de revolta impotente que a mulher chora tão facilmente; por certo tem ela fisiologicamente um menor controle do sistema nervoso e simpático do que o homem; sua educação ensinou-lhe a entregar-se: as normas de conduta desempenham aqui um grande papel: Diderot, Benjamin Constant vertiam dilúvios de lágrimas; mas os homens deixaram de chorar, desde que o costume o proibiu. Mas a mulher está sempre disposta a adotar em relação ao mundo uma conduta de fracasso, porque nunca o enfrentou francamente. O homem aceita o mundo; a própria desgraça não mudará sua atitude, ele a enfrentará, não se deixará vencer; ao passo que basta uma contrariedade para pôr novamente a descoberto, para a mulher, a hostilidade do universo e a injustiça de sua sorte; então ela se precipita em seu mais seguro refúgio: ela mesma; esse rasto morno em suas faces, essa ardência em seus olhos, é a presença sensível de sua alma dolorosa; doces na pele, ligeiramente salgadas na língua, as lágrimas são também uma terna e amarga carícia; o rosto queima sob uma torrente de água clemente; as lágrimas são ao mesmo tempo queixa e consolo, febre e calmante frescor. São também um supremo álibi; bruscas como a borrasca, caindo intermitentes, ciclone, aguaceiro, chuvisco, metamorfoseiam a mulher numa fonte queixosa, num céu atormentado; seus olhos não veem mais, velados por uma neblina; não são mais sequer um olhar, fundem-se em chuva. Cega, a mulher retorna à passividade das coisas naturais. Querem-na vencida: ela afunda na derrota; vai a pique, afoga-se, escapa ao homem que a contempla, impotente como diante de uma catarata. Ele julga o processo desleal: mas ela considera que a luta é desleal desde o início, porque não lhe deram nenhuma arma eficaz. Ela recorre uma vez mais a uma conjuração mágica. E o fato de seus soluços exasperarem o homem fornece-lhe uma razão a mais para utilizá-los.

Se as lágrimas não bastam para lhe exprimir a revolta, ela se entregará a cenas cuja violência incoerente desnorteará ainda mais o homem. Em certos meios, o homem espanca a mulher; em outros, precisamente porque é o mais forte e porque seu punho é um instrumento eficaz, ele evita toda violência. Mas a mulher, como a criança, entrega-se a crises simbólicas: pode jogar-se contra o homem, arranhá-lo; são gestos apenas. Mas, principalmente, ela se põe a mimar em seu corpo, através de ataques de nervos, as recusas que não pode concretamente realizar. Não é somente por razões fisiológicas que ela é sujeita a manifestações convulsivas: a convulsão é uma interiorização de uma energia que, jogada no mundo, fracassa em apreender qualquer objeto; é um gasto inútil de todas as potências de negação suscitadas pela situação. A mãe raramente tem crises de nervos diante de seus filhos pequenos porque pode bater neles, puni-los: é diante do filho crescido, do marido, do amante, sobre os quais não tem influência, que a mulher se entrega a desesperos furiosos. As cenas histéricas de Sofia Tolstoi são significativas; sem dúvida ela cometeu o grande erro de nunca ter procurado entender o marido e através de seu diário não parece nem generosa, nem sensível, nem sincera, e está longe de parecer uma pessoa atraente; mas, tenha tido razão ou não, em nada modifica sua situação: durante toda a vida apenas suportou, através de constantes recriminações, as relações conjugais, as maternidades, a solidão, o modo de vida que seu marido lhe impunha; quando as novas decisões de Tolstoi exasperaram o conflito, ela se encontrou sem armas contra a vontade inimiga, que recusava com toda a sua vontade impotente; jogou-se em comédias de recusa — falsos suicídios, falsas fugas, falsas doenças etc. — odiosas aos seus e para ela própria desgastantes: não vemos que outra saída lhe restava, posto que não tinha nenhuma razão positiva para calar seus sentimentos de revolta, e nenhum meio eficiente de exprimi-los.

Há uma saída para a mulher que chega ao fim de sua recusa: suicídio. Mas parece que o emprega menos frequentemente do que o homem. As estatísticas são muito ambíguas a esse respeito441 considerando os suicídios, há muito mais homens do que mulheres que atentam contra a vida; mas as tentativas de suicídio são mais frequentes entre as mulheres. Talvez porque se contentem o mais das vezes com comédias: representam o suicídio mais do que o homem, querem-no mais raramente. Isso também, em parte, porque os meios brutais lhes repugnam: quase nunca empregam armas brancas, nem armas de fogo. Afogam-se de bom grado, como Ofélia, manifestando a afinidade da mulher com a água passiva e noturna e na qual parece que a vida pode passivamente dissolver-se. De um modo geral, observa-se aqui a ambiguidade que já assinalei: a mulher não procura sinceramente largar o que detesta. Representa o drama da ruptura, mas finalmente fica com o homem que a faz sofrer; finge abandonar a vida que a molesta mas é relativamente raro que se mate. Não gosta das soluções definitivas: protesta contra o homem, contra a vida, contra sua condição, mas não se evade.

