3 de setembro de 2017

O batizado

16 semanas

Era um sentimento mesquinho, mas senti-me satisfeita por a Rosarinho me preferir em detrimento do amigo de infância e aproveitei para desfrutar da sensação quando o Ricardo me ligou.

− Acho que que vai ser constrangedor irmos os dois, Ricardo. As pessoas vão falar...

− Vão falar é se eu não for. Sou amigo da Rosarinho desde sempre e gostava muito de assistir ao batismo do seu primeiro filho. Não vejo nenhum motivo para não irmos os dois.

Ele não desistiu até que cedi, e pior do que isso, deixei-o convencer-me a irmos juntos. Só o Ricardo para continuar a tentar manter as aparências numa situação como a nossa... Era uma pretensão ingénua e descabida, mas fiz-lhe a vontade porque o batizado era em Colares e não me apetecia conduzir até lá.

A viagem foi tranquila, falei sobre o meu regresso ao colégio e o Ricardo pôs-me ao corrente das novidades sobre outros convidados que também iam estar no batizado. O Manel, o seu grande amigo desde os tempos de liceu no São João de Brito, namorava há alguns meses com uma prima da Rosarinho e também tinha sido convidado.

Chegámos à quinta em cima da hora, cumprimentámos outros convidados que também estavam a chegar e sentámo-nos na capela ao lado um do outro.

Quando acabou a cerimónia fomos para um jardim muito bonito, com mesas enfeitadas em tons de bege onde seria servido o almoço.

Juntámo-nos a um grupo de amigos do Ricardo, que não disfarçaram a admiração por nos verem juntos quando nos cumprimentaram. Ele ignorou os olhares avaliadores, passou o braço por cima dos meus ombros com à-vontade e fez conversa de circunstância.

Depois do almoço, as suas fãs do costume começaram a orbitar à sua volta, juntamente com uma amiga da Rosarinho, que eu não conhecia e simpatizou muito com o Ricardo.

O que mais me irritava era o efeito que ele continuava a provocar na sempre insuportável Benedita, a menina de boas famílias que me avisou de que eu era «descartável» quando me conheceu na Praia da Luz.

Durante os longos minutos de atenção que o Ricardo lhe dedicou a seguir à amiga da Rosarinho, ela derreteu-se em sorrisos rasgados enquanto se bamboleava como uma anormal. Desejei intensamente que ela ficasse com uma cãibra no maxilar, que a impedisse de falar durante o resto da festa.

Desviei o olhar e decidi ignorar a socialização do Ricardo. Aceitei uma segunda fatia de bolo e sentei-me na mesa de uma cunhada da Rosarinho que também era professora, para debatermos os desafios de ensinarmos adolescentes, criaturas revoltadas por natureza, que tanto nos faziam ter vontade de os atirar pela janela como nos comoviam até às lágrimas.

A conversa estava a ser muito interessante, por isso, quando a Benedita apareceu a ensombrar-me aquele momento agradável e a perguntar se podia sentar-se ao meu lado, foi-me extremamente difícil forçar um sorriso amarelo e assentir.

Enquanto ela se sentava, procurei o Ricardo. Estava muito animado a falar com o marido da Rosarinho. Pelos vistos, tinha-se fartado de ouvir a voz de falsete da Benedita.

Eu também tinha, ainda antes de ela abrir a boca.

− Adoro estar com os meus amigos de infância. As amizades de sempre marcam-nos de uma maneira especial e acabam até por nos definir... Não acha, Sofi?

Fiz uma expressão de desinteresse para ela perceber que preferia que se fosse embora. Não estando casada com o Ricardo, a cortesia para com a Benedita não fazia parte das minhas obrigações.

Ia virar-lhe a cara para retomar a conversa com a Maria do Céu, mas não consegui. A Benedita era tão irritante que não percebia que não a queria ouvir, ou então percebia mas não se importava.

