África do Sul – Cidade do Cabo
Encontrei-o na África de Sul. Foi graças à Interpol do Brasil, que recebeu uma dica e sinalizou um grupo de catorze brasileiros de São Luís do Maranhão, que tinham aterrado na Cidade do Cabo no dia anterior. Seguimos-lhe o rasto e ficámos a vigiar o apartamento, cujos ocupantes eram todos compatíveis com alguém endinheirado e sem carácter, que podia pagar uma boa quantia por um rim ou um pedaço de fígado.
Tinha-se acabado o negócio em Moçambique, mas eles arranjaram depressa vários desgraçados a querer vender órgãos de livre vontade. O lucro daquela gente não acabava enquanto houvesse miséria no mundo.
A Hendrika apareceu para os levar. Era uma boa estratégia usarem-na, porque tinha um ar angelical e dificilmente alguém desconfiaria que fazia parte de uma rede criminosa internacional. Foi a mesma estratégia que usaram para tirar o João Rodrigues de Moçambique, que embarcou com ela para Dar-es-Salaam, a passarem-se por um casal de turistas ingleses.
A sorte dele ia acabar. Eu ia assegurar-me disso.
A Hendrika saiu do prédio toda sorridente com os brasileiros e entraram num autocarro. Era como se fossem fazer uma excursão, só que em vez de irem ver pinguins, iam ver luzes e bisturis numa sala de operações de um hospital privado, que íamos fechar durante muito tempo.
Seguimos o autocarro em dois veículos à paisana e passámos a cancela do estacionamento do hospital atrás deles. Não deram por nós até saírem do autocarro, quando os cercámos e lhes ordenámos que se rendessem.
Eles ofereceram resistência, fizeram reféns os desgraçados a quem iam tirar órgãos e a polícia sul-africana pediu reforços à Special Task Force. Aquilo era péssimo para mim, eu precisava deles vivos, pelo menos um.
Enquanto o motorista do autocarro gritava para a polícia largar as armas senão começava a matar reféns, a Hendrika desatou a correr para a entrada do hospital.
Fui atrás dela e outro polícia sul-africano também. Um segurança do hospital tentou detê-la e ela deu-lhe um tiro no peito. O polícia sul-africano que vinha comigo socorreu o segurança, que se não tivesse um colete à prova de bala não teria muitas chances de sobreviver.
A Hendrika atravessou o átrio dos elevadores, subiu pelas escadas e percebi pelo barulho dos passos que tinha saído no segundo piso.
Cheguei ao átrio comum, que tinha quatro saídas e funcionava como sala de espera. A Hendrika devia ter passado despercebida, porque estavam várias pessoas sentadas calmamente até me verem chegar de pistola na mão.
Mostrei o distintivo e perguntei pela mulher loira que tinha chegado antes de mim. Ninguém me respondeu, estávamos num hospital de gente rica, eu era um quase preto e ela era muito parecida com eles. Podia tê-la perdido, se um puto de sardas não tivesse apontado na direção da porta que dizia Surgery.
Atravessei o serviço, passei por várias salas com doentes sem a encontrar e corri na direção da saída de emergência que dava para as escadas de incêndio.
A Hendrika estava um lance abaixo do meu, quase a chegar ao piso térreo, onde os meus colegas sul-africanos a podiam apanhar antes de mim.
Era um salto grande, mas arrisquei e consegui alcançá-la. Tirei-lhe a pistola, imobilizei-a e perguntei-lhe em inglês pelo João Rodrigues.
Ela cometeu o erro de me dizer em africânder que «não compreendia inglês». Se ela soubesse tudo o que eu faria para apanhar aquele filho da mãe, não o teria feito.
Agarrei-lhe no braço e torci-o com muita força. Os polícias sul-africanos não deviam tardar a aparecer e ia perder a minha «janela de oportunidade» a sós com a «suspeita».
Enquanto ela gritava de dor porque lhe estava prestes a partir o braço, repeti a pergunta.
− João Rodrigues? You travelled from Maputo to Dar-es-Salaam with him.
