2 de outubro de 2017

Acordei de madrugada, numa cama vazia e com fome. Fui à cozinha preparar uns cereais e vi um bilhete do Ricardo.

«ESTAVAS A DORMIR TÃO BEM QUE NÃO TE QUIS ACORDAR. AMANHÃ LIGO-TE. BEIJOS.»

Fê-lo à hora de almoço, quando eu estava a sair do colégio porque era o meu dia sem aulas à tarde.

− O que vais fazer hoje, Sofi?

− Vou ver carrinhos de bebé ao El Corte Inglès.

A ecografia morfológica tinha confirmado que os órgãos da minha bebé estavam bem formados, o que para mim significava que ia oficialmente deixar de ter calma e de conter o meu entusiasmo «porque alguma coisa podia acontecer».

Queria começar a comprar coisas cor-de-rosa, de todos os géneros que um recém-nascido precisa, tê-las comigo e tocar-lhes sempre que me apetecesse.

Já tinha pedido à Joana o berço dos meninos, porque ela demorava uma eternidade a emprestar alguma coisa que implicasse ir à sua arrecadação, um local tenebroso onde se poderia passar um dia inteiro para encontrar um par de patins. Ela questionou o motivo de tanta antecedência e gozou-me, provavelmente com uma cara parecida à que o Ricardo devia estar a fazer...

− Não te aguentas mais, não é, Sofi? – Deu uma gargalhada breve que eu desejei que tivesse demorado mais tempo. – Tu a escolheres carros? Mesmo que sejam de bebé não sei se é boa ideia... Não é melhor eu ir contigo para tomar conta das questões técnicas?

− Acho que vai ser uma seca para ti andares no piso dos bebés...

− Deixa, eu não me importo.

Fiquei tão contente por ele vir comigo, que resolvi convocar os nossos alter egos lascivos e usei a minha vozinha de menina Sofia.

− Oh... senhor arquiteto, não imagina como me alegro por o senhor arquiteto me vir ajudar nas questões técnicas, vou ficar aqui ansiosamente à sua espera...

Ouvi-o suspirar, um suspiro longo que eu conhecia bem...

− Vou sair mais cedo, Sofi. Estou em tua casa às três e meia.

Como seria de esperar, só fomos ver os carrinhos de bebé quase à hora de jantar e não me consegui decidir. Eu queria comprar um carrinho com uma boa relação qualidade/preço, mas o Ricardo encantou-se com o design e as características inovadoras de um carrinho norueguês topo de gama que custava uma pequena fortuna.

Encerrei temporariamente a questão e resolvi que iria lá voltar mais tarde, para comprar o mais baratinho sem ele por perto a dizer-me que a diferença de preço valia a pena.

Apesar das nossas preferências divergentes adorei o programa. Foi por isso que quando me estava a deixar em casa, lembrei-me de que tinha outra tarefa boa para ele, ou outro motivo para ter a sua companhia, olhar para os seus olhos como não haviam outros e usufruir do seu sorriso bom.

− Também vou comprar um carro de verdade para mim. Queres ajudar-me a escolher um?

Olhou-me como se fosse estranhíssimo, eu, uma mulher adulta e independente, ter um carro.

− Vais comprar um carro? – Fez um sorriso matreiro antes de continuar. – Rendeu-se à vilania do consumismo e quer um carro poluidor, stôra Sofia eco sustentável?

Revirei os olhos e respondi-lhe com displicência.

− Bem, na verdade é o meu pai que quer que eu tenha um carro. Está farto que eu ande no dele e no da minha mãe. Na segunda-feira passada adormeci e vim no carro dele para chegar mais depressa ao colégio, não tive tempo de tomar o pequeno-almoço e levei uma banana para comer no caminho. Esqueci-me e devolvi-lhe o carro com a casca da banana em cima do assento do passageiro. Nem imaginas a ofensa que foi. Fez um escândalo e senti-me a filha mais desnaturada do mundo por causa da porcaria de uma bananinha...

O Ricardo deu uma gargalhada longa e depois outra mais curtinha a seguir.

− É muito bem feito para o senhor Francisco Mendonça, que sempre achou que a filhinha era de ouro e eu de prata, perceber como afinal o genro era um santo que merecia uma estátua... Eu também preferia que tivesses um carro só para ti, em vez de me dares cabo do meu, a raspá-lo em todo o lado e a enchê-lo de areia de cada vez que o usavas. O teu pai teve muita sorte por ser só uma casca de banana do próprio dia, eu cheguei a apanhar caroços de maçã enrolados em guardanapos podres e garrafas de iogurte, que tinham passado o prazo de validade há meses, escondidos por baixo dos bancos da frente.

