19: 1939 – A guerra se aproxima

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1939 – A guerra se aproxima

Embora não pudesse saber disso na época, os melhores e mais felizes anos de Eva com Hitler foram 1938, 1939 e os primeiros meses de 1940. Ele passava a maior parte de seu tempo no Berghof, onde ela era agora plenamente aceita como amante, até mesmo pelos mais críticos companheiros e amigos dele. O ciúme e a insegurança haviam se aplacado e ela não mais se torturava com o medo de que outra mulher pudesse atraí-lo e afastá-lo. Unity Mitford parecia ter sido despachada, embora continuasse a perambular por Berlim com seu ar tonto e apaixonado. O Führer apreciava a companhia de belas atrizes e ocasionalmente convidava alguma delas para um chá na Chancelaria do Reich, onde talvez arriscasse um leve afago, mas esses encontros continuavam curtos e platônicos. Eva se resignara ao papel que Magda Goebbels desempenhava na vida dele, admitindo ela mesma que nunca poderia ostentar aquela pose glacial, sofisticação mundana e cultura sólida. Também sabia que, embora o Führer pudesse precisar de uma consorte em ocasiões formais, a fim de impressionar os convidados, qualidades intelectuais não eram o que procurava na cama. Quando estavam juntos, era uma jovem alegre, dona de um corpo firme e sensual, que sabia ser seu primeiro dever proporcionar prazer a ele. Segundo uma teoria de Alois: “Hitler talvez tratasse Eva como um pequeno presente dado a ele pelo destino, um apêndice particular menor a sua turbulenta vida política”.[1] Ao longo dos últimos seis anos, aprendera a entretê-lo e a cuidar do parceiro do jeito que lhe agradava — brincando com ele e os cães, importunando-o por sua dieta, encorajando-o a sair para caminhadas, cuidando para que suas amizades de Munique o mantivessem em contato com a cidade agitada que o projetara. Às vezes, ele resmungava que não podia mais se locomover como um cidadão comum: “Se ao menos você soubesse como eu gostaria de poder passear sozinho pelas ruas sem ser reconhecido! Gostaria de poder entrar nas lojas de departamento e comprar eu mesmo meus presentes de Natal, ou sentar num café e observar as pessoas. Mas não posso”.[2] Eva o consolava, dizendo que isso era devido ao povo alemão, que o amava tanto.

A essa altura, a longa intimidade e a confiança do Führer em seu amor e perfeita discrição levaram não à igualdade, isso nunca seria possível, mas a uma profunda harmonia entre eles. Winbauer escreve (outra vez, de ouvir dizer; ele jamais visitou o Berghof, mas esteve sempre próximo de sua prima Fanny):

Hitler a respeitava e valorizava sua amizade, não só porque necessitava de seu apoio em meio ao tumulto e ao crescente absurdo e irracionalidade de sua vida política, mas também porque chegara de fato a amá-la: a garota viçosa e imaculada tornara-se uma figura gratificante em sua vida deturpada. Por mais surpreendente que pareça, havia um bocado de provocações e gracejos entre os dois quando Hitler ia ao Obersalzberg, mas nunca uma desavença séria.[3]

Eva nunca se queixava com Hitler de se sentir deprimida ou solitária. Apenas se abriu com sua mãe, certa vez: “Ele tem preocupações tão importantes; como eu poderia importuná-lo com minhas coisas sem importância?”. Sua atitude era tola e despreocupada porque era o melhor modo de aliviar a pressão sobre ele: provocando-o, deixando que aflorasse o lado sentimental dele, rindo de suas piadas e escutando as velhas histórias — a essa altura, quase pura ficção — de sua infância e juventude: como fora solitário, como fora mal compreendido e, contudo, como era culto e lido na época em que formulara suas brilhantes teorias sobre como o mundo funcionava e sobre as grandes ideias que de fato importavam. O verdadeiro relacionamento dos dois sempre será um mistério, mas, no cerne dele, talvez esteja isto: somente com Eva ele podia descer de seu pedestal e se permitir ser dependente, infantil, ligado. Que importava se o venenoso círculo íntimo se referia a ela como “die blöde Kuh”, a vaca estúpida? O Führer tinha gente suficiente em volta de si conspirando para remodelar o mundo e seu futuro. Era precisamente a aparente “estupidez” dela que o atraía. Albert Speer entendia que o exigente trabalho de Eva — que enorme exigência, passar despercebida de todo mundo — era facultar o relaxamento de que todo ditador às vezes precisa.[4] “Era mesmo uma garota muito agradável, jovem, tímida e recatada. Gostei dela na mesma hora e depois nos tornamos bons amigos. Ela precisava de um amigo”.[5] Precisava mesmo.