Há muitas condutas femininas que devem ser interpretadas como protestos. Vimos que muitas vezes a mulher engana o marido por desafio, não por prazer; será avoada e gastadora só porque ele é metódico e econômico. Os misóginos que acusam a mulher de “estar sempre atrasada” pensam que ela carece do “senso da exatidão”. Na verdade, vimos como se dobra docilmente às exigências do tempo. Seus atrasos são deliberadamente consentidos. Certas coquetes acreditam exasperar assim o desejo do homem e dar ainda maior valor à própria presença; mas, infligindo ao homem alguns momentos de espera, a mulher protesta principalmente contra a longa espera que é a sua própria vida. Em certo sentido, toda a sua existência é uma espera, pois está encerrada no limbo da imanência, da contingência e sua justificação se acha sempre nas mãos de outrem; ela espera as homenagens, a aprovação masculina; espera o amor, a gratidão e os elogios do marido, do amante; espera deles suas razões de existir, seu valor e seu próprio ser. Deles espera a subsistência: que tenha em mãos o talão de cheques ou que receba semanal ou mensalmente as importâncias que o marido lhe concede, é preciso que ele receba, que tenha conseguido esse aumento para que ela possa pagar ao vendeiro ou comprar um vestido novo. Ela espera a presença dele; sua dependência econômica coloca-a à disposição dele; ela é apenas um elemento da vida masculina ao passo que o homem é toda sua vida; o marido tem ocupações fora do lar, a mulher suporta-lhe a ausência ao longo dos dias; é o amante — ainda que apaixonado — que decide das separações e dos encontros de acordo com as obrigações que tem. Na cama, ela aguarda o desejo do homem, espera, por vezes ansiosamente, seu próprio prazer. Tudo o que pode fazer é chegar atrasada ao encontro marcado pelo amante, é não estar pronta na hora que o marido designou; ela afirma assim a importância de suas próprias ocupações, reivindica sua independência, torna a ser, por um momento, o sujeito essencial cuja vontade o outro suporta passivamente. Mas trata-se de tímidas vinganças; por mais que se obstine em fazer os homens “esperar”, nunca compensará as horas infinitas que passa a vigiar, a esperar, a submeter-se ao bel-prazer do homem.

De maneira geral, embora reconhecendo, em conjunto, a supremacia dos homens, aceitando-lhes a autoridade, adorando-lhes os ídolos, ela vai contestar-lhes o reinado palmo a palmo; daí o famoso “espírito de contradição” que tantas vezes lhe censuraram; não possuindo um domínio autônomo, não pode opor verdades, valores positivos aos que os homens afirmam; pode, entretanto, negá-los. Sua negação é mais ou menos sistemática segundo a maneira por que nela se dosam respeito e rancor. Mas o fato é que ela conhece todas as falhas do sistema masculino e se apressa em denunciá-las.

As mulheres não têm domínio sobre o mundo masculino porque sua experiência não lhes ensina a manejar a lógica e a técnica: inversamente, o poder dos instrumentos masculinos é abolido nas fronteiras do domínio feminino. Há toda uma região da experiência humana que o homem escolhe deliberadamente ignorar porque fracassa em pensá-la: essa experiência, a mulher a vive. O engenheiro, tão preciso quando faz seus planos, conduz-se, em casa, como um demiurgo: uma palavra e eis servida a refeição, suas camisas engomadas, seus filhos silenciosos; procriar é um ato tão rápido quanto o golpe de vara de Moisés; ele não se espanta com tais milagres. A noção de milagre difere da ideia de magia; ela põe, no seio de um mundo racionalmente determinado, a descontinuidade radical de um acontecimento sem causa contra o qual todo pensamento se esboroa; ao passo que os fenômenos mágicos são unificados por forças secretas cujo devir contínuo uma consciência dócil — ainda que sem o compreender — pode aceitar. O recém-nascido é milagroso para o pai demiurgo, mágico para a mãe que lhe suportou o amadurecimento no ventre. A experiência do homem é inteligível, mas pontilhada de vazios; a da mulher é, em seus limites próprios, obscura mas plena. Essa opacidade a torna pesada; em suas relações com ela, o homem parece-lhe leve; ele tem a leveza dos ditadores, dos generais, dos juízes, dos burocratas, dos códigos e dos princípios abstratos. É o que sem dúvida queria dizer essa dona de casa que murmurava um dia, dando de ombros: “Os homens não pensam!” Elas dizem também: “Os homens não sabem, não conhecem a vida.” Ao mito da fêmea do louva-a-deus, elas opõem o símbolo do zangão frívolo e importuno.

Compreende-se que nessa perspectiva a mulher recuse a lógica masculina. Não somente esta não lhe perturba a experiência, como ela sabe ainda que nas mãos dos homens a razão se torna uma forma matreira de violência; as afirmações peremptórias deles destinam-se a mistificar. Querem encerrá-la em um dilema: ou estás de acordo, ou não estás; em nome de todo o sistema dos princípios admitidos, ela deve estar de acordo: recusando sua adesão, é todo o sistema que recusa; não pode permitir-se semelhante escândalo; não tem os meios de reconstruir outra sociedade: contudo, não adere a esta. A meio caminho entre a revolta e a escravidão, resigna-se a contragosto à autoridade masculina. É pela violência que se faz preciso, em cada ocasião, obrigá-la a endossar as consequências de sua submissão incerta. O homem persegue a quimera de uma companheira livremente escrava: quer que, cedendo-lhe, ela ceda à evidência de um teorema; mas sabe que ele próprio escolheu os postulados a que se prendem suas rigorosas deduções; enquanto ela evita rediscuti-las, ele lhe tapa facilmente a boca; nem por isso a convence, porquanto ela adivinha a arbitrariedade dessas deduções. Por isso ele a acusará com irritação e obstinação de ilogismo: mas ela recusa participar do jogo porque sabe que os dados são viciados.

A mulher não pensa positivamente que a verdade seja outra que aquilo que os homens pretendem; ela admite antes que a verdade não é. Não é somente o devir da vida que a faz desconfiar do princípio de identidade, nem são os fenômenos mágicos de que se acha cercada que arruínam a noção de causalidade: é no próprio coração do mundo masculino, é em si, enquanto pertencendo a esse mundo, que apreende a ambiguidade de todo princípio, de todo valor, de tudo o que existe. Sabe que a moral masculina, no que lhe diz respeito, é uma vasta mistificação. O homem acena-lhe pomposamente com seu código de virtude e honra, mas em surdina incita-a a desobedecer: espera mesmo essa desobediência; sem esta, toda a bela fachada atrás da qual ele se abriga desmoronaria.

