Cova do Vapor
Liguei ao Ricardo no próprio dia e também no dia seguinte. Não me atendeu nenhuma das vezes, mas na segunda-feira à noite mandou-me uma mensagem.
«QUERO ENCONTRAR-ME CONTIGO PARA FALARMOS.»
Propus-lhe que nos encontrássemos na Cova do Vapor, a foz do rio Tejo na margem sul, onde nos tínhamos reconciliado quando ele acabou o namoro comigo porque tentei adiar o nosso casamento.
Após uma troca de mensagens telegráficas, combinámos às seis da tarde.
Estava tão nervosa que perdi a noção do tempo. Saí de casa atrasada e cheguei dez minutos depois da hora marcada. Ele estava à minha espera, encostado à porta do carro e com o olhar fixo na estrada.
Esperou que eu estacionasse, abriu a porta do passageiro e sentou-se ao meu lado.
Não me cumprimentou nem olhou para mim, fixou o tablier e falou com um tom grave.
− Conta-me.
Fiquei sem saber o que responder a uma pergunta tão vaga e a pensar se ele a teria formulado assim porque lhe custava especificá-la...
− Conta-me como é que isto aconteceu, Sofi.
O que é que ele queria que eu lhe contasse? Como é que tinha engravidado? Tive vontade de lhe dizer que tinha sido a fazer o mesmo que ele tinha feito com a Mónica...
− Queres que te conte exatamente o quê, Ricardo?
Olhou-me pela primeira vez desde que tinha entrado no carro.
− Deixa-me relembrar-te de que ainda somos casados.
Defendi-me com um ataque...
− Deixa-me relembrar-te de que engravidei de outro homem porque achei que já não éramos casados, por TUA culpa.
A minha frase tocou-lhe nalgum ponto crítico que o fez desabar. Deixou cair a cabeça para trás num gesto derrotado e fechou os olhos.
− Há quanto tempo é que sabes?
Perguntou mais conciliador e eu respondi nos mesmos modos.
− Desde que me tiraram a bala da perna em Maputo. Fizeram-me uma ecografia abdominal porque estava maldisposta e podia ter um traumatismo no fígado.
Manteve-se com a cabeça encostada ao banco e os olhos fechados.
− Porque é que esperaste este tempo todo para me dizer?! E porque é que foste para a cama comigo e me deixaste pensar que íamos salvar o nosso casamento?!
Não consegui responder que não tinha resistido a ir para a cama com ele porque o amava, e muito menos que, por momentos, tinha pensado enganá-lo, para que assumisse a paternidade de um filho que não lhe pertencia.
Abriu os olhos e virou-se na minha direção, desiludido e infeliz.
− Porquê, Sofi? Porquê?
Não lhe podia dizer a verdade, mas proferi palavras porque ele continuava à espera de uma resposta.
− Desculpa, Ricardo.
Abanou a cabeça e falou-me num tom desolado.
− Não, Sofi, não te desculpo. Vamos divorciar-nos o mais depressa possível.
Limpei lágrimas que teimavam em sair, enchi-me de coragem e tentei parecer o mais inteira possível.
− Sim. Vamos.
O ar dentro do carro ficou denso e irrespirável. Sentia-me em agonia e despedaçada por dentro, só queria que aquilo acabasse depressa.
− Podemos usar aqueles papéis que deste ao meu pai para ser mais rápido. Por mim, as coisas podem ficar como estão lá.
Ouvi-o fazer uma imitação de uma gargalhada, mas que ficava muito aquém. Eu conhecia o riso dele de cor e não tinha nada a ver com os sons que tinha acabado de ouvir.
− Achas que se eu te lixar e ficar com as nossas coisas todas me vou sentir melhor? Achas mesmo?
Fiz um gesto de negação. Ele também devia estar a sentir-se sufocar, abriu o seu vidro e o carro foi atravessado por uma brisa fresca que me ajudou a recompor.
− Como é que vais fazer?
Olhei-o incrédula e ofendida, aquele não podia ser o meu marido Ricardo, uma das pessoas mais crentes que eu conhecia e que tinha tido uma discussão terrível comigo quando começámos a namorar, indignado por eu ter votado a favor da legalização do aborto no referendo de 2007.
