29 semanas
A minha tensão continuava alta. Não era muito preocupante porque não tinha proteínas na urina, mas a Dra. Margarida decidiu que eu teria de ficar de baixa e prescreveu-me um anti-hipertensor.
No dia seguinte à consulta, ao ver a minha mãe dividida porque queria ir à missa do sétimo dia da minha avó mas não me queria deixar sozinha, propus-lhe irmos as duas para Beja. Sentimo-nos bem e ela precisava de tratar de burocracias, por isso fomos ficando, até que chegou o dia do meu trigésimo terceiro aniversário.
Apesar do meu desejo quando soprei as velas nos últimos quatro anos se ter realizado e estar grávida, aquele foi o dia de aniversário em que acordei mais triste desde que me recordo de existir...
Estava perdida naqueles pensamentos, quando a Horti entrou a correr no meu quarto, exibindo o meu novo telemóvel a tocar.
Enquanto a Horti me beijocava, olhei para o visor e apercebi-me de que a chamada era da Rita Melo. Aquela chamada ia ser boa...
Tal como eu tinha imaginado, ouvi um coro de vozes alegres cantarem-me os parabéns. A seguir, a Rita passou à Zubaida, «quase a ficar de castigo porque estava num desassossego terrível».
Deu-me os parabéns outra vez, porque ela era minha amiga e «precisava» de me dar os parabéns em privado, não «misturada com os outros». Perguntei-lhe novidades da escola e dos Leopardos de Moringane. Ela gabou-se das suas últimas notas, agradeceu-me os livros que lhe tinha enviado depois do equipamento desportivo e obrigou-me a reprometer uma visita-surpresa.
A Rita interveio e obrigou-a a largar o telefone, perguntou-me como estava e pu-la a par da morte súbita da minha avó.
− Estou mesmo triste, Rita... Nem me pude despedir dela...
Aquela pessoa maravilhosa e invulgar não se comoveu com as minhas angústias.
− Se calhar para si tinha sido mais fácil se tivesse oportunidade de se despedir, mas para ela seria mais difícil, não é? Esse desejo de despedida parece-me um bocadinho egoísta da parte de quem fica. Imagine lá o sofrimento da sua avó, se soubesse que vos ia deixar...
Ela tinha o dom de ser inspiradora em todos os campos, com palavras simples mas poderosas, ditas na sua voz cristalina.
− Eu também não quero definhar e muito menos saber que tenho os dias contados. Não preciso de me despedir de ninguém. Quando Deus Nosso Senhor decidir que é a minha hora, está à vontade! Era muito bom que fosse com um enfartezito rápido, assim como a sua avó. Adeus, fiquem bem e até um dia destes que eu fui ter com o meu Albano.
Desliguei a sentir-me menos melancólica... Só aquela mulher podia dizer enfartezito num tom carinhoso e fazer-me acreditar que tinha razão...
Recebi muitos outros telefonemas que também me alegraram ao longo do dia, incluindo o da Joana e o do Ricardo, que me pediu para o avisar quando regressasse a casa para nos encontrarmos.
O meu pai e o Vasco chegaram à hora de almoço, com bacalhau à Brás do nosso restaurante, o meu prato preferido. Fui abraçada pelos dois e o Vasco gozou comigo.
− Não te faças de queridinha. O pai não acertou. Toda a gente sabe que o teu prato preferido é o bitoque sem bife. É por estas e por outras que recebeste o presentão que está lá fora e eu recebo quase sempre roupa...
Saí para ver o que seria e descobri-o imediatamente, o carro que mais gostei de entre todos os que tinha visto com o Ricardo. Ele tinha aconselhado o meu pai a comprar-mo em amarelo, uma cor pirosa que ele se recusaria a conduzir...
Regressei a casa no meu carro novo e com a minha mãe, a fazermos planos sobre o que me tinha revelado depois da missa da minha avó.
Nesse dia, um mediador imobiliário chamado Agostinho, veio a nossa casa oferecer os seus préstimos.
Entrou na sala seguro e confiante, a contrastar com a minha mãe, toda vestida de preto e com os olhos inchados.
Sentaram-se no sofá, enquanto eu continuei na mesa de jogo, a fazer um puzzle antigo da minha avó.
Na opinião do Sr. Agostinho, vender a casa depressa era o mais inteligente a fazer, dado morarmos longe e uma propriedade antiga como aquela ser uma fonte de despesas e preocupações. De facto, ele sabia que a casa dava muito prejuízo, motivo pelo qual a minha avó tinha delapidado algum património para fazer reparações e um novo telhado dez anos antes. Felizmente, ele poderia ter um cliente disposto a ir até uma excelente quantia, tendo em conta a necessidade de arranjos na fachada e nos espaços exteriores.
A minha mãe ouviu atentamente tudo o que ele disse, fez-lhe perguntas sobre outra propriedade da minha avó que ainda não tinha sido «delapidada» e concluiu a conversa dizendo que ia falar com o marido. O Sr. Agostinho pediu-lhe o contacto caso tivesse alguma proposta concreta e ela deu o telemóvel do meu pai, porque seria melhor o Sr. Agostinho tratar diretamente com ele.
Tive de morder os lábios para não me pronunciar quando a ouvi proferir aquele atentado à autonomia feminina. A casa era uma herança da família dela, quem tinha de tomar decisões era ela e não o marido...
