Véspera de Natal, 24 de dezembro de 2017
D13
Só voltei a ver o Ricardo na véspera de Natal, quando ele apareceu na UCIN para ver a Luisinha.
Ao início, ignorámo-nos mutuamente, mas como eu era uma perdoadora rápida e ele olhava para a bebé tão embevecido, não consegui manter-me zangada. Tinha de admitir que observá-lo a mexer-lhe enquanto lhe dizia palavras meigas me desarmava.
Não falámos sobre o assunto da sua paternidade, nem sobre as questões legais que se levantariam ao registá-la com outro pai enquanto ainda éramos casados. Eu tinha outras preocupações que me atormentavam muito mais.
Nessa manhã tinham aspirado um líquido sanguinolento do estômago da minha bebé, o que significava que ela poderia ter um problema grave no intestino, uma enterocolite necrosante.
Sentei-me com o Ricardo em frente à incubadora e pu-lo a par das «intercorrências» que me preocupavam tanto.
Ele ouviu-me com atenção, tentou reconfortar-me e depois entregou-me três presentes. Os dois primeiros eram para a Luisinha, um macacão cor-de-rosa e um vestido com rendas muito queque.
O terceiro era para mim, uma mochila de maternidade linda, com nuvens brancas e riscas coloridas, compartimento para biberões e bolsas para fraldas.
− O macacão é meu e o vestido é da minha mãe. A mochila mandei vir pela Internet há algum tempo...
Agradeci-lhe, emocionada com o gesto.
− É tudo lindo. Tenho de telefonar à tua mãe a agradecer...
O Ricardo sorriu-me enquanto abanava a cabeça.
− Não te preocupes com isso. Ela já foi para Almeirim, por isso é que não veio comigo. Mas manda beijinhos para as duas e pediu-me para te dizer que reza todos os dias pela Luisinha.
Não consegui sorrir-lhe de volta porque me sentia muito angustiada. Não podia conceber que minha bebé poderia precisar de ser operada... Olhei para ela, a dormir tranquilamente, e vieram-me lágrimas aos olhos.
O Ricardo também a contemplava, mas com um sorriso confiante. Ele não tinha noção de como a situação podia ser grave...
− Se for mesmo enterocolite necrosante, tem quase quarenta por cento de hipóteses de precisar de cirurgia. E depois de ser operada pode ter complicações, ficar com o intestino curto e fazer abcessos...
Olhou-me com uma expressão recriminadora dócil, que me relembrou os nossos tempos de infertilidade.
− Já andaste no doutor Google, não foi?
Assumi a minha culpa com um aceno e questionei-o com ansiedade.
− Não te parece que ela está muito sossegada para quem tem um problema grave? Se quiserem operá-la, vou pedir os exames que lhe fizeram, para a Joana mostrar no hospital dela e pedir uma segunda opinião. O que achas?
Ele fez um suspiro resignado, provavelmente dirigido à minha tendência para interferir ativamente em todas as decisões médicas, desde que começámos a frequentar consultas de fertilidade.
− Acho que os médicos aqui são excelentes e tens de confiar no que te dizem. A Luisinha vai ficar bem, mesmo que precise de ser operada.
Olhei-o desconfiada, o Ricardo nunca se interessava por questões médicas, limitava-se a «engolir» tudo o que lhe diziam...
Ele apercebeu-se de que não me tinha convencido e fez uma nova tentativa.
− Ela tem a tua garra. Fui a única pessoa que a viu em Beja antes de a transferirem para aqui e fui a primeira pessoa que lhe fez festas por aquela luva. Ela era ainda mais pequena, mas já tinha andado a lutar com o ventilador. Não percebo nada de medicina e não sei se vai precisar de ser operada, mas tenho a certeza de que ela vai ficar bem. Não tarda vais levá-la para casa e passear com ela no carrinho mais barato, que não foi o que eu te aconselhei, mas que imagino que tenha sido o que compraste.
Dei uma pequena gargalhada enquanto lhe dizia que era inacreditável como ele conseguia conhecer tão bem as pessoas...
Ele também achou graça a ter acertado.
− Só algumas pessoas, não todas! A ela também a conheço bem, e sei que daqui a pouco vai estar a dormir no berço que era do Gonçalito.
Senti-me mais tranquila e ligeiramente contagiada pelo seu otimismo inato. Encostei a cabeça no seu ombro e respirei fundo.
Adorava ter aquela fé que nunca o abandonava.
Ele também respirou fundo e depois passou o braço por cima dos meus ombros. Ficámos em silêncio e desejei um beijo no meu sítio de sempre que não aconteceu.
Pouco depois, os meus pais chegaram e quebraram o momento que quase estávamos a ter.
O Ricardo desejou-lhes um Feliz Natal e despediu-se de mim com um beijo normal na face, não no sítio dele, entre o canto do olho e a raiz dos meus cabelos.
− Vai correr tudo bem, Sofi. Amanhã ligo para saber notícias.
O Ricardo estava a fazer o que eu lhe tinha pedido. Estava a deixar-me em paz, sem ressentimentos, com educação e bondade, numa atitude digna do homem honrado que ele sempre tinha sido.
Os médicos e as enfermeiras passaram a noite toda a vigiar a Luisinha e repetiram-lhe análises no dia seguinte.
A meio da tarde, estava sentada em frente à incubadora com o Alex, a martirizá-lo com tudo o que sabia sobre enterocolite necrosante e a vê-lo ficar com aquela palidez cor de mostarda, quando a médica responsável nos veio dizer que a Luisinha estava bem e as suas suspeitas não se confirmavam.
A sensação de alívio que senti foi indiscritível, diferente de tudo o que já tinha experienciado, quase como se voltasse a viver, depois de uma pausa angustiante.
O Alex também recuperou a sua cor normal e sorriu-me condescendente.
− Temos de aprender a ter mais calma e a não entrar logo em desespero. Assim como o Ricardo. Deve ter a ver com a sua fé...
Fiquei surpreendida com o elogio e curiosa sobre o que teriam falado para ele fazer aquela afirmação.
Mais tarde, pensei longamente sobre o assunto.
A maneira de ser do Ricardo não tinha a ver com a sua fé.
Era inato e tinha a ver com ele próprio, com a pessoa maravilhosa que ele era, com a sua forma de viver e de amar, com bondade e confiança.