2 de março de 2018

Quando ouvi os barulhinhos da minha bebé, achei que tinha tido um sonho maravilhoso. Abri os olhos e vi o Ricardo ao meu lado, ensonado e com um sorriso de felino saciado.

− Acho que a Luisinha quer mamar...

Rejubilei interiormente por não ter sonhado. Ele entregou-me a minha filha, deu-me um beijo no sítio dele e voltou a deitar-se.

− Gosto desta cama. Estás mesmo a pensar ficar cá a viver, Sofi?

Confirmei-o enquanto ele se aconchegava ao nosso lado.

− Podias fazer obras e entregar a gestão a alguém de confiança.

A minha mãe também já me tinha sugerido o mesmo, mas uma voz dentro de mim dizia-me que não era o certo.

− Eu quero usufruir desta casa, pelo menos por uns tempos. Desde que me conheço que adoro estar dentro destas paredes e quero que continue a ser a casa da nossa família. Não quero que se transforme num hotel e que sejam só os hóspedes a viver aqui...

Sorriu de olhos fechados, pousou a mão na minha coxa com um gesto meigo e não me respondeu.

Antes de a minha filha acabar de mamar, o Ricardo já estava a dormir. Era natural que estivesse cansado. Na sua primeira noite em Beja a Luisinha tinha-o mantido acordado até tarde. Na segunda, a mãe da Luisinha também não o tinha deixado dormir...

Levantei-me sorrateiramente, arranjei-me para sair e vesti um babygrow quentinho à bebé. Com sorte, conseguia fazer a depilação no cabeleireiro ao pé do castelo antes de ela querer mamar outra vez.

A menina Carla e a sua irmã Fátima foram muito queridas. Quando a Luisinha começou a chorar, a Fátima entrou e levou-a, muito entusiasmada com a oportunidade de a mostrar a uma cliente que era amiga da minha avó.

Quando o meu telefone tocou, pedi à Carla para fazer uma pausa e atendi o Ricardo.

Falou a tentar fazer o sotaque alentejano com que eu às vezes brincava com ele.

− O que anda a menina fazendo na rua cedo?

Respondi-lhe com um sorriso pateta que felizmente ele não podia ver.

− Estou no cabeleireiro ao pé do castelo.

− Decidiste ir cortar o cabelo?

Suspirei e respondi no tom constrangido de quem não queria dizer a verdade.

− Não, vim fazer outra coisa...

− Foste fazer a depilação?

Assenti e ele deu uma pequena gargalhada.

− A mocinha quis estar preparada, foi? Não sei se hoje vai ter a mesma sorte...

Fiz um grunhido zangado, mas não respondi porque a Carla estava muito atenta à conversa.

Pouco tempo depois, a Fátima entrou sozinha no gabinete onde a irmã terminava de me torturar. A minha fofa devia estar a fazer as delícias de alguma cliente que aguardava o seu brushing semanal...

− Pode ficar descansadinha pondo-se bonita que o seu marido veio cá e levou a filha.

Reprimi o impulso de questionar se ele se tinha referido à Luisinha como filha.

− O que é que ele disse?

− Que iam dar um passeio e depois esperavam por si em casa.

Subitamente, um medo fininho percorreu-me. Ser mãe, juntamente com os acontecimentos recentes e a convivência com o Alex, deviam ter alterado a minha natureza descontraída em relação à ocorrência de crimes. Relaxei um pouco ao lembrar-me de que o João Rodrigues estava morto e Beja era uma cidade pacífica, onde se entregavam crianças sem pedir autorização.

Ia ser bom criar a minha filha num lugar assim, mas não resisti a perguntar.

− Tem a certeza de que era o meu marido?

A Fátima fez uma careta maliciosa.

− Então não havia de ter! Há lá mais alguém com aquela cor de olhos cá em Beja. Ai se a mocinha fica com os olhos do pai...

Era o Ricardo, não havia dúvida.

Tinha meia hora antes de a Luisinha ter fome outra vez, aproveitei e pedi à Carla para me arranjar também as sobrancelhas.

Abri a porta de casa a sentir-me radiante. Chamei pelo Ricardo e ele apareceu no corredor com uma cara preocupada, que não combinava com a conversa descontraída que tínhamos tido pouco tempo antes.

− A Horti está na cozinha. Ela não está muito bem. Já se fartou de choramingar a falar em ti e na tua avó.

Fui depressa até à cozinha para encontrar uma Horti de olhos vermelhos, sentada de frente para o carrinho da bebé, a fazer caretas alternando com sorrisos para a entreter.

− É linda não é, Horti?

− É tal qual tu. Quando nasceste, o teu avô perdoou a tua mãe por ter casado com o teu pai e não descansou enquanto não vos trouxe para cá. Andava por Beja inteira com o teu carrinho, a chamar toda a gente para te ver. A tua avó dizia-lhe que parasse porque estava aborrecendo as pessoas, mas ele não se importava. Eram tão bons os dois... Eram a minha família. – Suspirou antes de terminar. − É assim a vida.

Fez um gesto de resignação, tirou um lenço de pano da manga do casaco de malha preta e limpou os olhos. Parecia sentida comigo por ter chegado e não lhe ter dito nada. Talvez tivesse sido um bocadinho de falta de consideração, mas ter privacidade com o Ricardo também me estava a saber muito bem. Pousei-lhe a mão no ombro numa tentativa de a reconfortar.

