Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais
do Hospital Garcia de Orta

A médica cumprimentou-o com mais deferência do que seria expectável. A mãe dele era amiga da diretora da Neurologia do hospital, que já tinha contactado o diretor da pediatria e avisado que o sobrinho ia chegar.

Quando nos perguntou quem era o pai, hesitei e não consegui responder.

Ele também não respondeu, mas contou como tinha levado a Sofia para o hospital de Beja, a ter convulsões umas atrás das outras, que ela tinha entrado em coma e acordado muito preocupada com a bebé...

A médica distraiu-se com a história de terror e assumiu que ele era o pai sem ninguém lho ter dito. Explicou-nos que a bebé além de prematura tinha um peso abaixo do normal para as semanas com que nasceu, precisava de muitos cuidados e estavam a ter muitos problemas com ela.

No dia seguinte a ter chegado, começou a lutar contra o tubo que lhe enviava ar para os pulmões e a querer respirar por si própria. Não a tinham trocado no caminho, era a filha da Sofia, disso não havia dúvida. Tiveram de aumentar a sedação e insistiram em ventilá-la, mas ela voltou a querer respirar sozinha e não estava a correr bem. Resolveram tirar-lhe o tubo da traqueia e puseram-lhe uma coisa chamada CPAP, que apenas a ajudava, mas os movimentos respiratórios tinham de partir dela. Apesar de ser muito pequena, ela estava a aguentar-se e isso era bom sinal.

A médica também nos explicou que além da parte respiratória, também estavam a tratar de outras complicações devidas à prematuridade da bebé.

Por fim, levou-nos para a conhecermos.

A Luisinha era mínima, parecia um rato sem pelos e tinham-lhe ligado tubos por todos os lados.

A incubadora tinha uma abertura com uma luva para lhe podermos tocar, mas eu não me atrevi. Sentei-me e fiquei a olhar para ela, enquanto o Ricardo ligava à Sofia e lhe respondia a todas as perguntas que ela devia estar a fazer.

Vi-o ficar vermelho e levantar a voz.

− Sofi, ouve-me com atenção. Garanto-te que se tentares sair daí antes de teres alta... − Ficou calado a ouvi-la e depois continuou impaciente. – Duas semanas passam num instante e a bebé provavelmente vai ficar internada durante mais do que esse tempo. Estou a falar a sério, se saíres daí antes de te darem alta, vou fazer queixa de ti na segurança social. Vou alegar que és totalmente irresponsável e não podes tomar conta de uma criança pequena. Eu mando-te fotografias de hora a hora se quiseres, mas NÃO TE ATREVAS a sair daí. Nem com soro, nem com comprimidos, nem sem comprimidos. Sim, está bem, vou tirar as fotos agora.

Enquanto ele tirava fotografias à minha filha para lhe mandar, pensei que o Ricardo não ia ter sorte nenhuma. Esperava que ele soubesse disso. Ela tinha arriscado a vida sem hesitar pela Zubaida, nem imaginava o que faria pela sua Luisinha.

Eu também poderia ligar a ameaçá-la, mas não iria servir de nada. A maior ameaça era dizerem-lhe que podia ficar sem a filha. Nisso ele tinha sido o mais esperto possível.

Contra todas as probabilidades, eu começava a simpatizar com o Ricardo, muito sorridente a olhar para aquela fraca amostra de bebé, enquanto lhe fotografava as mãos e os pés.

Ela continuava a esforçar-se por respirar, era mesmo muito pequena e muito magra, com as veias todas à mostra através da pele quase transparente.

O Ricardo apontou para a luva para eu avançar, mas eu neguei porque tive medo de fazer asneira, magoar a bebé, tirar-lhe um tubo do sítio ou perder o controlo e desatar a chorar.

Eu sabia ver quem ia fraquejar e estava para lá de Bagdad, e quem ia dar luta e aguentar-se à bronca. Tinha sido assim que tinha ajudado a equipa treinada pela Sofia e liderada pela Zubaida a ganhar o seu primeiro jogo de futebol.

Eu estava a dar o berro, sentado numa cadeira ao lado da incubadora da Luisinha, que parecia um bicho sem pelo, tinha dificuldade em respirar e uma data de outros problemas. Ele estava de pé, a tentar animar-me e pronto para tudo. Se eu tivesse de escolher um gajo para levar para aquela guerra, escolhia-o a ele.

Vi-o pôr a mão na luva e tocar-lhe no braço franzino, mais fino do que um dedo meu...

Senti os olhos a ficarem húmidos. A minha filha era tão pequena que parecia que se ia partir, podia morrer a qualquer momento ou sobreviver com problemas nos olhos, nos pulmões e no cérebro.

Falou como se ela o estivesse a ouvir.

− És igual à tua mãe, mete-se uma coisa na vossa cabeça e não há quem vos pare... És linda, Luisinha. Que Deus te proteja e sejas sempre muito feliz.

Aquilo foi a gota de água. Limpei as primeiras lágrimas, disse-lhe o que ele queria ouvir e vim-me embora.

Deixei-o a tomar conta da ratita. Ela ficava melhor com ele.

Passei a noite em claro, a pensar na minha decisão e a recriminar-me pela minha cobardia.

Na manhã seguinte, assim que cheguei ao hospital ele já lá estava, a falar com a bebé e a fazer-lhe festas nas mãos, os únicos lugares onde ela não tinha tubos nem aparelhos. Tinham-lhe posto fios a entrar-lhe no umbigo e nas veias dos braços, autocolantes para ver o ritmo cardíaco no peito, sensores de oxigenação nos pés e uma máscara para a ajudar a respirar que lhe cobria a cara quase toda.

Aquela criatura pequena emocionava-me até às lágrimas, mas ao contrário do Ricardo, tinha medo de lhe tocar...

Ele percebeu o meu dilema, tirou a mão e encorajou-me.

− Ela é mais rijinha do que parece...

Respirei fundo e decidi arriscar. Toquei-lhe ao de leve na coxa e senti-me um tipo com sorte. Tinha conhecido uma mulher extraordinária, que me tinha sarado feridas que eu julgava impossíveis de sarar e tinha tido uma filha...

Ganhei coragem, acariciei a bebé à volta do tubo do umbigo e o Ricardo recebeu mais um telefonema.

− Sofi, já te disse que só posso vir na hora das visitas. Ontem foi uma exceção. Não posso montar aqui um acampamento!

Exasperou-se, começou a falar alto e foi lá para fora.

Quando regressou vinha muito contrariado.

− A Sofi vem para cá amanhã.

Não podia ser. Primeiro, diziam que ela podia morrer, mas passados dois dias iam deixá-la sair do hospital... Aqueles médicos de Beja não faziam puta ideia do que estavam a fazer!

− Como é possível? A Sofia ficou boa de repente?

Ele também parecia muito zangado.

− Não. Conseguiu apoio da maluca da minha mãe e da amiga diretora da Neurologia. Arranjaram-lhe uma vaga no internamento de Obstetrícia para ela ser transferida para cá. É claro que ela não vai descansar absolutamente nada, porque vai estar aqui a toda a hora! O serviço de Obstetrícia é neste piso e mesmo aqui ao lado. A minha mãe vai pagar caro por isto...

A culpa não era da mãe do Ricardo. A Sofia tinha decidido vir, viria nem que fosse de comboio ou de táxi, nunca tínhamos tido a mínima hipótese.

− Se não fosse assim era de outra maneira. Ninguém a ia impedir, nem com uma saraivada de tiros, isso vi eu com os meus próprios olhos. Assim ao menos está internada num hospital.