A palavra “amor” não tem em absoluto o mesmo sentido para um e outro sexo. E é isso uma fonte dos graves mal-entendidos que os separam. Byron disse, justamente, que o amor é apenas uma ocupação na vida do homem, ao passo que é a própria vida da mulher. É a mesma ideia que exprime Nietzsche em Gaia ciência:
A mesma palavra amor, diz, significa com efeito duas coisas diferentes para o homem e para a mulher. O que a mulher entende por amor é bastante claro: não é apenas a dedicação, é um dom total de corpo e alma, sem restrição, sem nenhuma atenção para o que quer que seja. É essa ausência de condição que faz de seu amor uma fé, a única que ela tem. Quanto ao homem, se ama uma mulher é esse amor que quer448 dela; ele está portanto muito longe de postular para si o mesmo sentimento que para a mulher; se houvesse homens que experimentassem também esse desejo de abandono total, por certo não seriam homens.
Em certos momentos de sua existência, alguns homens puderam ser amantes apaixonados, mas nenhum há que se possa definir como “um grande apaixonado”; nunca abdicam totalmente, mesmo em seus mais violentos transportes; ainda que caiam de joelhos diante de sua amante, o que desejam afinal é possuí-la, anexá-la; permanecem no cerne de sua vida como sujeitos soberanos; a mulher amada não passa de um valor entre outros; querem integrá-la em sua existência, e não afundar nela uma existência inteira. Para a mulher, ao contrário, o amor é uma renúncia total em proveito de um senhor.
É preciso que a mulher esqueça sua própria personalidade quando ama, escreve Cécile Sauvage. É uma lei da natureza. Uma mulher não existe sem um senhor. Sem um senhor é um ramalhete esparso.
Em verdade, não é de uma lei da natureza que se trata. É a diferença de sua condição que se reflete na concepção que o homem e a mulher têm do amor. O indivíduo que é sujeito, que é ele mesmo, se tem o gosto generoso da transcendência, esforça-se por ampliar seu domínio sobre o mundo: é ambicioso, age. Mas um ser inessencial não pode descobrir o absoluto no cerne de sua subjetividade. Um ser destinado à imanência não pode realizar-se em atos. Encerrada na esfera do relativo, destinada ao macho desde a infância, habituada a ver nele um soberano a quem não lhe é dado igualar-se, a mulher que não sufocou sua reivindicação de ser humano sonhará em ultrapassar-se para um desses seres superiores, em unir-se, confundir-se com o sujeito soberano. Não há para ela outra saída senão perder-se de corpo e alma em quem lhe designam como o absoluto, o essencial. Como de qualquer maneira se acha condenada à dependência, a obedecer a tiranos — pais, marido, protetor — prefere servir a um Deus; escolhe querer tão ardorosamente sua escravidão que esta lhe aparecerá como a expressão de sua liberdade; ela se esforçará por superar sua condição de objeto inessencial assumindo-a radicalmente; através de sua carne, de seus sentimentos, de suas condutas exaltará soberanamente o amado, colocando-o como a realidade e o valor supremos; ela se aniquilará diante dele. O amor para ela torna-se uma religião.
Vimos que a adolescente começa querendo identificar-se com os homens; quando a isso renuncia, procura então participar de sua virilidade, fazendo-se amar por um deles; não é a individualidade deste ou daquele homem que a seduz; ela está apaixonada pelo homem em geral. “E vós, homens que amarei, como vos espero!”, escreve Irene Reweliotty, “Como me regozijo com vos conhecer muito breve: Tu principalmente, o primeiro”. É preciso, naturalmente, que o homem pertença à mesma classe, à mesma raça: o privilégio do sexo só funciona dentro desse quadro; para que seja um semideus, ele deve, evidentemente, ser antes de tudo um ser humano; para a filha do oficial colonial o indígena não é um homem; se a jovem se entrega a um “inferior” é porque procura degradar-se, porque não se acredita digna do amor; normalmente ela procura o homem em quem se afirma a superioridade masculina; ela é logo levada a constatar que muitos indivíduos do sexo eleito são tristemente contingentes e terrestres; mas tem de início um preconceito favorável em relação a eles; cabe-lhes menos provar seu valor do que não o desmentir por demais grosseiramente. É o que explica tantos erros muitas vezes lamentáveis; a jovem ingênua está presa ao espelho da virilidade. Segundo as circunstâncias, o valor masculino se manifestará a seus olhos pela força física, a elegância, a riqueza, a cultura, a inteligência, a autoridade, a situação social, um uniforme militar: mas o que ela deseja sempre é que no amante se resuma a essência do homem. A familiaridade basta muitas vezes para destruir seu prestígio; ele desmorona com o primeiro beijo, ou com o convívio cotidiano, ou durante a noite de núpcias. Entretanto, o amor à distância é apenas um fantasma, não uma experiência real. É quando carnalmente confirmado que o desejo de amor se torna um amor apaixonado. Inversamente, o amor pode nascer das carícias físicas, a mulher sexualmente dominada exaltando o homem que lhe parecia antes insignificante. Mas o que acontece constantemente é que a mulher não consegue transformar nenhum dos homens que conhece em um deus. O amor ocupa na vida feminina menor lugar do que sempre se pretendeu. Marido, filhos, lar, prazeres, vida mundana, vaidade, sexualidade, carreira, são muito mais importantes. Quase todas as mulheres sonharam com “o grande amor”: dele conheceram sucedâneos, aproximaram-se dele; sob figuras inacabadas, magoadas, irrisórias, imperfeitas, mentirosas, ele as visitou; mas muito poucas lhes consagraram realmente a existência. As grandes amorosas são, o mais das vezes, mulheres que não usaram o coração nos amores juvenis; aceitaram primeiramente o destino feminino tradicional: marido, casa, filhos; ou conheceram uma dura solidão; ou confiaram em algum empreendimento que mais ou menos fracassou. Quando entreveem a possibilidade de salvar sua vida decepcionante, dedicando-a a um ser de elite, dão-se de corpo e alma a essa esperança. Mlle Aissé, Juliette Drouet, Mme d’Agoult tinham quase trinta anos no início de sua vida amorosa, Julie de Lespinasse quase quarenta; nenhum fim se propunha a elas, não estavam em condições de empreender coisa alguma que lhes parecesse interessante, não lhes restava outra saída senão o amor.
Mesmo com a possibilidade de serem independentes, esse caminho é ainda o que parece mais atraente à maioria das mulheres; é angustiante assumir a direção de sua vida; o adolescente volta-se também frequentemente para mulheres mais idosas, nas quais procura um guia, uma educadora, uma mãe; mas sua formação, os costumes, as determinações que encontra em si mesmo proíbem-lhe deter-se definitivamente na solução fácil da abdicação; ele só encara tais amores como uma etapa. A sorte do homem — na idade adulta como na primeira infância — está em que o constrangem a enveredar pelos caminhos mais árduos mas também mais seguros; a infelicidade da mulher está em que se acha cercada de tentações quase irresistíveis; tudo a incita a seguir o declive da facilidade: em vez de convidá-la a lutar por sua conta, dizem-lhe que lhe basta deixar as coisas correrem para alcançar paraísos encantadores; quando percebe que foi vítima de uma miragem, é tarde demais; suas forças esgotaram-se na aventura.
Os psicanalistas afirmam de bom grado que a mulher busca no amante a imagem do pai; mas é por ser homem e não por ser pai que ele deslumbra a criança, e todo homem participa dessa magia. A mulher não almeja reencarnar um indivíduo no outro e sim ressuscitar uma situação: a que conheceu menina, ao abrigo dos adultos. Integrada no lar, gozou a paz de uma quase passividade; o amor lhe devolverá a mãe, como o pai lhe devolverá a infância. O que ela almeja é reencontrar um teto sobre a cabeça, muros que lhe escondam seu abandono no mundo, leis que a defendam contra sua liberdade. Esse sonho infantil povoa muitos amores femininos; a mulher sente-se feliz porque o amante a chama de “filhinha, criança querida”; os homens sabem muito bem que estas palavras: “Estás parecendo uma menininha” são das que mais comovem o coração das mulheres; vimos quantas sofreram ao se tornarem adultas; muitas se obstinam em “ser crianças”, em prolongar indefinidamente a infância na atitude e nos vestidos. Tornar a ser criança nos braços de um homem as satisfaz amplamente. É o tema de certa cançoneta muito vulgarizada:
Sinto-me em teus braços tão pequena
tão pequena, ó meu amor...449
Tema que se repete sem cessar nas conversações e nas correspondências amorosas. “Baby, meu bebê”, murmura o amante; e a mulher diz de si mesma: “Tua menina, tua menininha.” Irene Reweliotty escreve: “Quando chegará aquele que saberá dominar-me?” E acreditando tê-lo encontrado: “Gosto de te sentir um homem, e superior a mim.”