− Eu e o Ricardo, por exemplo, podemos passar imeeeeenso tempo sem nos vermos, mas quando nos encontramos é como se fosse ontem que andávamos juntos na catequese da Igreja de São João de Deus. Ele passava o tempo todo a fazer disparates para eu me rir.

Perdi o decoro e fiz-lhe uma careta em que franzi os lábios e os olhos, claramente demonstrativa do meu desagrado, mas mesmo assim não me consegui livrar dela.

− Eu e o Ricardo sempre pensámos da mesma maneira e temos imeeeeenso em comum. Acho que foi da nossa convivência tão boa durante a fase em que se forma a personalidade, partilhamos a mesma visão nas coisas mais importantes da vida... E sem falar de que até tirámos o mesmo curso! – Deu um grunhido ridículo, como se tivesse descoberto algo fabuloso antes de continuar. – Ah! É verdade, o Ricardo contou-lhe que o tio Afonso me convidou para trabalhar com eles? Estive a mostrar-lhe uns projetos que fiz em Londres e ele adorou o meu trabalho...

Fiquei nauseada e demorei algum tempo a recompor-me, não esperava que o meu sogro contratasse a Benedita para trabalhar com eles no atelier. Ele devia saber que ela era obcecada pelo Ricardo, qualquer pessoa com olhos na cara percebia isso.

Senti-me subitamente indefesa e o meu cérebro ficou incapaz de produzir uma frase adequada para lhe responder. No instante em que ia dar parte fraca e dizer à Benedita para me deixar em paz, o Manel aproximou-se de nós.

− Peço desculpa por vos interromper, minhas queridas, mas tenho de me despedir, vou viajar amanhã de manhã e ainda tenho uns assuntos pendentes para tratar.

Levantei-me para me despedir do Manel, ansiosa por fugir da cobra da Benedita. Ele percebeu o meu desespero, fez-me um sorriso gentil e apontou na direção de umas cadeiras vazias no final do jardim.

− Queria falar contigo num instante antes de me ir embora. Tens um bocadinho, Pocahontas?

Senti-me melhor ao ouvir o nome como sempre me chamou desde que me conheceu, quando foi com o Ricardo à festa da Nossa Senhora da Luz e estava com uns copos a mais. Segui-o aliviada, qualquer coisa que o Manel me fosse dizer, seria muito melhor que ouvir a Benedita.

Sentámo-nos, ele olhou em volta a certificar-se de que estávamos sozinhos e depois encarou-me com uma expressão séria.

− Vais separar-te do Ricardo?

O Manel não gostava de rodeios.

Eu não gostava da pergunta que ele me tinha feito e reprimi uma vontade súbita de me levantar.

− Porque perguntas isso?

Ele respondeu-me com naturalidade e sem o acento gozão que costumava usar quase sempre.

− Porque vocês não vivem juntos e costumam ter uma interação diferente, mais... amorosa.

Senti humidade nos olhos. Se calhar tinha-me enganado, vir com ele tinha sido uma má ideia.

− Sim. Eu e o Ricardo vamos separar-nos.

Ele cruzou os braços à frente do peito, fez uma expressão profissional e fitou-me com os olhos semicerrados.

− E já arranjaste um advogado, não arranjaste? Como é que ele se chama?

Apoiei um cotovelo na mesa e a cara na mão, suspirei e sorri-lhe descontraidamente. Preferia muito mais falar sobre advogados do que sobre o Ricardo não ser amoroso comigo.

− Não vou gastar dinheiro com advogados. Os do avô do Ricardo é que vão tratar de tudo.

Ele riu-se e tapou a cara com as mãos.

− Não, Pocahontas. Não! Eu sabia! Eu sabia que tu eras menina para cair num disparate desses... Diz-me que ainda não assinaste nada?

Depois do voto de desconfiança no meu discernimento, não lhe podia dar razão e contar-lhe que tinha assinado um acordo desastroso «a fingir» que estava na posse do meu pai.

− Não. Ainda não assinei nada.

Ele fez uma expressão profissional e falou-me num tom condescendente.

