A mulher independente

 

 

 

 

 

 

 

O código francês não mais inclui a obediência entre os deveres da esposa, e toda cidadã tornou-se eleitora; essas liberdades cívicas permanecem abstratas quando não se acompanham de uma autonomia econômica. A mulher sustentada — esposa ou cortesã — não se liberta do homem por ter na mão uma cédula de voto; se os costumes lhe impõem menos obrigações do que outrora, as licenças negativas não lhe modificaram profundamente a situação; ela continua confinada em sua condição de vassala. Foi pelo trabalho que a mulher cobriu em grande parte a distância que a separava do homem; só o trabalho pode assegurar-lhe uma liberdade concreta. Desde que ela deixa de ser uma parasita, o sistema baseado em sua dependência desmorona; entre o universo e ela não há mais necessidade de um mediador masculino. A maldição que pesa sobre a mulher vassala, reside no fato de que não lhe é permitido fazer o que quer que seja: ela se obstina então na impossível procura do ser através do narcisismo, do amor, da religião; produtora, ativa, ela reconquista sua transcendência; em seus projetos afirma-se concretamente como sujeito; pela sua relação com o fim a que visa, com o dinheiro e os direitos de que se apropria, põe à prova sua responsabilidade. Muitas mulheres têm consciência de tais vantagens, mesmo entre as que exercem os mais modestos ofícios. Ouvi uma mulher que lavava o piso de um saguão de hotel declarar: “Nunca pedi nada a ninguém. Venci sozinha.” Mostrava-se tão orgulhosa quanto um Rockefeller, por se bastar a si mesma. Não se deve entretanto acreditar que a simples justaposição do direito de voto a um ofício constitua uma perfeita libertação: hoje o trabalho não é a liberdade. Somente em um mundo socialista a mulher, atingindo o trabalho, conseguiria a liberdade. Em sua maioria, os trabalhadores são hoje explorados. Por outro lado, a estrutura social não foi profundamente modificada pela evolução da condição feminina; este mundo, que sempre pertenceu aos homens, conserva ainda a forma que eles lhe imprimiram. É preciso não perder de vista esses fatos, dos quais a questão do trabalho feminino tira sua complexidade. Uma senhora importante e bem pensante fez recentemente uma pesquisa entre as operárias das fábricas Renault; afirma que estas prefeririam ficar em casa a trabalhar na fábrica. Provavelmente, pois elas só conseguem a independência econômica no meio de uma classe economicamente oprimida; e por outro lado as tarefas realizadas na fábrica não as dispensam dos cuidados do lar.471 Se lhes tivessem proposto a escolha entre quarenta horas de trabalho semanal na fábrica ou em casa, teriam sem dúvida dado outras respostas; e talvez mesmo aceitassem alegremente a acumulação, se, como operárias, se integrassem em um mundo que fosse seu mundo, da elaboração do qual participassem com alegria e orgulho. Atualmente, sem falar das camponesas,472 em sua maioria as mulheres que trabalham não se evadem do mundo feminino tradicional; não recebem da sociedade, nem do marido, a ajuda que lhes seria necessária para se tornarem concretamente iguais aos homens. Somente as que têm um credo político, as que militam nos sindicatos, as que confiam no futuro, podem dar um sentido ético às ingratas fadigas cotidianas; mas, privadas de lazeres, herdeiras de uma tradição de submissão, é natural que as mulheres comecem somente a desenvolver um sentido político e social. É natural que, não recebendo em troca de seu trabalho os benefícios morais e sociais com que teriam direito de contar, lhe suportem sem entusiasmo os constrangimentos. Compreende-se também que a midinette, a empregada, a secretária não queiram renunciar às vantagens de um apoio masculino. Já disse que a existência de uma casta privilegiada, a que é permitido agregar-se apenas entregando o corpo, é para a jovem mulher uma tentação quase irresistível; ela se entrega às galanterias pelo fato de serem mínimos seus salários, enquanto o padrão de vida que a sociedade exige dela é muito elevado; se se contenta com o que ganha, será apenas um pária: mal-instalada, malvestida, todas as distrações e o próprio amor lhe serão recusados. As pessoas virtuosas pregam-lhe o ascetismo; na verdade, seu regime alimentar é muitas vezes tão austero quanto o de uma carmelita; só que nem todo mundo pode ter Deus como amante: é preciso que ela agrade aos homens para vencer em sua vida de mulher. Ela se fará ajudar, portanto; é com isso que conta cinicamente o empregador que lhe concede um salário de fome. Em alguns casos, essa ajuda lhe permitirá melhorar sua situação e conquistar uma independência verdadeira; por vezes, ao contrário, ela abandonará seu ofício para ser sustentada. Muitas vezes acumula: liberta-se do amante pelo trabalho e evade-se do trabalho graças ao amante; mas também conhece a dupla servidão de um ofício e de uma proteção masculina. Para a mulher casada, o salário geralmente representa apenas um complemento; para a mulher “que é ajudada” é o auxílio masculino que se apresenta como o inessencial; mas nem uma nem outra adquirem, com seu esforço pessoal, uma independência total.

 

Entretanto, existe hoje um número bem grande de privilegiadas que encontram em sua profissão uma autonomia econômica e social. São elas que pomos em questão quando indagamos das possibilidades da mulher e de seu futuro. Eis por que, embora constituam ainda apenas uma minoria, é particularmente interessante estudar de perto sua situação; é a propósito delas que os debates entre feministas e antifeministas se prolongam. Estes afirmam que as mulheres emancipadas de hoje nada de importante conseguem no mundo e que, por outro lado, têm dificuldade em encontrar seu equilíbrio interior. Aqueles exageram os resultados que elas obtêm e não querem enxergar seu desatino. Em verdade, nada autoriza a dizer que seguem um caminho errado, e no entanto é certo que não se acham tranquilamente instaladas em sua nova condição: não passaram ainda da metade do caminho. A mulher que se liberta economicamente do homem nem por isso alcança uma situação moral, social e psicológica idêntica à dele. A maneira por que se empenha em sua profissão e a ela se dedica depende do contexto constituído pela forma global de sua vida. Ora, quando inicia sua vida de adulto, ela não tem atrás de si o mesmo passado de um rapaz; não é considerada de maneira idêntica pela sociedade; o universo apresenta-se a ela numa perspectiva diferente. O fato de ser uma mulher coloca hoje problemas singulares perante um ser humano autônomo.

 

O privilégio que o homem tem, e que se faz sentir desde sua infância, está em que sua vocação de ser humano não contraria seu destino de macho. Da assimilação do falo e da transcendência, resulta que seus êxitos sociais ou espirituais lhe dão um prestígio viril. Ele não se divide. Ao passo que à mulher, para que realize sua feminilidade, pede-se que se faça objeto e presa, isto é, que renuncie a suas reivindicações de sujeito soberano. É esse conflito que caracteriza singularmente a situação da mulher libertada. Ela se recusa a confinar-se em seu papel de fêmea porque não quer mutilar-se, mas repudiar seu sexo seria também uma mutilação. O homem é um ser humano sexuado: a mulher só é um indivíduo completo e igual ao homem se for também um ser sexuado. Renunciar a sua feminilidade é renunciar a uma parte de sua humanidade. Os misóginos criticaram muitas vezes as mulheres de ação por “se negligenciarem”; mas também lhes pregaram que se quisessem ser iguais a eles deveriam deixar de se maquiar e de pintar as unhas. Este último conselho é absurdo. A ideia de feminilidade impõe-se de fora a toda mulher, precisamente porque se define artificialmente pelos costumes e pelas modas; ela pode evoluir de maneira que os cânones se aproximem dos que adotam os homens: nas praias, as calças compridas tornaram-se femininas. Isso não modifica em nada o fundo da questão: o indivíduo não tem liberdade de moldá-la à vontade. A mulher que não se conforma com isso desvaloriza-se sexualmente e, por conseguinte, socialmente, porquanto a sociedade integrou os valores sexuais. Recusando atributos femininos, não se adquirem atributos viris; mesmo a travestida não consegue fazer-se homem; é uma travestida. Vimos que a homossexualidade constitui, ela também, uma especificação: a neutralidade é impossível. Não há nenhuma atitude negativa que não implique uma contrapartida positiva. A adolescente acredita muitas vezes que pode simplesmente desprezar as convenções; mas exatamente com isso ela se manifesta, cria uma situação nova, acarretando consequências que terá de assumir. A partir do momento em que se livra de um código estabelecido, o indivíduo torna-se um revoltado. Uma mulher que se veste de maneira extravagante, mente quando afirma com um ar de simplicidade que obedece a seu bel-prazer, nada mais: sabe perfeitamente que isso é uma extravagância. Inversamente, quem não almeja mostrar-se excêntrica conforma-se com as regras comuns. É um cálculo errado escolher o desafio, a menos que isso represente uma ação positivamente eficaz; consome-se com isso mais tempo e forças do que se poupam. Uma mulher que não deseja escandalizar, que não quer se desvalorizar socialmente deve viver como mulher sua condição de mulher: frequentemente, seu próprio êxito profissional o exige. Mas enquanto o conformismo é para o homem muito natural — o costume tendo sido estruturado de acordo com suas necessidades de indivíduo autônomo e ativo — será necessário que a mulher, que é também sujeito, atividade, se dissolva em um mundo que a destinou à passividade. É uma servidão ainda mais pesada porque as mulheres, confinadas na esfera feminina, lhe hipertrofiaram a importância: transformaram em artes difíceis a toalete e os cuidados caseiros. O homem quase não precisa se preocupar com suas roupas: são cômodas, adaptadas à sua vida ativa, não é necessário que sejam requintadas; mal fazem parte de sua personalidade; além disso, ninguém espera que delas trate pessoalmente: qualquer mulher benevolente ou remunerada se encarrega desse cuidado. A mulher, ao contrário, sabe que quando a olham não a distinguem de sua aparência: ela é julgada, respeitada, desejada através de sua toalete. Suas vestimentas foram primitivamente destinadas a confiná-la na impotência e permaneceram frágeis: as meias rasgam-se, os saltos acalcanham-se, as blusas e os vestidos claros sujam-se, as pregas desfazem-se; entretanto, ela mesma deverá reparar a maior parte dos acidentes; suas semelhantes não a auxiliarão benevolamente e ela terá escrúpulos em sobrecarregar seu orçamento com trabalhos que ela mesma pode executar; as permanentes, as ondulações, a pintura, os vestidos novos já custam bastante caro. Quando a estudante, a secretária, voltam para casa à noite, têm sempre uma meia para cerzir, uma blusa para lavar, uma saia para passar. A mulher que ganha muito bem a vida se poupará de tais tarefas aborrecidas, mas estará obrigada a uma elegância mais complicada, perderá tempo em compras, provas etc. A tradição impõe também à mulher, mesmo solteira, certo cuidado com seu lar; um funcionário, nomeado para uma nova cidade, vive facilmente no hotel; sua colega procurará instalar-se num “cantinho próprio”, do qual deverá cuidar com escrúpulo, pois não lhe perdoariam uma negligência que achariam natural na residência de um homem. Não é, aliás, somente a preocupação com a opinião pública que a incita a dedicar tempo e cuidados à beleza, ao lar. Ela deseja continuar uma verdadeira mulher para sua própria satisfação. Só consegue aprovar-se através do presente e do passado, acumulando a vida que fez para si com o destino que sua mãe, que seus jogos infantis e seus fantasmas de adolescente lhe prepararam. Alimenta sonhos narcisistas; ao orgulho fálico do homem continua a opor o culto de sua própria imagem; quer exibir-se, encantar. Sua mãe, parentes e amigas mais velhas insuflaram-lhe o gosto pelo ninho: a forma primitiva de seus sonhos de independência foi um lar próprio; não pensa em renegá-los, mesmo tendo encontrado a liberdade por outros caminhos. E, à medida que se sente ainda sem completa segurança no universo masculino, conserva a necessidade de um retiro, símbolo desse refúgio interior que se habituou a procurar em si mesma. Dócil à tradição feminina, lustrará o assoalho, fará ela mesma sua comida em vez de ir, como seu colega, comer no restaurante. Quer viver como um homem e como uma mulher ao mesmo tempo: com isso multiplica seus trabalhos e fadigas.