Uma psicastênica estudada por Janet450 ilustra de maneira impressionante essa atitude:
Desde quando posso lembrar-me, todas as tolices ou todas as boas ações que pude praticar decorrem da mesma causa, uma aspiração a um amor perfeito e ideal em que pudesse entregar-me inteiramente, confiar todo o meu ser a um outro ser, Deus, homem ou mulher, tão superior a mim que não teria mais necessidade de pensar em me conduzir na vida ou em cuidar de mim. Encontrar alguém que me amasse o bastante para cuidar de me fazer viver, alguém a quem eu obedeceria cegamente e com toda a confiança, certa de que me evitaria qualquer fraqueza e que me guiaria em linha reta, suavemente e com muito amor para a perfeição. Quanto invejo o amor ideal de Maria Madalena e de Jesus: ser o discípulo ardoroso de um mestre adorado e que o mereça; viver e morrer para seu ídolo, acreditar nele sem nenhuma dúvida possível, obter enfim a vitória definitiva do Anjo sobre a Besta, aconchegar-me em seus braços, tão envolvida, tão pequena, tão abrigada em sua proteção, tão sua que não mais existo.
Numerosos exemplos já nos provaram que esse sonho de aniquilamento é, na verdade, uma ávida vontade de ser. Em todas as religiões, a adoração de Deus confunde-se para o devoto com a preocupação de sua própria salvação; a mulher entregando-se inteiramente ao ídolo, espera que ele lhe dê a um tempo a posse de si mesma e a do universo que nele se resume. Na maioria das vezes é primeiramente a justificação, a exaltação de seu ego que ela pede ao amante. Muitas mulheres só se entregam ao amor se forem por sua vez amadas: e o amor que lhe manifestam basta algumas vezes para as tornar apaixonadas. A jovem sonhou-se através de olhos masculinos e é em olhos masculinos que a mulher acredita enfim encontrar-se.
Andar a teu lado, escreve Cécile Sauvage, fazer que avançassem meus pezinhos que amavas, senti-los tão miúdos em seus sapatos altos de cano de feltro dava-me amor por todo o amor com que os cercavas. Os menores movimentos de minhas mãos em meu regalo, de meus braços, de meu rosto, as inflexões de minha voz enchiam-me de felicidade.
A mulher sente-se dotada de um valor alto e seguro; tem enfim licença para se amar através do amor que inspira. Embriaga-se com encontrar uma testemunha no amante. É o que confessa La Vagabonde de Colette.
Cedi, confesso-o, cedi permitindo a esse homem que voltasse amanhã, ao desejo de conservar nele não um amoroso, não um amigo, mas um espectador ávido de minha vida e de minha pessoa... É preciso urgentemente envelhecer, disse-me um dia Margot, para renunciar à vaidade de viver diante de alguém.
Em uma de suas cartas a Middleton Murry, Katherine Mansfield conta que acaba de comprar um delicioso corpete roxo; acrescenta logo: “Que pena que não haja ninguém para vê-lo!” Não há pior amargura do que se sentir a flor, o perfume, o tesouro que nenhum desejo exige: que é uma riqueza que não me enriquece e que ninguém deseja receber? O amor é o revelador que faz aparecer em traços positivos e nítidos a pálida imagem negativa tão vã quanto uma chapa em branco; mediante esse revelador, o rosto da mulher, as curvas de seu corpo, suas recordações de infância, suas antigas lágrimas, seus vestidos, seus hábitos, tudo o que ela é, tudo o que lhe pertence escapa da contingência e torna-se necessário: ela é um presente maravilhoso ao pé do altar de seu deus.
Antes que ele tivesse gentilmente pousado as mãos sobre seus ombros, antes que seus olhos se tivessem saturado dela, ela não fora senão uma mulher não muito bonita em um mundo incolor e morno. Desde o momento em que ele a beijara, ela estava em pé na luz nacarada da imortalidade.451
Eis por que os homens dotados de prestígio social e hábeis em lisonjear a vaidade feminina suscitarão paixões ainda que sem nenhuma sedução física. Pela sua situação elevada encarnam a Lei, a Verdade: sua consciência revela uma realidade incontestada. A mulher que eles louvam sente-se transformada em um tesouro sem preço. Daí é que vinham, por exemplo, segundo Isadora Duncan,452 os êxitos de d’Annunzio.
Quando d’Annunzio ama uma mulher, ele ergue sua alma acima da terra até as regiões em que se move e resplende Beatriz. Ele faz cada mulher participar da essência divina, uma a uma, ergue-a tão alto, tão alto que ela se imagina realmente no plano de Beatriz. Sobre cada favorita ele jogava alternativamente um véu deslumbrante. Ela erguia-se acima dos outros mortais e caminhava aureolada de uma luz estranha. Mas quando o capricho do poeta chegava ao fim e ele a abandonava por outra, o véu de luz desaparecia, a auréola se apagava e a mulher retornava ao barro vulgar... Ouvir-se elogiar com essa magia peculiar a d’Annunzio é uma alegria comparável à que Eva pôde experimentar quando ouviu a voz da serpente no Paraíso. D’Annunzio pode dar a cada mulher a impressão de que ela é o centro do universo.
É somente no amor que a mulher pode harmoniosamente conciliar seu erotismo com seu narcisismo; já vimos que há entre esses dois sistemas uma oposição que torna difícil a adaptação da mulher a seu destino sexual. Fazer-se objeto carnal, presa, contradiz o culto que ela rende a si mesma: parece-lhe que o ato sexual desonra e emporcalha seu corpo ou que lhe degrada a alma. Por isso é que certas mulheres escolhem a frigidez, pensando manter assim a integridade de seu ego. Outras dissociam as volúpias animais dos sentimentos elevados. Caso muito característico é o de Mme D. S., narrado por Stekel e que já citei a propósito do casamento.
Frígida, com um marido respeitado, depois da morte deste, encontrou um homem igualmente artista, grande músico, e tornou-se sua amante. Esse amor era, e é ainda, tão absoluto que ela só se sente feliz perto dele. Toda sua vida se resume em Lothar. Mas, embora amando-o ardorosamente, continuava frígida em seus braços. Outro homem cruzou seu caminho. Era um camponês forte e brutal que, estando um dia a sós com ela, a possui simplesmente, sem mais histórias. Ela ficou tão atônita que o deixou fazer. Mas nos braços dele sentiu um orgasmo violento. “Nos braços dele, dizia ela, eu me restabeleço por vários meses. É como uma embriaguez selvagem, mas seguida de um nojo indescritível quando penso em Lothar. Detesto Paul e amo Lothar. Paul porém me satisfaz. Em Lothar tudo me atrai. Mas parece que me transformo em puta para gozar, pois como mulher da sociedade o gozo me é vedado.” Ela recusa-se a casar com Paul mas continua a dormir com ele; nesses momentos, “transforma-se em um outro ser e palavras cruas, como nunca ousaria pronunciar, escapam-lhe da boca”.