− Nem vais assinar nada, Pocahontas, absolutamente nada, sem teres um advogado como deve ser.

Fiquei sensibilizada com a preocupação do Manel.

− Eu e o Ricardo somos capazes de resolver isto como dois adultos responsáveis. Não te preocupes, Manel. Vai correr tudo bem.

Ele falou-me com uma expressão incrédula e ligeiramente recriminadora.

− Só tu! Só tu para pensares assim, mais ninguém! És mesmo a presa ideal e eu sabia... Claro que não vai correr tudo bem. Nunca corre bem, Pocahontas. É um divórcio! Um blind date pode correr bem, uma operação para aumentar as mamas pode correr bem, um divórcio não. Um divórcio corre sempre mal!

Não pude reprimir uma gargalhada, divertida com as comparações. O Manel adoptou uma postura mais grave, falou-me baixo mas num acento muito vigoroso de quem não estava a brincar.

− Os advogados do avô do Ricardo são dos melhores da praça, vão triturar-te e tu nem vais perceber!

Olhei-o fixamente e fingi-me muito ofendida.

− Achas que sou burra?

Ele percebeu que eu estava a brincar e o Manel gozão a que estava habituada regressou.

− Estava na dúvida, mas tu acabaste de mo confirmar.

Fez um sorriso cúmplice e depois voltou a encarnar o conselheiro jurídico.

− Agora a sério. Acho que és fácil de levar e pouco preparada para este tipo de situações. Eu sou advogado e sei o que as pessoas boas são capazes de fazer no seu pior. Estás a ver aquele tipo a falar com o teu cunhado Diogo?

Acenei na direção do homem bem-parecido que ele apontou com olhar.

− Há dois anos, depois de a mãe morrer, resolveu entrar em litígio com o pai. Fez uma pequena conspiração com outros acionistas e conseguiu afastar o velhote da sua própria empresa, que ele tinha construído durante mais de quarenta anos.

− O Ricardo não é assim.

− Eu sei que não é, Pocahontas, mas, independentemente disso, tens de contratar um advogado que saiba esgrimir com os dele. Não me sentia bem comigo próprio se não te desse este conselho. Tu agora fazes como quiseres. E também era bom que não contasses esta nossa conversa ao Ricardo. Não gostava de arranjar problemas com um dos meus melhores amigos.

Durante dez anos de convívio, aquela foi uma das raras vezes em que o Manel falou comigo a sério.

− Obrigada pelo conselho, Manel. Fica descansado, não te vou arranjar problemas com o Ricardo.

− Eu sei que não. – Respirou fundo, tirou o telemóvel do bolso e começou a teclar. – Estou a mandar-te um contacto, este tipo é um gajo com provas dadas em divórcios, é sério e ninguém lhe passa a perna. Se jogarem sujo ele também sabe jogar, e bem, que já me lixou duas vezes. Andámos na faculdade juntos e já lhe fiz alguns favores. Liga-lhe e diz que és minha amiga.

Fiquei a olhar para o sempre gozão Manel, subitamente transformado num cavalheiro, enquanto refletia no que ele tinha acabado de dizer.

− Porque escolheste esta profissão em que as pessoas jogam sujo?

Ele não se retraiu com a pergunta indiscreta, piscou-me o olho e justificou-se num acento trocista.

− Nem todos somos pessoas fofinhas como tu. Há quem aprecie andar à porrada de gravata com palavras caras e ser muito bem pago por isso.

Foi a coisa mais engraçada que ouvi desde que tinha saído de casa, estava mesmo a precisar de descomprimir e ri-me alto.

− Adoro! Andar à porrada de gravata é muito bom! – Fitei o tipo que tinha conspirado contra o pai e depois virei-me para o Manel, com uma expressão falsamente acusadora. – Então, vocês são todos farinha do mesmo saco...

− Não, não somos. Porque há uns que se fazem de santos superiores enquanto lixam o próximo e outros assumem que gostam do jogo.