O homem de bom grado se apoia na ideia hegeliana, segundo a qual o cidadão adquire sua dignidade ética transcendendo-se para o universal: enquanto indivíduo singular, tem direito ao desejo, ao prazer. Suas relações com a mulher situam-se pois numa região contingente em que a moral não mais se aplica, em que as condutas são indiferentes. Com os outros homens, ele tem relações em que se empenham valores; ele é uma liberdade enfrentando outras liberdades segundo leis que todos universalmente reconhecem; mas junto da mulher — ela foi inventada para esse fim — ele deixa de assumir sua existência, entrega-se à miragem do “em-si”, situa-se num plano inautêntico; mostra-se tirânico, sádico, violento, ou pueril, masoquista, queixoso; tenta satisfazer suas obsessões, suas manias; “distende-se”, “relaxa-se”, em nome dos direitos que adquiriu em sua vida pública. Sua mulher assusta-se por vezes — como Thérèse Desqueyroux — com o contraste entre o alto nível de suas palavras, de suas condutas públicas e “suas pacientes invenções de sombra”. Prega a repopulação e mostra-se hábil em não gerar mais filhos do que os que lhe convém. Exalta as esposas castas e fiéis, mas incita ao adultério a mulher do vizinho. Vimos com que hipocrisia os homens decretam que o aborto é criminoso, quando todos os anos na França um milhão de mulheres são colocadas pelo homem em situação de precisarem abortar; muitas vezes o marido ou o amante lhe impõe tal solução; muitas vezes eles supõem tacitamente que, em caso de necessidade, ela será adotada. Esperam confessadamente que a mulher consentirá em tornar-se culpada de um delito: sua “imoralidade” é necessária à harmonia da sociedade moral respeitada pelos homens. O exemplo mais flagrante dessa duplicidade é a atitude do homem em face da prostituição: é sua procura que cria a oferta; disse eu com que ceticismo enojado as prostitutas encaram os senhores respeitáveis que condenam o vício, mas demonstram muita indulgência por suas manias pessoais; entretanto consideram-se perversas e debochadas as mulheres que vivem de seu corpo, não os homens que os usam. Um caso ilustra esse estado de espírito: no fim do século passado, a polícia descobriu num bordel duas meninas de 12 e 13 anos; houve um processo em que elas depuseram; falaram de seus fregueses, que eram homens importantes; uma delas abriu a boca para revelar um nome. O procurador deteve-a precipitadamente: Não suje o nome de um homem honesto! Um senhor condecorado com a Legião de Honra continua um homem de bem quando deflora uma menina; tem suas fraquezas, quem não as tem? Ao passo que a menina que não atinge a região ética do universal — que não é um magistrado, nem um general, nem um grande francês, mas apenas uma menina — joga seu valor moral na região contingente da sexualidade; é uma pervertida, uma transviada, uma depravada, boa para uma casa de correção. O homem pode, em muitos casos e sem macular sua “dignidade”, perpetrar em cumplicidade com a mulher atos que para ela são condenáveis. Ela compreende mal tais sutilezas; o que compreende é que o homem não age em conformidade com os princípios que proclama e pede-lhe que a estes desobedeça. Ele não quer o que diz querer: por isso não lhe dá ela o que finge dar-lhe. Será uma esposa casta e fiel e às escondidas cederá aos próprios desejos; será uma mãe admirável mas praticará cuidadosamente o controle de natalidade e, se necessário, irá até o aborto. O homem oficialmente a condena, é a regra do jogo; mas mostra-se reconhecido a uma pela sua “pequena virtude” e a outra pela sua esterilidade. A mulher desempenha o papel desses agentes secretos que se deixam fuzilar, se são presos, e que se enchem de recompensas, se logram êxito; cabe a ela endossar toda a imoralidade dos homens: não é somente a prostituta, são todas as mulheres que servem de esgoto ao palácio luminoso e saudável em que habitam as pessoas honestas. Quando, em seguida, lhes falam de dignidade, de honra, de lealdade, de todas as grandes virtudes viris, cumpre não se espantar que se recusem a “ir na onda”. Escarnecem particularmente quando os homens virtuosos as censuram por serem interesseiras, comediantes, mentirosas:442 bem sabem que não lhes oferecem nenhuma outra saída. O homem também “se interessa” pelo dinheiro, pelo êxito: mas tem os meios de conquistá-los pelo trabalho; à mulher atribuíram um papel de parasita: todo parasita é necessariamente um explorador; ela precisa do homem para adquirir dignidade humana, para comer, gozar, procriar; é através dos serviços que presta com o sexo que assegura as generosidades masculinas; e como a encerram nessa função, ela se transforma inteiramente num instrumento de exploração. Quanto às mentiras, salvo no caso da prostituição, não se trata, entre ela e o protetor, de um negócio franco. O próprio homem reclama que ela represente uma comédia: quer que ela seja o Outro; mas todo existente, por mais perdidamente que se renegue, permanece sujeito; ele a quer objeto: ela faz-se objeto; no momento em que ela se faz ser, exerce uma livre atividade; aí está sua traição original; a mais dócil, a mais passiva é ainda consciência; basta, por vezes, que o homem se aperceba de que, entregando-se a ele, ela o encara e julga, para que ele se sinta enganado; ela deve ser apenas uma coisa oferecida, uma presa. Entretanto, essa coisa, o homem exige também que ela lhe entregue livremente: pede-lhe que sinta prazer na cama, que lhe reconheça sinceramente a superioridade e os méritos no lar; no instante em que obedece, a mulher deve, pois, fingir independência enquanto, em outros momentos, representa ativamente a comédia da passividade. Ela mente para reter o homem que lhe assegura o pão cotidiano: cenas e lágrimas, transportes de amor, crises de nervos. E ela mente também para escapar à tirania que por interesse aceita. O homem a incita a comédias de que se aproveitam seu imperialismo e sua vaidade: ela volta contra ele seus poderes de dissimulação; consegue também vinganças duplamente deliciosas: porque, enganando-o, satisfaz desejos singulares, experimenta o prazer de o ridicularizar. A esposa, a cortesã mentem fingindo sensações que não têm; depois, divertem-se com um amante, com amigas, zombando da ingênua vaidade de sua vítima: “Não somente eles ‘não nos satisfazem’ como ainda querem que nos cansemos de gritar de prazer”, dizem com rancor. Tais conversas assemelham-se às das criadas que, na copa, falam mal dos patrões. A mulher tem os mesmos defeitos porque é vítima da mesma opressão paternalista; tem o mesmo cinismo, porque vê o homem de baixo para cima, como o lacaio vê o patrão. Mas é claro que nenhum de seus traços manifesta uma essência ou uma vontade original pervertidas: refletem uma situação. “Há falsidade sempre que há regime coercivo”, diz Fourier. “A proibição e o contrabando são inseparáveis, no amor como no comércio.” E os homens sabem tão bem que os defeitos da mulher manifestam sua condição, que, preocupados com manter a hierarquia dos sexos, incentivam, em suas companheiras, os próprios traços que lhes permitem desprezá-las. Provavelmente, o marido, o amante irritam-se com os defeitos da mulher singular com quem vivem; entretanto, louvando encantos da feminilidade em geral, eles a imaginam inseparável de tais defeitos. Se não é pérfida, fútil, covarde, indolente, a mulher perde sua sedução. Na Casa de boneca, Helmer explica o quanto o homem se sente justo, forte, compreensivo, indulgente, quando perdoa as faltas pueris da frágil mulher. Assim também os maridos de Bernstein se enternecem — com a cumplicidade do autor — diante da mulher ladra, má, adúltera; eles medem, debruçando-se sobre ela com indulgência, a própria sabedoria viril. Os racistas americanos e os colonos franceses desejam também que o Negro se mostre gatuno, preguiçoso, mentiroso: com isso ele prova sua indignidade, põe o direito do lado dos opressores; obstinando-se em ser honesto, leal, olham-no como um revoltado. Os defeitos da mulher exageram-se ainda mais pois ela não tenta combatê-los, mas, ao contrário, faz deles um adorno.