 

Não é meu propósito suavizar a imagem de Hitler, muito menos encontrar características amáveis ou que levem a redimir sua imagem. Se elas existiram, compunham apenas uma pequena fração do homem — mas essa era a parte que Eva enxergava. Não tenho dúvida de que ele tivesse consciência dos eventos sangrentos que estava prestes a desencadear. Eles residem bem no centro de sua política e se originavam de sua natureza depravada e sua ideologia semi-digerida, semi-científica, semi-mística, inteiramente maligna. Ele deu início a tudo que ocorreu durante os doze anos breves mas insuportavelmente longos de sua liderança, quando conduziu a cegueira do povo alemão ao caos moral. Mas mulheres crédulas conseguem amar assassinos, torturadores, espancadores e estupradores — e também fundamentalistas religiosos e políticos corruptos — , e Eva amava Hitler. Em tempos normais, teria sido apenas uma jovem bondosa, generosa, atenciosa e leal. O fato de que compartilhasse da cama de Hitler não implica dizer que estivesse bem informada acerca da realidade infernal perpetrada em nome do Führer e do Terceiro Reich. Isso não significa um elogio ou condenação, mas é a constatação de um fato. Os fatos ligados aos Eventos Negros também devem ser constatados, por mais brevemente que o façamos, a fim de contrapor a intolerável escala de sua perversidade e a aconchegante domesticidade do Berghof.

 

As opiniões antissemitas de Hitler já estavam firmemente arraigadas em 1920 e possivelmente até antes, durante o período em Viena. Sentado à mesa na impassível sala de jantar do Berghof, ele as reiterava para a iluminação de seus Rottweilers. (Nenhuma mulher se achava presente nessas ocasiões, Eva com certeza não, ou ele jamais teria sido tão explícito.) “Eu me sinto como um Robert Koch[6] da política. Ele descobriu o bacilo e assim conduziu a ciência médica por novos caminhos. Eu descobri que os judeus são os bacilos e os agentes fermentadores de toda decomposição social.” Josef Goebbels tinha opinião parecida: “O procedimento [para matar judeus em massa] é um tanto bárbaro e não cabe aqui sua descrição mais pormenorizada. Não sobrará muita coisa dos judeus. Em suma, pode-se dizer que cerca de sessenta por cento deles terão de ser liquidados, enquanto apenas cerca de quarenta por cento podem ser usados para trabalho forçado”.[7] As comparações com enfermidades e morte, vermes, ratos e vampiros disseminadas pela máquina de propaganda de Goebbels haviam levado a uma ampla percepção dos judeus como as criaturas daninhas e sinistras que conspurcavam a raça germânica. Os primeiros estágios da perseguição aos “racialmente insalubres” ou apenas evidentemente diferentes suscitaram pouco clamor público, embora muitas pessoas fizessem objeções privadas — alguns de modo apaixonado, outros, com razoável desconforto — e muitos sacerdotes católicos e alguns protestantes proferiram sermões recriminando os nazistas.

A Kristallnacht não foi o primeiro ato de brutalidade efetivado pelo Estado contra os judeus; na verdade, foi o fim de um período de intensa violência nas ruas, que se seguiria à fria violência burocrática.[8] Uma jovem judia de Berlim registrou em seu diário, no dia 28 de junho de 1938:

Novas cenas de ferocidade e tristeza estão gravadas em minha mente. […] A renomada e antiga loja de linho de Grunefeld foi o primeiro lugar que vimos cercado por uma turba ululante de homens da SA. Estavam “persuadindo” um senhor distinto que insistia em entrar no prédio. Descobrimos que o mesmo ocorria em todo lugar, variando apenas em termos de violência e ignomínia. O Kurfürstendamm estava coberto de pichações e desenhos. Há um “judeu” escrito em todas as portas, desenhos revoltantes e cruéis de judeus sendo decepados, enforcados, torturados e desmembrados, junto com inscrições obscenas. As vitrines foram quebradas e a pilhagem das miseráveis lojinhas está espalhada sobre a calçada e flutuando na sarjeta.[9]

Essa deflagração não foi organizada; era apenas um dia qualquer de junho em Berlim, com os perseguidores de judeus divertindo-se um pouco. A Kristallnacht, contudo, foi a primeira iniciativa em âmbito nacional a ter lugar abertamente, em público, diante dos olhos dos cidadãos alemães. Começou na noite de 9/10 de novembro de 1938 e, embora a palavra Kristallnacht seja em geral traduzida como a “Noite de Cristal”, sugerindo vitrines de lojas judaicas destruídas e muitos saques, foi cem vezes pior. Era a belicosa ralé hitlerista à solta nas ruas como matilhas de cães, rosnando e se arrepiando rouca e ameaçadoramente.