Se pretende permanecer plenamente mulher, é porque pretende também abordar o outro sexo com o máximo de possibilidades. É no terreno sexual que se apresentarão os problemas mais difíceis. Para ser um indivíduo completo, igual ao homem, é preciso que a mulher tenha acesso ao mundo masculino assim como o homem tem acesso ao mundo feminino, que tenha acesso ao outro; só que as exigências do outro não são em ambos os casos simétricas. Uma vez conquistadas, a fortuna, a celebridade apresentam-se como virtudes imanentes, podem aumentar a atra­ção sexual da mulher; mas o fato de ser uma atividade autônoma contradiz sua feminilidade, ela o sabe. A mulher independente — e principalmente a intelectual que pensa sua situação — sofrerá, enquanto fêmea, de um complexo de inferioridade; não tem tempo para consagrar à sua beleza cuidados tão atentos quanto a coquete, cuja única preocupação é seduzir; por mais que siga os conselhos de especialistas, nunca passará de um amador no terreno da elegância; o encanto feminino exige que a transcendência, degradando-se em imanência, só se apresente como uma palpitação carnal sutil; cumpre ser uma presa espontaneamente oferecida: a intelectual sabe que se oferece, sabe que é uma consciência, um sujeito; não se consegue amortecer o olhar pela vontade, transformar os olhos em uma poça de céu ou de água; nem sempre se detém com firmeza o impulso de um corpo que tende para o mundo, a fim de metamorfoseá-lo em uma estátua animada por surdas vibrações. A intelectual tentará fazê-lo ainda com maior zelo porque teme fracassar: mas esse zelo consciente é ainda uma atividade e não atinge seu objetivo. Ela comete erros análogos aos que a menopausa sugere: tenta negar sua “cerebralidade” como a mulher que envelhece tenta negar a idade; veste-se como menina, enche-se de flores, adornos, tecidos espalhafatosos; exagera as mímicas infantis e maravilhadas. Brinca, saltita, tagarela, mostra-se desenvolta, estouvada, impulsiva. Mas assemelha-se a esses atores que, por não sentir a emoção que acarretaria o relaxamento de certos músculos, contraem, por um esforço de vontade, os antagonistas, abaixando as pálpebras ou os cantos dos lábios, ao invés de os deixar caírem; assim a mulher de ação crispa-se para mimar o abandono. Sente-o, e com isso se irrita; no rosto, perdidamente ingênuo, brilha de repente uma luz de inteligência demasiado viva; os lábios promissores contraem-se. Se tem dificuldade em agradar é porque não é, como suas irmãzinhas escravas, uma pura vontade de agradar; o desejo de seduzir, por vivo que seja, não lhe desceu à medula dos ossos; sentindo-se inábil, irrita-se com seu servilismo; quer se vingar participando do jogo com armas masculinas; fala ao invés de escutar, expõe pensamentos sutis, emoções inéditas; contradiz seu interlocutor em lugar de o aprovar, tenta ser-lhe superior. Mme de Staël misturava bastante habilmente os dois métodos para alcançar triunfos fulminantes: era raro que lhe resistissem. Mas a atitude de desafio, tão frequente, entre outras, nas norte-americanas, aborrece os homens mais do que os domina; são eles, aliás, que a provocam com sua própria desconfiança; se aceitassem amar uma semelhante de preferência a uma escrava — como o fazem aliás os que, entre eles, são isentos de arrogância e de complexo de inferioridade — as mulheres seriam muito menos obcecadas pela sua feminilidade; ganhariam com isso naturalidade, simplicidade, e se achariam mulheres sem tanto esforço, pois, afinal de contas, o são.

O fato é que os homens começam a se conformar com a nova condição da mulher; esta, não se sentindo condenada a priori, acha-se mais à vontade: hoje a mulher que trabalha não negligencia por isso sua feminilidade e não perde sua atração sexual. Esse êxito — que já assinala um progresso para o equilíbrio — permanece entretanto incompleto; é ainda muito mais difícil para a mulher do que para o homem estabelecer as relações que deseja com o outro sexo. Sua vida erótica e sentimental encontra numerosos obstáculos. Neste ponto, a mulher vassala não se acha aliás em situação privilegiada: sexual e sentimentalmente, a maioria das esposas e das cortesãs é radicalmente frustrada. Se as dificuldades são mais evidentes na mulher independente é porque ela não escolheu a resignação e sim a luta. Todos os problemas vivos encontram na morte uma solução silenciosa; uma mulher que se empenha em viver é portanto mais dividida do que a que enterra sua vontade e seus desejos; mas não aceitará que lhe ofereçam esta solução como exemplo. É somente comparando-se ao homem que se julgará inferiorizada.

Uma mulher que despende suas energias, que tem responsabilidades, que conhece a dureza da luta contra as resistências do mundo, tem necessidade — como o homem — não somente de satisfazer seus desejos físicos como ainda de conhecer o relaxamento, a diversão, que oferecem aventuras sexuais felizes. Ora, há ainda meios em que essa liberdade não lhe é concretamente reconhecida; arrisca-se, usando-a, a comprometer sua reputação, sua carreira; no mínimo, exigem dela uma hipocrisia que lhe pesa. Quanto mais tiver conseguido impor-se socialmente, mais fecharão de bom grado os olhos; mas, na província principalmente, na maior parte dos casos, ela será severamente vigiada. Mesmo nas circunstâncias mais favoráveis — quando o temor da opinião pública não mais influi — sua situação não é neste ponto equivalente à do homem. As diferenças provêm ao mesmo tempo da tradição e dos problemas que a natureza singular do erotismo feminino coloca.

O homem pode facilmente conhecer carícias sem consequências, que bastam a rigor para lhe acalmar a carne e relaxá-lo moralmente. Houve mulheres — em pequeno número — que reclamaram a instituição de bordéis para mulheres; em um romance intitulado Le Número 17, uma mulher propunha que se criassem casas onde as mulheres pudessem “aliviar-se sexualmente” com taxi boys.473 Parece que existiu um estabelecimento desse tipo em São Francisco; só o frequentavam mulheres de bordel, divertidas com pagarem ao invés de serem pagas; os proxenetas fecharam-no. Além de ser utópica e pouco desejável, essa solução teria sem dúvida êxito diminuto: já se viu que a mulher não obtém um “alívio” tão mecanicamente quanto o homem; em sua maioria, as mulheres estimariam a situação pouco propícia a um abandono voluptuoso. Em todo caso, o fato é que esse recurso lhes é hoje recusado. A solução que consiste em pegar na rua um parceiro de uma noite ou de uma hora — supondo-se que a mulher dotada de um forte temperamento e tendo superado todas as suas inibições a encare sem repugnância — é muito mais perigosa para ela do que para o homem. O risco de uma doença venérea é mais grave para ela, pelo fato de que cabe a ele tomar precauções para evitar a contaminação; e, por prudente que seja, nunca ela se sente plenamente segura contra a ameaça de um filho. Mas, principalmente nas relações entre desconhecidos — relações que se situam num plano brutal — a diferença de força física pesa muito. Um homem não tem muito a temer da mulher que leva para casa; basta-lhe um pouco de vigilância. O mesmo não acontece com uma mulher que introduz um homem em sua casa. Falaram-me de duas jovens mulheres que, recém-chegadas a Paris e ávidas de “ver a vida”, depois de uma farra tinham convidado dois sedutores cafetões de Montmartre para a ceia; viram-se pela manhã roubadas, brutalizadas e ameaçadas de chantagem. Mais significativo é o caso de uma mulher de mais ou menos quarenta anos, divorciada, que trabalhava duramente ao longo do dia para sustentar três filhos crescidos e os velhos pais. Ainda bela e atraente, não tinha absolutamente tempo para levar uma vida mundana, ser coquete, topar decentemente qualquer aventura que, aliás, a teria aborrecido. Entretanto, tinha sentidos exigentes; e julgava ter, como um homem, o direito de satisfazê-los. Certas noites ia perambular pelas ruas e dava um jeito de pegar um homem. Mas certa vez, depois de uma hora ou duas passadas numa moita do Bois de Boulogne, o amante não consentiu em deixá-la partir: queria saber seu nome, seu endereço, queria revê-la, amancebar-se com ela; como ela recusasse, surrou-a violentamente e só a abandonou toda machucada e aterrorizada. Quanto a arranjar um amante, como frequentemente o homem arranja uma amante, sustentando-a ou ajudando-a, a coisa só é possível às mulheres ricas. Algumas há que se acomodam com essa solução: pagando o homem, dele fazem um instrumento, o que lhes permite usá-lo com um abandono desdenhoso. Mas é preciso em geral que sejam idosas para dissociarem tão cruamente erotismo e sentimento, quando, como vimos, na adolescência feminina a união de ambos é tão profunda. Há numerosos homens que não aceitam nunca essa divisão entre a carne e a consciência. Com muito mais razão a maioria das mulheres não consentirá em encará-la. Há, de resto, nisso, uma mentira, a que elas são mais sensíveis do que o homem: o cliente que paga é também um instrumento, dele se serve o parceiro como de um ganha-pão. O orgulho viril mascara ao homem os equívocos do drama erótico: ele mente a si mesmo espontaneamente; mais facilmente humilhada, mais suscetível, a mulher é também mais lúcida; só conseguirá cegar-se à custa de uma má-fé mais astuciosa. Comprar um macho, supondo-se que tenha os meios de fazê-lo, não lhe parecerá geralmente satisfatório.

