Passei o resto do dia e a noite a pensar que a minha única hipótese era fugir. Na manhã seguinte, o Caxambu trouxe-me sumo de pacote, em vez de leite, e resolvi pôr o meu plano em prática.
− Caxambu, preciso de ir a uma casa de banho.
Eu queria sair dali com ele, precisava de estar o mais próximo possível da porta de entrada para usar o spray lacrimogénio. Só tinha de me assegurar de que o João Rodrigues não estava perto antes de avançar.
− Ainda não me esqueci de que fugiste por aquela merda daquele respiradouro, por isso podes continuar a fazer no balde.
− Não consigo fazer o número dois, é um equilíbrio difícil com a barriga. Não têm casas de banho no andar de cima? Não podes achar que me vou atirar de um primeiro andar, grávida de sete meses.
Olhou-me como se estivesse saturado de me ouvir.
− Não sei. Tu não és de fiar. Já tínhamos usado aquela sala muitas vezes e nunca tivemos problemas, mas tu partiste a grade e enfiaste-te por aquele buraco onde nem uma cadela grande cabia...
Pus-me de perfil e evidenciei a minha barriga.
− Agora eu também já não cabia. Por favor, Caxambu. Posso ficar doente e afetar o bebé...
Foi-se embora sem responder e voltou ao fim de pouco tempo, provavelmente depois de ter pedido opinião ao chefe. Torci para que tivesse sido por telefone e não presencialmente... Se o João Rodrigues estivesse na sala teria de ponderar melhor. Seria mais fácil arriscar se fosse só a minha vida em jogo e não tivesse a minha filha dentro de mim. Viver com uns pais sem moral que iam pagar por ela, era uma opção preferível a não chegar a nascer.
O Caxambu aproximou-se, indiferente aos meus pensamentos que incluíam cegá-lo, puxou-me as duas mãos e prendeu-as com uma braçadeira plástica igual à que tinha na carrinha.
− Caxambu, que exagero! O que posso eu fazer?
Franziu o sobrolho antes de me responder.
− Nunca fiando. Tu és uma cabra daquelas que não sabe estar quieta e só deves estar a pensar em fugir. Isto é para o teu bem, não te queremos matar se tentares fazer alguma merda estúpida.
Fiz um esgar de descontentamento e repulsa.
− Não me querem matar já, só depois de me roubarem a minha filha e os meus órgãos, se alguém rico e compatível estiver a precisar...
Falou como se o que eu tivesse acabado de dizer não fosse nada de especial.
− Pagar e morrer é o mais tarde que puder ser.
Segurou-me por baixo do braço esquerdo e levou-me como uma reclusa, exatamente o que eu era.
Atravessámos a cozinha e entrámos na sala, o melhor sítio para eu usar o objeto escondido na minha cinta e tentar fugir. Medi a distância até à porta da entrada e também até as portas de vidro, que davam para um pátio nas traseiras.
Infelizmente, o João Rodrigues também lá estava, sentado numa mesa, à frente de um portátil e com uma pistola ao lado.
− Só para te avisar que o Caxambu também está armado e não me vou chatear nada com ele se te matar. As portas estão todas fechadas à chave e se tentares abrir uma janela vais levar com o balázio que te prometi.
Engoli em seco. Por momentos, pensei que aquelas algemas de plástico podiam ser uma forma do Caxambu me manter com vida.
Subimos até ao primeiro andar e ele levou-me até uma casa de banho com uma pequena janela, que só abria em oscilo batente.
Para sair por ali só partindo as dobradiças e mesmo assim era muito apertado para uma mulher grávida de sete meses.
Quando estiquei as mãos para ele me cortar a braçadeira, encarou-me ameaçador.
− Não queria estar na tua pele se ouvir o barulho dessa janela a abrir. Vou ficar aqui fora com o ouvido colado à porta.
Quando ele saiu senti-me derrotada.
Seria difícil partir aquele oscilo batente sem o Caxambu ouvir. A única alternativa era atacá-lo assim que abrisse a porta e tentar sair por outra janela no primeiro andar.
Tinha de ser muito rápida, porque o Caxambu ia gritar e o João Rodrigues apareceria em segundos.
− Despacha-te, que tenho mais que fazer.
Ele não devia ter nada para fazer. Olhei para o chuveiro com cobiça. Apetecia-me muito um duche, mas implicava desproteger a minha lata, a única razão pela qual ainda não tinha perdido a esperança e a sanidade mental. Por outro lado, também implicava despir-me com aquele homem do outro lado da porta, que ia fazer-me mal em Moringane se o Alex não tivesse ameaçado vingar-se na filha do João Rodrigues se me tocassem com um dedo.