Por dez anos, os broncos e baderneiros do Partido Nazista e da SS haviam sonhado com uma válvula de escape “legítima” para sua brutalidade. Suas ações passadas seriam vistas como infrações amadorísticas na escala do comportamento humano. Eram delinquentes menores, o degrau mais baixo de uma hierarquia diabólica que aspirava a atos malévolos maiúsculos e ainda inimagináveis. A Kristallnacht despertou em cada nazista — no grande satanás, nos pequenos demônios e nos sórdidos colaboradores — o que ele tinha de pior. As ordens eram passadas de Hitler ao sabujo tenente Himmler, para serem avidamente obedecidas ao longo de uma cadeia de comando que podia terminar num chefe de polícia local interpretando suas instruções, a partir daí, como bem lhe aprouvesse e vociferando comandos para homens tensos em suas coleiras. Alguns simplesmente recebiam ordens de matar judeus do sexo masculino “com o menor barulho possível”, outros, de destruir as sinagogas locais. Por toda a Alemanha, espalhou-se a destruição. Um relatório posterior de um grupo da SS registrava: “Todas as tropas e líderes extraíram grande satisfação da ação. Ordens como essas deviam ser dadas mais vezes”.[10] Au, au, au. O pogrom — pois é disso que se tratava — durou dois, em alguns casos três, dias e noites. Milhares e milhares de judeus eram caçados, vendo seus lares e estabelecimentos serem destruídos e suas posses saqueadas. Famílias inteiras eram aterrorizadas, espancadas, presas e, em alguns casos, assassinadas. O impacto desses eventos pode ser avaliado pelo fato de que, só em Viena, 680 judeus cometeram suicídio durante a Kristallnacht.[11]

Muita gente na Inglaterra estava horrorizada com o tratamento dado aos judeus. Oliver Lyttelton, mais tarde Lord Chandos, estava por acaso em Frankfurt no dia 9 de novembro de 1938, a primeira noite da Kristallnacht, e testemunhou cenas “que jamais serão apagadas de minha memória”. A partir desse momento, passou a sentir um ódio obsessivo do antissemitismo e, estimulado por isso, ajudou três amigos judeus a sair escondidos da Alemanha e chegar a salvo à Inglaterra. Suas convicções recém-descobertas dificilmente eram compartilhadas por seus conterrâneos, como Lyttelton descobriu quando propôs que Isaiah Berlin entrasse para seu clube. Votaram contra Berlin. O visconde Cranborne — “Bobbety” — , mais tarde marquês de Salisbury, combateu as tentativas de Lewis Namier de facilitar a entrada de judeus europeus na Inglaterra. Harold Macmillan troçava sarcasticamente deles. As classes altas supunham que o antissemitismo fosse uma de suas prerrogativas.[12]

Após a Kristallnacht, ninguém na Alemanha, incluindo as mulheres, tinha qualquer desculpa para a ignorância completa. Até então, as pessoas podiam, no máximo, ter interpretado os decretos cada vez mais antissemitas do Reich como uma reação democrática a um preconceito amplamente disseminado. Mas as suásticas pichadas nas lojas e as leis draconianas que controlavam seus movimentos, para não dizer nada da brutalidade dirigida contra eles, eram agora questão de conhecimento público. Eva — ou seus pais — talvez tivesse amigos judeus em fuga do país, com medo do que viria a seguir. Até mesmo ela teria sabido que alguma coisa estava acontecendo, embora não tivesse coragem de perguntar e nem ela nem ninguém nesse estágio teria imaginado até que ponto chegariam aquelas cenas horrendas. Mas a aceitação tácita e, em muitos casos, o envolvimento atuante de inúmeros — embora, é bom que se enfatize, nem todos — alemães “comuns” numa espiral ascendente de preconceito, ostracismo e crueldade datam dessas noites. Esse, embora pouca gente adivinhasse, na época, foi o momento em que a linha de produção metódica para matar judeus alemães, austríacos, poloneses e de outros lugares da Europa se tornou incontrolável.[13]

A extensão do genocídio nazista foi devastadora. No fim, pelo menos um terço dos judeus europeus[14] havia sido assassinado, a mesma porcentagem de gente que morreu vítima da Peste Negra no século XIV. Quando Hitler ascendeu ao poder, em 1933, estima-se que havia 561 mil seguidores do judaísmo na Alemanha, ou 0,76 por cento da população,[15] maciçamente concentrados em duas cidades: Berlim e Frankfurt. Munique, a capital estadual da Baviera, tinha 4 mil cidadãos judeus. Em 1933, 40 mil judeus partiram da Alemanha, no maior êxodo até 1938. Em maio de 1939, a população remanescente de judeus da Alemanha — os que ainda não haviam fugido, sobretudo para a Inglaterra ou os Estados Unidos — somava 330.892,[16] sendo que metade vivia em Berlim ou Viena. Mesmo assim, não foi senão no outono de 1941 que a dimensão da política de matar todos os judeus europeus (ou tantos quantos desumanamente possível) ficou clara para os subalternos relevantes.[17] Isso não se originou de nenhuma ordem específica dada por Hitler — em todo caso, nenhuma foi identificada, embora seu desejo de eliminar os judeus fosse óbvio havia muito tempo.[18] Fosse qual fosse a cadeia de comando que levou do racismo fervoroso à morte em larga escala, perto do fim da guerra cerca de 200 mil judeus alemães haviam sido executados com gás nos campos de extermínio.[19] As estatísticas para o conjunto da Europa eram trinta vezes maiores. A carnificina, do ponto de vista da hierarquia nazista mais alta, nunca foi sádica. Certamente, sistemática, mas isso é diferente; é eficiência.