Levei as mãos à barriga num gesto protetor enquanto lhe gritava.
− Como é que vou fazer o quê, Ricardo? Vou ter o meu bebé! Que pergunta estúpida é essa?
Ele pareceu desconcertado com a minha reação, abriu a porta e saiu do carro. Depois voltou-se novamente para mim, com os olhos rasos de lágrimas e os braços apoiados no tejadilho.
− Claro que vais ter o bebé! Endoideceste de vez?! Tu conheces-me muito melhor que isto, Sofi! Em que monstro achas tu que me tornei? Perguntei-te como é que vais fazer com o pai da criança? Tendo em conta o que se passou entre nós no sábado, calculo que não estejam propriamente juntos...
Arrependi-me da minha avaliação precipitada. Admirei-o por ser sempre fiel às suas convicções, ao mesmo tempo que gemi internamente.
Falar-lhe no Alex era doloroso, mas não tinha alternativa. Apesar de estar a chorar, tentei fazê-lo da forma mais neutra possível.
− Ah! Em relação a isso não vou fazer nada. Ele não quer saber. Vou criar o meu bebé sozinha. – Sorri levemente ao dizer «meu bebé», independentemente das circunstâncias, emocionava-me sempre juntar aquelas duas palavras, «meu» e «bebé». − Ele não quer ter filhos, disse-mo várias vezes.
O Ricardo voltou a sentar-se ao meu lado, mais calmo e complacente.
− Mas já lhe disseste que estás grávida? Uma coisa é dizer que não se quer ter filhos em teoria, outra é não querer saber deles depois de já existirem. A maioria dos homens depois da surpresa inicial ficam contentes, mesmo que não queiram ficar com a mãe.
Ele não se tinha tornado num monstro, muito pelo contrário, continuava a ser um dos melhores homens que conhecia, que tomava quase sempre decisões nobres e para quem o meu bebé era um filho que já existia.
− Acredito que sim, mas não é o caso do Alex. Quando lhe contei ele disse-me que não lhe interessava e que se estava a cagar. E também para lhe fazer o favor de não lhe ligar mais.
Vi-o fazer um esgar de repulsa antes de me questionar.
− Quem é essa besta-quadrada desse Alex?
Primeiro achei que era apropriado, mas depois lembrei-me de como o Alex já tinha sido o meu serendipity, feito declarações de amor muito comoventes e arriscado a vida por mim. Não lhe conseguia guardar rancor.
− É um agente da brigada antiterrorismo da Polícia Judiciária. Estava em Moringane para apanhar a rede de tráfico humano que me raptou. Eles usavam uma empresa de construção civil como fachada e ele estava infiltrado como técnico de segurança.
Ficámos os dois em silêncio durante algum tempo, mais do que o suficiente para que na minha cabeça se formassem desejos inconfessáveis.
− Então, ele é português?
− O que é que isso te interessa?
O Ricardo encolheu os ombros e olhou em frente com uma expressão apática.
− Depois disto tudo, acho que tenho o direito de querer saber.
Não era completamente verdade, mas não tive forças para discutir com ele.
− O Alex é português e o pai dele também, mas a mãe é cabo-verdiana.
Abanou a cabeça várias vezes enquanto dizia impropérios, como «filho da mãe», «covarde» e «verme», dirigidos ao Alex. Quando se cansou de o insultar, voltou a encarar-me mais controlado.
− Não te preocupes. Vou dar-te uma boa pensão, vais poder usá-la para vos sustentar aos dois, a ti e ao bebé.
Tive vontade de lhe dizer que eu é que não queria continuar casada com ele e que devia ter entregado os papéis no dia em que os assinei, em vez de me telefonar para Moçambique a dizer que não queria viver sem mim, esperar-me no aeroporto e pedir-me para voltar para casa.
Contive-me e respondi secamente.
− Nós vamos ficar bem, Ricardo. Não precisamos de nenhuma pensão tua. Trata do acordo de divórcio como achares melhor e não te preocupes com mais nada.
Ele acenou a concordar com a minha decisão e contraiu os lábios numa linha fina.
− Está bem. Vou falar com o doutor Leonel e aviso-te quando ele fizer um novo acordo.
Logo a seguir despediu-se e foi-se embora sem sequer me dar um beijo.
