28 semanas
Após o funeral, a minha mãe e a Horti organizaram uma receção.
Sentei-me no alpendre, com vários amigos e colegas que tinham aparecido. O Ricardo também ficou connosco, até que se foi embora com a tia Pi, que tinha passado a noite com ele na Pousada do Convento.
Aos poucos, todos os meus amigos também tiveram de regressar a Lisboa e eu fiquei sozinha com os meus dois «primos».
Eles eram danados e decidiram que a Belita, que tinha levado lanche para a casa mortuária, seria a vítima escolhida para ser gozada com o objetivo de me entreter. O Henrique garantia que a tinha visto olhar com luxúria para o meu pai e a Joana também não tinha dúvidas, o objetivo final das boas intenções da Belita era «dar uma contra a parede» com o Francisco Mendonça.
A Joana estava com o seu sorriso maquiavélico, provavelmente a imaginar obscenidades sobre a Belita, quando o seu telemóvel tocou.
Eu e o Henrique espreitámos e vimos o nome no ecrã. Ela não atendeu e o Ricky fez uma careta desaprovadora.
− Vocês passam a vida a ignorar chamadas... Já é a segunda vez que não atendes o teu diretor! No outro dia foi a Sofi, que não atendeu o Ricardo três vezes.
Expliquei-lhe que não era meu hábito ignorar chamadas de propósito, tinha sido só naquela noite específica em que saí de casa.
O Henrique olhou-me descrente e franziu o sobrolho na direção da Joana.
− Porque não atendes o telefone ao homem para saberes o que ele quer?
A Joana revirou os olhos enquanto respondia.
− Eu sei o que ele quer. Um colega meu já me mandou uma mensagem a avisar. Quer que eu faça o banco do próximo domingo, mas eu já fiz dois bancos na semana passada e não aguento mais trabalho extra...
O Ricky fez um esgar de incompreensão. Os nossos motivos para não atender telefonemas seriam sempre um mistério para si.
− Então, atende e diz que não podes fazer, para ele tentar arranjar outra pessoa. Fim da história.
Concordei com o Henrique e a Joana ripostou num tom exasperado.
− Não é o fim da história. Eu digo que não posso no domingo e ele pergunta se vou fazer alguma coisa no sábado. Eu fico com vergonha e digo que não, depois ele pede a alguém que está de banco no sábado para passar para domingo e eu tenho de fazer o sábado dessa pessoa... É como se fossemos um puzzle humano em que não há peças suficientes...
Resolvi intervir, aquela profissão com adrenalina da minha amiga não lhe fazia bem. Estava com olheiras e cada vez mais magra.
− Joana, não podes continuar assim. Já deste uma oportunidade ao teu serviço quando acabaste a especialidade, mas tirando o facto de não teres de estudar para o exame, a tua vida não melhorou...
O Ricky deu-lhe a mão e acabou por mim.
− Tens de pensar em ti e na tua família, Joana.
Ela deu um longo suspiro.
− Vocês têm razão! É uma decisão difícil, mas tem de ser!
Enquanto eu batia palmas, o Henrique ficou muito sério.
− Eu também tenho uma decisão difícil para tomar e que ando a adiar há quase dois anos.
Nenhuma das duas imaginava o que seria e ficámos à espera que avançasse.
− Eu e o Sílvio queremos adotar uma criança. Estávamos a pensar numa criança mais velha, com oito ou nove anos, que são as com menos probabilidades de serem adotadas porque a maioria das pessoas prefere bebés. Também não temos preferência por sexo nem raça. Só queremos dar-lhe um lar e ter uma família, mas andamos a adiar porque eu tenho medo...
A Joana não me deu tempo de dizer que era uma ideia maravilhosa.
− Tens medo do quê?
Ele franziu o sobrolho, desagradado com o tom interrogador.
− Que o nosso filho ache que os pais fazem aquilo de maneira não natural.
A Joana fez-lhe uma careta de repúdio por aquela afirmação.
− Que parvoíce, Ricky. Onde foste buscar essa ideia tão idiota de não natural? Nem acredito que te ouvi dizer esse disparate tão grande! O vosso filho nunca vai pensar uma coisa dessas sobre vocês, nunca! O vosso filho vai adorar-vos a vida inteira, por lhe terem dado um lar, amor e carinho, e também pelas pessoas generosas que vocês são...
O Henrique não ficou convencido.
− E também não quero que a criança sofra de bullying como eu. Vou passar o tempo todo a pensar que fui egoísta e que se ela tivesse sido adotada por uma família hetero teria uma vida mais fácil.
Fui obrigada a intervir para ele parar de se boicotar.
− Bullying, Ricky!? Tu foste tão gozado como qualquer um de nós! Se calhar menos, porque, ao contrário da Joana, não te irritavas quando te chateavam. Além disso, eras um bom guarda-redes, o que te valeu que o Brunão, o gorila-alfa da nossa turma te tratasse sempre bem. Ele até te arranjava bilhetes para ires ver o Sporting com ele...
O Henrique fez um gesto de descrédito em relação à sua amizade com o Brunão.
− Sempre achei que ele me tratava bem porque sabia que eu tinha curtido contigo no oitavo ano...
Fiquei perplexa com aquela dedução, tão desfavorável para a sua pessoa.
− O Brunão estava-se nas tintas para mim. Ele namorava com a Tânia, uma deusa que usava soutien copa C e se vestia como uma modelo da Victoria Secret! O Brunão gostava da tua companhia porque tu és um tipo muito fixe! Não há nenhuma razão para não adotares uma criança e fazê-la muito feliz ao ser criada por duas pessoas fantásticas. Estás a ser injusto, para ti, para o Sílvio e para a criança!
O Ricky fartou-se de ser recriminado e revoltou-se.
− E tu, Sofi, és uma complexada com o tamanho perfeitamente aceitável das tuas mamas.
Fiquei furiosa com ele e depois com a traidora da Joana.
− És sim, Sofi. Tu perguntavas nos balneários e sabias de cor a copa das miúdas todas da nossa turma. Até acho que ainda deves ter isso tudo apontado num caderninho em casa dos teus pais...
Enquanto eu negava a existência de tal caderno, ela pôs uma mão no braço de cada um.
− Eu, Joana Ferreira, vou deixar de ser estúpida e parar de lixar a minha vida. Vou ligar ao meu ex-diretor e vou para o privado.
− Tu, Henrique Morais, faz um favor a ti e ao mundo e adota uma criança.
− Tu, Sofia Mendonça, aceita as mamas que tens e depois de a Luisinha nascer faz um curso de Krav Maga. Tu tens um karma com a violência e mais vale estares preparada. Nunca me hei de esquecer que te viraste a uma tipa que te queria roubar um blusão na paragem do autocarro e nos fizeste levar uma tareia, dela e das amigas.
Eu adorava aquele blusão vermelho de bombazina. A minha mãe tinha-mo oferecido quando fiz 15 anos e ainda devia estar algures em casa do Ricardo.
− Perceberam bem o que eu vos disse?
Eu e o Ricky acenámos obedientemente.
− Ótimo! Vamos ao café onde jantámos ontem comer uma açorda.