A minha gravidez parecia ter mudado as suas intenções em relação a abusar do meu corpo, mas o melhor era não arriscar.
− Estou pronta.
Quando ele abriu a porta, reprimi a minha mão de alcançar o pequeno objeto na minha cinta. Algo no meu íntimo me disse que não ia resultar e lembrei-me das palavras da minha avó, quando me consolava durante a minha infertilidade: «Saber esperar é uma virtude.»
Ela tinha acertado nas outras coisas que me disse e às quais não prestei atenção, por isso decidi aplicar o conselho ao meu cativeiro.
Como não podia ficar sem fazer nada, enquanto o Caxambu me algemava novamente, dediquei-me a tentar ganhar a sua confiança, na esperança de que ele baixasse a guarda numa próxima saída em que estivéssemos sozinhos.
− Obrigada por me trazeres à casa de banho. Sabes uma coisa? Fazes-me lembrar um ex-aluno meu, sempre muito irritado, falava mal com toda a gente e levou várias faltas disciplinares, o Miguel Matias.
Fui-lhe falando sobre o Miguel Matias, filho de um empresário dono de uma cadeia de ginásios, e de como eu e o professor Humberto descobrimos que havia um motivo infeliz para ele ser assim...
Ele ignorou-me, por isso calei-me a meio das escadas e o assunto morreu até chegarmos à minha despensa.
− Então, qual era o problema do rapaz?
− O pai nunca estava em casa, ele passava o tempo com empregadas e com a mãe, que tinha um problema de alcoolismo e era uma mulher muito desequilibrada. Começava a beber à hora do almoço e quando o Miguel chegava a casa a mãe já estava fora de si. Ofendia-o, gritava-lhe que era burro e que não prestava para nada. Toda aquela agressividade dele era um reflexo da forma como a mãe o tratava.
O Caxambu não se importou nada com os problemas do Miguel Matias e cortou-me a braçadeira absolutamente impassível.
− Não é o meu caso. Nem me lembro da minha mãe, morreu quando eu nasci.
Por milésimos de segundos, esqueci-me de que ele era uma criatura vil que me enojava e que aquela conversa era um esquema para aumentar as minhas probabilidades de fugir.
− Oh, coitadinha! Como?
Fuzilou-me com o olhar e percebi que não devia dizer mais nada.
− Morreu e pronto.
Quando ele se afastou, ponderei que aquele podia ser o motivo da mudança de atitude do Caxambu em relação a mim. Tinha-me olhado com cobiça em Moringane, mas não o tinha feito uma única vez em Portugal. Tinha modos agressivos e continuava a ser uma pessoa má, mas não me parecia ver-lhe o mesmo olhar cruel que me dava um medo visceral. A minha barriga grande devia aproximar-me da imagem que tinha idealizado da mãe que nunca conheceu.
Foi por isso que decidi manter o meu plano quando ele voltou depois do almoço para levar o tabuleiro.
− Porque é que não comeste o frango? Não ouviste que se não comesses a bem, comias a mal?
O Caxambu estava zangado, mas não parecia que me fosse bater e resolvi aproveitar aquela nesga de humanidade que lhe pressenti em relação a mim. Contei-lhe como era miserável a vida dos frangos que comíamos e que havia aviários de produção de ovos que trituravam os pintainhos masculinos. Podia ser que o cativasse.
Ele devia gostar mais de animais do que de pessoas, porque ainda me deu oportunidade para lhe falar sobre as porcas sem espaço, a amamentarem ninhadas de leitões umas atrás das outras.
− Não contes comigo para te fazer comida diferente.
Apesar da forma rude como deu por terminada a conversa, ele estava a pensar no que eu lhe tinha dito. Era o que me dizia o meu instinto de professora.
Tentei ser engraçada, não por síndrome de Estocolmo, em que a vítima desenvolve sentimentos pelo raptor, mas como estratégia para acrescentar pontos percentuais às minhas probabilidades de evasão.
Era só no que eu pensava, sair dali com a minha filha. Era um objetivo que me dominava e tomava conta de todas as partículas do meu ser.
Não tinha cabeça para fazer piadas novas, por isso usei uma que tinha funcionado com o Alex.
− Está bem, mas quando me matares, não me embrulhes em plástico, como aquele tipo da série Dexter, antes de me atirares ao rio. Os animais marinhos confundem o plástico com comida. Foi encontrada uma baleia morta na Indonésia com seis quilos de plástico dentro do estômago.