Fiz uma careta e revirei-lhe os olhos outra vez. Aquela maçãzita e o Yoggi de morango iriam perseguir-me para sempre...

− Não estavam escondidos, devem ter caído com uma travagem! És tão parvo! O meu pai quer dar-me o carro como prenda de anos antecipada. Eu sou contra carros por motivos ecológicos, mas aceitei porque quando a bebé nascer vai dar-me jeito, para ir ao pediatra e outras voltinhas que queira fazer com ela...

O Ricardo acenou, concordando com a minha decisão de finalmente ter um veículo motorizado.

− Podes ficar com esta carrinha, Sofi. Não vale a pena o teu pai gastar dinheiro. Eu até prefiro ter outro carro mais desportivo para mim. Já tinha pensado que devias ficar com ela, mas, como nunca quiseste ter carro, não te tinha dito nada. – Bateu com as mãos no volante e anunciou decidido. − Deixa-me só tirar umas coisas que tenho no porta-bagagens, vou mandar limpá-la e dou-ta a seguir.

Era tudo o que eu não queria. Aquela carrinha tinha sido escolhida por ele depois de meses de investigação, aliava design, à máxima segurança e ao muito espaço que íamos precisar para os filhos todos que íamos ter.

Era um símbolo que me recordava do nosso futuro cor-de-rosa que não se concretizou, tê-la para a usar com uma filha só minha, ia fazer-me sentir remorsos de cada vez que a conduzisse. Só queria andar nela se fosse com ele lá dentro.

Por outro lado, também não queria nada que ele comprasse um carro desportivo tipo descapotável... ele já era bastante chamativo para o sexo oposto dentro de um carrinha familiar.

− Esquece, Ricardo! Está fora de questão! Eu não quero ficar com este monstro enorme e devorador de combustíveis fósseis. Quero um carro pequeno, fácil de estacionar, elétrico ou híbrido, o mais ecológico possível...

Ele aceitou os meus argumentos, começou a aceder aos seus vastos conhecimentos automobilísticos e deu-me várias sugestões.

Era incrível como o Ricardo, que não queria comprar um carro híbrido, sabia de cor as marcas que os vendiam. A Joana tinha muita razão quando falava da mota do Fred e dizia que os rapazes nunca cresciam, só os brinquedos é que ficavam mais caros.

− Gosto daquele com formas arredondadas, o Fiat 500 em verde-claro, é tão querido...

Ele franziu a testa como se eu tivesse dito um disparate terrível e abanou a cabeça.

− Não é suposto os carros serem queridos, Sofi! Além disso, de certeza que esse não tem espaço na bagageira para um carrinho de bebé.

Fiquei com pena, os carros cor de gelado de pistácio eram tão giros...

− E um daqueles carochas novos? Um vizinho da Rita tem um amarelo de que eu gosto muito!

Fez uma careta de desânimo, mas pelo meio sorriso, percebi que as minhas escolhas automobilísticas o divertiam.

− Fizeste bem em pedir-me ajuda, tenho mesmo de intervir nesta questão. O teu pai não percebe tanto de carros como eu e faz-te as vontades todas. Queres um carro colorido, é?

Acenei afirmativamente, eu adorava tudo o que era colorido, a decoração da nossa casa era um exemplo disso, tinha sido conseguida à custa de uma guerra entre o meu «exotismo piroso» e o seu bom gosto clássico. Uma guerra boa em que eu tinha ganho muitas batalhas...

O Ricardo não se apercebeu de que o meu cérebro sempre incansável já ia longe e trouxe-me de volta ao carro que eu ia comprar.

− Acabou de sair um e-Golf que fica bem em vermelho. O que é que achas?

Falei numa voz mimada que nunca fazia. − Eu gosto de amarelo e de verde...

Inclinou a cabeça de lado, os olhos brilhantes e contemporizadores...

− Vou estudar melhor o assunto, não me imagino a conduzir algo assim...

Eu não respondi, mas fiquei muito mais satisfeita do que quereria admitir, pelo facto de ele se imaginar a conduzir um carro que eu ia comprar no futuro.