Recriminei-me por ter fantasiado cenários ingénuos e solucei ao vê-lo desaparecer. Senti um aperto no peito que me magoava tanto, que pensei que o meu coração podia parar a qualquer momento.
Precisava de me acalmar para o bem do meu bebé. Ia pedir ajuda à minha amiga querida que me amparava sempre nas alturas difíceis. Ela ia consolar-me, insultar o Ricardo e confirmar-me que eu ficava muito melhor sem ele.
Só me atendeu à segunda tentativa e depois de muitos toques.
− Acreditas que o Ricardo me perguntou se o Alex era português?
Ouvi-a fazer um rugido exasperado e depois impediu-me de continuar a dar largas à minha indignação.
− Sofi, queres saber a verdade? Sim, acredito, mas não quero saber. Já não tenho paciência para os teus dramas! Estou-me nas tintas para o que o Ricardo te perguntou! Vocês têm falta é de preocupações reais! Se tivessem oitocentas páginas do Heart Diseases para rever numa semana, já não se punham com essas merdas! Tenho os dois miúdos em casa a dar cabo de mim! A minha empregada resolveu ir ver a mãezinha que foi operada à porra da vesícula e os meus sogros estão de férias na Escócia. Estão os dois reformados, tinham tanta merda de semanas e tiveram de escolher esta, precisamente uma semana antes do meu exame, para irem pinar no estrangeiro e celebrar o aniversário do casamento. Deviam era preocupar-se com o casamento do filho, que não pina há duas semanas, está impossível de aturar e a moer-me o juízo a toda a hora!
Ela já me tinha dito que lhe tinham mudado a data do exame de saída da especialidade para dia 31 de julho, «para a fazerem sofrer até à última», mas jamais imaginei que fosse motivo para tanto desespero.
Ela era uma boa cardiologista e nenhum exame iria mudar isso. Ela própria já mo tinha dito várias vezes.
− Oh, Joana, não stresses tanto com a porcaria do exame. Até já te disseram que te faziam um contrato no teu hospital. Além do mais, já deves saber isso tudo...
As minhas palavras, cujo objetivo eram acalmá-la, tiveram exatamente o efeito contrário. Ela desatou aos gritos, a falar muito depressa e furiosa comigo.
− Claro que não sei! És tão ingénua, Sofi! É humanamente impossível saber tudo e há gajos que adoram ser júris dos exames, para se sentirem importantes a fazerem perguntas estúpidas, sobre uma merda qualquer que não interessa para nada e que tu nunca pensaste que alguém inteligente achasse relevante! Só para te fazerem de imbecil, enquanto alimentam os seus egos frustrados por não serem diretores de um estaminé qualquer.
Gritou-me como se os júris fazerem perguntas estúpidas fosse culpa minha. O estudo em excesso tinha-lhe fritado o cérebro e ela estava a delirar.
− E estás a estudar com os meninos aí em casa?
Rosnou como se fosse uma fera prestes a atacar.
− A estudar?! Isso queria eu! No único dia em que peço aos meus filhos para se entreterem um bocadinho sozinhos e lhes digo que era mesmo importante para mim, não fazem outra coisa senão gritarem e baterem-se um ao outro a toda a hora!
Estava tão desaustinada que nem me atrevi a dizer-lhe que os meninos deviam estar a sentir a sua ansiedade. Limitei-me a informá-la de que chegava a sua casa em cinco minutos.
− Nem penses, Sofi! Escusas de pensar que vens para aqui falar sobre o que o Ricardo disse ou não disse. Hoje não tenho tempo para a tua telenovela!
Perdi a paciência e respondi-lhe no mesmo tom enraivecido.
− Eu não quero falar contigo sobre a minha telenovela, só quero salvar o meu afilhado e o irmão de ti, sua tresloucada! Vou buscá-los agora mesmo. Diz-lhes que a tia Sofi os vai levar para umas miniférias, longe da mãe completamente doida!
Quando cheguei a sua casa, ela abriu-me a porta com um sorriso envergonhado. Estava com uma cara péssima, olheiras enormes e vestida exatamente como tinha saído da cama.
Os meninos apareceram logo atrás dela e fizeram-me uma grande festa, muito satisfeitos com a ideia de irem passar férias comigo.