No verão de 1939, Hitler propôs a conclusão lógica para o programa de eutanásia, dizendo a Bormann e outros: “[Ele] via como um direito que as vidas sem valor de pacientes com enfermidade mental grave fossem erradicadas. Isso resultaria numa economia em termos de hospitais, médicos e equipes de enfermagem”.[20] Erradicadas. Nenhuma ambiguidade nisso. A economia de custos poderia ser canalizada para membros saudáveis e produtivos da sociedade. Era necessário um “refugo” para purgar o sagrado Volk germânico da fraqueza genética debilitadora. Para que a mensagem entrasse na cabeça de seu público, organizavam-se visitas monitoradas a instituições de deficientes físicos e mentais (remontando aos freak shows de festividades natalinas da infância de Eva), onde as pessoas eram encorajadas a apontar e rir dos lunáticos. Dezenas de milhares eram levados por alas hospitalares e laboratórios para ouvir palestras pseudocientíficas frisando a inutilidade e incurabilidade dos dementes.[21] Isso devia convencer os indecisos. Viu? Não são humanos, de jeito nenhum. Melhor se livrar deles.

Em outubro desse ano, Hitler deu seu consentimento para a Operação t4, que apesar do nome inócuo destinava-se a permitir que os médicos “concedessem” uma “morte misericordiosa” — ou melhor, matassem — a pacientes considerados incuráveis. Cerca de 70 mil foram mortos ao longo dos dois anos seguintes, mas o total final era muito maior. Posteriormente, Hitler foi forçado a suspender o t4,[22] mas os médicos contornavam a nova situação matando efetivamente os pacientes de fome, deixando-os sem atendimento em leitos imundos até que definhassem. Sob o programa de eutanásia, pelo menos 250 mil, possivelmente 300 mil, deficientes físicos e mentais morreram. Tudo isso aconteceu em silêncio, conduzido por médicos de avental branco em hospitais e laboratórios, testando quanta morte a opinião pública iria tolerar — ou se dar ao trabalho de ficar sabendo.

 

No dia 15 de março de 1939, as tropas de Hitler entraram na Tchecoslováquia. O Führer passou o dia viajando em seu trem particular de Berlim a Praga, chegando incógnito e passando a noite em Hradcany, o castelo ancestral dos reis da Boêmia. No dia seguinte, em Praga, fez uma proclamação em que se pode perceber a cadência de sua voz: (“Por mil anos… as províncias da Boêmia e da Morávia… pertenceram… ao Lebensraum… do povo alemão…”) Aquela palavra outra vez. Lebensraum: espaço para viver, a justificativa para todo movimento agressivo. Depois foi para Brno, a fim de passar as tropas em revista; então Viena e de volta a Berlim, detendo-se para algumas horas de nostalgia em Linz. Finalmente o buldogue bretão começou a rosnar. Chamberlain alertou para o fato de que a Inglaterra não iria tolerar mais agressões territoriais. Hitler não tomou conhecimento. Seus planos para a Polônia já iam bem avançados. O cheiro da guerra entrava por suas narinas, a visão do Adolf, Kaiser Europas — Adolf, o Imperador da Europa — ofuscava-lhe os olhos. Eva, impacientemente à espera no Berghof, captava apenas ecos débeis e distantes desses acontecimentos momentosos. Hitler a proibira de ler jornais ou de escutar as notícias no rádio alemão, e ela dispunha de poucas fontes de informação. Sua principal preocupação era se o Führer estaria em casa a tempo para a Páscoa. A Sexta-Feira Santa caiu no dia 7 de abril e estavam todos ocupados fazendo decorações para as crianças: Osterhasen (coelhos de Páscoa) e galinhas amarelas fofinhas, uma graça, e todos os tradicionais ovos, bolos e chocolates de Páscoa. Ela não queria que ele perdesse a festa.