Não se trata somente, para a maioria das mulheres — como também dos homens — de satisfazer seus desejos e sim de manter, satisfazendo-os, sua dignidade de ser humano. Quando goza com a mulher, quando a faz gozar, o homem põe-se como o único sujeito: conquistador imperioso, doador generoso, ou ambas as coisas. Ela quer reciprocamente afirmar que escraviza seu parceiro a seu prazer, que o satisfaz plenamente com seus dons. Por isso, quando se impõe ao homem, ou pelos bens que lhe promete ou confiando na cortesia dele, ou ainda despertando, mediante certas manobras, o desejo dele em sua pura generalidade, ela se persuade de bom grado que o satisfaz. Graças a essa convicção proveitosa, ela pode solicitá-lo sem se sentir humilhada, já que afirma agir por generosidade. Por isso em Le Blé en herbe, a “dama de branco” que almeja as carícias de Phil, diz-lhe com altivez: “Só gosto dos mendigos e dos esfomeados.” Em verdade, arranja-se habilmente para que ele adote uma atitude de suplicante. Então, diz Colette, “ela se voltou apressadamente para o estreito e obscuro reino onde seu orgulho podia acreditar que a queixa é a confissão de desespero e onde as mendigas como ela bebem a ilusão da liberalidade”. Mme de Warens é o tipo dessas mulheres que escolhem amantes jovens ou infelizes, ou de condição inferior para dar a seus apetites a aparência da generosidade. Mas há também as intrépidas, que se dedicam aos homens mais robustos e que se encantam com os satisfazer, quando eles só cederam por cortesia ou terror.

Inversamente, se a mulher que pega o homem em sua armadilha quer imaginar que se entrega, a que se entrega pretende afirmar que possui. “Eu sou uma mulher que possui”, dizia-me um dia uma jovem jornalista. Em verdade, nessas coisas, salvo em caso de violação, ninguém possui realmente o outro; mas nisto a mulher mente a si mesma duplamente. Pois o fato é que o homem seduz muitas vezes pelo seu arrebatamento, sua agressividade, que obtém ativamente o consentimento de sua parceira. Salvo em casos excepcionais — entre outros o de Mme de Staël que já citei — assim não ocorre com a mulher: ela não pode fazer muito mais do que se oferecer; porque, em sua maioria, os homens se mostram severamente ciumentos de seu papel; querem despertar na mulher uma emoção singular, e não ser eleitos para satisfazer sua necessidade em sua generalidade; escolhidos, sentem-se explorados.474 “Uma mulher que não tem medo dos homens, amedronta-os”, dizia-me um jovem. E muitas vezes ouvi adultos declararem: “Tenho horror de que uma mulher tome a iniciativa.” Se a mulher se oferece muito ousadamente, o homem se afasta: ele faz questão de conquistar. A mulher não pode portanto possuir senão fazendo-se presa: é preciso que se torne uma coisa passiva, uma promessa de submissão. Conseguindo-o, pensará que efetuou voluntariamente essa conjuração mágica e se reencontrará como sujeito. Mas corre o risco de ser transformada em um objeto inútil pelo desdém do homem. Eis por que se sente tão profundamente humilhada se o homem recusa suas provocações. Este também se enraivece por vezes quando julga que foi enganado; entretanto, somente lhe aconteceu fracassar em um empreendimento, mais nada. Ao passo que a mulher consentiu em se fazer carne na emoção, na espera, na promessa: só podia ganhar perdendo-se; fica perdida. É preciso ser grosseiramente cega ou excepcionalmente lúcida para se conformar com semelhante derrota. E mesmo que a sedução vença, a vitória permanece equívoca; com efeito, segundo a opinião pública, o homem é que vence, que tem a mulher. Não se admite que ela possa, como o homem, assumir seus desejos: ela é a presa. Está bem-entendido que o homem integrou as forças específicas em sua individualidade: ao passo que a mulher é escrava da espécie.475 Representam-na por vezes como uma pura passividade: é uma “Maria, deita-te aí: somente o ônibus não te passou por cima”. Disponível, aberta, é um utensílio, cede facilmente ao feitiço da emoção, está fascinada pelo homem que a colhe como um fruto. Ora encaram-na como uma atividade alienada: tem um demônio que sapateia no seu interior, no fundo de sua vagina uma serpente ávida aguarda para se empanturrar com o esperma do macho. Em todo caso, recusam-se a pensar que seja simplesmente livre. Na França principalmente, confunde-se obstinadamente mulher livre com mulher fácil, a ideia de facilidade implicando uma ausência de resistência e de controle, uma falha, na própria negação da liberdade. A literatura feminina tenta combater esse preconceito: em Grisélidis, por exemplo, Clara Malraux insiste no fato de que sua heroína não cede a uma solicitação, mas realiza um ato que reivindica. Na América do Norte reconhece-se uma liberdade na atividade sexual da mulher, o que a favorece muito. Mas o desdém que manifestam na França, contra as “mulheres que dão”, os próprios homens que se beneficiam de seus favores, paralisa grande número de mulheres. Têm elas horror às representações que suscitariam, às palavras a que dariam pretexto.

Mesmo desprezando os boatos anônimos, a mulher experimenta, na relação com seu parceiro, dificuldades concretas; porque a opinião pública se encarna nele. Muitas vezes, ele considera o leito como o terreno em que deve afirmar sua agressiva superioridade. Ele quer possuir e não receber, não trocar mas arrebatar. Procura possuir a mulher além do que ela lhe dá; exige que o consentimento dela seja uma derrota, e as palavras que ela murmura sejam as confissões que lhe arranca; admitindo seu próprio prazer, ela reconhece sua escravidão. Quando Claudine desafia Renaud pela sua decisão rápida de lhe ceder, ele toma a iniciativa: apressa-se em violentá-la, quando ela ia oferecer-se; obriga-a a conservar os olhos abertos para contemplar, na vertigem deles, o seu triunfo. Assim também em Condition humaine, o autoritário Ferral obstina-se em acender a lâmpada que Valérie quer apagar. Orgulhosa, reivindicadora, é como adversária que a mulher enfrenta o homem; nessa luta acha-se muito menos bem-armada do que ele; primeiramente, ele tem a força física, e lhe é mais fácil impor suas vontades; vimos também que tensão e atividade se harmonizam com seu erotismo, ao passo que a mulher, recusando a passividade, destrói o feitiço que a conduz ao prazer; vimos, também, que em sua atitude e seus movimentos ela mima a dominação e não atinge o prazer; em sua maioria, as mulheres que sacrificam o seu orgulho tornam-se frígidas. Raros são os amantes que permitem a suas amantes que satisfaçam tendências autoritárias ou sádicas; e mais raras ainda as mulheres que tiram dessa docilidade uma plena satisfação erótica.

Há um caminho que parece muito menos espinhoso para a mulher: o do masoquismo. Quando durante o dia uma pessoa trabalha, luta, assume responsabilidades e riscos, é um descanso entregar-se, à noite, a caprichos poderosos. Amorosa ou ingênua, compraz-se a mulher muitas vezes em se aniquilar em proveito de uma vontade tirânica. Mas ainda assim é preciso que se sinta realmente dominada. Àquela que vive cotidianamente entre os homens não é fácil acreditar na supremacia incondicional dos machos. Citaram-me o caso de uma mulher não realmente masoquista, mas muito “feminina”, isto é, que apreciava profundamente o prazer da abdicação nos braços masculinos; tivera, desde os 17 anos, vários maridos e numerosos amantes, de quem tirava grandes alegrias; tendo levado a cabo uma empresa difícil, durante a qual comandara muitos homens, queixava-se de se ter tornado frígida: havia uma renúncia beata que se lhe tornara impossível, porque estava habituada a dominar os homens, porque o prestígio deles se dissipara. Quando a mulher começa a duvidar da superioridade dos homens, as pretensões deles só fazem diminuir a estima que poderia dedicar-lhes. Na cama, nos momentos em que o homem deseja mostrar-se mais ferozmente macho, pelo próprio fato de mimar a virilidade, ele se apresenta como infantil a olhos atentos: está apenas conjurando o velho complexo de castração, a sombra do pai ou qualquer outro fantasma. Não é sempre por orgulho que a amante recusa-se a ceder aos caprichos do amante: ela ambiciona ter de lidar com um adulto, que vive um momento real de sua vida, e não com um menino que conta histórias a si mesmo. A masoquista sente-se particularmente desiludida: uma complacência maternal, agastada ou indulgente, não é a abdicação com que sonha. Ou deverá contentar-se, ela também, com jogos irrisórios, fingindo acreditar-se dominada e escravizada, ou correrá atrás dos homens ditos “superiores”, na esperança de descobrir um senhor, ou se tornará frígida.

Vimos que é possível escapar às tentações do sadismo e do masoquismo quando os dois parceiros se reconhecem mutuamente como semelhantes; havendo no homem e na mulher um pouco de modéstia e alguma generosidade, as ideias de vitória e de derrota ficam abolidas: o ato de amor torna-se uma livre troca. Mas, paradoxalmente, é muito mais difícil à mulher do que ao homem reconhecer como seu semelhante um indivíduo do outro sexo. Precisamente porque a casta dos machos detém a superioridade, o homem pode votar uma estima afetuosa a muitas mulheres singulares: uma mulher é fácil de ser amada; ela tem antes de tudo o privilégio de introduzir o amante em um mundo diferente e que ele se compraz em explorar ao lado dela; ela intriga, diverte, pelo menos durante algum tempo; depois, pelo fato de ser sua situação limitada, subordinada, todas as suas qualidades se apresentam como conquistas, ao passo que seus erros são desculpáveis; Stendhal admira Mme de Rênal e Mme de Chasteller, apesar de terem preconceitos detestáveis; que uma mulher tenha ideias falsas, que seja pouco inteligente, pouco clarividente, pouco corajosa, não a julga responsável o homem: é vítima, pensa ele — com razão muitas vezes — de sua situação; ele sonha com o que ela poderia ter sido, com o que será talvez: pode-se dar-lhe um crédito, pode-se emprestar-lhe muito, porquanto não é nada de definido; por causa dessa ausência é que o amante se cansará depressa: mas dela provém o mistério, o encanto que o seduz e o inclina a uma ternura fácil. É muito menos fácil ter amizade por um homem: porque ele é o que se fez ser, sem apelo; é preciso amá-lo em sua presença e em sua verdade, não em suas promessas e possibilidades incertas; ele é responsável por suas condutas e suas ideias; não tem desculpa. Com ele, só há fraternidade se lhe aprovamos os atos, os fins, as opiniões; Julien pode amar uma legitimista; uma Lamiel não poderia amar um homem cujas ideias desprezasse. Mesmo disposta a fazer acordos, uma mulher terá dificuldade em adotar uma atitude indulgente. Porque o homem não lhe abre um verde paraíso de infância, porque ela o encontra neste mundo, que é o mundo comum a ambos: ele só traz a si próprio. Fechado em si, definido, decidido, favorece pouco os sonhos; quando fala é preciso escutá-lo; leva-se a sério; se não interessa, aborrece, sua presença pesa. Somente os muito jovens se deixam enfeitar com o maravilhoso fácil, pode-se buscar neles mistério e promessa, encontrar desculpas para eles, não os levar muito a sério: é uma das razões que os torna tão sedutores aos olhos das mulheres maduras. Só que, a maior parte das vezes, eles preferem as mulheres jovens. A mulher de trinta anos é empurrada para os homens adultos. E, provavelmente, entre eles encontrará alguns que não desiludirão sua estima nem sua amizade; mas terá sorte se não exibirem então alguma arrogância. O problema, quando ela deseja uma história, uma aventura, em que possa empenhar o coração e o corpo, está em encontrar um homem que possa considerar como um igual, sem que ele se olhe a si próprio como superior.