Pedi-lhes para escolherem alguns brinquedos e fui ajudar a Joana a fazer-lhes a mala, enquanto a tentava chamar à razão sobre a falta de sentido do seu desespero.
− Se sabes tudo o que é importante, porque te estás a matar por causa de uma pergunta insignificante que não vais saber responder? O que é que vai mudar? Em vez de teres 19,8 tens 19,5? É assim tão importante para ti? Sempre foste competitiva, mas isto é estupidez pura! Digo-te mais, rasa a loucura...
Ela fechou os dois punhos e deu um grito.
− Ah! Não podes compreender, Sofi! Não é a nota em si que é importante, é o facto de ficarmos seriados... Se aquele idiota chapado do Mário Abrantes do hospital de Coimbra, que tem a mania e faz exame comigo, tiver melhor nota que eu, vou ficar muito irritada! Só tens um dia para mostrares o que vales!
Devo ter olhado para ela com uma expressão de incompreensão total, porque ela desistiu de me explicar e atirou-se para cima da cama.
− Tens razão, eu sei que é uma anormalidade, mas toda a gente passa por isto...
Sentei-me ao seu lado e tentei animá-la.
− Fico contente por ao menos teres a noção de como é estúpido... Isso mostra que ainda tens algumas capacidades de autocrítica e que poderás voltar a ser uma pessoa normal daqui a cinco dias...
Ela pareceu-me a voltar a si, porque fez uma careta sorridente enquanto me tentava bater com um peluche da Patrulha Pata, que o Gonçalito de certeza ia querer levar.
Acabámos de fazer as malas dos meninos e tentei entusiasmá-los. Não queria levá-los contrariados e o António estava com medo de ter saudades da mãe.
− Vai ser o máximo, António! Amanhã vamos para Beja. A casa da avó Luísa é perfeita para brincarmos às escondidas e podemos tomar banhocas na Mina de São Domingos.
O António perguntou-me quando voltaria, ao mesmo tempo que tentava encaixar um carro de polícia enorme dentro da mala e amarrotava a roupa toda.
Olhei para a Joana pelo canto do olho, de pijama e com o cabelo oleoso.
− Assim que a mamã fizer o exame importante e recuperar a sanidade mental.
Ela deu uma gargalhada alta como já não devia dar há algum tempo, ajoelhou-se para abraçar os meninos e desatou a dar-lhes beijos atrás de beijos. Quando se deu por satisfeita de os beijocar, foi a minha vez de receber um abraço.
− Obrigada por me ficares com eles, Sofi. Estou quase a descompensar.
Não resisti a dizer-lhe a verdade.
− Quase? Já passaste essa fase e não deste por isso... − Ela franziu o sobrolho numa expressão de desacordo, como se não estivesse completamente descontrolada ao telefone meia hora antes. − E por favor lava-me essa cabeça. Podes ser a médica mais sabichona do mundo, mas esse cabelo onde dá para fritar um quilo de batatas tira-te a credibilidade toda. O júri nem te vai ouvir, só se vai focar nessa oleosidade brilhante no cimo da tua cabeça...
Ela fez-me uma careta, ofendida com excesso de sinceridade.
− Ah! Ah! Ah! Para tua informação, já marquei cabeleiro e manicura para a véspera do exame. Vou completa e absolutamente impecável da cabeça aos pés!
Franzi o nariz enquanto ela acariciava os cabelos curtos. Tinha direito de a espicaçar, era a minha pequena vingança por ela me ter gozado com o facto de eu ter «curtido com a black mamba» enquanto era casada.
− E até lá, vais andar assim em frente ao Fred? É a tua estratégia para ele não querer pinar e te roubar meia hora ao estudo das coisas que não são importantes?
Revirou os olhos e respondeu-me autoritária.
− Adeus, Sofi!
Desceu connosco, sem se preocupar que os vizinhos a vissem na figura em que estava, para montar as duas cadeirinhas dos miúdos no meu carro, uma tarefa extremamente complicada e que eu jamais teria conseguido fazer sozinha. Depois de lhes apertar os cintos ultrasseguros e de os beijar outra vez, voltou para casa a correr, não sei se para ir estudar coisas que não eram importantes, ou se para tomar um banho e mudar de roupa antes de o Fred chegar.