Recusando os princípios lógicos, os imperativos morais, cética diante das leis da natureza, a mulher não tem o sentido do universal; o mundo apresenta-se a ela como um conjunto confuso de casos singulares; eis por que acredita mais facilmente nos mexericos de uma vizinha do que numa exposição científica; sem dúvida, respeita o livro impresso, mas esse respeito desliza ao longo das páginas escritas sem apreender-lhes o conteúdo: ao contrário, a anedota contada por um desconhecido numa fila ou num salão reveste-se imediatamente de uma esmagadora autoridade; em seu domínio, tudo é magia; fora, tudo é mistério; ela não conhece o critério da verossimilhança; só a experiência imediata conquista sua convicção: sua própria experiência ou a de outrem, desde que a afirme com suficiente força. Quanto a ela, por se achar isolada em seu lar, não se confronta ativamente com as outras mulheres, considera-se espontaneamente como um caso singular; está sempre à espera de que o destino e os homens façam uma exceção em seu favor; muito mais do que nos raciocínios válidos para todos, ela crê nas iluminações que a atravessam; admite facilmente que lhes são enviadas por Deus ou por qualquer espírito obscuro do mundo; com relação a certas desgraças, a certos acidentes, ela pensa tranquilamente: “A mim isso não acontecerá!” Inversamente imagina que “para mim haverá uma exceção”: ela gosta dos privilégios: o comerciante lhe fará um desconto, ou o guarda a deixará passar sem que tenha prioridade. Ensinaram-lhe a superestimar o valor de seu sorriso e esqueceram de lhe dizer que todas as mulheres sorriem. Não acontece isso porque ela se imagine mais extraordinária do que sua vizinha, mas sim porque não se compara; pela mesma razão, é raro que a experiência lhe inflija algum desmentido: experimenta um fracasso, outro, mas não os totaliza.

É por isso que as mulheres não conseguem construir solidamente um “contrauniverso”, de onde possam desafiar os homens; esporadicamente, bradaram contra os homens em geral, contam umas às outras histórias de cama e de parto, trocam horóscopos e receitas de beleza. Mas, para edificar realmente esse “mundo do ressentimento” que seu rancor almeja, carecem de convicção; sua atitude em relação ao homem é demasiado ambivalente. Este é, com efeito, uma criança, um corpo contingente e vulnerável, um ingênuo, um zangão importuno, um tirano mesquinho, um egoísta, um vaidoso: mas é também o herói libertador, a divindade que distribui os valores. Seu desejo é um apetite grosseiro, suas carícias são uma tarefa degradante: entretanto, o entusiasmo, a força viril apresentam-se também como uma energia demiúrgica. Quando uma mulher diz com êxtase: “É um homem!” evoca ao mesmo tempo o vigor sexual e a eficiência social do macho que admira: em uma e outra coisa se exprime a mesma soberania criadora; ela não imagina que ele seja um grande artista, um grande homem de negócios, um general, um chefe, sem ser um amante vigoroso; seus êxitos sociais têm sempre uma atração sexual; inversamente, ela se mostra disposta a reconhecer a genialidade do macho que a satisfaz. É, de resto, um mito masculino que ela retoma aqui. O falo, para Lawrence e muitos outros, é, ao mesmo tempo, uma energia viva e a transcendência humana. Assim a mulher pode ver nos prazeres da cama uma comunhão com o espírito do mundo. Dedicando ao homem um culto místico, perde-se e se reencontra na glória masculina. A contradição é, aqui, facilmente suprimida graças à pluralidade dos indivíduos que participam da virilidade. Alguns — aqueles cuja contingência ela experimenta na vida cotidiana — são a encarnação da miséria humana; em outros exalta-se a grandeza do homem. Mas a mulher aceita até que essas duas figuras se confundam em uma só. “Se eu me tornar célebre”, escrevia uma jovem apaixonada por um homem que considerava superior, “R... casará certamente comigo, porque sua vaidade será lisonjeada; estufaria o peito passeando de braço dado comigo”. No entanto, ela o admirava loucamente. O mesmo indivíduo pode muito bem ser, aos olhos da mulher, avarento, mesquinho, vaidoso, irrisório e um deus: afinal os deuses têm suas fraquezas. Temos por um indivíduo que amamos em sua liberdade, em sua humanidade, essa exigente severidade que é o inverso de uma autêntica estima; ao passo que uma mulher ajoelhada diante de seu homem pode muito bem ufanar-se de “saber dominá-lo”, de saber “manobrá-lo”; lisonjeia-lhe complacentemente “as pequenas qualidades” sem que ele perca seu prestígio; é a prova de que ela não tem amizade especificamente por sua pessoa, tal como se manifesta em atos reais; ela se prosterna cegamente diante da essência geral de que o ídolo participa: a virilidade é uma aura sagrada, um valor dado, estático, que se afirma a despeito das mesquinharias do indivíduo que a possui; este não conta; ao contrário, a mulher, com ciúme de seu privilégio, compraz-se em tomar atitudes de maligna superioridade sobre ele.