Hitler dificilmente passava qualquer feriado longe do Berghof — “Não posso me dar ao luxo de viajar e me divertir, então minhas férias são as horas que passo com meus convidados junto ao fogo”[23] — , embora certa vez tenha feito uma viagem com a família Goebbels para uma estância no Mar do Norte. Uma exceção foi o início de abril de 1939, quando conseguiu tirar uns dias para a viagem inaugural de um navio de cruzeiro KdF novinho em folha.[24] Esses passeios eram concedidos de graça para trabalhadores alemães e suas famílias, a fim de proporcionar-lhes um salutar descanso de sua faina diária e ligá-los com mais firmeza ao Partido Nazista. Refeições nutritivas eram servidas e eles recebiam boas acomodações. Uma fotografia mostra o Führer sentado com ar melancólico próximo à amurada do navio, com uma jovem loira: Inge Ley, esposa de Robert Ley,[25] e que também emprestava seu nome ao navio. Era atriz e cantora, uma mulher linda e, como Magda Goebbels, ardente seguidora de Hitler, no plano pessoal e político. Frau Ley foi sua companheira platônica na viagem. A imagem é uma raridade, uma vez que dificilmente ele se deixava pegar numa foto perto de uma mulher casada. (Hitler reprovava o adultério com veemência, sobretudo porque dividia a família, a unidade básica do poderio nazista.) Fazia frio, a maresia deixava tudo úmido, sua rotina ia por água abaixo. Ele interrompeu o passeio e desembarcou em Hamburgo. Duas semanas mais tarde, voltou a Berlim para seu aniversário de cinquenta anos, no dia 20 de abril, berrando discursos para multidões enlevadas.

Hitler compensava suas ausências permitindo todo tipo de luxo a Eva. Em fevereiro de 1939, ela passou uma semana esquiando em Kitzbühel, com ar experiente e elegante numa jaqueta branca curta de esqui. O Führer estava de volta ao Berghof no começo de maio por dez dias, registrado por Eva com ainda mais fotos de grupos desfrutando a hora do chá no terraço, ociosos sob o sol primaveril. Uma delas — provavelmente tirada por Hoffmann — a mostra no traje bávaro que Hitler preferia aos vestidos chiques que às vezes encomendava de Paris. Ele não perguntava nada sobre preço e Bormann não ousaria questionar as contas. Contar com as boas graças de Hitler era o que havia de mais importante na vida dele e, afinal de contas, o Führer tinha dinheiro sobrando: Mein Kampf continuava a vender centenas de milhares de cópias todo ano e os direitos eram vultosos. Por mais frugal que fosse seu estilo de vida pessoal, Hitler era rico.

Eva começava a se acostumar ao luxo, mas isso agora tinha um efeito sobre sua personalidade, ou pelo menos assim Ilse dizia: “Às vezes, eu não reconhecia mais minha irmã. Eva estava arrogante, tirânica e insensível conosco [a família Braun]. A ligação com homens importantes torna a pessoa egoísta, até cruel”.[26] No passado, Ilse Braun não fora convidada ao Berghof, pois trabalhava de recepcionista para um médico judeu e Hitler a considerava corrompida por essa ligação. Finalmente, em 1936, quando os pacientes de seu patrão minguaram para um pequeno punhado, ela deixou o emprego. Só então foi aceita no Berghof. Ilse, com quem Eva vivia às turras, alegou após a guerra que sua irmã passara adiante as roupas e os sapatos usados com um ar de benevolência altiva; mas o relacionamento das duas sempre fora conflituoso e a paixão de Eva por roupas devia irritar deveras a fria e judiciosa Ilse, que se imaginava acima dessas trivialidades mundanas. Se Eva era arrogante e prepotente com os pais e a irmã — e Ilse é a única que o afirma — , isso talvez fosse uma retaliação pela frieza e reprovação com que a haviam tratado nos anos iniciais, quando ficara isolada por apaixonar-se por Hitler. Nessa época, quando precisava de compreensão e apoio, não os teve. Agora, distribuindo presentes, podia ser perdoada por fazê-lo de um modo pedante.

As relações entre o Berghof e o casal Braun (ainda vivendo no apartamento da Hohenzollernplatz, onde moravam havia quase vinte anos) estavam melhores. As duas partes comportavam-se com respeito mútuo, visando aos próprios interesses. Hitler dava-lhes presentes ocasionais — um relógio para Fritz, perfume para Fanny — , mas nada espetacular. Quando se hospedavam em Obersalzberg, ele os tratava com polidez impecável. No verão de 1939, Fritz contou a Alois Winbauer uma história reveladora:

Ele e Fanny haviam sido convidados para um chá e Hitler era quase que patologicamente afável fazendo o papel de anfitrião diligente. Fritz decidiu aproveitar a oportunidade para um pedido em favor do velho presidente da Bavarian Heimat und Königsbund, um general aposentado que fora expulso com a usual brutalidade dos nazistas. Quando Fritz pediu a Hitler que reempossasse o general, sua expressão adquiriu um ar glacial e tudo que disse foi que não era problema dele, mas de seus subalternos. Como exclamou Fritz amargamente depois: “E esse homem é nosso Führer!”.