Quando acabou de falar encolheu os ombros e também apoiou um cotovelo na mesa como eu.

− E tu, Pocahontas? Diz-me lá? Como é que conseguiste manter essa aura de hippie inocente? Mesmo depois de tantos anos a conviver com os clãs betos, tu não mudaste nada... Conta lá qual é o teu segredo?

O meu segredo era nunca me ter dado a nenhuma daquelas pessoas de coração aberto, muitas delas boas pessoas, como a Rosarinho, que fazia questão de que eu fosse ao batizado, mesmo que desagradasse ao grande amigo da família.

− Nunca consegui gostar muito deles.

Rimos outra vez os dois, o Manel tinha sentido de humor, gostava da minha espontaneidade e também gostava de me embaraçar.

− Nem da minha namorada Bibinha?

Fiz uma expressão constrangida e respondi com uma voz afetada.

− Acha!? Pelo amor de Deus! Da Bibinha eu gosto imeeeeennnso.

Abandonei a minha voz queque fingida, uma péssima imitação da tia Pi, para lhe responder a verdade.

– A Bibinha é querida e a Rosarinho também é muito querida. Eu é que me coloquei um pouco à parte, por complexos ou por preconceitos meus.

Olhei em volta, para as pessoas com quem tinha convivido durante anos sem sentir grande empatia, incluindo o pai da Benedita, com quem o Ricardo conversava.

− Dava-te muito transtorno deixares-me em Campo de Ourique?

Despedi-me dos anfitriões e fui informar o Ricardo de que voltava para Lisboa com o Manel.

O Ricardo em vez de me deixar ir embora discretamente, chamou o Manel e disse-lhe que me levava, para que o amigo não perdesse tempo.

O Manel respondeu desinteressadamente.

− Não te preocupes. Fica-me praticamente em caminho, não me faz diferença levar a Pocahontas.

O Ricardo sorriu para o amigo e pousou a mão direita no meu ombro. Qualquer pessoa que olhasse para ele diria que estava alegre e tranquilo.

− Deixa estar, Manel. Eu levo-a.

O Manel insistiu.

− Eu vou ter de deixar a Bibinha na Expo, tu assim escusas de ir a Lisboa e voltar para o Restelo.

O Ricardo concordou com a lógica dos itinerários, mas manteve a mão no meu ombro e eu resolvi acabar com aquele impasse.

− Deixa estar, Manel. Se o Ricardo também se quer ir JÁ embora, eu vou com ele.

Frisei bem a palavra «já» e senti-me vingada quando o Ricardo me acenou afirmativamente. Ele estava longe de querer interromper a socialização e tinha um whisky acabado de servir na mão.

Saímos pouco depois, com ele a conduzir em silêncio e eu a desejar que os quarenta minutos da viagem passassem depressa.

A meio do caminho, resolveu censurar-me num tom ofendido, como se eu lhe devesse satisfações.

− Mas que ideia era essa de te vires embora com o Manel!? Achas isso minimamente aceitável?

Revirei-lhe os olhos e fiz um careta.

− Com o Manel e com a Bibinha, que é a namorada do Manel.

Trocou de mudança num gesto seco antes de me responder.

− Sim! A namorada para quem ele se está nas tintas e que vai à vidinha rapidamente, como fez a todas desde sempre e vai continuar a fazer! Não penses que ele vai mudar, porque não vai.

Lembrei-me de uma teoria do meu amigo Ricky sobre esse tipo de comportamentos, mas optei por não a partilhar. O Ricardo estava com um humor péssimo, provavelmente não ia achar graça.

− Pois claro que não vai. E desde quando é que isso te chateia?

Parou num semáforo e olhou-me por longos momentos. Daquela vez a expressão dele não tinha nada de serenidade, estava carregada de mágoa e sofrimento. Tinha tudo o que sentia na alma e na carne, sem filtros nem omissões.

− Tu sabes o que me chateia.