Ficou a olhar para mim com um olhar estranho e que não era benevolente.
− Não sei quem é o Dexter.
À hora de jantar voltou a aparecer, com uma caixa de comida pré-feita a deitar fumo e um sorriso trocista.
− Lasanha vegetariana.
Fiz o melhor sorriso possível tendo em conta que não me conseguia esquecer da pessoa desprezível que ele era...
− Obrigada, Caxambu. Sabes que não devias aquecer estas embalagens de plástico no micro-ondas, têm uma substância que se liberta para a comida e pode provocar cancro.
− Que gaja difícil que tu deves ser! És chata como a merda! Tens sempre algum defeito para pôr. Come e cala-te!
Claro que o Caxambu, procurado pela polícia e a monte há vários meses, não devia estar muito preocupado com os efeitos nocivos do bisfenol.
− Nem merecias esta lasanha, porque o teu pai fez merda e avisou o Alex. O João não queria que ele soubesse já...
O Caxambu percebeu que se descaiu, mas não se importou. Eu já sabia muita coisa e era um dado adquirido que não ia sair dali para contar.
Fui percorrida por um calafrio de medo que se alojou no meu peito. Não era só de mim que o João Rodrigues se queria vingar, ele ainda devia odiar mais o Alex e devia ter planos para também lhe fazer mal...
A boa notícia era que, se o meu pai tinha conseguido avisá-lo, a Polícia Judiciária devia estar em campo à minha procura, mas a ganância pelos cem mil euros fazia com que ainda não tivessem fugido. Enchi-me de esperança e tentei a minha sorte.
− Vocês não têm muitas saídas, Caxambu. O João Rodrigues é procurado no mundo inteiro. Ele não vai conseguir fugir para sempre. Tu sabes disso. Entrega-o e eu testemunho a teu favor. Podes fazer um bom acordo se o denunciares. Prometo que te ajudo em tudo o que puder. Juro-te pela minha vida.
Fez-me um esgar que era quase um sorriso.
− A tua vida vale muito pouco. Não é o João Rodrigues que eles querem, e quem eles querem nunca vão apanhar. Prefiro morrer aqui com uma bala da polícia, do que com uma escova de dentes espetada no pescoço dentro de uma prisão.
Fiquei sem palavras, mas ele não.
− Então, onde é que aqueço a comida para não apanhar cancro? Numa panela?
Afinal, não era só de escovas de dentes transformadas em facas que o assustador Caxambu tinha medo.
− Podes aquecer no micro-ondas desde que seja num prato de louça ou de vidro, qualquer coisa menos plástico.
Quando ele se ia embora com o tabuleiro, fiz um pedido que não era inocente.
− Podes deixar-me o copo com água? A lasanha estava boa, mas um bocadinho salgada.
Olhou para o copo, hesitou por momentos, mas depois concluiu que eu não ia conseguir transformá-lo numa arma letal. Foi enchê-lo outra vez e depois deixou-o em cima da mesa.
Não ficaram na cozinha a conversar como eu esperava, motivo pelo qual pedi para ficar com o copo, mas a meio da noite acordei com o barulho de vozes e vi luz por baixo da porta.
Era a primeira vez que vinham para a cozinha de madrugada. O João Rodrigues praguejava alto e parecia muito irritado.
Peguei no copo vazio e encostei-o à porta para ouvir o que diziam.
O João Rodrigues estava ferido e lamentava-se para o Caxambu, que o devia estar a tratar.
− Que grande merda! Se não fosse o Maia a avisar-me, tínhamos ido desta para melhor... Aquele rim que lhe arranjei em Durban já compensou...
Fiquei sem respirar e mordi os lábios com força. Não podia ser o mesmo Maia que era chefe do Alex e para quem eu tinha ligado, pensando que era uma mulher...
Deixei de me preocupar com o Maia porque o que ouvi a seguir deixou-me em alerta máximo.
− Filho da puta do Alex... Tu devias ter morto aquele cabrão antes de me ter acertado!
O meu coração deixou de bater e todas as minhas células se uniram para ouvir a resposta do Caxambu, dita mais baixo e sem grande emoção.
− Se não o tivesse matado depois de ele te ter acertado, eras tu que tinhas morrido.
Belisquei a perna com força para ter a certeza de que não estava a ter um pesadelo. Senti a dor, as paredes mal iluminadas pela luz que passava por baixo da porta começaram a girar outra vez à minha volta e achei que a minha cabeça ia explodir.
O Alex tinha morrido. O meu serendipity adorado estava morto. Tinha morrido para me tentar salvar.