A ambiguidade dos sentimentos que a mulher dedica ao homem se encontra em sua atitude geral para consigo mesma e o mundo; o domínio em que se acha encerrada é investido pelo universo masculino; mas é habitado por forças obscuras de que os próprios homens são joguetes. Aliando-se a essas virtudes mágicas, ela conquistará, por sua vez, o poder. A sociedade escraviza a Natureza, mas a Natureza a domina; o Espírito afirma-se além da Vida; mas dissipa-se, se a vida não o sustenta mais. A mulher apoia-se nesse equívoco para dar maior importância a um jardim do que a uma cidade, a uma doença do que a uma ideia, a um parto do que a uma revolução; esforça-se para restabelecer esse reinado da terra, da Mãe, sonhado por Baschoffen, a fim de reencontrar o essencial em face do inessencial. Mas como é, ela também, um existente que habita uma transcendência, só poderá valorizar a região em que se acha confinada transfigurando-a; empresta-lhe uma dimensão transcendente. O homem vive num universo coerente que é uma realidade pensada. A mulher está às voltas com uma realidade mágica que não se deixa pensar: dela se evade através de pensamentos privados de conteúdo real. Em vez de assumir sua existência, contempla no céu a pura Ideia de seu destino; em vez de agir, ergue sua estátua no imaginário; em vez de raciocinar, sonha. Daí vem que sendo “tão física” seja também tão artificial, que sendo tão terrestre se faça tão etérea. Passa a vida limpando caçarolas e é um romance maravilhoso; vassala do homem, acredita ser seu ídolo; humilhada em sua carne, exalta o amor. Porque está condenada a só conhecer a facticidade contingente da vida, faz-se sacerdotisa do Ideal.

Essa ambivalência marca-se na maneira por que a mulher apreende o próprio corpo. É um fardo; roído pela espécie, sangrando todos os meses, proliferando passivamente, não é para ela o instrumento puro de seu domínio sobre o mundo, mas uma presença opaca; não lhe assegura com certeza o prazer e cria dores que a atormentam; encerra ameaças: ela sente-se em perigo nos seus “interiores”. É um corpo “histérico”, por causa da íntima ligação das secreções endócrinas com os sistemas nervoso e simpático que comandam músculos e vísceras; exprime reações que a mulher se recusa a assumir: nos soluços, nas convulsões, nos vômitos, ele lhe escapa, ele a trai; ele é sua verdade mais íntima, mas é uma verdade vergonhosa e que ela esconde. E, no entanto, ele é também seu duplo maravilhoso; ela contempla-o com deslumbramento ao espelho; é promessa de felicidade, obra de arte, estátua viva; ela o modela, enfeita, exibe. Quando se sorri ao espelho, ela esquece sua contingência carnal; na relação amorosa, na maternidade, a imagem aniquila-se. Mas, muitas vezes, sonhando consigo mesma, ela se espanta por ser ao mesmo tempo essa heroína e essa carne.

A Natureza oferece-lhe simetricamente uma dupla face: ela trata da sopa e incita às efusões místicas. Tornando-se dona de casa, mãe, a mulher renuncia a suas livres escapadas por prados e bosques, prefere cultivar calmamente sua horta, domestica flores, coloca-as em vasos; entretanto, exalta-se ainda diante dos luares e dos crepúsculos. Na fauna e na flora terrestres, ela vê antes de tudo alimentos, ornatos; no entanto, nelas circula uma seiva que é generosidade e magia. A Vida não é apenas imanência e repetição: tem também uma deslumbrante face de luz; nos prados em flor ela se revela como Beleza. Ligada à Natureza pela fertilidade de seu ventre, a mulher sente-se igualmente varrida pelo sopro que a anima e que é espírito. E à medida que permanecer insatisfeita, que se sentir como a jovem irrealizada, ilimitada, sua alma também se perderá pelas estradas que se estendem indefinidamente em direção a horizontes sem fim. Escravizada ao marido, aos filhos, ao lar, com embriaguez é que se encontrará sozinha, soberana, no flanco das colinas; não é mais esposa, mãe, dona de casa, e sim um ser humano; contempla o mundo passivo; lembra-se de que é toda uma consciência, uma irredutível liberdade. No mistério da água, na vertigem das alturas, a supremacia do homem fica abolida; quando anda através das urzes, quando mergulha a mão no regato, não vive para outrem, vive para si. A mulher que manteve sua independência através de todas as suas servidões, amará ardentemente na Natureza sua própria liberdade. As outras nessa Natureza encontrarão somente um pretexto para êxtases distintos; hesitarão ao crepúsculo ante o receio de pegar um resfriado e o gozo intenso da alma.