Vão me dizer que em geral as mulheres não fazem tanta história; elas pegam a oportunidade sem se pôr tantos problemas e depois se arranjam com seu orgulho e sua sensualidade. É verdade. Mas o que é verdade também é que enterram no fundo de seus corações muitas decepções, humilhações, saudades, rancores, de que não se encontram, em média, equivalente entre os homens. De um relacionamento que não deu exatamente certo, tira o homem quase sempre o benefício do prazer; ela pode muito bem não colher nenhum proveito; mesmo indiferente, ela se presta com polidez ao ato sexual, quando chega o momento decisivo; pode acontecer que o amante esteja impotente e ela sofrerá, por se ter comprometido em uma aventura irrisória; se não alcança a volúpia, é então que se sente ludibriada, enganada; se se satisfaz, desejará reter duradouramente o amante. Raramente é inteiramente sincera quando afirma encarar apenas uma aventura sem consequência, contando com o prazer, porque o prazer, longe de libertá-la, a prende; uma separação, ainda que dita amigável, a fere. É muito mais raro ouvir uma mulher falar amistosamente de um antigo amante do que um homem de suas amantes.

A natureza de seu erotismo, as dificuldades de uma vida sexual livre incitam a mulher à monogamia. Entretanto, ligação ou casamento conciliam-se muito menos facilmente para ela do que para o homem com uma carreira. Acontece que o amante ou o marido lhe peça que renuncie: ela hesita, como a Vagabonde de Colette, que deseja ardentemente um calor viril a seu lado, mas teme os entraves conjugais; se ela cede, ei-la novamente vassala; se recusa, ei-la condenada a uma solidão esterilizante. Hoje, o homem aceita geralmente que sua companheira conserve seu trabalho; os romances de Colette Yver, que nos mostram a jovem mulher acuada a sacrificar sua profissão para manter o sossego do lar são algo ultrapassados; a vida em comum de dois seres livres é para cada um deles um enriquecimento, e na ocupação de seu cônjuge cada qual encontra o penhor de sua própria independência; a mulher que se basta liberta o marido da escravidão conjugal que era a garantia da sua. Se o homem for de uma boa vontade escrupulosa, amantes e esposos chegam, dentro de uma generosidade sem exigências, a uma perfeita igualdade.476 É mesmo por vezes o homem que desempenha o papel de servidor dedicado; assim é que ao lado de George Eliot, Lewes criava a atmosfera propícia que a esposa cria habitualmente em volta do marido-suserano. Mas na maior parte do tempo é ainda a mulher que paga pela harmonia do lar. Parece natural ao homem que ela trate da casa, que assegure sozinha o cuidado e a educação das crianças. A própria mulher julga que, casando, assumiu encargos de que não a dispensa sua vida pessoal; ela não quer que o marido seja privado das vantagens que teria encontrado associando-se a “uma mulher de verdade”: quer ser elegante, boa dona de casa, mãe dedicada, como o são tradicionalmente as esposas. É uma tarefa que se torna facilmente extenuante. Ela a assume ao mesmo tempo por consideração para com seu parceiro e por fidelidade a si mesma: porque faz questão, já o vimos, de não falhar em seu destino de mulher. Será para o marido um duplo, ao mesmo tempo que será ela mesma; assumirá suas preocupações, participará de seus êxitos tanto quanto se interessará pela sua própria sorte e por vezes até mais. Educada no respeito à superioridade masculina, é possível que julgue ainda que cabe ao homem ocupar o primeiro lugar; por vezes teme também, o reivindicando, arruinar o lar; indecisa entre o desejo de se afirmar e o de se anular, fica dividida, dilacerada.

Há, entretanto, uma vantagem que a mulher pode tirar de sua própria inferioridade: como tem de início menos possibilidades do que o homem, não se sente a priori culpada em relação a ele; não lhe cabe compensar a injustiça social, não é solicitada por isso. Um homem de boa vontade sente-se obrigado a “poupar” as mulheres, já que é mais favorecido do que elas; ele se deixará acorrentar por escrúpulos, por piedade, arrisca-se a ser presa de mulheres que são “colantes” e “devoradoras”, por serem desarmadas. A mulher que conquista uma independência viril tem o grande privilégio de se relacionar sexualmente com indivíduos, eles próprios autônomos e ativos, que — geralmente — não desempenham em sua vida um papel de parasita, não a prendem por sua fraqueza e pela exigência de suas necessidades. Em verdade, são raras as mulheres que sabem criar uma livre relação com seu parceiro; forjam elas próprias as cadeias com que eles não almejam acorrentá-las: adotam para com eles a atitude da amorosa. Durante vinte anos de espera, de sonho, de esperança, a jovem acariciou o mito do herói libertador e salvador: a independência conquistada no trabalho não basta para abolir seu desejo de uma abdicação gloriosa. Seria preciso que ela tivesse sido educada exatamente como um rapaz477 para poder superar facilmente o narcisismo da adolescência: mas ela perpetua em sua vida de adulta esse culto do eu para o qual toda a sua mocidade a inclinou; faz de seus êxitos profissionais méritos com que enriquece sua imagem; tem necessidade de que um olhar vindo de cima revele e consagre seu valor. Mesmo sendo severa com os homens que avalia cotidianamente, não deixa de venerar o Homem e, se o encontra, mostra-se disposta a cair a seus pés. Fazer-se justificar por um deus, é mais fácil do que justificar-se por seu próprio esforço; o mundo incita-a a acreditar na possibilidade de uma salvação dada: ela escolhe acreditar nisso. Por vezes renuncia inteiramente a sua autonomia, não passa de uma amorosa; o mais das vezes tenta uma conciliação; mas o amor idólatra, o amor-abdicação é devastador: ocupa todos os pensamentos, todos os instantes, é obcecado, tirânico. Em caso de dissabores profissionais, a mulher busca apaixonadamente um refúgio no amor: seus fracassos traduzem-se por cenas e exigências que o amante é quem paga. Mas as penas do amor estão longe de contribuir para que redobre seu zelo profissional: geralmente, ela se irrita, ao contrário, com o gênero de vida que lhe interdita o verdadeiro caminho do grande amor. Uma mulher que trabalhava há dez anos numa revista política dirigida por mulheres, dizia-me que na redação se falava raramente de política e sem cessar de amor: uma queixava-se de que só a amavam pelo seu corpo, desprezando-lhe a bela inteligência; outra gemia porque só lhe apreciavam o espírito, sem nunca se interessarem por seus encantos carnais. Aqui também, para que uma mulher pudesse ser amorosa à maneira de um homem, isto é, sem pôr em causa seu próprio ser, em liberdade, seria preciso que se pensasse sua igual, que o fosse concretamente. Seria preciso que se empenhasse com a mesma decisão em seus empreendimentos, o que, como vamos ver, não é ainda frequente.

Há uma função feminina que atualmente é quase impossível assumir com toda liberdade, é a da maternidade; na Inglaterra, na América do Norte, a mulher pode pelo menos recusá-la à vontade, graças às práticas do controle de natalidade; vimos que na França ela é frequentemente acuada a abortos penosos e caros; vê-se muitas vezes com um filho que não queria e arruína sua vida profissional. Se esse encargo é pesado, é porque, inversamente, os costumes não autorizam a mulher a procriar quando lhe apetece: a mãe solteira escandaliza e, para o filho, um nascimento ilegítimo é um grave problema; é raro que se possa tornar-se mãe sem aceitar os grilhões do casamento ou sem decair. Se a ideia da inseminação artificial interessa tanto as mulheres, não é porque desejem evitar o ato sexual: é porque esperam que a maternidade livre venha a ser enfim admitida pela sociedade. Cumpre acrescentar que, por falta de creches, de jardins de infância convenientemente organizados, basta um filho para paralisar inteiramente a atividade da mulher; ela só pode continuar a trabalhar abandonando a criança aos pais, a amigos ou a criados. Tem que escolher entre a esterilidade, muitas vezes sentida como uma dolorosa frustração, e encargos dificilmente compatíveis com o exercício de uma carreira.

Assim, a mulher independente está hoje dividida entre seus interesses profissionais e as preocupações de sua vocação sexual; tem dificuldade em encontrar seu equilíbrio; se o assegura é à custa de concessões, de sacrifícios, de acrobacias que exigem dela uma perpétua tensão. Aí, muito mais do que nos dados fisiológicos é que cabe procurar a razão do nervosismo, da fragilidade que muitas vezes se observam nela. É difícil afirmar em que medida a constituição física da mulher representa em si um handicap. Entre outras coisas, perguntou-se muito tempo qual seria o obstáculo criado pela menstruação. As mulheres que se tornaram conhecidas por trabalhos ou ações pareciam dar-lhe pouca importância: terão alcançado seu êxito precisamente por causa da benignidade de suas perturbações mensais? Pode-se perguntar se não foi, inversamente, a escolha de uma vida ativa e ambiciosa que lhes conferiu esse privilégio: pois o interesse que a mulher presta a seus incômodos exaspera-os; as esportistas, as mulheres de ação sofrem menos do que as outras, porque superam seus sofrimentos. Estas também têm seguramente causas orgânicas e vi mulheres das mais enérgicas passarem 24 horas cada mês de cama às voltas com impiedosas torturas; mas seus empreendimentos nunca foram sustados. Estou convencida de que a maior parte dos incômodos e doenças que atingem as mulheres tem causas psicológicas: foi o que me disseram aliás certos ginecologistas. É por causa da tensão moral de que falei, por causa de todas as tarefas que assumem, das contradições em meio às quais se debatem, que as mulheres estão sem cessar estafadas, no limite de suas forças; isto não significa que seus males sejam imaginários: são reais e devoradores como a situação que exprimem. Mas a situação não depende do corpo, este é que depende dela. Assim, a saúde da mulher não prejudicará seu trabalho, quando a trabalhadora tiver na sociedade o lugar que deve ter; ao contrário, o trabalho ajudará poderosamente seu equilíbrio físico, evitando-lhe que dele se preocupe incessantemente.