Stekel acrescenta que, “para muitas mulheres, a queda na animalidade é essencial ao orgasmo”. Elas veem no amor físico um aviltamento que não se pode conciliar com sentimentos de estima e afeição. Mas para outras, ao contrário, é pela estima, pela ternura, pela admiração do homem que esse aviltamento pode ser abolido. Só consentem em se entregar a um homem acreditando-se profundamente amadas; uma mulher precisa de muito cinismo, indiferença ou orgulho para considerar as relações físicas como uma troca de prazeres em que cada parceiro encontra igualmente sua satisfação. O homem tanto quanto a mulher — e talvez mais do que ela — revolta-se contra quem o quer explorar.453 Mas ela é quem tem geralmente impressão de que seu parceiro a utiliza como um instrumento. Somente uma admiração exaltada pode compensar a humilhação de um ato que ela considera como uma derrota. Vimos que o ato amoroso exige dela uma alienação profunda; ela mergulha na languidez da passividade; de olhos cerrados, anônima, perdida, sente-se transportada por ondas, varrida pela tormenta, sepultada na noite; noite da carne, da origem, do túmulo; aniquilada, alcança o Todo, seu eu é abolido. Mas quando o homem se separa dela, ela se encontra rejeitada à terra, em um leito, na luz; readquire um nome, um rosto: é uma vencida, uma presa, um objeto. É então que o amor se torna necessário. Assim como depois do desmame a criança busca o olhar tranquilizador dos pais, é preciso que, pelos olhos do amante que a contempla, a mulher se sinta reintegrada no Todo de que sua carne dolorosamente se destacou. Muito raramente ela se satisfaz completamente; mesmo se conheceu o apaziguamento do prazer, não fica definitivamente liberta do feitiço carnal; sua perturbação se prolonga em sentimento; dispensando-lhe a volúpia, o homem prende-a a si, não a liberta. Entretanto, não mais a deseja; ela só lhe perdoa essa indiferença momentânea se ele lhe dedica um sentimento intemporal e absoluto. A imanência do instante é então superada; as recordações ardentes não são mais uma saudade e sim um tesouro; dissipando-se, a volúpia torna-se esperança e promessa; o gozo é justificado; a mulher pode orgulhosamente assumir sua sexualidade porque a transcende; perturbação, prazer, desejo não são mais um estado e sim um dom; seu corpo não é mais um objeto: é um cântico, uma chama. Pode ela então entregar-se apaixonadamente à magia do erotismo; a noite transforma-se em luz; a mulher apaixonada pode abrir os olhos; olhar o homem que a ama e cujo olhar a glorifica; através dele o nada faz-se plenitude de ser e o ser é transfigurado em valor; ela não soçobra mais em um mar de trevas, é elevada sobre asas, exaltada aos céus. O abandono torna-se êxtase sagrado. Quando acolhe o homem amado, a mulher é habitada, visitada como a Virgem pelo Espírito Santo, como o crente pela hóstia; é o que explica a analogia obscena dos cantos piedosos com as canções licenciosas: não por ter sempre o amor místico um caráter sexual, mas porque a sexualidade da apaixonada se reveste de um colorido místico. “Meu Deus, meu adorado, meu senhor...”, as mesmas palavras saem dos lábios da santa ajoelhada e da amorosa no leito; uma oferece a carne aos cravos de Cristo, estende as mãos para receber os estigmas, busca a queimadura do Amor Divino; a outra é também oferenda e espera: setas, dardos, flechas encarnam-se no sexo masculino. Em ambas o sonho é o mesmo, o sonho infantil, o sonho místico, o sonho amoroso: existir soberanamente abolindo-se no seio do outro.
Afirmou-se454 por vezes que esse desejo de aniquilamento conduzia ao masoquismo. Mas, como o assinalei, a propósito do erotismo, só se pode falar de masoquismo quando tento “fascinar-me a mim mesma por minha objetividade através de outrem”,455 isto é, quando a consciência do sujeito se volta para o ego a fim de apreendê-lo em sua condição humilhada. Ora, a amorosa não é somente uma narcisista alienada em seu eu: ela sente também um desejo apaixonado de ultrapassar seus próprios limites e tornar-se infinita através de um outro que tem acesso à realidade infinita. Ela abandona-se ao amor primeiramente para se salvar, mas o paradoxo do amor idólatra está em que, para se salvar, ela acaba por se renegar totalmente. Seu sentimento assume uma dimensão mística; ela não pede mais ao Deus que a admire, que a aprove; quer fundir-se nele, esquecer-se em seus braços. “Quisera ser uma santa do amor, escreve Mme d’Agoult. Invejava o martírio em tais momentos de exaltação e de furor ascético.” O que se evidencia nestas palavras é o desejo de uma destruição radical de si mesma abolindo as fronteiras que a separam do bem-amado: não se trata de masoquismo e sim de um sonho de união extática. É o mesmo sonho que inspira estas palavras de Georgette Leblanc: “Naquela época, se me tivessem perguntado o que mais almejava no mundo, teria respondido sem hesitar: ser alimento e chama para seu espírito.”
Para realizar essa união, o que a mulher deseja primeiramente é servir; é respondendo às exigências do amante que se sentirá necessária; será integrada na existência dele, participará de seu valor, será justificada; até as místicas se comprazem em crer, segundo Angelus Silesius, que Deus precisa do homem, do contrário, o dom que fazem de si mesmas seria vão. Quanto mais o homem multiplica suas solicitações, mais a mulher se sente satisfeita. Embora a reclusão imposta por Hugo a Juliette Drouet pese à jovem mulher, sente-se que ela se compraz em lhe obedecer: permanecer sentada junto à lareira é fazer alguma coisa para a felicidade do senhor. Ela tenta com paixão ser-lhe útil positivamente. Prepara-lhe pratos delicados, instala um lar para ele: nossa pequena “tua casa”, dizia ela gentilmente; cuida da roupa dele.
Quero que manches, que rasgues o mais possível todas as tuas roupas e que seja eu a única a consertá-las, a limpá-las sem ajuda de ninguém, escreve-lhe.
Para ele, ela lê os jornais, corta artigos, classifica cartas e notas, copia manuscritos. Desola-se quando o poeta confia parte desse trabalho à filha Léopoldine. Encontram-se traços semelhantes em toda mulher apaixonada. Se necessário, ela se tiraniza a si mesma em nome do amante; é preciso que tudo o que é, tudo o que tem, todos os instantes de sua vida lhe sejam dedicados e tenham assim sua razão de ser; ela não quer possuir coisa alguma senão nele; ficava infeliz por ele não lhe pedir nada, eis por que um amante delicado inventa exigências. Ela procurou primeiramente no amor uma confirmação do que era, de seu passado, de seu personagem; mas no amor empenha também seu futuro. Para justificá-lo, destina esse amor àquele que detém todos os valores; assim é que se liberta de sua transcendência: ela a subordina à do outro essencial de quem se faz vassala e escrava. É a fim de se encontrar, de se salvar que ela começa por se perder nele: e o fato é que, pouco a pouco, se perde. Toda a realidade está no outro. O amor, que de início se definia como uma apoteose narcisista, realiza-se nas amargas alegrias de uma dedicação que conduz, frequentemente, a uma automutilação. Nos primeiros tempos de uma grande paixão, a mulher torna-se mais bonita, mais elegante do que antes: “Quando Adèle me penteia, contemplo minha fronte porque você gosta dela”, escreve Mme d’Agoult. Achou uma razão de ser para esse rosto, esse corpo, esse quarto, esse eu, adora-os pela mediação do homem amado que a ama. Mas, pouco mais tarde, ela renuncia, ao contrário, a todo coquetismo, se o amante o deseja, ela modifica essa imagem que lhe era antes mais preciosa do que o próprio amor; desinteressa-se dela; faz do que é, do que tem, o feudo de seu soberano; renega o que ele desdenha; gostaria de lhe consagrar cada batida do coração, cada gota do sangue, a medula dos ossos. É o que se traduz por este sonho de martírio: exagerar o dom de si até a tortura, até a morte, ser o solo que o amado pisa, ser apenas o que responde ao apelo dele. Tudo o que é inútil ao amado, ela o aniquila com exaltação. Se o presente que faz de si é integralmente aceito, o masoquismo não aparece; poucos vestígios se percebem em Juliette Drouet. Na sua adoração excessiva, ajoelhava-se por vezes diante do retrato do poeta e pedia perdão pelas faltas que pudesse ter cometido; não se voltava colérica contra si mesma. Mas do entusiasmo generoso, para a raiva masoquista o deslize é fácil. A amante que se reencontra diante do amante na situação da criança diante dos pais, reencontra também esse sentimento de culpa que conhecia junto deles; não escolhe revoltar-se contra ele enquanto o ama: revolta-se contra si mesma. Se ele a ama menos do que ela o deseja, se ela não consegue absorvê-lo, torná-lo feliz, bastar-lhe, todo o narcisismo se converte em nojo, em humilhação, num ódio a si mesma que a incita a autopunições. Durante uma crise mais ou menos demorada, por vezes durante toda a vida, ela se transformará em vítima voluntária, se obstinará em molestar esse eu que não soube satisfazer o amante. Sua atitude é então propriamente masoquista. Mas não se deve confundir esses casos em que a mulher apaixonada busca seu próprio sofrimento, a fim de se vingar de si mesma, com os casos em que visa à confirmação da liberdade do homem e seu poder. É lugar-comum — e parece que uma verdade — dizer que a prostituta tem orgulho de ser espancada por seu homem: mas não é a ideia de sua pessoa batida e escravizada que a exalta, é a força, a autoridade, a soberania do macho de que ela depende; ela gosta também de vê-lo maltratar outro homem, incita-o muitas vezes a competições perigosas: quer que seu senhor detenha os valores reconhecidos no meio a que ela pertence. A mulher que se submete com prazer a caprichos masculinos igualmente admira também na tirania que se exerce sobre si a evidência de uma liberdade soberana. Cumpre atentar para o fato de que, se, por uma razão qualquer, o prestígio do amante acaba, pancadas e exigências se tornarão odiosas: só valem como manifestação da divindade do bem-amado. Neste caso é alegria embriagante sentir-se a presa de uma liberdade alheia: é para um existente a mais surpreendente aventura achar-se criado pela vontade diversa e imperiosa de outro; a gente se cansa de morar sempre na mesma pele; a obediência cega é a única possibilidade de mudança radical que um ser humano pode conhecer. Eis a mulher escrava, rainha, flor, corça, vitral, capacho, criada, cortesã, musa, companheira, mãe, irmã, filha segundo os sonhos fugazes, as ordens imperiosas do amante: ela presta-se, em êxtase, a essas metamorfoses enquanto não reconhece que conserva sempre nos lábios o gosto idêntico da submissão. No plano do amor, como no do erotismo, verificamos que o masoquismo é um dos caminhos pelos quais envereda a mulher insatisfeita, desiludida pelo outro e por si mesma; mas não é a tendência natural de uma renúncia feliz. O masoquismo perpetua a presença do eu sob uma figura mortificada, degradada; o amor visa ao esquecimento de si em benefício do sujeito essencial.