Essa dupla dependência do mundo carnal e do mundo “poético” define a metafísica, a sabedoria a que adere mais ou menos explicitamente a mulher; ela se esforça por confundir vida e transcendência; isso equivale a dizer que recusa o cartesianismo e todas as doutrinas que a ele se aparentam; encontra-se à vontade em um naturalismo análogo ao dos estoicos ou dos neoplatônicos do século XVI: não é de espantar que as mulheres, com Margarida de Navarra à frente, se tenham apegado a uma filosofia ao mesmo tempo tão material e tão espiritual. Socialmente maniqueísta, a mulher tem profunda necessidade de ser ontologicamente otimista: as morais da ação não lhe convém porque lhe é proibido agir; ela suporta o dado, cumpre, portanto, que o dado seja o Bem; mas um Bem que como o de Espinosa se reconhece pela razão, ou como o de Leibniz pelo cálculo, não a pode impressionar. Ela reclama um Bem que seja uma Harmonia viva e no seio do qual ela se situe pelo único fato de viver. A noção de harmonia é uma das chaves do universo feminino: implica a perfeição na imobilidade, a justificação imediata de cada elemento a partir do todo e sua participação passiva na totalidade. Em um mundo harmônico, a mulher atinge, assim, o que o homem procurará na ação: age sobre o mundo, é por ele exigida, coopera para o triunfo do Bem. Os momentos que as mulheres consideram como revelações são aqueles em que descobrem seu acordo com uma realidade repousando em paz sobre si mesma: são os momentos de luminosa felicidade que V. Woolf — em Mrs. Dalloway, em Passeio ao farol — que K. Mansfield, em toda a sua obra, concedem a suas heroínas como uma recompensa suprema. A alegria, que é um movimento, um impulso de liberdade, está reservada ao homem; o que a mulher conhece é uma impressão de sorridente plenitude.443 Compreende-se que a simples ataraxia possa assumir a seus olhos um grande valor, porquanto ela vive normalmente na tensão da recusa, da recriminação, da reivindicação; e não se pode censurá-la por apreciar uma bela tarde ou a doçura de uma noite. Mas é uma ilusão buscar nisso a definição verdadeira da alma recôndita do mundo. O Bem não é; o mundo não é harmonia e nenhum indivíduo tem nele um lugar necessário.

Há uma justificação, uma compensação suprema que a sociedade sempre se esforçou por dispensar à mulher: a religião. É preciso uma religião para as mulheres, como é preciso uma para o povo, e exatamente pelas mesmas razões: quando condenam um sexo, uma classe à imanência, é necessário oferecer-lhe a miragem de uma transcendência. O homem tem toda vantagem em fazer endossar por Deus os códigos que fabrica: e, particularmente, como exerce sobre a mulher uma autoridade soberana, é útil que esta lhe seja conferida pelo ser soberano. Entre os judeus, os maometanos, os cristãos, entre outros, o homem é senhor por direito divino: o temor a Deus abafará no oprimido toda veleidade de revolta. Pode-se apostar em sua credulidade. A mulher adota em face do universo masculino uma atitude de respeito e de fé; Deus em seu céu aparece-lhe menos longínquo do que um ministro e o mistério da gênese nivela-se ao das usinas elétricas. Mas se se entrega assim de bom grado à religião, é principalmente porque esta vem satisfazer uma necessidade profunda. Na civilização moderna, que dá certo valor — mesmo quando se trata da mulher — à liberdade, a religião apresenta-se muito menos como um instrumento de constrangimento do que como um instrumento de mistificação. O que se pede à mulher é menos que aceite sua inferioridade em nome de Deus do que acredite ser, graças a ele, igual ao macho suserano. Suprime-se a própria tentação de uma revolta que pretende vencer a injustiça. A mulher não é mais frustrada de sua transcendência porque vai destinar sua imanência a Deus; é somente no céu que se medem os méritos das almas segundo suas realizações terrestres; aqui só há, na expressão de Dostoiewski, ocupações: engraxar sapatos ou construir uma ponte, tudo é igualmente vaidade; para além das discriminações sociais, a igualdade dos sexos é restabelecida. Eis por que a menina e a adolescente mergulham na devoção com um fervor muito maior do que o de seus irmãos; o olhar de Deus, que transcende sua transcendência humilha o menino: permanecerá sempre uma criança sob essa tutela poderosa, é uma castração mais radical do que aquela a que se sente ameaçado pela existência do pai. Ao passo que a “eterna criança” encontra sua salvação nesse olhar que a metamorfoseia em uma irmã dos anjos; anula o privilégio do pênis. Uma fé sincera auxilia muito a menina a evitar todo complexo de inferioridade: ela não é macho nem fêmea e sim uma criatura de Deus. Eis por que encontramos em muitas grandes santas uma firmeza bem viril: Santa Brígida, Santa Catarina de Siena pretendiam arrogantemente reger o mundo, não reconheciam nenhuma autoridade masculina: Catarina dirigia mesmo com dureza seus diretores; Joana d’Arc, Santa Teresa seguiam seu caminho com uma intrepidez que nenhum homem superou. A Igreja cuida de que Deus nunca autorize as mulheres a se subtraírem à tutela dos homens; colocou exclusivamente em mãos masculinas estas armas terríveis: recusa de absolvição, excomunhão; obstinada em suas visões, Joana d’Arc foi queimada. Entretanto, embora submetida à lei dos homens pela própria vontade de Deus, a mulher encontra nele um sólido recurso contra eles. A lógica masculina é contestada pelos mistérios; o orgulho dos homens torna-se um pecado, sua agitação é não somente absurda mas culpada: por que refazer, remodelar este mundo que Deus criou? A passividade a que a mulher é destinada é santificada. Debulhando o rosário junto à lareira, sente-se ela mais próxima do céu do que o marido, que participa de comícios políticos. Não é preciso fazer nada para salvar a alma, basta viver sem desobedecer. Consuma-se a síntese da vida e do espírito: a mãe não gera apenas uma carne, dá a Deus uma alma; é uma obra mais elevada do que descobrir os segredos fúteis do átomo. Com a cumplicidade do pai celeste, a mulher pode reivindicar altivamente contra o homem a glória de sua feminilidade.