Fingi que não sabia o que o chateava e tentei aligeirar o ambiente, de outra forma não ia conseguir suportar aquela viagem.

− Que disparate, Ricardo! Tu nunca foste nada ciumento e agora de repente deu-te para o Manel...

Ele também fingiu que era o Manel que o chateava.

− Não é ciúmes. É uma questão de respeito.

Desisti das minhas boas intenções de evitar uma discussão e levantei a voz.

− Respeito? Não confundas respeito com aparências... A eterna causa obsoleta e idiota de Ricardo Soares de Almeida. As aparências!

Ele mordeu os lábios e percebi que o seu fingimento também ia acabar.

− Queres provar-me alguma coisa, é isso, Sofi? Já conseguiste. Provaste tudo do que és capaz quando engravidaste de um tipo qualquer com quem andaste em Moçambique para te vingares de mim!

Abanei a cabeça, sem saber por onde começar a rebater aquela sua teoria disparatada.

− Estás muito enganado, Ricardo. Não foi nada assim!

Continuou a olhar para a estrada enquanto falava muito convicto.

− Claro que foi assim! Eu conheço-te muito bem. Vi a tua fúria no dia em que assinaste os papéis e como me olhaste no dia em que vieste buscar as tuas coisas. Eu sabia que te ias querer vingar...

Dei uma gargalhada sonora mas sem nenhuma vontade.

− Ah! Ah! Ah! Claro que sim, o mundo gira à tua volta, Ricardo.

Lançou-me um olhar carregado de revolta que combinava com a sua voz.

− Então, diz-me que não saíste de nossa casa naquele domingo com vontade de te vingares?

As recordações desse dia, em que descobri que outra mulher tinha dormido na nossa cama, fizeram-me estremecer.

− Eu saí de lá decidida a seguir em frente com a minha vida e aproveitar a minha liberdade. É diferente de querer vingança. Vingança era se te fizesse mal, te partisse os vidros do carro, pintasse grafitis nas paredes da casa ou enviasse cartas a dizer calúnias sobre ti.

Fez um suspiro de derrota que me apertou o peito.

– Quem me dera que tivesses feito isso tudo, Sofi. Não podias ter arranjado outra maneira de me fazer mais mal. – Fez uma pausa e continuou mais para si próprio do que para mim, num tom desolado e com os olhos brilhantes. − Aproveitar a liberdade... Só me podias ter feito pior se tivesses morrido.

Um segundo depois de o dizer, largou o volante para se benzer com a mão direita, tirou a cruz de prata de dentro da camisa e levou-a aos lábios.

Vê-lo fazer aquele gesto fez com que os meus olhos quase transbordassem. Baixei a cabeça, embaraçada e triste, para remexer ao acaso dentro da minha mala e encerrar o assunto.

− Conta-me o que o Manel te estava a dizer, quando te levou para se sentarem sozinhos.

Levantei a cabeça e encarei-o indecisa.

− Já que me deste cabo da vida, ao menos podias continuar a ser sincera comigo. Acho que pelo menos isso mereço.

Respondi-lhe. Devia muito mais lealdade ao Ricardo do que ao Manel, e não acreditava que ele se fosse zangar com o amigo por me ter dado conselhos jurídicos. Era preferível a que ficasse a imaginar outras coisas.

− O Manel estava a dizer-me que eu sou ingénua e que os teus advogados são o suprassumo da batata. Não se queria meter porque é teu amigo, mas aconselhou-me a contratar um bom advogado de divórcios e deu-me o contacto de um colega que andou com ele na faculdade.

O Ricardo fez um esgar que era uma imitação de um sorriso.

− Ai ele estava preocupado contigo, era isso? Se ele soubesse o inocente e ingénua que tu és! E tu, porque é que lhe disseste que nos íamos divorciar?

Podia ter-me calado, ou respondido com menos pormenores, mas a minha natureza não era essa.