O objetivo supremo do amor humano como do amor místico é a identificação com o amado. A medida dos valores, a verdade do mundo estão na consciência dele; eis por que não é ainda suficiente servi-lo; a mulher tenta ver com os olhos dele, lê os livros que ele lê, prefere os quadros e a música que ele prefere, só se interessa pelas paisagens que vê com ele, pelas ideias que vêm dele; adota as amizades, as inimizades, as opiniões dele; quando se interroga é a resposta dele que se esforça por ouvir; quer em seus pulmões o ar que ele já respirou; as flores, os frutos que não recebe da mão dele não têm perfume nem gosto; seu espaço hodológico acha-se transtornado: o centro do mundo não é mais o lugar onde se encontra e sim aquele onde se encontra o amado; todos os caminhos saem de sua casa e a esta conduzem. Ela serve-se das palavras dele, refaz-lhe os gestos, adquire-lhes as manias e os tiques. “Sou Heathcliff” diz Katherine em Wulthering Heights; é o grito de toda apaixonada; ela é outra encarnação do amado, seu reflexo, seu duplo: ela é ele. Seu próprio mundo, ela o deixa desmoronar na contingência: é no universo dele que vive.
A felicidade suprema da amorosa consiste em ser reconhecida pelo homem amado como parte dele próprio; quando ele diz “nós” ela é associada a ele e com ele se identifica, partilha-lhe o prestígio e com ele reina sobre o resto do mundo; não cansa de repeti-lo — ainda que abusivamente — esse “nós” saboroso. Necessária a um ser que é a necessidade absoluta que se projeta no mundo para fins necessários e que lhe restitui o mundo sob a figura da necessidade, a amorosa conhece em sua renúncia a posse magnífica do absoluto. É essa certeza que lhe dá tão grandes alegrias; sente-se exaltada à direita do deus; pouco lhe importa ter apenas o segundo lugar se tem seu lugar, para sempre, em um universo maravilhosamente ordenado. Enquanto ama, enquanto é amada e necessária ao amado, sente-se totalmente justificada: aproveita a paz e a felicidade. Essa talvez tenha sido a sorte de Mlle Aissé junto do Cavaleiro de Aydie, antes que os escrúpulos da religião lhe tivessem perturbado a alma, ou a de Juliette Drouet à sombra de Hugo.
Mas é raro que essa gloriosa felicidade seja estável. Nenhum homem é deus. As relações que a mística sustenta com a divina ausência dependem unicamente de seu fervor: mas o homem divinizado, e que não é Deus, está presente. Disso nascerão os tormentos da apaixonada. Seu destino mais comum acha-se resumido nas palavras célebres de Julie de Lespinasse: “Amo-vos, meu amigo, sofro e vos espero em todos os instantes de minha vida.” Sem dúvida para os homens também o sofrimento está ligado ao amor; mas suas penas não duram muito tempo ou não são devoradoras; Benjamin Constant quis morrer por Juliette Récamier: em um ano curou-se. Stendhal teve, durante anos, saudades de Métilde, mas era uma saudade que lhe perfumava a vida mais do que a destruía. Ao passo que, assumindo-se como o inessencial, aceitando uma dependência total, a mulher cria um inferno para si; toda amorosa se reconhece na pequena sereia de Andersen que, tendo, por amor, trocado sua cauda de peixe por pernas de mulher, andava sobre agulhas e carvões em brasa. Não é verdade que o homem amado seja incondicionalmente necessário e, por outro lado, ela não lhe é necessária; ele não está à altura de justificar quem lhe rende um culto, e não se deixa possuir por ela.
Um amor autêntico deveria assumir a contingência do outro, isto é, suas falhas, seus limites, sua gratuidade original; não pretenderia ser uma salvação e sim uma relação inter-humana. O amor idólatra confere ao amado um valor absoluto; é a primeira mentira que se apresenta a todos os olhares alheios: “Ele não merece tanto amor”, murmuram em torno da amorosa; a posteridade sorri com dó, quando evoca a pálida figura do conde Guibert. Descobrir as falhas, a mediocridade de seu ídolo, é para a mulher uma decepção desesperante. Colette aludiu muitas vezes — em La Vagabonde, em Mes apprentissages — a essa agonia amarga; a desilusão é mais cruel ainda que a da criança que vê desmoronar o prestígio paterno, porque a mulher escolheu ela própria o homem a quem fez dom de todo o ser. Mesmo que o eleito seja digno do mais profundo apego, sua verdade é terrestre: não é mais ele que a mulher ama ajoelhada diante de um ser supremo; ela é enganada por esse espírito de seriedade que se recusa a pôr os valores “entre parênteses”, isto é, a reconhecer que têm sua fonte na existência humana; sua má-fé ergue barreiras entre ela e quem ela adora. Incensa-o, prosterna-se, mas não é para ele uma amiga, pois não se dá conta de que ele corre perigo no mundo, de que seus projetos e seus fins são frágeis como ele próprio; considerando-o como a Lei, a Verdade, desconhece a liberdade dele, que é hesitação e angústia. Essa recusa de aplicar ao amante uma medida humana explica muitos paradoxos femininos. A mulher reclama do amante um favor, ele o concede: ei-lo generoso, rico, magnífico, real, divino. Se o recusa, ei-lo avarento, mesquinho, cruel, é um ser demoníaco, bestial. Poderiam ser tentados a objetar: se um “sim” surpreende como uma soberba extravagância, devemos nos espantar com um “não”? Se o “não” manifesta tão abjeto egoísmo, por que tanto admirar o “sim”? Não há lugar para o humano entre o sobre-humano e o inumano?
Um deus degradado não é um homem, é uma impostura; o amante não tem outra alternativa senão provar que é realmente esse rei adulado, ou denunciar-se como usurpador. A partir do momento em que não o adoram mais, cumpre espezinhá-lo. Em nome dessa glória com que aureolou o amado, a amorosa proíbe-lhe qualquer fraqueza; desilude-se e irrita-se se ele não se molda à imagem que ela colocou em seu lugar; se está fatigado, estonteado, se tem fome ou sede fora de propósito, se se engana, se se contradiz, ela decreta que ele está “abaixo de si mesmo” e o censura. Por esse viés, chega a censurar todas as iniciativas que ela própria não aprecia; ela julga seu juiz e, para que ele mereça continuar seu senhor, nega-lhe a liberdade. O culto que lhe rende satisfaz-se por vezes melhor com a ausência do que com a presença. Há mulheres, já vimos, que se consagram heróis mortos ou inacessíveis, a fim de nunca os confrontar com seres de carne e osso; estes fatalmente contradizem seus sonhos. Daí os slogans desiludidos: “Não se deve acreditar em príncipe encantado. Os homens não passam de pobres diabos.” Não pareceriam anões se não se lhes pedisse para serem gigantes.
É uma das maldições que pesam sobre a mulher apaixonada: sua generosidade converte-se desde logo em exigência. Tendo-se alienado em outrem, quer também recuperar-se: precisa anexar esse outro que detém o seu ser. Ela se dá inteiramente a ele, mas é preciso que ele esteja inteiramente disponível para receber dignamente esse dom. Ela dedica-lhe todos os seus instantes: é preciso que a cada instante ele esteja presente; ela quer viver unicamente por ele, mas quer viver; ele deve se consagrar a fazê-la viver.
