Serviço de Obstetrícia do Hospital Garcia de Orta
A minha filha tinha oito dias, ou como os médicos costumavam dizer, estava em D8.
Tinha-a deixado com a minha mãe e estava com o Ricardo no meu quarto, porque as enfermeiras da obstetrícia tinham ligado para a neonatologia, a chamarem-me para fazer a tira de tensão da tarde.
Enquanto a braçadeira apertava o meu braço esquerdo de cinco em cinco minutos, aproveitei para depenicar um croissant que ele me tinha trazido, camada por camada.
− Sofi, tenho uma coisa para te dizer.
Pareceu-me subitamente muito sério e temi que soubesse algo acerca da saúde da minha bebé que não me tivessem contado.
− Registei a Luisinha como minha filha.
Tive muita dificuldade em engolir o pedaço de croissant que tinha na boca e não soube o que pensar. A sua declaração agradou-me muito, mas ao mesmo tempo senti-me a cometer uma deslealdade tremenda.
− Porque fizeste isso, Ricardo? O Alex sabe que é o pai dela...
Encarou-me com uma expressão grave antes de se justificar.
− Eu falei com o Alex antes de o fazer, primeiro em Beja e depois aqui. Ele também concordou.
Custou-me que o Alex tivesse aberto mão da filha tão facilmente. Pareceu-me muito entusiasmado e a querer fazer parte da nossa vida, com as listas de coisas inúteis e a almofada de amamentação. Depois eu disse-lhe que estava confusa e ele tinha ficado mais distante, mas ia trocar a sua vida pela nossa naquele armazém... Não havia maior prova de amor...
− Concordou com o quê?
Apesar do tom muito enervado com que o questionei, ele manteve-se calmo.
− Que era o melhor para ela. Ele nunca tinha pensado em ter filhos e eu seria melhor pai para a Luisinha.
Fiquei indignada ao imaginar o que teriam falado...
− Serias melhor pai para a Luisinha porquê?! – Descontrolei-me e comecei a gritar. − Porque decidiste isso!? Tu não podias fazer isso, Ricardo. Tu humilhaste-o!
Ele ripostou num tom mais baixo que o meu.
− Tu não tens noção de como estavas. Estavas MUITO MAL MESMO. Os médicos disseram-nos para nos prepararmos para o PIOR... A tua mãe estava desfeita, disse-me que não suportaria perder-te e nem me ouviu. O teu pai estava completamente desorientado e quando lhe falei no assunto também não dizia coisa com coisa. Eu tomei uma decisão para salvaguardar a tua filha. O Alex foi muito corajoso, mas tem uma profissão arriscada, parece-me uma pessoa violenta e que ferve em pouca água. Não sei quase nada sobre ele, além de que o vi torturar a mulher do João Rodrigues a sangue frio só com uma mão e que quase lhe deu um tiro no joelho à minha frente!
Fiquei furiosa. O Ricardo estava a ser inacreditavelmente injusto e tive vontade de o beliscar.
− Ele fez isso para me salvar! Se ele não o tivesse feito, nem eu nem a Luisinha estaríamos aqui agora! O Alex tem tudo para ser um excelente pai!
Não permitiria que ninguém julgasse o Alex pelos meios que ele tinha usado para atingir os fins, sobretudo porque os fins eram a minha sobrevivência e a da minha filha. Depois do pesadelo por que tinha passado, a minha ética iria alterar-se para sempre...
O Ricardo não partilhava a minha opinião e continuou num tom cada vez menos amigável.
− Para não falar de que ele não queria ter filhos e te disse que se estava a cagar quando lhe contaste que estavas grávida. Põe-te no meu lugar! Quem é capaz de dizer uma coisa dessas não me parece o homem ideal para criar uma recém-nascida prematura, a precisar de muita paciência, muito amor e muitos cuidados...
Interrompi-o e gritei por cima dos apitos da máquina da tensão.
− Isso foi um mal-entendido! Ele pensava que eu estava a referir-me a ainda ser casada!
Olhou-me zangado, e eu retribuí o olhar.
Enquanto nos enfrentávamos sem palavras, apareceram duas enfermeiras alertadas pelos apitos do aparelho. Ficaram muito preocupadas com os valores da minha tensão e uma delas foi avisar o médico de urgência.
O Ricardo também ficou subitamente aflito e pediu que me acalmasse com modos suaves. Como se ele fosse uma pessoa muito racional e eu uma doida.
Falei num tom falsamente conciliador.
− Queres que eu me acalme, Ricardo?
Respondeu-me sereno, como se não tivesse feito nada de errado.
− Sim, Sofi, claro que quero que te acalmes. A tua tensão está a subir cada vez mais...
Ele não podia fazer nada para me acalmar e eu sabia-o, mas quis ser cruel como ele tinha sido para o Alex.
− Então, se queres que me acalme deixa-me em paz e não me fales mais neste assunto. Tu não tinhas o direito de amesquinhares o Alex nas minhas costas. E mais, fica a saber que não serias melhor pai para a minha filha do que ele.
Olhou-me longamente, com os lábios comprimidos numa linha fina e um semblante transtornado. Quando se recompôs, falou-me num tom quase neutro.
− Ainda bem que pensas assim. Fico contente e até é melhor para mim. Podes acalmar-te. Vou deixar-te em paz de uma vez por todas. Assim que estiveres boa, basta-te ires a qualquer conservatória e pedes para alterar a paternidade.