− Não lhe disse. Ele descobriu sozinho, se calhar por toda a gente saber que já não vivemos juntos e por TU, Ricardo, teres passado a tarde a dar confiança às tuas fãs do costume. Como a tua amiga Benedita, que da próxima vez que vier fazer conversa imbecil sobre como tem tanta coisa em comum contigo, vai levar com um prato de bolo nas trombas. É mais uma coisa que os dois vão ter em comum, ambos terem levado com objetos arremessados por mim. E mais, posso não ser ingénua nem inocente, mas nunca fui para a cama com ninguém enquanto achava que era casada. Isso sim, é que é uma questão de respeito!

Tinha vontade de lhe dizer mais coisas, mas houve algo na forma infeliz como me olhou que me deteve e me fez permanecer em silêncio até chegarmos à rua da Rita.

Em vez de parar em frente ao prédio e me deixar sair, ele decidiu que ia estacionar e subir comigo.

− Porquê, Ricardo?

− Quero ver as áreas e os materiais da casa. Tenho um cliente que está a pensar investir em dois apartamentos no prédio ao lado.

Entrámos em casa, descalcei-me e fiz-lhe sinal para inspecionar o que quisesse.

− Primeiro, quero beber um whisky, acho que é justo, uma vez que nem toquei no James Martins que tinha acabado de pedir por causa de ti.

Apeteceu-me responder que estava cheia de pena e que o melhor era ele ir ter com o seu amiguinho Tomás a uma discoteca, para beber muitos whiskeys e depois levar a loura perfumada para a cama pirosa que tinha comprado para mim.

Em vez disso, apontei para a minha barriga incipiente.

− Não tenho bebidas alcoólicas.

O Ricardo franziu o sobrolho e avançou em direção ao louceiro.

− E a professora Rita não tinha cá nada? Toda a gente tem alguma coisa em casa para oferecer às visitas...

Antes que eu lhe respondesse, ele abriu as portas inferiores do louceiro, tirou duas garrafas de cristal e destapou-as para cheirar o conteúdo.

− Ha! Ha! Whisky! Não muito bom, mas bebível...

Se ele se pusesse a beber, ia querer fazer sala e demorar muito mais tempo a fazer a apreciação da casa. Tentei demovê-lo da ideia e alertei-o para a hipótese de que aquelas garrafas podiam estar ali há vários anos, desde o tempo em que a Rita ainda vivia em Portugal.

− Não faz mal, não está estragado. Podes trazer-me um copo com duas pedras de gelo por favor?

Fiz-lhe uma careta de irritação, mas fui à cozinha buscar-lhe o copo com gelo e outro com sumo para mim. O Ricardo serviu-se generosamente, mudou a avaliação do whisky de «bebível» para «bastante razoável», tirou a gravata e começou a inspecionar a sala.

Quis ir a todas as divisões, incluindo o meu quarto, todo desarrumado e com uma pilha de roupa em cima da cadeira, onde se incluía um soutien novo que eu tapei desajeitadamente com uma almofada.

Estava cada vez mais enervada com aquela situação, não devia ter permitido ao meu futuro ex-marido andar a remexer na «minha» casa «nova», com aquela camisa branca que lhe ficava tão bem, a perscrutar tudo com os seus olhos verdes como não existiam outros e a sua expressão avaliadora.

Encaminhei-o para o hall assim que passou revista a todas as divisões e depois de ter acabado o whisky. Só me queria despedir e que ele se fosse embora, precisava de ficar sozinha, para tomar um banho relaxante e poder chorar à vontade se me apetecesse.

Estava a tentar abstrair-me de como a sua presença era perturbadora, quando fiquei encurralada. Num movimento súbito mas harmonioso, o Ricardo fez-me ficar entre si e a parede.

O meu coração batia descompassado enquanto ele me agarrou nos antebraços e os prendeu contra a parede.

Baixou a cabeça, rodeou a minha face, encostou o nariz atrás da minha orelha esquerda e inspirou profundamente.

− Cheiras tão bem, Sofi... Reconhecia-te pelo teu cheiro em qualquer lugar...