Amo-o por vezes bobamente e nesses momentos não compreendo por que não poderia, não saberia e não deveria ser para você um pensamento absorvente como você é para mim, escreve Mme d’Agoult a Liszt.
Ela tenta refrear o desejo espontâneo: ser tudo para ele. Há idêntico apelo na queixa de Mlle de Lespinasse:
Deus meu! Se soubesse o que são os dias, o que é a vida privada do interesse e do prazer de vê-lo! Meu amigo, a dissipação, a ocupação, o movimento lhe bastam; eu, minha felicidade é você, e só você; não quereria viver se não devesse vê-lo e amá-lo em todos os momentos da vida.
A princípio, a amorosa encantava-se em satisfazer o desejo do amante; depois — como o bombeiro lendário que por amor ao ofício provocava incêndios por toda parte — dedica-se a despertar esse desejo para ter que satisfazê-lo; se não o consegue, sente-se humilhada, inútil, a ponto de o amante fingir ardores que não experimenta. Fazendo-se escrava, encontra ela o meio mais seguro de acorrentá-lo. Trata-se de mais uma mentira do amor, que muitos homens — Lawrence, Montherlant — denunciaram com rancor: apresenta-se como um dom quando é uma tirania. Benjamin Constant em Adolphe pintou severamente as correntes com que a generosa paixão de uma mulher prende o homem. “Ela não calculava seus sacrifícios porque estava preocupada em me fazer aceitá-los”, diz ele com crueldade, de Eléonore. A aceitação é efetivamente um compromisso que amarra o amante, sem que ele tenha sequer o benefício de aparecer como aquele que dá; a mulher exige que ele acolha com gratidão os fardos com que o esmaga. E sua tirania é insaciável. O homem amoroso é autoritário, mas quando obtém o que desejava, fica satisfeito; ao passo que não há limites para a dedicação exigente da mulher. Um amante que tem confiança em sua amante admite sem desprazer que ela se ausente, que se ocupe longe dele; certo de que ela lhe pertence, prefere possuir uma liberdade a possuir uma coisa. Ao contrário, a ausência do amante é sempre uma tortura para a mulher; ele é um olhar, um juiz, ele a frustra desde que fixa os olhos em outra coisa que não ela; rouba-lhe tudo o que vê: longe dele, ela sente-se despojada de si mesma e do mundo; mesmo sentado ao lado dela, lendo, escrevendo, ele a está abandonando, traindo. Ela detesta-lhe o sono. Baudelaire se enternece ante a mulher adormecida: “Teus belos olhos estão cansados, pobre amante.” Proust encanta-se com olhar Albertine dormir;456 o ciúme masculino é simplesmente a vontade de uma posse exclusiva. A bem-amada não pertence a ninguém quando o sono lhe devolve a candura desarmada da infância; para o homem, essa certeza basta. Mas o deus, o senhor, não deve se abandonar ao repouso da imanência; é com um olhar hostil que a mulher contempla essa transcendência fulminada; ela detesta sua inércia animal, esse corpo que não mais existe para ela e sim em si, abandonado a uma contingência que deve pagar com sua própria contingência. Violette Leduc exprimiu, em Je hais les dormeurs, com força esse sentimento:
Detesto os homens que dormem. Debruço-me sobre eles com minhas más intenções. Sua submissão exaspera-me. Odeio sua serenidade inconsciente, sua falsa anestesia, sua fisionomia de cego estudioso, sua embriaguez sensata, sua aplicação de incapaz... Fiquei à espreita, esperei durante muito tempo a bolha rósea que sairia da boca de meu dorminhoco. Só queria dele uma bolha de presença. Não a tive... Vi que suas pálpebras de noite eram pálpebras de morto... Refugiava-me na alegria de suas pálpebras quando esse homem era intratável. O sono é profundo quando ele resolve dormir. Roubou-me tudo. Detesto este meu homem adormecido, capaz de com inconsciência criar para si uma paz que me é estranha. Detesto sua fronte de mel... No fundo de si mesmo só se preocupa com seu repouso. Recapitula não sei o quê... Tínhamos levantado voo. Queríamos deixar a terra, utilizando nosso temperamento. Tínhamos decolado, subido, espiado, esperado, cantarolado, chegado, gemido, ganhado e perdido juntos. Era uma vagabundagem séria. Tínhamos descoberto uma nova espécie de nada. Agora dormes. Teu apagamento não é honesto... Se meu dorminhoco se mexe, minha mão toca, sem querer, a semente. É o celeiro com cinquenta sacos de grãos que é sufocante, despótico. As bolsas íntimas de um homem adormecido caíram sobre a minha mão... Possuo os saquinhos de sementes. Tenho nas mãos os campos que serão lavrados, os pomares que serão tratados, a força das águas que será transformada, as quatro tábuas que serão pregadas, os toldos que serão erguidos. Tenho nas mãos os frutos, as flores, os animais selecionados. Tenho na mão o bisturi, o podão, a sonda, o revólver, o fórceps e tudo isso não me enche a mão. A semente do mundo que dorme não é senão o supérfluo oscilante do prolongamento da alma... Odeio-te quando dormes.457
O deus não deve adormecer, senão faz-se barro, carne; é preciso que esteja presente, sem o quê, sua criatura afunda no nada. Para a mulher, o sono do homem é avareza e traição. O amante desperta por vezes a amante; é para possuí-la. Ela o desperta simplesmente para que ele não durma, não se afaste, pense somente nela, esteja presente, fechado no quarto, no leito, em seus braços — como Deus no tabernáculo, é o que a mulher deseja: é uma carcereira.
E, no entanto, ela não consente realmente que o homem seja apenas seu prisioneiro. É esse um dos paradoxos dolorosos do amor: cativo, o deus despoja-se de sua divindade. Destinando-lhe sua transcendência, a mulher salva-a: mas é preciso que ele a transporte para o mundo inteiro. Se dois amantes mergulham juntos no absoluto da paixão, toda liberdade se degrada em imanência: só a morte pode então trazer uma solução: é um dos sentidos do mito de Tristão e Isolda. Dois amantes que se destinam exclusivamente um ao outro, já estão mortos: morrem de tédio. Em Terres étrangères, Marcel Arland descreveu essa lenta agonia de um amor que se devora a si mesmo. A mulher conhece esse perigo. Salvo nas crises de ciúme frenético, ela própria exige que o homem seja projeto, ação: ele não é mais um herói, se não realiza nenhuma façanha. O cavaleiro que parte para novas proezas ofende sua dama, mas ela o despreza se permanece sentado a seus pés. Essa é a tortura do amor impossível; a mulher quer ter todo o homem, mas exige dele que supere todo dado cuja posse seja possível: não se tem uma liberdade; ela quer encerrar aqui um existente que é, segundo Heidegger, “um ser das distâncias” e ela bem sabe que a tentativa está condenada. “Meu amigo, amo-o como se deve amar, com excesso, com loucura, transporte e desespero”, escreve Julie de Lespinasse. O amor idólatra, se lúcido, só pode ser desesperado. Porque a amante que pede ao amante que seja herói, gigante, semideus, reclama por não ser tudo para ele, quando só pode conhecer a felicidade com a condição de o conter inteiro dentro de si.