Foi corajoso de sua parte fazer tal apelo, sobretudo agora que se filiara ao Partido Nazista. Apoiar um grupo patriótico não alinhado com o poder era um sinal de dissidência, quando não de traição. Para Fritz, contudo, a prontidão da família em aceitar a hospitalidade do Führer significava capitulação, quando não humilhação.

O quinquagésimo aniversário de Fritz Braun ocorreu em 17 de setembro de 1939 e a ocasião foi marcada por uma foto sua usando uniforme nazista, com a braçadeira da suástica, ao lado das circunspectas familiares femininas.[27] O retrato tem a legenda “Vatis 50 Geburtstag” — “Aniversário de 50 anos de papai”. Apesar da reconciliação com as filhas, Fritz parece taciturno e amargurado. Fanny sorri, como sempre. Seu gosto pelas boas coisas da vida, sua natureza calorosa e amante dos prazeres e, acima de tudo, a profunda afeição que nutria pelas filhas significavam que era genuinamente feliz pelo modo como as coisas haviam transcorrido. A paz fora estabelecida entre pais e filhas, a despeito do fato de que, aos olhos do casal, Eva continuava a “viver em pecado” com Hitler. Com uma forcinha das férias no exterior pagas pelo Führer e das visitas ao Berghof, com sua comida e bebida excelentes, os imperativos morais da Igreja Católica acabaram em segundo plano. Fanny, sempre a mais cordata dos dois, era capaz de se encontrar com Eva e Gretl sem atritos e seu marido ocasionalmente sucumbia à tentação de conforto e prazeres muito acima de qualquer coisa que ele, um simples professor de colégio técnico, poderia ter obtido por si só. Eva sabia que isso representava mais uma concessão do que a plena aceitação de seu status, mas sua mãe talvez chegasse até a sentir orgulho do relacionamento da filha. “É uma conquista e tanto, afinal, ser a favorita do Führer”, disse Fanny certa vez.[28] Ela se sentia perfeitamente “em casa” no Berg e dúzias de fotos mostram-na esparramada na grama ou rindo no meio dos familiares, feliz de estar com as filhas.

No fim de junho de 1939, Eva levou a mãe e a irmã num cruzeiro KdF pelos fiordes noruegueses, a bordo do ms Milwaukee.[29] Eva, Fanny e Gretl misturavam-se anonimamente com outras turistas. A vantagem de ter o reconhecimento público negado por Hitler era que, em público, ninguém a reconhecia.

 

Bormann, sempre espreitando uma oportunidade de crescer aos olhos do Führer, “deu” a Hitler de presente em seu quinquagésimo aniversário, em nome do Partido Nazista (cujos membros não foram consultados), um estupendo retiro empoleirado a 1.834 metros de altura, no topo do monte Kehlstein, mais tarde apelidado de Ninho da Águia pelos invasores americanos. Construído de imensos blocos de pedra que tiveram de ser arrastados desde o sopé da montanha (oito trabalhadores morreram durante as obras), foi projetado para parecer uma fortaleza medieval, constituindo um centro de conferências em uma paisagem lendária para o líder nazista e seus modernos cavaleiros teutônicos. Num dia claro, vistas sem fim descortinam-se acima do Königssee e através da fronteira austríaca em direção a Salzburgo. Pássaros pretos imensos (parecem corvos) voam em círculos e um zumbido permeia o ar azulado. Caro demais para ser construído, numa época em que cada Pfennig estava sendo juntado para a fabricação de armas, aviões e artilharia, o plano de Bormann saiu pela culatra. Hitler tinha medo de altura e odiava ver-se confinado a espaços pequenos. A fortaleza fake era acessível apenas por um túnel estreito de 124 metros de extensão, desembocando num elevador com cabos de metal que disparava verticalmente em meio à rocha sólida por outros 124 metros. Hitler achava a experiência tão enervante que não subiu ao cume mais que sete ou oito vezes, sempre para mostrar o lugar para dignitários estrangeiros ou talvez, persuadido por Eva num dia sem nuvens, para variar a rotina, almoçando naquele panorama incrivelmente espetacular. Ela, por outro lado, adorava banhar-se ao sol numa cadeira reclinável, no longo terraço envidraçado do Kehlstein, com sua vista gloriosa de pássaros no nível do olhar e as encostas das montanhas cobertas de florestas mais adiante, e muitas vezes subia lá para fugir da monotonia hermeticamente fechada do Berghof.