Quando se julgam as realizações profissionais da mulher e quando a partir delas se pretende antecipar-lhe o futuro, é preciso não perder de vista esse conjunto de fatores. É no seio de uma situação atormentada, escravizada ainda aos encargos tradicionalmente implicados na feminilidade, que ela se empenha numa carreira. As circunstâncias objetivas tampouco lhe são favoráveis. É sempre difícil ser um recém-chegado que tenta abrir caminho através de uma sociedade hostil ou, pelo menos, desconfiada. Richard Wright mostrou, em Black Boy, a que ponto as ambições de um jovem negro nos Estados Unidos são barradas desde o início e que luta lhe cabe sustentar simplesmente para se erguer ao nível em que os problemas começam a apresentar-se aos brancos; os negros que vieram da África para a França co­nhecem também — em si mesmos como exteriormente — dificuldades análogas às que encontram as mulheres.

É primeiramente no período de aprendizagem que a mulher se encontra em estado de inferioridade: já o indiquei a propósito da jovem, mas é preciso voltar ao assunto com maior precisão. Durante seus estudos, durante os primeiros anos, tão decisivos, de sua carreira, é raro que a mulher aproveite francamente suas possibilidades: muitas sofrerão mais tarde as desvantagens de um mau início. Com efeito, é entre 18 e trinta anos que os conflitos aos quais já me referi atingem o máximo de intensidade: e é o momento em que o futuro profissional se decide. Quer a mulher viva com os pais, ou seja casada, raramente os que a cercam respeitarão seu esforço como respeitam o de um homem; vão lhe impor serviços, tarefas desagradáveis, vão lhe cercear a liberdade; ela própria ainda se acha profundamente marcada por sua educação, respeitosa dos valores afirmados pelos mais velhos, perseguida por seus sonhos de criança e de adolescente; dificilmente concilia a herança de seu passado com o interesse de seu futuro. Por vezes recusa sua feminilidade, hesita entre a castidade, a homossexualidade ou uma atitude provocante masculina, veste-se mal ou se fantasia: perde muito tempo e forças com desafios, comédias, cólera. Mais frequentemente quer, ao contrário, afirmá-la; é coquete, sai, namora, é amorosa, oscilando entre o masoquismo e a agressividade. De qualquer maneira, interroga-se, agita-se, dispersa-se. Pelo simples fato de se achar presa a preocupações estranhas, não se empenha totalmente na sua carreira: por isso tira menos proveito dela, é tentada a abandoná-la. Extremamente desmoralizante para a mulher que procura bastar-se, é a existência de outras mulheres pertencentes às mesmas categorias sociais, com uma situação inicial idêntica, com idênticas possibilidades e que vivem como parasitas; o homem pode ter ressentimento contra os privilegiados, mas é solidário com sua classe; em conjunto, os que partem nas mesmas condições alcançam mais ou menos o mesmo nível de vida; ao passo que pela mediação do homem, mulheres de igual condição têm destinos muito diversos. A amiga casada ou confortavelmente sustentada é uma tentação para a que deve assegurar sozinha o seu êxito; parece-lhe que se condena arbitrariamente a enveredar pelos caminhos mais difíceis: diante de cada obstáculo ela se pergunta se não seria melhor escolher outro caminho. “Quando penso que preciso arrancar tudo de meu cérebro!” dizia-me escandalizada uma estudantezinha sem fortuna. O homem obedece a uma necessidade imperiosa: incessantemente deve a mulher renovar inteiramente sua decisão; ela não avança fixando à sua frente um objetivo, mas sim deixando que o olhar gire em derredor; por isso, tímido e incerto tem o andar. Tanto mais que lhe parece — como já o disse — que quanto mais avança mais renuncia a suas outras possibilidades. Dedicada à literatura, ou à ação, desagradará aos homens em geral; ou humilhará o marido, o amante, com um êxito demasiado brilhante. Não somente se aplica, então, em se mostrar elegante, frívola, como também freia seu entusiasmo. A esperança de um dia se libertar da preocupação consigo mesma, o temor de dever renunciar, assumindo tal preocupação, a essa esperança, unem-se para impedi-la de se entregar, sem reticências, a seus estudos, a sua carreira.

Na medida em que a mulher quer ser mulher, sua condição independente cria nela um complexo de inferioridade; inversamente, sua feminilidade leva-a a duvidar de suas possibilidades profissionais. É este um dos pontos mais importantes. Vimos que meninas de 14 anos declaravam numa pesquisa: “Os meninos são melhores; trabalham mais facilmente.” A moça está convencida de que suas capacidades são limitadas. Pelo fato de pais e professores admitirem que o nível das meninas é inferior ao dos meninos, as alunas de bom grado o admitem igualmente; e efetivamente, apesar da identidade dos programas, sua cultura é, nos colégios, muito menos desenvolvida. Salvo algumas exceções, o conjunto de uma classe feminina de filosofia, por exemplo, situa-se nitidamente abaixo de uma classe de rapazes; numerosas alunas não pretendem continuar seus estudos, trabalham muito superficialmente e as outras sofrem da falta de emulação. Enquanto se trata de exames bastante fáceis, sua insuficiência não se faz muito sentir; mas atingindo os concursos sérios, a estudante toma consciência de suas falhas; atribui-as, então, não à mediocridade de sua formação e sim à injusta maldição que pesa sobre sua feminilidade; resignando-se a essa desigualdade, ela a agrava; persuade-se de que suas possibilidades de êxito não podem residir senão em sua paciência, sua aplicação; resolve economizar avaramente suas forças: é um cálculo lamentável. A atitude utilitária é nefasta, principalmente nos estudos e profissões que reclamam um pouco de invenção, de originalidade, pequenos achados. Conversas, leituras à margem dos programas, um passeio durante o qual o espírito devaneia livremente podem ser bem mais úteis à tradução de um texto grego do que a morna compilação de densas sintaxes. Esmagada pelo respeito às autoridades e o peso da erudição, o olhar cerceado por antolhos, a estudante demasiado conscienciosa mata em si o senso crítico e a própria inteligência. Sua obstinação metódica engendra tensão e tédio: nas classes em que as colegiais preparam o concurso de Sèvres reina uma atmosfera sufocante que desanima todas as individualidades um pouco vivas. Criando para si mesma uma prisão, a candidata só almeja evadir-se; logo que fecha o livro pensa em mil outros assuntos. Não conhece esses momentos fecundos em que estudo e divertimentos se confundem, em que as aventuras do espírito adquirem um calor vivo. Exaurida pela ingratidão das tarefas, sente-se cada vez mais inapta para levá-las a cabo. Lembro-me de uma estudante de agrégation que dizia, no tempo em que havia em filosofia um concurso comum para homens e mulheres: “Os rapazes podem consegui-lo em um ou dois anos; a nós são necessários pelo menos quatro.” E outra, a quem indicavam a leitura de uma obra sobre Kant, autor incluído no programa, dizia: “É um livro difícil demais; é um livro para normaliens!” Parecia imaginar que as mulheres podiam passar no concurso com desconto; isso significava — já antes de começar — abandonar efetivamente aos homens todas as possibilidades de êxito.

Em consequência desse derrotismo, a mulher acomoda-se facilmente com um êxito medíocre; não ousa visar ao alto. Abordando sua profissão com uma formação superficial, coloca, desde logo, um limite a suas ambições. Muitas vezes, o fato de ela própria ganhar sua vida já lhe parece um mérito suficiente; teria podido, como tantas outras, confiar seu destino a um homem; para continuar a querer sua independência, ela precisa de um esforço de que se orgulha, mas que a esgota. Parece-lhe ter feito bastante quando decide fazer alguma coisa. “Para uma mulher já não é tão mal”, pensa. Uma mulher que exercia uma profissão insólita dizia: “Se fosse homem, eu me sentiria no dever de alcançar os primeiros lugares, mas sou a única mulher da França que ocupa semelhante cargo; é suficiente para mim.” Há prudência nessa modéstia. A mulher tem medo de fracassar indo adiante. Cumpre dizer que se sente perturbada, com razão, à ideia de que não confiam nela. De maneira geral, a casta superior é hostil aos arrivistas da classe inferior: brancos não irão consultar um médico negro, nem os homens uma doutora; e os indivíduos da classe inferior, imbuídos do sentimento de sua inferioridade específica, e frequentemente cheios de rancor contra quem venceu o destino, preferirão voltar-se também para os senhores; as mulheres particularmente, em sua maioria, cristalizadas em sua adoração pelo homem, buscam-no avidamente no médico, no advogado, no chefe de escritório etc. Nem homens nem mulheres gostam de se achar sob as ordens de uma mulher. Seus superiores, ainda que a estimem, terão sempre por ela um pouco de condescendência; ser mulher é, senão um defeito, pelo menos uma singularidade. A mulher deve incessantemente conquistar uma confiança que não lhe é de início concedida: no princípio ela é suspeita, precisa dar provas de si. Se tem valor, afirmam, ela as dará. Mas o valor não é uma essência dada: é o resultado de um desenvolvimento feliz. Sentir pesar sobre si um preconceito desfavorável só muito raramente ajuda a vencê-lo. O complexo de inferioridade inicial acarreta, como é geralmente o caso, uma reação de defesa que é uma afetação exagerada de autoridade. A maior parte das médicas, por exemplo, tem-na demasiado ou pouco demais. Se permanecem naturais, não intimidam, porque o conjunto de sua vida as incita antes a seduzir do que a mandar; o doente que gosta de ser dominado ficará desiludido com conselhos dados com simplicidade; consciente do fato, a doutora arvora uma voz grave e um tom seco; mas não possui, então, a afável bonomia que seduz no médico seguro de si. O homem tem o hábito de se impor; seus clientes acreditam em sua competência; por ser natural, impressiona sempre. A mulher não inspira o mesmo sentimento de segurança; torna-se afetada, exagera, faz demais. Nos negócios, na administração, mostra-se escrupulosa, minuciosa, facilmente agressiva. Como em seus estudos, carece de desenvoltura, de imaginação, de audácia. Crispa-se para vencer. Sua ação é uma sequência de desafios e de afirmações abstratas de si mesma. É esse o maior defeito que engendra a falta de segurança: o sujeito não pode esquecer de si mesmo. Não visa generosamente a um fim: procura dar as provas de valor que dele exigem. Lançando-se ousadamente para os fins, o indivíduo arrisca-se a decepções; mas alcança também resultados inesperados; a prudência condena à mediocridade. Encontra-se raramente na mulher um gosto pela aventura, pela experiência gratuita, uma curiosidade desinteressada; ela procura “fazer carreira” como outros constroem uma felicidade; permanece dominada, investida pelo universo masculino, não tem a audácia de ultrapassar seus limites, não se perde com paixão em seus projetos; considera ainda sua vida como um empreendimento imanente: não visa a um objeto e sim, através de um objeto, ao seu êxito subjetivo. É essa uma atitude muito impressionante, entre outras, nas norte-americanas; agrada-lhe ter um job e provar a si mesmas que são capazes de executá-lo corretamente: mas não se apaixonam pelo conteúdo de suas tarefas. Consequentemente, a mulher tem tendência para valorizar demasiado pequenos fracassos e êxitos modestos; intermitentemente enche-se de vaidade ou desanima; quando o êxito é esperado, a pessoa acolhe-o com simplicidade, mas ele torna-se um triunfo embriagante se ela duvida obtê-lo; nisto está a desculpa das mulheres que se enchem de importância e se enfeitam com ostentação com suas mais insignificantes realizações. Olham incessantemente para trás a fim de medir o caminho percorrido: isto destrói-lhes o entusiasmo. Por esse meio, poderão realizar carreiras honrosas mas não grandes ações. É pre­ciso acrescentar que muitos homens só sabem igualmente construir destinos medíocres. É somente em relação aos melhores dentre eles — salvo raras exceções — que a mulher se apresenta a nós como ainda a reboque. As razões que dei explicam-no bastante e não hipotecam em nada o futuro. O que falta essencialmente à mulher de hoje, para fazer grandes coisas, é o esquecimento de si: para se esquecer é preciso primeiramente que o indivíduo esteja solidamente certo, desde logo, de que se encontrou. Recém-chegada ao mundo dos homens, e malsustentada por eles, a mulher está ainda ocupada em se encontrar.