A paixão da mulher, renúncia total a toda espécie de direitos próprios, postula precisamente que o mesmo sentimento, o mesmo desejo de renúncia não exista para o outro sexo, pois se ambos renunciassem a si mesmos por amor, disso resultaria não sei bem o quê, digamos talvez o horror ao vazio? A mulher quer ser possuída... ela exige portanto alguém que a possua, que ele mesmo não se dê, que não se abandone, mas que queira, ao contrário, enriquecer seu eu no amor... A mulher dá-se, o homem se aumenta com ela...458
Pelo menos a mulher poderá encontrar sua alegria nesse enriquecimento que traz ao bem-amado; ela não é Tudo para ele, mas tentará se acreditar indispensável; não há graus na necessidade. Se ele “não pode viver sem ela”, ela se considera como o fundamento de sua preciosa existência, e disso extrai seu próprio valor. Põe sua alegria em servi-lo: mas é preciso que ele reconheça esse serviço com gratidão; o dom torna-se exigência, segundo a dialética comum da dedicação.459 E uma mulher de espírito escrupuloso interroga-se: é realmente de mim que ele precisa? O homem a ama, a deseja com uma ternura e um desejo singulares: mas não teria por outra um sentimento igualmente singular? Muitas mulheres apaixonadas deixam-se iludir: querem ignorar que o geral se acha envolvido no singular, e o homem facilita-lhes essa ilusão porque, antes de tudo, a partilha; há constantemente em seu desejo um arrebatamento que parece desafiar o tempo; no instante em que quer essa mulher, ele a quer com paixão e quer somente a ela: e sem dúvida o instante é um absoluto, mas o absoluto de um instante. Iludida, a mulher passa para o eterno. Divinizada pela relação com o senhor, ela acredita ter sido sempre divina e destinada ao deus: ela somente. Mas o desejo masculino é tão fugaz quanto imperioso; uma vez satisfeito, morre assaz depressa, ao passo que é, o mais das vezes, depois do amor que a mulher se torna sua prisioneira. É o tema de toda uma literatura fácil e de canções triviais. “Um jovem passava, uma mulher cantava... um jovem cantava, uma mulher chorava.” E o fato de um homem permanecer duradouramente apegado à mulher não significa que ela lhe seja necessária. É entretanto o que ela reclama: sua abdicação só a salva com a condição de lhe restituir seu império; não se pode fugir ao jogo da reciprocidade. É preciso pois que ela sofra, que ela minta a si mesma. Na maioria das vezes ela se agarra primeiramente à mentira. Imagina o amor do homem como a exata contrapartida do que ela lhe dedica; com má-fé toma o desejo por amor, a ereção por desejo, o amor por uma religião. Força o homem a mentir: você me ama? Como ontem? Você me amará sempre? Habilmente, faz as perguntas no momento em que não há tempo para respostas matizadas e sinceras, ou então em que as circunstâncias as impedem; é durante a relação amorosa, no limiar de uma convalescença, entre soluços ou na plataforma de uma estação que ela interroga imperiosamente; faz troféus das respostas arrancadas e, na falta de respostas, faz os silêncios falarem. Toda amorosa verdadeira é mais ou menos paranoica. Lembro-me de uma amiga que, ante o silêncio prolongado de um amante longínquo, declarava: “Quando se quer romper, escreve-se para anunciar a ruptura”; e depois de ter recebido uma carta sem ambiguidade “Quando se quer realmente romper, não se escreve”. É muitas vezes muito difícil verificar onde começa o delírio patológico ante as confidências recebidas. Descrita pela apaixonada em pânico, a conduta de um homem apresenta-se sempre como extravagante: é um neurótico, um sádico, um recalcado, um masoquista, um demônio, um inconsistente, um covarde ou tudo isso junto; desafia as explicações psicológicas mais sutis. “X. me adora, é loucamente ciumento, desejaria que eu usasse uma máscara quando saio; mas é um ser tão estranho e que desconfia tanto do amor que, quando lhe bato à porta, me recebe no patamar e não me deixa sequer entrar.” Ou então: “Z. me adorava. Mas era demasiado orgulhoso para pedir-me que fosse residir em Lyon, onde mora: fui e instalei-me em sua casa. Ao fim de oito dias, sem uma briga, mandou-me embora. Tornei a vê-lo duas vezes. Na terceira vez que lhe telefonei, desligou o telefone no meio da conversa. É um neurótico.” Essas histórias misteriosas esclarecem-se quando o homem explica: “Não a amava absolutamente”, ou “Tinha-lhe amizade, mas não teria suportado viver com ela um mês”. Sendo demasiado obstinada, a má-fé conduz ao hospício: um dos traços constantes da erotomania está em que as condutas do amante se apresentam como enigmáticas e paradoxais; por esse viés, o delírio da doente consegue sempre quebrar as resistências da realidade. Uma mulher normal acaba sempre sendo vencida pela verdade, e reconhecendo que não é mais amada. Mas, enquanto não é acuada a essa confissão, trapaceia sempre um pouco. Mesmo no amor recíproco há entre os sentimentos dos amantes uma diferença fundamental que ela se esforça por mascarar. Pois é naturalmente preciso que o homem possa justificar-se sem ela, posto que ela espera ser justificada por ele. Se ele lhe é necessário, é porque ela foge de sua liberdade; mas se ele assume a liberdade sem a qual não seria nem herói nem simplesmente homem, nada nem ninguém lhe seriam necessários. A dependência que a mulher aceita vem de sua fraqueza: como encontraria uma dependência recíproca naquele que ela ama pela sua força?
Uma alma apaixonadamente exigente não poderia encontrar sossego no amor porque visa a um fim contraditório. Torturada, atormentada, arrisca-se a se tornar um fardo para aquele de quem se sonhava escrava; não podendo sentir-se indispensável, torna-se importuna, odiosa. É isso também uma tragédia muito comum. Mais sensata, menos intransigente, a amorosa resigna-se. Não é tudo, não é necessária: basta-lhe ser útil; outra ocuparia facilmente seu lugar: ela contenta-se em ser a que está presente. Reconhece sua servidão sem pedir reciprocidade. Pode então experimentar uma felicidade modesta; mas, mesmo dentro de tais limites, essa felicidade não será sem nuvens. Muito mais dolorosamente do que a esposa, a amorosa espera. Se a própria esposa é exclusivamente uma amorosa, as tarefas caseiras, a maternidade, suas ocupações, seus prazeres não têm valor nenhum a seus olhos: é a presença do esposo que a arranca ao limbo do tédio. “Quando não estás presente, parece-me que não vale sequer a pena olhar o dia; tudo que me acontece é então como uma morte, não passo de um pequeno vestido vazio jogado sobre uma cadeira”, escreve Cécile Sauvage nos primeiros tempos de seu casamento.460 E vimos que muitas vezes é fora do casamento que nasce e desabrocha o amor-paixão. Um dos mais notáveis exemplos de uma vida inteira dedicada ao amor é o de Juliette Drouet: ela é apenas uma espera indefinida. “Cumpre sempre voltar ao mesmo ponto de partida, isto é, a esperá-lo sempre”, escreve ela a Victor Hugo. “Eu o espero como um esquilo na gaiola.” “Deus meu! Como é triste para uma natureza como a minha esperar de um ponto ao outro da vida.” “Que dia! Pensei que não passasse, a tal ponto te esperei, e agora acho que passou depressa demais pois não te vi...” “Acho o dia infindável...” “Espero-o porque afinal prefiro ainda esperar, a crer que você não virá mais.” É verdade que Victor Hugo, depois que fez Juliette romper com seu rico protetor, príncipe Demidoff, a tinha confinado em um pequeno apartamento e durante 12 anos proibiu-a de sair sozinha, a fim de que não reatasse com nenhum de seus amigos de outrora. Mesmo quando a sorte daquela que se intitulava “sua pobre vítima enclaustrada” se amenizou, não deixou ela de ter o amante como única razão de viver e de vê-lo bem pouco. “Eu o amo, meu Victor bem-amado”, escreve em 1841, “mas tenho o coração triste e amargurado; vejo-o tão pouco, e o pouco que o vejo me pertences tão pouco, que todos esses poucos fazem um todo de tristeza que me enche o coração e o espírito”. Ela sonha conciliar a independência com o amor. “Gostaria de ser independente e escrava a um tempo, independente por uma situação que me alimenta e escrava unicamente de meu amor.” Mas tendo definitivamente fracassado em sua carreira de atriz, teve de resignar-se “de um ponto ao outro da vida” a ser apenas uma amante. Apesar de seus esforços para prestar serviço ao ídolo, suas horas eram demasiado vazias; as 17.000 cartas que escreveu a Hugo, ao ritmo de 300 a 400 por ano, são uma prova disso. Entre as visitas do senhor não lhe restava senão matar o tempo. O pior horror na condição da mulher de harém é serem seus dias desertos de tédio: quando o homem não usa esse objeto que ela é para ele, ela não é absolutamente mais nada. A situação da amorosa é análoga: ela só quer ser essa mulher amada, nada mais tem valor a seus olhos. Para existir, é preciso portanto que o amante esteja a seu lado, se ocupe com ela; ela espera a chegada, o desejo, o despertar dele. E logo que ele a deixa, recomeça a esperar. É a maldição que pesa sobre a heroína de Back Street,461 sobre a de Intempéries,462 sacerdotisas e vítimas do amor puro. É a dura punição infligida a quem não tomou o próprio destino nas mãos.