Falou entre gemidos, mas eu percebi a morada nos arredores de Deer Park.
Poucos segundos depois chegaram três polícias sul-africanos e preparei-me para desaparecer.
Ela não ia poder avisá-lo de que tinha sido apanhada, mas não devia demorar muito tempo até outra pessoa o fazer e ele rastejar para outro buraco rapidamente.
Um polícia sul-africano que fazia parte da operação apercebeu-se da minha fuga e veio atrás de mim. Era um miúdo que parecia ter bom fundo e fazia-me lembrar os primeiros anos do Filipe, que ia ficar muito contrariado por ter ido para Durban, seguir uma pista que não ia dar em nada.
Não podia perder tempo nem dar nas vistas, por isso deixei o miúdo vir comigo sem levantar ondas. O filho da mãe do João Rodrigues tinha visto o seu último nascer do sol.
A morada correspondia a uma vivenda num bairro residencial. Os muros altos forrados com cacos, mais as cinco fiadas de arame farpado chamariam à atenção em Portugal, mas ali, onde os assaltos violentos eram frequentes, passavam completamente despercebidos. Tinha esperança de poder entrar-lhe em casa de surpresa, mas o arame farpado lixou-me essa possibilidade.
Toquei na casa do lado e mostrei o distintivo a um velhote que ficou apavorado. Subi para o telhado e pedi ao miúdo para tocar à porta do João Rodrigues. Ele não atendeu, mas pouco depois saiu por uma varanda no andar de cima e saltou para o quintal do outro lado.
Saltei para a varanda onde ele estava, persegui-o para o outro quintal e subi umas barras de aço na parede que deviam dar acesso ao telhado.
Não havia muita coisa lá em cima, além de uma chaminé grande e uma pequena arrecadação em cimento de onde ele disparou contra mim.
Abriguei-me atrás da chaminé e ouvi uma gargalhada.
− Fizeste bem em aparecer, Alex. É um excelente dia para dar cabo de ti.
Aquele cabrão nunca perdia o sentido de humor negro nem aquele riso sarcástico. Já me tinha dado com muita escória, mas nunca conheci ninguém que se orgulhasse tanto de fazer mal aos outros.
Lembrei-me das palavras da Sofia, quando me incentivou a deixá-la ferida e ir atrás dele em Moringane.
− Para mim, qualquer dia serve. Amanhã o mundo vai ser um lugar melhor.
Trocámos tiros durante demasiado tempo, sem nos expormos, mas também sem conseguirmos acertar um no outro. Quando contei as minhas munições, só me sobravam duas balas na Beretta suplente. O João Rodrigues devia ter muito mais do que isso na semiautomática.
Ouvi barulho e percebi que o meu novo parceiro vinha a subir pelas barras de ferro. O João Rodrigues também ia perceber...
No momento em que ele estava a apontar para onde ia surgir a cabeça do miúdo, corri pelo ângulo morto e apanhei-o de lado.
Gritei para lhe desviar a atenção do miúdo, ele virou-se na minha direção e as duas balas que me sobravam acertaram-lhe no crânio. O terceiro disparo foi em falso, mas ele já estava morto.
Aproximei-me para me certificar disso e o miúdo também.
O João Rodrigues estava com uma arma na mão e tinha-a apontado na minha direção. Ninguém me iria chatear, mas o miúdo ficou desapontado. Queria tê-lo apanhado vivo para ele denunciar os peixes grandes.
Respondi-lhe que interrogassem a Hendrika e não lhe dei mais conversa.
O que tinha acontecido naquele terraço não tinha que ver com trabalho nem com peixes grandes.
O miúdo não sabia quem tinha sido o Evandro. Não sabia quem era a Sofia e não a viu com a cara toda negra em Moçambique. Não a viu no armazém, grávida, agarrada pelos cabelos com uma arma apontada à cabeça e depois à barriga.
Enquanto aquele cabrão vingativo respirasse, dentro ou fora de uma cela, ela e a minha filha nunca estariam seguras.