Há uma categoria de mulheres a que estas observações não se aplicam pelo fato de que, longe de lhe prejudicar a feminilidade, sua carreira a fortalece; trata-se da categoria das mulheres que procuram superar pela expressão artística o próprio dado que constituem: atrizes, dançarinas, cantoras. Durante três séculos, foram elas, por assim dizer, as únicas que tiveram uma independência concreta no seio da sociedade e nesta ainda ocupam atualmente um lugar privilegiado. Outrora as artistas eram amaldiçoadas pela Igreja; essa severidade exagerada sempre lhes conferiu uma grande liberdade de costumes; beiram a galanteria, e como as cortesãs, passam grande parte de seus dias na companhia dos homens; mas, ganhando a vida por seu próprio esforço, encontrando no trabalho um sentido para sua existência, escapam a seu jugo. A grande vantagem de que gozam está em que seus êxitos profissionais contribuem — como no caso dos homens — para sua valorização sexual; realizando-se como seres humanos, realizam-se como mulheres: não são dolorosamente atormentadas por aspirações contraditórias; ao contrário, encontram em sua profissão uma justificação de seu narcisismo: toalete, cuidar da beleza, encantar, fazem parte de seus deveres profissionais. Para uma mulher apaixonada por sua imagem, é uma grande satisfação fazer alguma coisa exibindo simplesmente o que é; e essa exibição reclama ao mesmo tempo bastante artifício e estudo para se apresentar, na expressão de Georgette Leblanc, como um sucedâneo da ação. Uma grande atriz desejará mais alto ainda: ultrapassará o dado pela maneira pela qual o exprime, será verdadeiramente uma artista, um criador que dá sentido à sua vida emprestando significação ao mundo.

Mas esses raros privilégios também escondem perigos: em vez de integrar em sua vida artística suas complacências narcisistas e a liberdade sexual que lhe é concedida, a atriz mergulha muitas vezes no culto de si ou na galanteria; já falei dessas “pseudoartistas” que procuram tão somente “criar um nome” no cinema ou no teatro, nome que representa um capital a ser explorado nos braços masculinos; as comodidades de um apoio viril são muito tentadoras, comparadas com os riscos de uma carreira e a severidade que implica todo verdadeiro trabalho. O desejo de um destino feminino — marido, lar, filhos — e o encantamento do amor nem sempre se conciliam com a vontade de vencer. Mas, principalmente, a admiração que experimenta por seu eu limita em muitos casos o talento da atriz; ela se ilude acerca do valor de sua simples presença, a ponto de um trabalho sério lhe parecer inútil; faz questão, antes de tudo, de pôr em evidência sua própria figura e a esse cabotinismo sacrifica o personagem que interpreta; não tem, ela tampouco, a generosidade de se esquecer, o que lhe tira a possibilidade de se superar: raras são as Rachel, as Duse que vencem esse obstáculo e fazem de sua pessoa o instrumento de sua arte, em vez de ver na arte um servidor de seu eu. Em sua vida privada, entretanto, a cabotina exagerará todos os seus defeitos narcisistas: se mostrará vaidosa, suscetível, artista, considerará o mundo inteiro um palco.

 

Hoje as artes de expressão não são as únicas que se propõem às mulheres; muitas delas tentam atividades criadoras. A situação da mulher predispõe-na a procurar uma salvação na literatura e na arte. Vivendo à margem do mundo masculino, não o apreende em sua figura universal e sim através de uma visão singular; ele é para ela, não um conjunto de utensílios e conceitos e sim uma fonte de sensações e emoções; ela se interessa pelas qualidades das coisas no que têm de gratuito e de secreto; adotando uma atitude de negação, de recusa, não mergulha no real: protesta contra ele com palavras; busca, através da Natureza, a imagem de sua alma, entrega-se a devaneios, quer atingir seu ser; está destinada ao fracasso; só o pode recuperar na região do imaginário. Para não deixar afundar no vazio uma vida interior que não serve para nada, para se afirmar contra o dado que suporta com revolta, para criar um mundo diferente desse em que não consegue alcançar-se, ela tem necessidade de se exprimir. Por isso é sabido que é loquaz e escrevinhadora; expande-se em conversas, cartas, diários íntimos. Basta que tenha ambição e ei-la redigindo memórias, transpondo sua biografia para um romance, exprimindo seus sentimentos em poemas. Goza de amplos lazeres que favorecem tais atividades.

Mas essas mesmas circunstâncias que orientam a mulher para a criação constituem também obstáculos que ela será constantemente incapaz de superar. Quando se decide a pintar ou a escrever unicamente com o fito de encher o vazio de seus dias, quadros e ensaios serão considerados como “trabalhos de senhora”; não lhes consagrará nem mais tempo nem mais cuidado, e terão mais ou menos o mesmo valor. É muitas vezes no momento da menopausa que a mulher, para compensar as falhas de sua existência, se volta para o pincel ou para a pena: é tarde demais; carecendo de uma formação séria, não passará nunca de amadora. Mesmo se começa bastante cedo, é raro que encare a arte como um trabalho sério; habituada ao ócio, nunca tendo sentido na vida a austera necessidade de uma disciplina, não será capaz de um esforço contínuo e perseverante, não se empenhará em adquirir uma sólida técnica; não lhe apetecem as tentativas ingratas, solitárias, do trabalho que não se mostra, que cumpre destruir cem vezes e recomeçar; e como, desde a infância, ensinando-lhe a agradar ensinaram-lhe a trapacear, ela espera resolver o assunto com alguns ardis. É o que confessa Maria Bashkirtseff: “Sim, não me esforço por pintar. Observei-me hoje. Trapaceio...” De bom grado a mulher brinca de trabalhar, mas não trabalha; acreditando nas virtudes mágicas da passividade, confunde conjuras e atos, gestos simbólicos e condutas eficientes; fantasia-se de aluna de Belas-Artes, arma-se com seu arsenal de pincéis; postada diante do cavalete, seu olhar vai da tela branca ao espelho; mas o ramalhete de flores, a compoteira de maçãs, não se inscrevem sozinhos na tela. Sentada diante de sua escrivaninha, ruminando vagas histórias, a mulher outorga-se um álibi tranquilo, imaginando que é escritora: mas é preciso chegar a traçar sinais na folha branca, é preciso que tenham um sentido para os outros. Então, descobre-se a impostura. Para agradar basta criar miragens, mas uma obra de arte não é uma miragem, é um objeto sólido; para construí-la cumpre conhecer seu ofício. Não é somente graças a seus dons ou a seu temperamento que Colette se tornou uma grande escritora; sua pena foi muitas vezes seu ganha-pão e ela exigiu dessa pena um trabalho cuidadoso, como um bom artesão exige de sua ferramenta: de Claudine a Naissance du jour, a amadora tornou-se profissional: o caminho percorrido demonstra sobejamente os benefícios de um aprendizado severo. Em sua maioria, entretanto, as mulheres não compreendem os problemas que apresenta seu desejo de comunicação: e é o que explica em grande parte sua preguiça. Elas sempre se consideraram como dadas; acreditam que seus méritos vêm de uma graça que as habita e não imaginam que o valor possa ser conquistado; para seduzir, sabem apenas manifestar-se: seu encanto age ou não, elas não têm nenhum domínio sobre seu êxito ou seu fracasso; supõem por isso, de modo análogo, que para se exprimir basta a pessoa mostrar o que é; em vez de elaborar uma obra mediante um trabalho refletido, confiam em sua espontaneidade; escrever ou sorrir é para elas a mesma coisa: tentam a sorte, o êxito virá ou não. Seguras de si, confiam em que o livro ou o quadro se fará sem esforço; tímidas, a menor crítica as desanima; ignoram que o erro pode abrir o caminho do progresso, encaram-no como uma catástrofe irreparável tal qual um defeito físico. Eis por que se mostram de uma suscetibilidade que lhes é nefasta: só reconhecem seus erros com irritação e desânimo, em lugar de tirar deles lições fecundas. Infelizmente a espontaneidade não é uma conduta tão simples como parece: o paradoxo do lugar-comum — como o explica Paulhan em Fleurs de Tarbes — está em que se confunde muitas vezes com a tradução imediata da impressão subjetiva; de modo que, no momento em que a mulher, expressando, sem levar em consideração outrem, a imagem que nela se forma, se acredita a mais singular, não faz senão reinventar um clichê banal; se lhe dizem isto, ela se espanta, fica despeitada e larga a pena; não percebe que o público lê com os olhos e o pensamento dele é que um epíteto novo pode despertar em sua memória muitas recordações degastadas; é por certo um dom precioso saber pescar em si, para trazê-las à tona da linguagem, impressões vivas; admira-se em Colette uma espontaneidade que não se encontra em nenhum escritor masculino. Mas — embora os dois termos pareçam contraditórios — trata-se nela de uma espontaneidade refletida: ela recusa certas soluções para só aceitar outras, de caso pensado; o amador — em vez de utilizar as palavras como uma relação interindividual, um apelo ao outro — nelas vê a revelação direta de sua sensibilidade; parece-lhe que escolher, rasurar, é repudiar uma parte de si; nada quer sacrificar de si porque se compraz no que é e ao mesmo tempo porque não espera tornar-se outro. Sua vaidade estéril vem de que ama a si mesma sem ousar construir-se.