Esperar pode ser uma alegria. Para quem espreita o bem-amado sabendo que acorre, que a ama, a espera é uma promessa deslumbrante. Mas passada a embriaguez confiante do amor que transforma a própria ausência em presença, misturam-se ao vazio da ausência os tormentos da inquietação: o homem também pode nunca mais voltar. Conheci uma mulher que a cada encontro acolhia o amante com espanto. “Pensava que não voltasses mais”, dizia. E se ele perguntava por quê: “Poderias não voltar; quando te espero tenho sempre a impressão de que não te verei mais.” Mas principalmente ele pode deixar de amar: pode amar outra mulher. Pois a violência com que a mulher procura se iludir dizendo: “Ele me ama loucamente e só a mim pode amar”, não exclui as torturas do ciúme. Afirmações apaixonadas e contraditórias são peculiares à má-fé. Assim o louco, que obstinadamente se imagina Napoleão, não se embaraça em reconhecer que é também barbeiro. Raramente a mulher consente em indagar: ele gosta realmente de mim? Mas cem vezes ela se interroga: ele não gosta de outra? Não admite que o fervor do amante tenha podido diminuir pouco a pouco, nem que ele dê menos valor do que ela ao amor: logo inventa rivais. Ela considera o amor um sentimento livre e um encantamento mágico ao mesmo tempo; e estima que “seu” homem continua a amá-la em sua liberdade enquanto é “enleado”, “pegado numa armadilha” por uma hábil intrigante. O homem possui a mulher enquanto assimilada a ele, em sua imanência. É por isso que desempenha tão facilmente o papel de um Boubouroche;463 tem dificuldade em imaginar que ela seja também uma outra que lhe escapa: o ciúme nele não passa em geral de uma crise passageira, como o próprio amor. A crise pode ser violenta e até assassina, mas é raro que a inquietação se instale duradouramente nele. O ciúme apresenta-se principalmente nele como um derivativo: quando seus negócios vão mal, quando se sente molestado pela vida, então é que se diz ridicularizado pela mulher.464 Ao contrário, a mulher amando o homem em sua alteridade, em sua transcendência, sente-se a cada instante em perigo. Não há grande distância entre a traição da ausência e a infidelidade. Desde que se sente desarmada, ela se torna ciumenta: dadas suas exigências, esse é sempre mais ou menos o caso: suas censuras, suas queixas traduzem-se por cenas de ciúme, quaisquer que sejam os pretextos; assim é que exprimirá a impaciência e o tédio da espera, o amargo sentimento de sua dependência, a tristeza de ter apenas uma existência mutilada. É todo o seu destino que está em jogo em cada olhar que o homem amado endereça a outra mulher, porquanto alienou nele todo seu ser. Por isso se irrita, se o olhar do amante se volta um instante para uma estranha. E se ele lhe observa que ela acaba de contemplar longamente um desconhecido, ela responde convicta: “Não é a mesma coisa.” E tem razão. Um homem olhado por uma mulher nada recebe desta: o dom só começa a partir do momento em que a carne feminina se faz presa. Ao passo que a mulher ambicionada é de imediato metamorfoseada em objeto desejável e desejado; e a amorosa desprezada “retorna ao barro vulgar”. Por isso está ela sempre de sentinela. Que ele faz? Que ele olha? Com quem fala? O que um desejo deu a ela, um sorriso pode retomar-lhe. Basta um instante para precipitá-la “da luz nacarada da imortalidade” no crepúsculo cotidiano. Tudo recebeu do amor, pode tudo perder, ao perdê-lo. Impreciso ou definido, sem fundamento ou justificado, o ciúme é para a mulher uma tortura enlouquecedora porque é uma contestação radical do amor; é preciso, se a traição é certa, renunciar a fazer do amor uma religião, ou renunciar ao amor; é uma subversão tão radical que se compreende que a amorosa, ora duvidando, ora se iludindo, sinta-se obcecada pelo desejo e pelo temor de descobrir a verdade mortal.
Arrogante e ansiosa a um tempo, acontece muitas vezes que a mulher, estando sempre com ciúme, o esteja sempre sem razão: Juliette Drouet conheceu as angústias da suspeita em relação a todas as mulheres de quem Hugo se aproximava, esquecendo somente de temer Léonie Biard, que durante oito anos foi amante dele. Na incerteza, toda mulher é uma rival, um perigo. O amor mata a amizade porque a amorosa se encerra no universo do homem amado; o ciúme exaspera-lhe a solidão e, desse modo, torna a dependência dela mais estreita. Nisso ela encontra entretanto um recurso contra o tédio: conservar um marido é um trabalho; conservar um amante, uma espécie de sacerdócio. A mulher que se negligenciava, perdida numa adoração feliz, recomeça a cuidar de si logo que pressente uma ameaça. Toalete, arranjo do lar, exibições mundanas tornam-se os momentos de um combate. A luta é uma atividade tônica: enquanto tem quase certeza de vencer, a guerreira encontra nela um prazer pungente. Mas o temor angustiado da derrota transforma em humilhante servidão o dom generosamente consentido. O homem ataca para se defender. Uma mulher, ainda que orgulhosa, é forçada a fazer-se meiga e passiva; manobras, prudência, subterfúgios, sorrisos, encantos, docilidade são suas melhores armas. Revejo essa jovem mulher a cuja porta bati de improviso uma noite; deixara-a duas horas antes malpintada, negligentemente vestida, com um olhar morto; agora ela o esperava; quando deu comigo, retomou sua expressão habitual, mas durante um momento tive tempo de vê-la preparada para ele, crispada no medo e na hipocrisia, já preparada para todos os sofrimentos por trás de seu sorriso jovial; estava penteada com cuidado, uma maquiagem insólita animava-lhe as faces e os lábios, enfeitara-se com uma blusa de renda de deslumbrante brancura. Vestido de festa, arma de combate. Os massagistas, os visagistas, os “esteticistas” sabem que seriedade trágica emprestam suas clientes a esses cuidados que parecem fúteis; é preciso inventar novas seduções para o amante, é preciso tornar-se a mulher que ele almeja encontrar e possuir. Mas todo esforço é vão; ela não ressuscitará em si essa imagem da Outra que de início o atraíra, que pode atraí-lo em uma outra. Há no amante a mesma dúplice e impossível exigência que há no marido: quer a amante absolutamente sua e no entanto estranha; ele a quer exatamente de acordo com seu sonho e diferente de tudo o que sua imaginação inventa, uma resposta à sua espera e uma surpresa imprevista. Essa contradição atormenta a mulher e a destina ao fracasso. Ela tenta moldar-se em obediência ao desejo do amante; muitas mulheres que tinham desabrochado nos primeiros tempos de um amor que confirmava seu narcisismo, assustam, por um servilismo maníaco, quando se sentem menos amadas; obcecadas, empobrecidas, irritam o amante; dando-se a ele cegamente, a mulher perdeu essa dimensão de liberdade que a princípio a tornava fascinante. Ele buscava nela seu reflexo: mas, se o encontra demasiado fiel, aborrece-se. Uma das desgraças da amorosa está em que seu próprio amor a desfigura, a aniquila; fica sendo somente essa escrava, essa criada, esse espelho por demais dócil, esse eco por demais fiel. Quando o percebe, seu desespero diminui-lhe ainda o valor; em meio às lágrimas, às reivindicações, às cenas, acaba perdendo todo atrativo. Um existente é o que faz; para ser, ela confiou numa consciência alheia e renunciou a fazer qualquer coisa. “Só sei amar”, escreve Julie de Lespinasse. Eu que sou tão somente amor: este título de romance465 é a divisa da amorosa; ela é somente amor e, quando o amor se acha privado de seu objeto, ela não é mais nada.
Muitas vezes compreende seu erro; tenta então reafirmar sua liberdade, reencontrar sua alteridade; torna-se coquete. Desejada por outros homens, interessa novamente o amante entediado: é o tema batido de muitos romances “perversos”; a separação basta por vezes para devolver-lhe o prestígio; Albertine parece insossa quando se acha presente e dócil; à distância, volta a ser misteriosa e Proust ciumento valoriza-a novamente. Mas essas manobras são delicadas; se o homem as penetra, revelam apenas irrisoriamente a servidão de sua escrava. E seu próprio êxito não está livre de perigo: é porque é sua que o amante desdenha a amante, mas é porque é sua que a ela se prende; será o desdém ou o apego que uma infidelidade arruinará? Pode ser que, despeitado, o homem se afaste da indiferente: ele a quer livre, mas ele a quer dada. Ela conhece esse risco: seu coquetismo com isso se paralisa. É quase impossível a uma amorosa jogar habilmente esse jogo; tem medo demais de cair na própria armadilha. E, na medida em que ainda ama o amante, repugna-lhe enganá-lo: como permaneceria ele um deus a seus olhos? Ganhando a partida, ela destrói o ídolo; perdendo-a, perde-se a si mesma. Não há salvação.