Salvatore Paolini, um jovem garçom, era o único membro italiano da equipe de empregados no Ninho da Águia. Ele recorda: “A atmosfera na sala de jantar era festiva. Hitler se sentava no centro da mesa com as costas para a parede, de modo que pudesse observar a vista. Eva Braun também costumava estar à mesa, mas ele nunca deixava que se sentasse a seu lado”. (Talvez ele tenha se equivocado, aqui, já que Eva Braun quase sempre ficava a seu lado em refeições informais.) Ele confirma que Hitler era abstêmio e vegetariano. “Aceitava pequenas linguiças e presunto, mas no geral nunca comia carne, preferindo batatas e vegetais. Tudo sempre muito condimentado, porque perdera o paladar após sofrer um ataque de gás mostarda na Primeira Guerra Mundial.” Hitler “não era muito dado à bebida”, afirmou o Signor Paolini. “O garçom abria as garrafas, sempre de vinho vintage, mas ele mal dava um gole. Tínhamos sempre de providenciar muitas jarras d'água à mesa. Ele jamais reclamava da comida. Sempre dizia ‘muito bom’ para nós, quando saía.”[30]

 

Em abril de 1939, Hitler ofereceu um apartamento confiscado em Berlim para Unity Mitford.[31] A Kristallnacht expulsara inúmeros judeus ricos da cidade e os funcionários de seu escritório particular apresentaram a ela uma curta lista de quatro imóveis confortáveis. Um mês depois, ela fez sua escolha: o apartamento 4 da Agnesstrasse, 26, com sala de visitas, dormitório e um pequeno cômodo extra. Carmencita Wrede o viu pela primeira vez em agosto e se recorda:

Atrás de sua cama havia duas enormes bandeiras com suásticas cujas pontas desciam sobre os travesseiros, dobrando-se como cortinas. Em seu criado-mudo ficava uma foto de Hitler, com lábios e olhos coloridos à mão. Na sala de estar havia uma escrivaninha e, numa das gavetas, um pequeno revólver prateado, e então ela o tirou de lá e o sacudiu no ar, dizendo: “Quando me obrigarem a deixar a Alemanha, vou me matar”.[32]

O apartamento não pode ser considerado uma prova de que Unity mantivesse relações sexuais com Hitler, embora se Eva tivesse sabido a respeito teria chegado a essa conclusão, dadas as circunstâncias da compra de sua própria casa, na Wasserburgerstrasse, três anos antes. Não há absolutamente nenhuma evidência confiável a sugerir a infidelidade do Führer em nenhum momento de sua relação — nem mesmo seus companheiros nazistas, tão chegados a espalhar boatos, alegavam isso — e, dentre todas as ansiosas candidatas, a imponente Miss Mitford era a menos plausível, mas Eva não sabia disso.

Unity passou o fim de semana de 6/7 de maio de 1939 no Berghof, confrontando Eva cara a cara. Era a primeira vez que as duas se viam na companhia uma da outra desde a Convenção de Nurembergue de 1936 e Hitler talvez quisesse demonstrar que Eva era a legítima dona do trono. Em todo caso, foi a única visita de Unity, embora continuasse a andar atrás dele em Berlim. Seria surpreendente se o Führer tivesse sido capaz de dar alguma atenção a qualquer uma das duas, uma vez que seus planos para a invasão da Polônia estavam bem adiantados e suas ambições mais amplas — mais Lebensraum para o sagrado Volk germânico — muito bem encaminhadas.

O resto do mundo não podia continuar a negar que ele planejava incorporar ao Terceiro Reich os países vulneráveis a leste da Alemanha. Os cães do inferno se juntavam. Em 23 de julho, Mahatma Gandhi escreveu uma carta pessoal a Hitler, implorando-lhe que não começasse outra guerra na Europa. Tarde demais. O Führer estava convencido de que sua missão era uma obrigação sagrada que a história esperava vê-lo consumar.

No dia 7 de agosto, após uma disputa quanto a tarifas alfandegárias polonesas no porto franco de Gdansk, ele declarou que sua paciência se esgotara e chamou Carl Bruckhardt, alto comissário da Liga das Nações em Gdansk, para ir a Berchtesgaden. Removendo todos os empecilhos, Hitler embarcou-o num de seus aviões particulares e levou-o em seu próprio carro até Obersalzberg. Dali, Burckhardt foi levado pela íngreme estrada montanhosa até o Ninho da Águia. Hitler escolhera esse cenário como palco da reunião para lembrar ao outro que ele, o Führer, e não a Liga das Nações, era senhor de tudo que a vista alcançava — e de um bom pedaço mais além. Discutiram a questão polonesa, Hitler dando um jeito de culpá-los pela teimosia, intransigência etc. Ora, se o Ocidente tinha confiança nele, uma solução pacífica poderia decerto ser encontrada? A mensagem foi devidamente retransmitida a Inglaterra e França, que veementemente recomendaram prudência aos pobres poloneses.

