28 de janeiro de 2018

Ginásio do Evandro

Era domingo, ele não devia estar a trabalhar e a Luisinha ia ter alta no dia seguinte, com exatamente 44 dias de vida.

Telefonei-lhe, disse-lhe que precisávamos de conversar e combinei ser eu a ir ao seu encontro, porque não queria falar no hospital.

O Alex recebeu-me no ginásio que tinha passado a ser seu. Um espaço amplo e bem cuidado, que ocupava duas lojas no rés-do-chão de um prédio recente. Dedicava-se sobretudo a artes marciais, tinha as salas forradas com tatami e as paredes cobertas de pósteres de lutadores de jiu-jitsu e muai thai. Era um excelente sucessor da «primeira espelunca do Evando», e ele tinha-o deixado em testamento ao rapazinho que lhe lavava as casas de banho.

No fim da visita guiada, enchi-me de coragem e fui direta ao assunto. Tínhamos de ir os dois ao registo civil para ratificar o assento de nascimento da Luisinha.

Ele mostrou-se evasivo e mudou de assunto, para me falar no Evandro e na sua «ideia de lhe deixar o ginásio que não lembrava a ninguém». Andou até ficar à frente de um saco de boxe pendurado no teto e de vez em quando socava-o, enquanto falava comigo sobre como não tinha muita confiança nos empregados do Evandro e as dificuldades que ia ter para gerir um negócio com a sua profissão, que o obrigava a estar muitas vezes fora do país.

Lembrei-me de que um dos motivos pelos quais tinha dificuldade em confiar era aquele seu emprego, na brigada antiterrorismo da Polícia Judiciária.

− Tiveste muitos problemas por teres raptado a mulher do João Rodrigues?

− Alguns, mas foram solucionados com a minha futura cooperação numas missões que precisam de pessoas como eu... – Fez uma voz que devia ser a imitação de um dos seus superiores. – Tenho métodos pouco ortodoxos, mas eficazes, iniciativa individual e capacidades acima da média na tomada de decisão urgentes em situações extremas.

Engoli em seco, se calhar ele ia fazer coisas más...

Impedi-o de voltar a bater no saco, agarrei-lhe nos braços e coloquei-me à sua frente.

− Alex, não vás nessas missões! Os meios nem sempre justificam os fins... Contratamos advogados e denuncias que a Polícia Judiciária te quer obrigar a fazer essas missões em troca de fechar os olhos a que cometeste crimes para me salvares. Vamos provar que te estão a chantagear e ainda vais ser um herói!

O Alex franziu-me o sobrolho numa expressão muito descontente.

− Um herói, Sofia? Estive a um passo de dar um tiro no joelho da gaja e sou responsável pela morte do Evandro.

O meu gigante querido via sempre o copo meio-cheio. Tentou afastar-me, mas não o permiti.

− Que disparate, Alex! És sempre tão duro contigo próprio. Eu também já me imaginei a fazer coisas violentas, mas depois não as fiz. Às vezes, até imagino que estou a dar pedradas na testa ou a atirar objetos a pessoas que me irritam.

Desistiu de se livrar de mim, deu uma gargalhada e abraçou-me.

− Só tu me farias rir agora, Sofia. – Libertou-me do abraço e encarou-me com curiosidade. − Pedradas na testa?

Lembrei-me do meu desejo de enfeitar a testa de vermelho da minha colega de francês, quando ela andou a espalhar no colégio que o Ricardo me andava a enfeitar a minha testa.

− Sim, pedradas na testa até sair sangue! Tu não tens culpa do que aconteceu ao Evandro e impediste o João Rodrigues de me matar e vender a Luisinha no mercado negro! Fizeste o que tinhas de fazer para me salvar a mim e à nossa filha. A Polícia Judiciária vai ficar a má da fita, por estar a usar isso para te obrigar a ir em missões horríveis e solitárias, que mais ninguém quer fazer.

Riu-se mais um pouco, segurou-me nos ombros e baixou a cabeça na minha direção. Fitou-me com os seus olhos escuros cheios de afeto e um sorriso divertido.

− Não são missões solitárias e há muita gente que as quereria fazer. O Filipe está radiante e acha que fomos promovidos.

Fui apanhada de surpresa porque achava que o iam enviar para uma espécie de degredo no Médio Oriente.

− Então, mas é o quê?

Aproximou a cara um bocadinho mais da minha, franziu os lábios e abanou a cabeça. Aquele gesto significava que não ia satisfazer-me a curiosidade.

Olhei com ternura para o meu serendipity.

− Podes contar-me. Prometo que não digo a ninguém.

Deliciei-me com o seu sorriso e as suas sardas cor de caramelo.

− Eu sei, mas gosto da tua inocência. Vou manter-te assim.

Recuei no tempo e lembrei-me de quando me disse exatamente aquelas palavras na casa da Rita Melo, depois de lhe assegurar que não era por ciúmes que queria saber pormenores sobre as suas amantes de quem não sabia o nome.

Ele também recuou no tempo, segurou-me a cara nas suas mãos e aproximou os lábios dos meus.

Os beijos do Alex levavam-me sempre para um lugar doce e terno que ele tinha dentro de si. Primeiro, pensei que era possível amar dois homens ao mesmo tempo. Um instante depois, apercebi-me de que esse pensamento nunca me ocorria quando beijava o Ricardo.

Aquele homem amava-me e merecia que eu o amasse. Merecia ser compensado por todas as tristezas que tinha passado e todo o bem que já tinha feito.

Aquele homem também merecia que quem o beijasse, não o fizesse a pensar que era possível amar duas pessoas ao mesmo tempo.

Libertei-me e encarei-o com uma expressão comprometida, que também era uma pedido de desculpas por não corresponder ao seu beijo.

O Alex também se afastou, deu um longo suspiro e depois anunciou num tom triste.

− Se quiseres vou contigo alterar a paternidade da Luisinha, mas acho mal. Vais ter de dizer que foste infiel e meter-te numa complicação que nunca mais acaba. É melhor deixares como está. Quando te divorciares, se te divorciares, eu trato do assunto. Aí é fácil, basta declarares alteração da paternidade e eu assumo-a como minha filha.

Tive de me esforçar muito para não desmoronar ao vê-lo tão infeliz.

− Eu vou-me divorciar.

Olhou-me num misto de descrença e resignação.

− Pois, há um ano também me disseste que já eras divorciada...

Tentei justificar-me enquanto perdia a batalha com as lágrimas.

− Eu não te menti, Alex...

Estava tão desolado como eu, mas envolveu-me no seu abraço de gigante bom e tentou consolar-me.

− Eu sei, Sofia. Eu sei. Não chores...