Uma amorosa prudente — mas tais palavras não vão juntas — esforça-se por converter a paixão do amante em ternura, em amizade, em hábito; ou tenta segurá-lo por laços sólidos: filho, casamento. Esse desejo de casamento persegue muitas ligações: é o da segurança. A amante hábil tira proveito da generosidade do jovem amor para obter um seguro contra o futuro. Mas, quando se entrega a essas especulações, não merece mais o nome de amorosa. Por que esta sonha loucamente com captar para sempre a liberdade do amante mas não com o aniquilar. É por isso que, salvo o caso muito raro em que o livre e mútuo relacionamento se perpetua durante toda uma vida, o amor-religião conduz à catástrofe. Com Mora, Mlle de Lespinasse teve a sorte de se cansar em primeiro lugar; cansou-se porque encontrou Guibert que, por sua vez, não demorou em se cansar dela. O amor de Mme d’Agoult e Liszt morreu dessa dialética implacável: o arrebatamento, a vitalidade, a ambição que tornavam Liszt tão amável o destinavam a outros amores. A religiosa portuguesa tinha que ser abandonada. A chama que tornava d’Annunzio tão cativante466 tinha por preço sua infidelidade. Uma ruptura pode marcar profundamente um homem, mas afinal ele tem sua vida de homem a viver. A mulher abandonada não é mais nada, não tem mais nada. Se lhe perguntam: “Como vivia, antes?”, não se lembra sequer. Esse mundo que era seu, ela o deixou cair em cinzas para adotar uma nova pátria de que é bruscamente expulsa; renegou todos os valores em que acreditava, destruiu suas amizades; encontra-se sem teto sobre a cabeça e em derredor é o deserto. Como recomeçaria uma vida nova, se não há nada fora do amado? Refugia-se em delírios, como outrora no claustro; ou se é demasiado sensata, resta-lhe apenas morrer: muito rapidamente, como Mlle de Lespinasse ou pouco a pouco; a agonia pode durar muito tempo. Quando uma mulher, durante dez ou vinte anos, se dedicou a um homem de corpo e alma, quando ele se manteve firmemente sobre o pedestal em que o ergueu, o abandono em que ele a deixa pode ser uma catástrofe fulminante. “Que poderei fazer, indagava aquela mulher de quarenta anos, que poderei fazer se Jacques não me ama mais?” Vestia-se, pintava-se com cuidado, mas seu rosto endurecido, já gasto, não podia inspirar um novo amor; poderia ela própria amar outro depois de vinte anos à sombra de um homem? Restam ainda muitos anos de vida quando se tem quarenta anos. Revejo outra mulher que conservava olhos belos, traços nobres, apesar de um rosto inchado pelo sofrimento e que deixava, sem o perceber sequer, as lágrimas escorrerem-lhe pelas faces, em público, cega e surda. Agora, o deus diz a outra as palavras inventadas para ela; rainha destronada, não sabe mais se jamais reinou sobre um verdadeiro reino. Se é ainda moça, a mulher tem possibilidades de curar-se: um novo amor poderá curá-la. Por vezes, a este se entregará com um pouco mais de reserva, compreendendo que o que não é único não pode ser absoluto; mas muitas vezes ela se quebrará de encontro a esse novo amor, com muito mais violência ainda que da primeira vez, porque terá de resgatar também o fracasso anterior. O fracasso do amor absoluto só é uma experiência fecunda se a mulher é capaz de recuperar o domínio de si mesma: separada de Abelardo, Heloísa não se transformou num destroço porque, dirigindo uma abadia, construiu uma existência autônoma. As heroínas de Colette têm demasiado orgulho e recursos para se demolirem com uma decepção amorosa: Renée Méré salva-se pelo trabalho. E “Sido” dizia à filha que não se inquietasse demais com seu destino sentimental, porque sabia que Colette não era apenas uma amorosa. Mas há poucos crimes que acarretem pior castigo do que esse erro generoso: entregar-se por inteiro a outras mãos.
O amor autêntico deveria basear-se no reconhecimento recíproco de duas liberdades; cada um dos amantes se sentiria então como si mesmo e como o outro: nenhum abdicaria sua transcendência, nenhum se mutilaria; ambos desvendariam juntos, no mundo, valores e fins. Para um e para outro, o amor seria uma revelação de si mesmo pelo dom de si e o enriquecimento do universo. Em sua obra Connaissance de soi, Georges Gusdorf resume muito exatamente o que o homem pede ao amor.
O amor nos revela a nós mesmos, fazendo-nos sair de nós mesmos. Nós nos afirmamos ao contato do que nos é estranho e complementar. O amor, como forma do conhecimento, descobre novos céus e novas terras na própria paisagem em que sempre vivemos. Eis o grande segredo: o mundo é outro, eu sou outro. E não sou mais o único a sabê-lo. Melhor até: foi alguém que me ensinou isso. A mulher desempenha, pois, um papel indispensável e capital na consciência que o homem assume de si mesmo.
Daí a importância de que o aprendizado amoroso se reveste para o jovem;467 vimos como Stendhal e Malraux se maravilham com o milagre que fez que “eu mesmo seja outro”. Mas Gusdorf erra ao escrever: “E do mesmo modo o homem representa para a mulher um intermediário indispensável de si mesma a si mesma”, pois hoje a situação dela não é igual; o homem é revelado sob outra forma, mas permanece ele mesmo e sua nova fisionomia integra-se no conjunto de sua personalidade. Só ocorreria o mesmo com a mulher se ela também existisse essencialmente como “para-si”; o que implicaria a posse de uma independência econômica, a possibilidade de projetar-se para fins próprios e de superar-se sem intermediários para a coletividade. Então são possíveis os amores em termos de igualdade, como o que Malraux descreve entre Kyo e May. Pode mesmo acontecer que a mulher desempenhe o papel viril e dominador como Mme de Warens diante de Rousseau, Léa diante de Chéri. Mas, na maioria dos casos, a mulher só se conhece como outro; seu “para-outrem” confunde-se com seu próprio ser; o amor não é para ela um intermediário de si a si, porque ela não se encontra em sua existência subjetiva; permanece mergulhada nessa amante que o homem não somente revelou como criou; sua salvação depende dessa liberdade despótica que a fundou e pode em um instante aniquilá-la. Ela vive a tremer diante daquele que tem seu destino nas mãos, sem o saber e sem o querer; ela está em perigo em outro, testemunha angustiada e impotente de seu próprio destino. Tirano contra a vontade, sem o querer carrasco, esse outro, a despeito de ambos, tem uma feição inimiga; em lugar da união procurada, a amorosa conhece a mais amarga das solidões, em lugar da cumplicidade, a luta e muitas vezes o ódio. O amor na mulher é uma tentativa suprema de superar, assumindo-a a dependência a que se acha condenada; mas, mesmo consentida, essa dependência não se pode viver senão no medo e no servilismo.
Os homens não cessaram de proclamar que o amor é para a mulher sua suprema realização. “Uma mulher que ama como mulher, ainda se torna mais profundamente mulher”, diz Nietzsche; e Balzac: “Em um plano elevado, a vida do homem está na glória, a da mulher no amor. A mulher só se iguala ao homem fazendo de sua vida uma perpétua oferenda, como a do homem é uma perpétua ação.” Mas trata-se ainda aqui de uma mistificação cruel, pois o que ela oferece eles não se esforçam em absoluto por aceitar. O homem não precisa da dedicação incondicional que reclama, nem do amor idólatra que lhe lisonjeia a vaidade; só os acolhe com a condição de não satisfazer as exigências que tais atitudes reciprocamente implicam. Ele recomenda à mulher que dê: e suas dádivas o irritam; ela se vê perturbada com seus inúteis presentes, com sua existência vã. No dia em que for possível à mulher amar em sua força, não em sua fraqueza, não para fugir de si mesma mas para se encontrar, não para se demitir mas para se afirmar, nesse dia o amor se tornará para ela, como para o homem, fonte de vida e não perigo mortal. Enquanto isso não acontece, ele resume sob sua forma mais patética a maldição que pesa sobre a mulher encerrada no universo feminino, a mulher mutilada, incapaz de se bastar a si mesma. As numerosas mártires do amor testemunharam contra a injustiça de um destino que lhes propõe, como derradeira salvação, um inferno estéril.