Por isso é que da legião de mulheres que tentam bulir com as artes e as letras, bem poucas perseveram; mesmo as que superam esse primeiro obstáculo permanecerão muitas vezes divididas entre seu narcisismo e um complexo de inferioridade. Não saber esquecer de si mesma é um defeito que lhes pesará mais fortemente do que em qualquer outra carreira; se seu objetivo essencial é uma abstrata afirmação de si, a satisfação formal do êxito, não se entregarão à contemplação do mundo: serão incapazes de criá-lo de novo. Maria Bashkirtseff resolveu pintar porque queria tornar-se célebre; a obsessão da glória interpõe-se entre a realidade e ela; na verdade, não gosta de pintar: a arte é apenas um meio; não são seus sonhos ambiciosos e vazios que lhe desvendarão o sentido de uma cor ou de um rosto. Em lugar de se entregar generosamente à obra que empreende, a mulher, muito frequentemente, considera-a um simples ornamento de sua vida; o livro e o quadro não passam de um intermediário inessencial, permitindo-lhe exibir publicamente esta realidade essencial: sua própria pessoa. Na verdade, é sua pessoa o principal — por vezes o único — assunto que a interessa: Mme Vigée Lebrun não se cansa de fixar na tela sua sorridente maternidade. Mesmo falando de temas gerais, a mulher que escreve ainda falará de si: não podemos ler certas crônicas teatrais sem ficarmos informados da estatura e da corpulência do autor, da cor de seus cabelos, das particularidades de seu caráter. Sem dúvida o eu nem sempre é odioso. Poucos livros são mais apaixonantes do que certas confissões: mas é preciso que sejam sinceras e que o autor tenha alguma coisa a confessar. O narcisismo da mulher empobrece-a, ao invés de enriquecê-la: à força de não fazer outra coisa senão contemplar-se, ela se aniquila; até o amor que dedica a si mesma se estereotipa: ela não revela em seus escritos sua experiência autêntica e sim um ídolo imaginário construído com clichês. Não caberia censurá-la por se projetar em seus romances, como o fizeram Benjamin Constant, Stendhal; mas a desgraça está em que muitas vezes ela vê sua história como uma fantasia tola; a jovem mascara com grande reforço de fantasia a realidade que a assusta pela sua crueza: é pena, que uma vez adulta ainda envolva o mundo, seus personagens e a si mesma em brumas poéticas. Quando sob essa fantasia a realidade é vislumbrada, obtêm-se, por vezes, resultados encantadores; mas também, ao lado de Poussière ou de La Nymphe au coeur fidèle, quantos romances de evasão insossos e soporíficos!

É natural que a mulher tente fugir deste mundo, em que frequentemente se sente menosprezada e incompreendida; o lamentável é que não ouse então os voos audaciosos de um Gérard de Nerval, de um Poe. Há muitas razões que desculpam sua timidez. Agradar é sua maior preocupação; e muitas vezes ela já tem medo, pelo simples fato de escrever, de desagradar como mulher: a palavra bas-bleu,478 embora um tanto gasta, desperta ainda ressonâncias desagradáveis; ela não tem coragem de desagradar, também como escritora. O escritor original enquanto não morre é sempre escandaloso; a novidade inquieta e indispõe; a mulher ainda se acha espantada e lisonjeada por ser admitida no mundo do pensamento, da arte, que é um mundo masculino: nele mantém-se bem-comportada; não ousa perturbar, explorar, explodir; parece-lhe que deve fazer com que perdoem suas pretensões literárias por sua modéstia, seu bom gosto; aposta nos valores seguros do conformismo; introduz na literatura somente essa nota pessoal que se espera dela: lembra que é mulher com alguma graça, alguns requebros e preciosismos bem-escolhidos; assim é que sobressairá redigindo best-sellers; mas não se deve contar com ela para se aventurar por caminhos inéditos. Não porque as mulheres, em suas condutas, em seus sentimentos, careçam de originalidade: algumas há tão singulares que cumpre encerrá-las; no conjunto, muitas delas são mais barrocas, mais excêntricas do que os homens, cujas disciplinas recusam. Mas é em sua vida, sua correspondência, sua conversa que revelam seu gênio estranho; se tentam escrever, sentem-se esmagadas pelo universo da cultura, por ser um universo de homens; não fazem senão balbuciar. Inversamente, a mulher que escolhe raciocinar, exprimir-se segundo as técnicas masculinas, fará questão de abafar uma singularidade de que desconfia; como a estudante, será facilmente aplicada e pedante; imitará a seriedade, o vigor viril. Poderá tornar-se uma excelente teórica, poderá adquirir um sólido talento; mas terá imposto a si mesma o repúdio de tudo o que nela havia de “diferente”. Há mulheres loucas e mulheres de talento: nenhuma tem essa loucura no talento, que chamam gênio.

Foi essa modéstia sensata que antes de tudo definiu até agora os limites do talento feminino. Muitas mulheres frustraram — e o fazem cada vez mais — os ardis do narcisismo e do falso maravilhoso, mas nenhuma desprezou toda prudência para tentar emergir além do mundo dado. Há primeiramente, bem entendido, numerosas mulheres que aceitam a própria sociedade tal qual é; são, por excelência, as que celebram a burguesia, porquanto representam, nessa classe ameaçada, o elemento mais conservador; com adjetivos escolhidos, evocam os requintes de uma civilização dita da “qualidade”; exaltam o ideal burguês da felicidade e fantasiam com as cores da poesia os interesses de sua classe; orquestram a mistificação destinada a persuadir as mulheres a “ficarem mulheres”: casas velhas, parques e hortas, avós pitorescas, crianças espertas, lixívia, geleias, festas familiares, toaletes, salões, bailes, esposas dolorosas mas exemplares, beleza da dedicação e do sacrifício, pequenas penas e grandes alegrias do amor conjugal, sonhos de mocidade, resignação madura, todos esses temas foram explorados até o fim pelas romancistas da Inglaterra, da França, dos Estados Unidos, do Canadá e da Escandinávia; com isso ganharam glória e dinheiro, mas não enriqueceram por certo nossa visão do mundo. Muito mais interessantes são as revoltadas que acusaram essa sociedade injusta; uma literatura de reivindicação pode engendrar obras fortes e sinceras; George Eliot extraiu de sua revolta uma visão ao mesmo tempo minuciosa e dramática da Inglaterra vitoriana; entretanto, como Virgínia Woolf o observa, Jane Austen, as irmãs Brontë, George Eliot tiveram de despender negativamente tanta energia, para libertar-se das pressões exteriores, que chegam algo ofegantes a esse ponto de onde partem os escritores masculinos de grande envergadura; não lhes sobram mais forças suficientes para aproveitarem sua vitória e romperem todas as amarras: nelas não se encontra, por exemplo, a desenvoltura de um Stendhal, nem sua tranquila sinceridade. Não tiveram tampouco a riqueza de experiência de um Dostoiewsky, de um Tolstoi: eis por que o belo livro que é Middlemarch não se iguala a Guerra e paz; O morro dos ventos uivantes apesar de sua grandeza, não tem o alcance de Os irmãos Karamazov. Hoje, as mulheres já têm menos dificuldades em se afirmar; mas não superaram ainda inteiramente a especificação milenar que as confina em sua feminilidade. A lucidez, por exemplo, é uma conquista de que se orgulham com razão, mas com que se satisfazem um pouco depressa demais. O fato é que a mulher tradicional é uma consciência mistificada e um instrumento de mistificação; tenta dissimular a si mesma sua dependência, o que é uma maneira de nela consentir; denunciar essa dependência já é uma libertação; contra as humilhações, contra a vergonha, o cinismo é uma defesa: é o esboço de uma assunção. Querendo-se lúcidas, as escritoras prestam o maior serviço à causa da mulher; mas — geralmente sem o perceber — permanecem demasiado apegadas a servir essa causa para adotar perante o universo essa atitude desinteressada que abre os mais vastos horizontes. Acreditam ter feito bastante quando afastam os véus de ilusão e de mentiras: entretanto, essa audácia negativa deixa-nos ainda diante de um enigma, pois a própria verdade é ambiguidade, abismo, mistério: depois de lhe ter indicado a presença, seria necessário pensá-la, recriá-la. Não se iludir já é alguma coisa, mas é a partir daí que tudo começa; a mulher esgota sua coragem dissipando miragens e detém-se assustada no limiar da realidade. Eis por que há, por exemplo, autobiografias femininas que são sinceras e atraentes; mas nenhuma se pode comparar a Confessions ou a Souvenirs d’egotisme. Estamos ainda muito preocupadas em ver com clareza para procurar outras trevas além dessa claridade.

“As mulheres não ultrapassam nunca o pretexto”, dizia-me um escritor. É assaz verdadeiro. Ainda muito encantadas por terem recebido a permissão de explorar este mundo, fazem o inventário dele sem procurar descobrir-lhe o sentido. Onde por vezes elas brilham é na observação do que é dado: são repórteres notáveis; nenhum jornalista masculino sobrepujou os testemunhos de Andrée Viollis sobre a Indochina e a Índia. Elas sabem descrever atmosferas, personagens, indicar relações sutis entre estes, fazer-nos participar dos movimentos secretos de suas almas: Willa Cather, Edith Wharton, Dorothy Parker, Katherine Mansfield evocaram de maneira aguda e matizada indivíduos, climas e civilizações. É raro que consigam criar heróis masculinos tão convincentes quanto Heathcliff: no homem não apreendem, por assim dizer, senão o macho; mas descreveram, muitas vezes com felicidade, sua vida interior, sua experiência, seu universo; apegadas à substância secreta dos objetos, fascinadas pela singularidade de suas próprias sensações, elas entregam sua experiência ainda quente através de adjetivos saborosos, de imagens carnais: seu vocabulário é, em geral, mais notável do que sua sintaxe, porque se interessam mais pelas coisas do que pelas relações destas entre si; não visam a uma elegância abstrata mas, em compensação, suas palavras falam aos sentidos. Um dos domínios que exploraram com mais amor é o da Natureza; para a moça, para a mulher que ainda não abdicou de tudo, a Natureza representa o que a própria mulher representa para o homem: ela mesma é sua negação, um reino e um lugar de exílio: ela é tudo sob a figura do outro. É falando das charnecas ou das hortas que a romancista nos revela mais intimamente sua experiência e seus sonhos. Muitas há que encerram os milagres da seiva e das estações em vasos, em canteiros; outras, sem aprisionar plantas e bichos, tentam, entretanto, apropriar-se deles pelo amor atento que lhes dedicam: Colette, por exemplo, ou K. Mansfield. Mais raras são as que abordam a Natureza em sua liberdade inumana, que tentam decifrar-lhe as significações estranhas e que se perdem a fim de se unir a essa outra presença. Por esses caminhos, que Rousseau inventou, somente uma Emily Brontë, uma Virgínia Woolf e por vezes uma Mary Webb se aventuram. Com mais razão podemos contar nos dedos as mulheres que ultrapassaram o dado à procura de sua dimensão secreta: Emily Brontë interrogou a morte, V. Woolf a vida, e K. Mansfield por vezes — não muitas — a contingência cotidiana e o sofrimento. Nenhuma mulher escreveu o Processo, Moby Dick, Ulisses, ou Os sete pilares da sabedoria. Elas não contestam a condição humana porque mal começam a poder assumi-la integralmente. É o que explica que suas obras careçam geralmente de ressonâncias metafísicas e também de humor negro; elas não põem o mundo entre parênteses, não lhe fazem perguntas, não lhe denunciam as contradições: levam-no a sério. O fato é, de resto, que, em sua maioria, os homens conhecem as mesmas limitações; é quando a comparamos com os raros artistas que merecem ser chamados “grandes” que a mulher se apresenta como medíocre. Não é um destino que a limita: pode-se compreender facilmente por que não lhe foi dado — por que não lhe será dado talvez durante muito tempo ainda — atingir os mais altos cimos.