Não somente Deus restabelece, assim, o sexo feminino em geral, em sua dignidade, mas também cada mulher encontrará na celeste ausência um apoio especial; enquanto pessoa humana, ela não pesa muito; mas, desde que age em nome de uma inspiração divina, suas vontades tornam-se sagradas. Mme Guyon diz que aprendeu, a propósito da doença de uma religiosa, “o que era comandar pelo Verbo e obedecer pelo mesmo Verbo”; assim a devota mascara de obediência humilde sua autoridade; educando os filhos, dirigindo um convento, organizando uma obra, é apenas um instrumento dócil em mãos sobrenaturais; não se pode desobedecer-lhe sem ofender a Deus. Por certo os homens não desdenham tampouco um tal apoio; mas este não é muito sólido quando enfrentam semelhantes que o podem também reivindicar: o conflito resolve-se finalmente num plano humano. A mulher invoca a vontade divina para justificar absolutamente sua autoridade aos olhos dos que já lhe são naturalmente subordinados, para justificá-la aos próprios olhos. Se essa cooperação lhe é tão útil é porque ela se ocupa principalmente de suas relações consigo mesma — ainda que essas relações interessem a outrem: é somente nesses debates interiores que o silêncio supremo pode ter força de lei. Em verdade, a mulher vale-se da religião como pretexto para satisfazer seus desejos. Frígida, masoquista, sádica, santifica-se renunciando à carne, fazendo-se de vítima, abafando em si qualquer impulso vital; mutilando-se, aniquilando-se, sobe na hierarquia dos eleitos; quando martiriza marido e filhos, privando-os de toda felicidade terrestre, prepara-lhes um lugar especial no paraíso; Margarida de Cortona “para se punir de ter pecado”, dizem-no seus dois biógrafos, maltrata o filho de seu erro: só lhe dava comida depois de ter alimentado todos os mendigos; o ódio do filho não desejado é, como vimos, frequente: é uma dádiva poder entregar-se a ele com um ardor virtuoso. Por seu lado, uma mulher de moral pouco rigorosa arranja-se comodamente com Deus; a certeza de ser um dia redimida do pecado pela absolvição ajuda muitas vezes a mulher piedosa a vencer seus escrúpulos. Que tenha escolhido o ascetismo ou a sensualidade, o orgulho ou a humildade, a preocupação que tem de sua salvação encoraja-a a entregar-se a esse prazer que sobrepõe a todos: ocupar-se de si; escuta os movimentos do coração, espia os frêmitos de sua carne, justificada pela presença nela da graça, como a mulher grávida pela de seu fruto. Não somente se examina com terna vigilância, como ainda revela-se a seu confessor; em tempos idos podia mesmo gozar a embriaguez das confissões públicas. Contam-nos que Margarida de Cortona, para se punir de um impulso de vaidade, subiu ao terraço de sua casa e pôs-se a dar berros como uma parturiente: “Levantai-vos, habitantes de Cortona, levantai-vos com círios e lanternas e saí para ouvirdes a pecadora!” Enumerava todos os seus pecados clamando sua miséria aos céus. Com essa ruidosa humildade, satisfazia essa necessidade de exibicionismo de que se encontram tantos exemplos nas mulheres narcisistas. A religião autoriza na mulher a complacência para consigo mesma; dá-lhe o guia, o pai, o amante, a divindade tutelar de que ela tem nostálgica necessidade, alimenta-lhe os devaneios, ocupa-lhe as horas vazias. Mas, principalmente, confirma a ordem do mundo, justifica a resignação dando a esperança de um futuro melhor em um céu assexuado. Eis por que as mulheres são ainda hoje um trunfo tão poderoso nas mãos da Igreja; eis por que a Igreja é tão hostil a qualquer medida suscetível de facilitar a emancipação da mulher. É preciso uma religião para as mulheres: é preciso mulheres, “mulheres de verdade” para perpetuarem a religião.

Vê-se que o conjunto do “caráter” da mulher — convicções, valores, sabedoria, moral, gostos e condutas — se explica pela sua situação. O fato de sua transcendência lhe ser recusada, interdita-lhe normalmente o acesso às mais elevadas atitudes humanas: heroísmo, revolta, desprendimento, invenção, criação; mas, mesmo entre os homens, elas não são tão comuns. Há muitos homens que, como a mulher, se confinam no terreno do intermediário, do meio inessencial; o operário evade-se pela ação política, exprimindo uma vontade revolucionária; mas os homens das classes que precisamente chamamos “médias” aí se instalam deliberadamente; destinados como a mulher à repetição das tarefas cotidianas, alienados em valores convencionais, respeitosos da opinião pública e procurando apenas um vago conforto na terra, o empregado, o comerciante, o burocrata, não detêm nenhuma superioridade sobre suas companheiras; cozinhando, lavando, dirigindo a casa, educando os filhos, ela manifesta mais iniciativa e independência do que o homem submetido a instruções; ele deve obedecer o dia inteiro a seus superiores, usar colarinho e afirmar sua posição social; ela pode arrastar-se de roupão pelo apartamento, cantar, rir com as vizinhas; age como bem entende, corre pequenos riscos, procura alcançar eficientemente certos resultados. Vive muito menos do que o marido dentro de convenções e de aparência. O universo burocrático que Kafka — entre outras coisas — descreveu, esse universo de cerimônias, de gestos absurdos, de condutas sem objetivo, é essencialmente masculino; ela está muito mais em contato com a realidade. Quando acaba de alinhar cifras ou de converter latas de sardinha em dinheiro, só aprendeu abstrações; a criança alimentada no berço, a roupa limpa, o assado são bens mais tangíveis; entretanto, como na perseguição concreta desses fins ela experimenta a contingência deles — e correlativamente sua própria contingência — ocorre muitas vezes que não se aliene neles; permanece disponível. Os empreendimentos do homem são a um tempo projetos e fugas: ele se deixa devorar pela carreira, pela sua personagem; é de bom grado importante, sério; contestando a lógica e a moral masculinas, ela não cai nessas armadilhas: é o que Stendhal tanto apreciava nela; não disfarça no orgulho a ambiguidade de sua condição; não se esconde atrás da máscara da dignidade humana; descobre com mais sinceridade seus pensamentos indisciplinados, suas emoções, suas reações espontâneas. Eis por que sua conversa é muito menos tediosa do que a do marido, desde que fale em seu próprio nome e não como leal metade de seu senhor. Ele enuncia ideias ditas gerais, isto é, palavras, fórmulas que se encontram nas colunas de seu jornal ou em obras especializadas; ela oferece uma experiência limitada mas concreta. A famosa “sensibilidade feminina” participa um pouco do mito, um pouco da comédia; mas o fato é, também, que a mulher se mostra mais atenta do que o homem a si mesma e ao mundo. Sexualmente, vive num clima masculino, que é rude: tem como compensação o gosto das “coisas bonitas”, o que pode engendrar certo pieguismo mas igualmente delicadeza. Como seu domínio é limitado, os objetos que alcança parecem-lhe preciosos: não os encerrando em conceitos, nem em projetos, desvenda-lhes as riquezas; seu desejo de evasão exprime-se em seu gosto pela festa; encanta-se com a gratuidade de um ramalhete de flores, de um bolo, de uma mesa bem-posta; compraz-se em transformar o vazio de seus lazeres em uma oferenda generosa; amando os risos, as canções, os enfeites, os bibelôs, está disposta a acolher tudo o que palpita ao redor dela: o espetáculo da rua, o do céu, um convite, um passeio abrem-lhe novos horizontes. O homem, muitas vezes, recusa-se a participar desses prazeres; quando volta para casa as vozes alegres calam-se, as mulheres da família exibem o ar aborrecido e decente que ele espera delas. Do seio da solidão, da separação, a mulher tira o sentido da singularidade de sua vida: tem do passado, da morte, do passar do tempo, uma experiência mais íntima que o homem; interessa-se pelas aventuras de seu coração, de sua carne, de seu espírito, porque sabe que não tem na terra outro quinhão; e também, por ser passiva, sofre a realidade que a submerge de maneira mais apaixonada, mais patética do que o indivíduo absorvido por uma ambição, por um ofício; tem o lazer e o gosto de se entregar a suas emoções, de estudar suas sensações e entender-lhes o sentido. Quando sua imaginação não se perde em devaneios vãos, torna-se simpatia: ela procura compreender os outros em sua singularidade e recriá-los em si; é capaz de uma verdadeira identificação com o marido ou com o amante: faz seus os projetos e as preocupações dele, de uma maneira que ele não poderia imitar. Presta uma atenção ansiosa ao mundo inteiro, que se lhe apresenta como um enigma: cada ser, cada objeto pode ser uma resposta; ela interroga avidamente. Quando envelhece, sua espera desiludida converte-se em ironia e num cinismo frequentemente saboroso; recusa as mistificações masculinas, vê o inverso contingente, absurdo, gratuito do imponente edifício construído pelos homens. Sua dependência proíbe-lhe o desprendimento; mas ela retira, por vezes, da dedicação que lhe é imposta, uma verdadeira generosidade; esquece-se em favor do marido, do amante, do filho, deixa de pensar em si, é toda oferenda, dom. Sendo mal-adaptada à sociedade dos homens, é frequentemente obrigada a inventar ela própria suas condutas; pode contentar-se menos com receitas prontas, com clichês; se tem boa vontade, há nela uma inquietação mais próxima da autenticidade do que a segurança importante de seu marido.