O genro de Mussolini, conde Galeazzo Ciano, ministro de Exterior italiano, mantivera diálogos com Hitler e seu ministro de Exterior, Joachim von Ribbentrop (que sucedera a Von Neurath em fevereiro de 1938), no Berghof em 12/13 de agosto de 1939. Ciano fora a Obersalzberg na esperança de convencer Hitler e Ribbentrop de que a Itália não estava pronta para a guerra. Mussolini queria que os países fascistas tentassem firmar um acordo vantajoso com o Ocidente, mas Hitler estava inflexível: a Polônia tinha de ser esmagada sem mais delongas. Se a Inglaterra e a França interviessem, elas seriam derrotadas. Ciano enviou seu relatório: “Não há mais nada a ser feito. Ele decidiu atacar e irá atacar”.[33] Eva não tinha a menor ideia do que acontecia, mas achou o conde Galeazzo Ciano, de apenas 36 anos, extremamente atraente. Pela fresta da cortina de uma janela no andar de cima, ela o fotografou com Hitler, que lhe sorriu de volta, sentado no peitoril da janela da sala de conferências conforme Eva se debruçava para conseguir ver o conde.[34]

A frustração de Eva em ser mantida escondida talvez tenha provocado seu único comentário “feminista” de que se tem notícia. Ao lado da foto de um jovem caminhando à frente de quatro mulheres, ela escreveu: “Mesmo ao sair para uma caminhada, conversar com mulheres é proibido!”.[35] A ignorância resultante dessa atitude protetora em relação às mulheres significou que, por todo o verão de 1939, Eva e suas amigas mal faziam ideia de que a guerra era iminente, embora longe dos ouvidos de suas esposas os maridos não falassem em outra coisa. Nos sufocantes dias de verão de julho e agosto, o calor era opressivo, a atmosfera no Berghof, insuportavelmente tensa, o humor do Führer, sombrio e irritável.

Não foi senão nos últimos dias — ou horas, talvez — que Eva percebeu que a guerra estava prestes a eclodir. Tornara-se inevitável desde o dia 19 de agosto de 1939, quando Stalin firmou um pacto de não-agressão com a Alemanha, delineado e assinado pelo ditador russo e Ribbentrop em 23 de agosto. Acreditando que seu arqui-inimigo fora neutralizado, Hitler ficou triunfante. Ignorando o fato de que Inglaterra e França reiteravam sua intenção de defender a Polônia, deu a ordem para a invasão pouco após o meio-dia de 31 de agosto. Na manhã seguinte, tropas alemãs começaram o ataque, sem esperar por uma declaração formal de guerra.

Segundo o biógrafo de Eva, Nerin Gun, que entrevistou Ilse nos anos 50:

Eva Braun e sua irmã estavam presentes na ópera Kroll, quando, na manhã de 1º de setembro, Hitler anunciou ao Reichstag e à nação que havia invadido a Polônia.

“Isso significa guerra, Ilse”, disse Eva, aparentemente, “e ele vai partir… o que será de mim?” Quando Hitler anunciou que usaria seu uniforme verde-acinzentado até a morte, Eva cobriu o rosto com as mãos. Em meio à exaltação de fanatismo que se seguiu, ninguém a não ser sua irmã notou que chorava.

“Se alguma coisa acontecer a ele”, disse finalmente à irmã, “eu também vou morrer.” […]

Quando saíram, o dr. Brandt disse: “Não se preocupe, Fräulein Eva, o Führer me contou que a paz voltará dentro de três semanas”.

Eva sorriu, como alguém que acabasse de receber uma dose de aspirina para aliviar a dor.[36]

 

Dois dias depois, em 3 de setembro de 1939, Inglaterra e França declararam guerra à Alemanha. A Grande Guerra havia terminado vinte anos antes. Agora, uma nova começava. Werner von Fritsch, antigo chefe do exército alemão, observara havia alguns meses: “Este homem — Hitler — é o destino da Alemanha, para o bem ou para o mal. Se esse destino está indo para o abismo, agora, ele vai nos arrastar a todos junto. Não há nada a ser feito”. Fatalista, pessimista e realista, tinha razão. Nada podia ser feito. A disposição de Hitler era messiânica, sua missão, inexorável.

 

No dia em que a guerra foi declarada, Unity Mitford, um dente sem rumo e sem importância na poderosa engrenagem do conflito europeu, deu um tiro na própria têmpora. Ela sobreviveu por mais nove anos, a cabeça mais confusa que nunca. Perdeu a capacidade de falar e ficou parcialmente paralisada. Quando Hitler soube da notícia, sua maior preocupação, ao que parece, foi com o que aconteceria ao cachorro dela. Visitou-a uma única vez no hospital, instruiu seus funcionários para que fizessem os arranjos necessários para que voltasse em segurança para a Inglaterra e esqueceu o assunto. O gesto havia sido inútil, como todas as suas birras. Ela jamais percebeu como era tão terrivelmente insignificante.