A arte, a literatura, a filosofia são tentativas de fundar de novo o mundo sobre uma liberdade humana: a do criador. É preciso, primeiramente, se colocar sem equívoco como uma liberdade, para alimentar tal pretensão. As restrições que a educação e os costumes impõem à mulher limitam seu domínio sobre o universo. Quando o combate para conquistar um lugar neste mundo é demasiado rude, não se pode pensar em dele sair; ora, é preciso primeiramente emergir dele numa soberana solidão, se se quer tentar reapreendê-lo: o que falta primeiramente à mulher é fazer, na angústia e no orgulho, o aprendizado de seu desamparo e de sua transcendência.

 

O que tenho vontade, escreve Maria Bashkirtseff, é de ter liberdade de passear sozinha, de ir e vir, de sentar nos bancos do Jardim das Tulherias. Eis a liberdade sem a qual não se pode tornar-se um verdadeiro artista. Acreditais que se aproveita o que se vê quando se está acompanhado ou quando, para ir ao Louvre, é preciso esperar o carro, a dama de companhia, a família!... Eis a liberdade que falta e sem a qual não se pode chegar seriamente a ser alguma coisa. O Pensamento se acorrenta em consequência desse embaraço estúpido e incessante... Isso basta para que as asas se fechem. É uma das grandes razões pelas quais não, há mulheres artistas.

 

Com efeito, para tornar-se um criador não basta cultivar-se, isto é, integrar espetáculos e conhecimentos na vida; é preciso que a cultura seja apreendida através do livre movimento de uma transcendência; é preciso que o espírito, com todas as suas riquezas, se projete num céu vazio que lhe cabe povoar; mas se mil laços tênues o amarram à terra, desfaz-se o seu impulso. Hoje, sem dúvida, a jovem sai sozinha e pode passear pelas Tulherias; mas já disse quanto a rua lhe é hostil; por toda parte olhos e mãos a vigiam; se vagabundeia irrefletidamente, com o pensamento à solta, se acende um cigarro no terraço de um café, se vai só ao cinema, um incidente desagradável não tarda; é preciso que inspire respeito pela sua aparência, pela sua maneira de vestir-se: essa preocupação prega-a ao solo, encerra-a em si mesma. “As asas se fecham.” Com 18 anos, T. E. Lawrence realiza sozinho uma grande viagem de bicicleta através da França; não permitirão a uma moça lançar-se em semelhante aventura; menos ainda lhe será possível, como o fez Lawrence um ano depois, aventurar-se a pé num país semideserto e perigoso. Entretanto, tais experiências têm um alcance incalculável; é então que, na embriaguez da liberdade e da descoberta, o indivíduo aprende a olhar a terra inteira como seu feudo. Já a mulher se acha inteiramente privada das lições da violência; disse a que ponto sua fraqueza física a inclina à passividade; quando um rapaz resolve uma luta a socos, sente que pode confiar em si, no cuidado de si mesmo. Seria preciso pelo menos que, em compensação, a iniciativa do esporte, da aventura, o orgulho do obstáculo vencido fossem permitidos à jovem. Mas não. Ela pode sentir-se solitária no seio do mundo; nunca se ergue em face dele, única e soberana. Tudo a incita a deixar-se investir, dominar por existências alheias; e no amor, particularmente, ela se renega, ao invés de se afirmar. Neste sentido, tristeza ou desgraça física são muitas vezes provações fecundas: foi seu isolamento que permitiu a Emily Brontë escrever um livro forte e alucinado; em face da Natureza, da morte, do destino, não esperava socorro senão de si mesma. Rosa Luxemburgo era feia; nunca se viu tentada a absorver-se no culto de sua própria imagem, a fazer-se objeto, presa e armadilha: desde sua mocidade foi inteiramente espírito e liberdade. Mesmo então é raro que a mulher assuma plenamente o angustiante diálogo com o mundo dado. As pressões que a cercam e toda a tradição que pesa sobre ela impedem que se sinta responsável pelo universo: eis a razão profunda de sua mediocridade.

Os homens que chamamos grandes são os que, de uma maneira ou de outra, puseram sobre os ombros o peso do mundo: saíram-se mais ou menos bem da tarefa, conseguiram recriá-lo ou soçobraram; mas primeiramente assumiram o enorme fardo. É o que uma mulher jamais fez, o que nenhuma pôde jamais fazer. Para encarar o universo como seu, para se julgar culpada de seus erros e vangloriar-se de seus progressos, é preciso pertencer à casta dos privilegiados; é somente a esses, que lhe detêm os comandos, que cabe justificá-lo, modificando-o, pensando-o, desvendando-o; só eles podem reconhecer-se nele e tentar imprimir-lhe sua marca. É no homem e não na mulher que até aqui se pôde encarnar o Homem. Ora, os indivíduos que nos parecem exemplares, que condecoramos com o nome de gênio, são os que pretenderam jogar em sua existência singular a sorte de toda a humanidade. Nenhuma mulher se acreditou autorizada a tanto. Como Van Gogh poderia ter nascido mulher? Uma mulher não teria sido enviada em missão ao Borinage, não teria sentido a miséria dos homens como seu próprio crime, não teria procurado uma redenção; nunca teria, portanto, pintado os girassóis de Van Gogh. Sem contar que o gênero de vida do pintor — a solidão de Arles, a frequentação dos cafés, dos bordéis, tudo o que alimentava a arte de Van Gogh alimentando-lhe a sensibilidade — lhe teria sido proibido. Uma mulher nunca poderia ter-se tornado Kafka: em suas dúvidas e suas inquitudes, não teria reconhecido a angústia do Homem expulso do paraíso. Não há por assim dizer senão santa Teresa que tenha vivido por sua conta, em um abandono total, a condição humana: vimos por quê. Situando-se além das hierarquias terrestres, como são João da Cruz, ela não sentia um teto seguro sobre a cabeça. Era para ambos a mesma noite, os mesmos relâmpagos, em si o mesmo nada, em Deus a mesma plenitude. Quando finalmente for assim possível a todo ser humano colocar seu orgulho além da diferenciação sexual, na glória difícil de sua livre existência, poderá a mulher — e somente então — confundir seus problemas, suas dúvidas, suas esperanças com os da humanidade; somente então ela poderá procurar desvendar toda a realidade, e não apenas sua pessoa, em sua vida e suas obras. Enquanto ainda tiver que lutar para se tornar um ser humano, não lhe é possível ser uma criadora.

Diga-se mais uma vez: para explicar suas limitações, é portanto sua situação que cabe invocar, e não uma essência misteriosa: o futuro permanece largamente aberto. Sustentou-se à saciedade que as mulheres não possuíam “gênio criador”; é a tese que defende, entre outros, Mme Marthe Borély, antifeminista outrora famosa: mas diríamos que tentou fazer de seus livros a prova viva do ilogismo e da tolice feminina; e em verdade eles próprios se contestam. Aliás, a ideia de um “instinto” criador deve ser abandonada, como a do “eterno feminino” no velho armário das generalizações. Certos misóginos afirmam um pouco mais concretamente que, sendo uma neurótica, a mulher nada pode criar de válido; mas são muitas vezes as mesmas pessoas que declaram que o gênio é uma neurose. Em todo caso, o exemplo de Proust mostra suficientemente que o desequilíbrio psicofísiológico não significa nem impotência, nem mediocridade. Quanto ao argumento que se tira do exame da história, acabamos de ver o que se deve pensar. O fato histórico não pode ser considerado como definindo uma verdade eterna; traduz apenas uma situação, que se manifesta precisamente como histórica porque está mudando. Como as mulheres poderiam jamais ter tido gênio, quando toda possibilidade de realizar uma obra genial — ou mesmo uma obra simplesmente — lhe era recusada? A velha Europa atormentou outrora com seu desprezo os americanos bárbaros, que não possuíam artistas nem escritores: “Deixai-nos existir antes de nos pedir que justifiquemos nossa existência”, respondeu, em substância, Jefferson. Os negros dão as mesmas respostas aos racistas que lhes censuram não terem produzido nem um Whitman nem um Melville. O proletariado francês não pode tampouco opor nenhum nome aos de Racine ou de Mallarmé. A mulher livre está apenas nascendo; quando se tiver conquistado, talvez justifique a profecia de Rimbaud: “Os poetas serão! Quando for abolida a servidão infinita da mulher, quando ela viver para ela e por ela, tendo-a libertado o homem — até agora abominável — ela será também poeta! A mulher encontrará o desconhecido! Divergirão dos nossos seus mundos de ideias? Ela descobrirá coisas estranhas, insondáveis, repugnantes, deliciosas, nós as aceitaremos, nós as compreenderemos.”479 Não é certo que seus “mundos de ideias” sejam diferentes dos mundos dos homens, posto que será assimilando-se a eles que ela se libertará; para saber em que medida ela permanecerá singular, em que medida tais singularidades terão importância, seria preciso aventurar-se a antecipações muito ousadas. O certo é que até aqui as possibilidades da mulher foram sufocadas e perdidas para a humanidade e que já é tempo, em seu interesse e no de todos, de deixá-la enfim correr todos os riscos, tentar a sorte.