Mas ela só terá esses privilégios sobre o homem sob a condição de rechaçar as mistificações que ele lhe propõe. Nas classes superiores, as mulheres fazem-se ardentemente cúmplices de seus senhores porque desejam aproveitar-se dos benefícios que eles lhes asseguram. Vimos que as grandes burguesas, as aristocratas sempre defenderam seus interesses de classe mais obstinadamente ainda do que seus maridos: não hesitam em sacrificar a esses interesses sua autonomia de ser humano; abafam em si todo pensamento, todo juízo crítico, todo impulso espontâneo; repetem como papagaios as opiniões aceitas, confundem-se com o ideal que o código masculino lhes impõe; em seu coração, em seu rosto mesmo, toda sinceridade morre. A dona de casa reencontra uma independência em seu trabalho, no cuidado dos filhos; tira disto uma experiência limitada mas concreta: aquela que se “faz servir” não tem mais nenhum domínio sobre o mundo; vive no sonho e na abstração, no vazio. Ela ignora o alcance das ideias que proclama; as palavras que enuncia perderam em sua boca qualquer sentido; o financista, o industrial, até o general, por vezes, assumem fadigas, preocupações, riscos; compram seus privilégios mediante operações injustas, mas pelo menos se expõem; suas mulheres, em troca de tudo o que recebem, não dão nada, não fazem nada; e acreditam com uma fé ainda mais cega em seus direitos imprescritíveis. Sua arrogância vã, sua incapacidade radical, sua ignorância obstinada fazem delas os seres mais inúteis, mais nulos que produziu a espécie humana.

É pois tão absurdo falar da “mulher” em geral como do “homem” eterno. E compreende-se por que todas as comparações com que se esforçam por decidir se a mulher é superior, inferior ou igual ao homem são inúteis: as situações são profundamente diferentes. Confrontando-se tais situações, faz-se evidente que a do homem é infinitamente preferível, isto é, ele tem muito mais possibilidades concretas de projetar sua liberdade no mundo; disso resulta necessariamente que as realizações masculinas são de longe mais importantes que as das mulheres; a estas é quase proibido fazer alguma coisa. Entretanto, confrontar o uso que em seus limites os homens e as mulheres fazem de sua liberdade é a priori uma tentativa desprovida de sentido, posto que, precisamente, eles a empregam livremente. Sob formas diversas, as armadilhas da má-fé, as mistificações da seriedade ameaçam-nos a uns como a outros; a liberdade se encontra inteira em cada um. Somente como permanece abstrata e vazia na mulher, esta só poderia assumir-se autenticamente na revolta: é o único caminho aberto aos que não têm a possibilidade de construir o que quer que seja; cumpre-lhes recusar os limites de sua situação e procurar abrir para si os caminhos do futuro; a resignação não passa de uma renúncia e de uma fuga; não há, para a mulher, outra saída senão a de trabalhar pela sua libertação.

Essa libertação só pode ser coletiva e exige, antes de tudo, que se acabe a evolução econômica da condição feminina. Entretanto, houve, há ainda, numerosas mulheres que buscam solitariamente realizar sua salvação individual. Tentam justificar sua existência no seio de sua imanência, isto é, realizar a transcendência na imanência. É este último esforço — por vezes ridículo, por vezes patético — da mulher encarcerada para converter sua prisão em um céu de glória, sua servidão em liberdade soberana, que encontramos na narcisista, na amorosa, na mística.