Tentei chamá-la à razão assim que o Sr. Agostinho saiu, mas ela não me deu importância e foi buscar um caderno moleskine com que andava sempre, para fazer esboços de paisagens que a inspirassem.
Pousou-o em cima da mesa de jogo, no pouco espaço livre que o meu puzzle lhe deixava e sentou-se a escrever.
− Não gostei nada deste homem, mãe! O que é que ele quer exatamente?
Ela respondeu-me com desprendimento enquanto continuava a escrever.
− Quer angariar a casa, claro. Como se eu lhe fosse dar a casa para ele vender. Logo a ele, que toda a gente sabe que roubou a herança ao irmão...
− Então, porque é que lhe deste o telefone do pai?
Encarou-me como se a resposta fosse óbvia.
− Para ele não me ligar a mim. O teu pai é ótimo a despachar pessoas inconvenientes... – Baixou novamente a cabeça e falou mais para si própria do que para mim. − Nunca dou o meu telefone, dou sempre o do pai. Fazemos uma boa equipa, eu decido se vendemos, se remodelamos para voltar a vender ou se arrendamos. O teu pai é bom para negociar até ao preço que nos convém. Eu não tenho feitio para isso... − Deu um suspiro e concluiu satisfeita. − Ainda bem que este traste do Agostinho apareceu. Assim fiquei a ter uma ideia dos valores do mercado sem precisar de falar com outro mediador.
Fiquei a imaginar como funcionaria a equipa, pelas palavras dela deviam fazer uma espécie de polícia bom e polícia mau, o primeiro decidia e o segundo negociava...
− Acho que é justo. Somando noventa mil euros, a outra propriedade em Moura que está arrendada e mais o terreno na Vidigueira, fazemos o valor desta casa.
Fechou o seu caderninho num movimento gracioso e eu fiquei a olhar para ela, sem compreender o que era justo.
− Vou fazer já as minhas partilhas. O Vasco fica com o terreno, o monte de Moura e o dinheiro, e tu, ficas com esta casa.
Fui apanhada de surpresa por aquele desenvolvimento inesperado e sem razão aparente. A minha mãe suspirou e recostou-se na cadeira de veludo grená.
− Não quero que o teu irmão seja um engenheiro civil frustrado para o resto da vida... A culpa de ele ser assim também é minha. Portei-me exatamente como o meu pai, que não me deixou ir para Belas Artes porque não era um curso a sério... E eu não deixei o teu irmão fazer carreira no surf, que era a paixão dele. Foi uma má decisão. Pensei que era um capricho de adolescente, mas não é...
A minha mãe não podia estar a ponderar dar dinheiro ao Vasco, para ele se despedir e passar os dias a surfar... Ela sorriu perante a minha expressão incrédula e elucidou-me antes de eu falar.
− Ele quer montar um espaço, com loja, aluguer de pranchas da marca de um amigo, oficina e restaurante. Está a tentar financiar-se na banca, mas até agora não conseguiu. Disse-lhe que lhe emprestava o dinheiro, mas ele não quis porque achou que o pai ia chamar-lhe irresponsável e dar-lhe o sermão do costume...
Fez um sorriso confiante e deu uma palmada no caderno.
− O Vasco nisto vai ter sucesso, vejo-o com vontade e a acreditar! Assim não tem como recusar. São as minhas partilhas, ele é obrigado a ficar com o dinheiro para compensar tu ficares com esta casa...
A Vera dizia muitas vezes que era um erro comum as filhas subestimarem as mães... Estava a admitir mentalmente que o tinha feito quando me lembrei de outro erro comum, desta vez das mães. Tinham sempre uma debilidade pelo filho mais novo.
− Isso é má ideia... O Vasco é mesmo um irresponsável! Vai dar cabo do dinheiro todo que lhe deres e das rendas do monte em Moura!
Fitou-me descontente. Tinha um ar exausto, a roupa estava-lhe larga e a magreza recente era notória nos ossos dos pulsos e na cara, onde a maquilhagem não lhe conseguia disfarçar as olheiras. Aquelas modificações deviam ter começado quando eu fui raptada e culminado quando lhe ligaram do hospital de Beja, mas apesar da aparência muito fragilizada, a forma como me enfrentou fez-me ter a certeza de que não ia recuar um milímetro.
− Não comeces com os teus ciúmes patetas. O teu irmão é imaturo, mas eu VOU dar-lhe esta oportunidade. Além disso, esta casa ia sempre ficar para ti. Era o desejo da tua avó.
Senti-me subitamente muito satisfeita e perguntei-lhe pelos motivos da minha avó.
− Ela queria assim. Sabes como ela era, não precisava de nenhum motivo para decidir alguma coisa, e depois não havia quem a fizesse mudar de ideias...
Fez um pequeno suspiro, que soava a saudade e era suposto dar o assunto por encerrado.
− E o pai concorda?
Fitou-me como se a pergunta fosse uma espécie de traição.
− Ainda não falei com ele, mas claro que vai concordar.
Até àquela tarde, julgava que a índia mais forte era a que nos tinha deixado, mas naquele momento percebi que cada uma de nós era forte à sua maneira e eu ainda tinha muito para aprender sobre a minha mãe. A nossa tribo ia continuar, ainda restavam duas índias muito teimosas no mundo e vinha mais uma a caminho...