20 de novembro de 2017

28 semanas

Após o funeral, a minha mãe e a Horti organizaram uma receção.

Sentei-me no alpendre, com vários amigos e colegas que tinham aparecido. O Ricardo também ficou connosco, até que se foi embora com a tia Pi, que tinha passado a noite com ele na Pousada do Convento.

Aos poucos, todos os meus amigos também tiveram de regressar a Lisboa e eu fiquei sozinha com os meus dois «primos».

Eles eram danados e decidiram que a Belita, que tinha levado lanche para a casa mortuária, seria a vítima escolhida para ser gozada com o objetivo de me entreter. O Henrique garantia que a tinha visto olhar com luxúria para o meu pai e a Joana também não tinha dúvidas, o objetivo final das boas intenções da Belita era «dar uma contra a parede» com o Francisco Mendonça.

A Joana estava com o seu sorriso maquiavélico, provavelmente a imaginar obscenidades sobre a Belita, quando o seu telemóvel tocou.

Eu e o Henrique espreitámos e vimos o nome no ecrã. Ela não atendeu e o Ricky fez uma careta desaprovadora.

− Vocês passam a vida a ignorar chamadas... Já é a segunda vez que não atendes o teu diretor! No outro dia foi a Sofi, que não atendeu o Ricardo três vezes.

Expliquei-lhe que não era meu hábito ignorar chamadas de propósito, tinha sido só naquela noite específica em que saí de casa.

O Henrique olhou-me descrente e franziu o sobrolho na direção da Joana.

− Porque não atendes o telefone ao homem para saberes o que ele quer?

A Joana revirou os olhos enquanto respondia.

− Eu sei o que ele quer. Um colega meu já me mandou uma mensagem a avisar. Quer que eu faça o banco do próximo domingo, mas eu já fiz dois bancos na semana passada e não aguento mais trabalho extra...

O Ricky fez um esgar de incompreensão. Os nossos motivos para não atender telefonemas seriam sempre um mistério para si.

− Então, atende e diz que não podes fazer, para ele tentar arranjar outra pessoa. Fim da história.

Concordei com o Henrique e a Joana ripostou num tom exasperado.

− Não é o fim da história. Eu digo que não posso no domingo e ele pergunta se vou fazer alguma coisa no sábado. Eu fico com vergonha e digo que não, depois ele pede a alguém que está de banco no sábado para passar para domingo e eu tenho de fazer o sábado dessa pessoa... É como se fossemos um puzzle humano em que não há peças suficientes...

Resolvi intervir, aquela profissão com adrenalina da minha amiga não lhe fazia bem. Estava com olheiras e cada vez mais magra.

− Joana, não podes continuar assim. Já deste uma oportunidade ao teu serviço quando acabaste a especialidade, mas tirando o facto de não teres de estudar para o exame, a tua vida não melhorou...

O Ricky deu-lhe a mão e acabou por mim.

− Tens de pensar em ti e na tua família, Joana.

Ela deu um longo suspiro.

− Vocês têm razão! É uma decisão difícil, mas tem de ser!

Enquanto eu batia palmas, o Henrique ficou muito sério.

− Eu também tenho uma decisão difícil para tomar e que ando a adiar há quase dois anos.

Nenhuma das duas imaginava o que seria e ficámos à espera que avançasse.

− Eu e o Sílvio queremos adotar uma criança. Estávamos a pensar numa criança mais velha, com oito ou nove anos, que são as com menos probabilidades de serem adotadas porque a maioria das pessoas prefere bebés. Também não temos preferência por sexo nem raça. Só queremos dar-lhe um lar e ter uma família, mas andamos a adiar porque eu tenho medo...

A Joana não me deu tempo de dizer que era uma ideia maravilhosa.

− Tens medo do quê?

Ele franziu o sobrolho, desagradado com o tom interrogador.

− Que o nosso filho ache que os pais fazem aquilo de maneira não natural.

A Joana fez-lhe uma careta de repúdio por aquela afirmação.

− Que parvoíce, Ricky. Onde foste buscar essa ideia tão idiota de não natural? Nem acredito que te ouvi dizer esse disparate tão grande! O vosso filho nunca vai pensar uma coisa dessas sobre vocês, nunca! O vosso filho vai adorar-vos a vida inteira, por lhe terem dado um lar, amor e carinho, e também pelas pessoas generosas que vocês são...

O Henrique não ficou convencido.

− E também não quero que a criança sofra de bullying como eu. Vou passar o tempo todo a pensar que fui egoísta e que se ela tivesse sido adotada por uma família hetero teria uma vida mais fácil.

Fui obrigada a intervir para ele parar de se boicotar.

Bullying, Ricky!? Tu foste tão gozado como qualquer um de nós! Se calhar menos, porque, ao contrário da Joana, não te irritavas quando te chateavam. Além disso, eras um bom guarda-redes, o que te valeu que o Brunão, o gorila-alfa da nossa turma te tratasse sempre bem. Ele até te arranjava bilhetes para ires ver o Sporting com ele...

O Henrique fez um gesto de descrédito em relação à sua amizade com o Brunão.

− Sempre achei que ele me tratava bem porque sabia que eu tinha curtido contigo no oitavo ano...

Fiquei perplexa com aquela dedução, tão desfavorável para a sua pessoa.

− O Brunão estava-se nas tintas para mim. Ele namorava com a Tânia, uma deusa que usava soutien copa C e se vestia como uma modelo da Victoria Secret! O Brunão gostava da tua companhia porque tu és um tipo muito fixe! Não há nenhuma razão para não adotares uma criança e fazê-la muito feliz ao ser criada por duas pessoas fantásticas. Estás a ser injusto, para ti, para o Sílvio e para a criança!

O Ricky fartou-se de ser recriminado e revoltou-se.

− E tu, Sofi, és uma complexada com o tamanho perfeitamente aceitável das tuas mamas.

Fiquei furiosa com ele e depois com a traidora da Joana.

− És sim, Sofi. Tu perguntavas nos balneários e sabias de cor a copa das miúdas todas da nossa turma. Até acho que ainda deves ter isso tudo apontado num caderninho em casa dos teus pais...

Enquanto eu negava a existência de tal caderno, ela pôs uma mão no braço de cada um.

− Eu, Joana Ferreira, vou deixar de ser estúpida e parar de lixar a minha vida. Vou ligar ao meu ex-diretor e vou para o privado.

− Tu, Henrique Morais, faz um favor a ti e ao mundo e adota uma criança.

− Tu, Sofia Mendonça, aceita as mamas que tens e depois de a Luisinha nascer faz um curso de Krav Maga. Tu tens um karma com a violência e mais vale estares preparada. Nunca me hei de esquecer que te viraste a uma tipa que te queria roubar um blusão na paragem do autocarro e nos fizeste levar uma tareia, dela e das amigas.

Eu adorava aquele blusão vermelho de bombazina. A minha mãe tinha-mo oferecido quando fiz 15 anos e ainda devia estar algures em casa do Ricardo.

− Perceberam bem o que eu vos disse?

Eu e o Ricky acenámos obedientemente.

− Ótimo! Vamos ao café onde jantámos ontem comer uma açorda.