Humedeci os lábios para conseguir articular palavras, tinha a minha boca completamente seca e a mente vazia, como se fosse entrar em curto-circuito a qualquer momento.

− Ricardo, por favor, tem juízo...

Encarou-me contrariado com a minha tentativa de o chamar à razão.

− Não me digas para ter juízo... Deste-me cabo da cabeça por causa da endometriose, das FIV e dos ovócitos de dadora. E, depois, engravidaste.

As suas mãos percorreram os meus braços até chegarem ao meu corpo. Sem desviar o olhar do meu, abriu o fecho de lado do meu vestido e fê-lo deslizar até aos meus pés.

Não o tentei impedir.

Fechei os olhos e fiquei à espera que ele me beijasse.

Ele não o fez, em vez disso rodou-me e virou-me de costas para si. Apoiei as mãos na parede fria, que contrastava com a respiração do Ricardo, a ferver no meu pescoço.

Senti as suas mãos percorrerem as minhas costas e as minhas cuequinhas rendadas também foram parar ao chão.

Rodeou-me a cintura num abraço terno e falou com os lábios nos meus cabelos.

− Eu tentei, Sofi, mas não consigo ter juízo ao pé de ti... É mais forte do que eu...

A seguir virou-me para si e ficou a olhar-me fixamente, com uma intensidade que me deixou sem ar e fez o meu coração bater descompassado.

O Ricardo era uma farpa dentro do meu coração, uma farpa que só ele podia tirar.

Quando me pegou ao colo, prendi-lhe a face nas minhas mãos e beijei-o.

Ele correspondeu, com arrebatamento, com fervor e também com amor. Eu sabia que sim.

Depois de fazermos amor, ficámos no sofá, durante muito tempo, abraçados e em silêncio.

Fechei os olhos e voltei a ter a sensação de que o ar entre nós era diferente, como se o sentimento que nos unia pudesse sair de nós e transbordar naquela textura leve, que eu pressentia mas não conseguia tocar.

Lembrei-me da primeira vez que lho revelei na nossa lua de mel, e de como ele me assegurou que iria ser assim até ao fim das nossas vidas...

Eu queria ter ficado ali para sempre, a sentir a sua pele colada à minha e os seus dedos ternos ao longo dos meus cabelos. Aquelas carícias faziam-me sentir no céu...

Fui à casa de banho e regressei o mais depressa que consegui para me voltar a aninhar no seu corpo.

Mesmo assim não fui suficientemente rápida, porque quando cheguei à sala ele estava de pé e completamente vestido.

Falou-me com uma expressão embaraçada.

− Está tudo bem, Sofi?

− Sim.

− Não estás a perder sangue nem nada disso?

Pelo seu tom arrependido, devia estar a lembrar-se de que eu tinha abortado na segunda FIV depois de fazermos amor. Os médicos disseram-nos que tinha sido coincidência, mas eu não tinha acreditado e tinha-o culpado de forma irracional.

Recriminei-me mentalmente por todo o tempo que nos fiz sofrer, incapaz de aceitar que tinha abortado porque tinha de acontecer. Não tinha sido por culpa dele, nem por nada que eu tivesse feito.

− Não, estou bem. Só tenho um bocadinho de sede. Vou buscar outro sumo. Queres beber mais alguma coisa?

Fez um gesto de negação.

− Não, obrigado. Se estás bem prefiro ir-me embora.

Eu queria muito que ele ficasse. Lamentei não ter mentido e ter dito que estava bem.

− Ainda é cedo, podemos ficar aqui no sofá mais um bocadinho...

Hesitou por instantes, mas depois recusou.

− Não, Sofi. É melhor não... Esta... – Fez uma pausa e um esgar infeliz antes de continuar. – Esta obsessão que eu tenho por ti... Isto não nos faz bem. Nem a mim nem a ti.

Fiquei onde estava, a vê-lo sair e fechar a porta.

Afinal, não era amor o que eu tinha sentido.

Era obsessão.