− Horti, não chores, senão eu também choro...

A Horti fungou e fitou os mosaicos da cozinha que devia conhecer de cor.

− Não chores, Sofi. Eu percebo que queiras uma moça mais nova. Aqui a menina Hortense já está velhota e tu tens a menina pequenina mais o senhor arquiteto. Podias ter-me dito que eu falava com uma moça de confiança. A sobrinha da Julieta só quer saber de namorar e ainda te traz algum moço cá para casa quando não estiveres...

Fiz um esgar de incompreensão e senti-me ofendida.

Wow, wow wow! Para tudo, Horti. Que conversa maluca é essa?

A Horti levantou-se e pôs as mãos nas ancas, menos chorosa e muito mais zangada.

Atão a Albertina me contou que disseste à Julieta para a sobrinha que anda à procura de trabalho vir cá a casa falar contigo...

Encarei-a com os olhos semicerrados numa expressão reprovadora.

− E tu pensaste que era para te substituir?! Como é possível achares que te fazia uma coisa dessas?! Eu quero alugar três quartos da casa e transformar os anexos em apartamentos para turistas. Vamos precisar de mais alguém para tratar das roupas e das limpezas...

A Horti pôs a mão direita a tapar a cara num gesto teatral e depois abanou a cabeça enquanto se lamuriava alto, quase como se estivesse a cantar.

− Ai, ai, ai! Ai mê Deus! Mê Deus Nosso Senhor da minha alma!

Olhei divertida pelo canto do olho para o Ricardo, que nos fitava incrédulo com a cena. Ele conhecia-a há dez anos, mas ainda não se tinha acostumado à veia árabe da nossa Horti, que depois de carpir se agarrou a mim com força.

− Ai, Sofi! Ai, Sofi! São umas maganas dum cabrão, aquela Albertina e a Julieta. Desculpe, senhor Ricardo, mas é o que elas são! Por isso é que aquela sobrinha dela pode ir tirando o cavalinho da chuva! Se precisas de mais alguém, eu falo com a irmã da empregada do senhor Eurico da ótica que é muito boa moça.

Aninhei a cabeça no pescoço da Horti, que cheirava à colónia de água de malvas de sempre e me fazia lembrar coisas boas, como quando me sentava ao seu colo enquanto ela batia um ovo com açúcar durante tempos sem fim até me fazer uma gemada ultracremosa.

− Tu queres é motivos para ir à ótica do senhor Eurico...

Ela não respondeu à provocação, abraçou-me e deu-me vários beijos seguidos, até que a minha filha se fartou de não ter atenção e desatou num berreiro.

Fomos para a sala para eu dar de mamar, a Horti fez-me algumas perguntas sobre os meus planos e depois decidiu que tinha de ir à rua. Precisava de ir às compras para nos fazer o almoço e passar na calhandreira da Julieta a dizer umas verdades das boas.

Assim que ela saiu, um Ricardo muito satisfeito por o melodrama alentejano ter terminado sentou-se ao meu lado no sofá.

− Acho que conseguimos ter os apartamentos dos anexos prontos daqui a três ou quatro meses.

Fingi-me surpresa.

− Conseguimos? Nós os dois?

Inclinou a cara de lado antes de me falar num tom condescendente.

− Claro. Não posso deixar-te fazer isto sozinha. Só hippies é que te alugavam os apartamentos. Precisas de alguém com sentido de estética para pôr um travão nas tuas tendências para flores, cores garridas, marroquinarias e berloques.

Ri-me mais de contentamento do que da piada. Agradava-me muito que ele fizesse parte do meu projeto.

− Ah! Ah! Ah! Combinado. Vai ser bom contar com a ajuda do senhor arquiteto de gostos finos para equilibrar as minhas tendências hippies pirosas...

Ele aproximou-se mais e ficou colado a mim.

Eu podia estar a imaginar coisas, porque amamentar não era propriamente sedutor, mas pareceu-me que o Ricardo passou de brincalhão para malicioso. O meu felino preferido sempre fora assim, mudava de disposição muito rapidamente.

− Sim, senhora proprietária... Garanto-lhe que vai ser muito bom contar com alguém como eu... Tenho qualidades em determinadas áreas que lhe interessam bastante.

Fiquei indecisa se seria lícito fazer conversas maliciosas naquela situação, mas não resisti...

− Sim, eu sei. Na decoração podia ousar um bocadinho mais. Às vezes tanta fineza torna-se enfadonha... mas, até é bastante razoável noutras tarefas... − Fiz uma pausa, para o deixar curioso acerca das outras tarefas em que era bastante razoável. − Como comparar orçamentos e supervisionar as obras...

Sorriu com uma matreirice que era só nossa e senti uma mão por baixo do vestido, a acariciar a minha perna por cima dos collants.

− Só isso, senhora proprietária? Não se lembra de mais coisas em que sou bastante bom?

Não reprimi uma gargalhada e pedi-lhe que se comportasse.

Ele obedeceu e depois ficou a olhar-nos, com uma expressão que era um misto de ternura e fascínio, que me aquecia o peito e relembrava de que não havia nada melhor do que o seu amor.

Quando a Luisinha adormeceu, levantei-me para a deitar no carrinho.

Ele veio atrás de mim, afastou os meus cabelos e percorreu o meu pescoço com beijos.

− Ricardo está sossegado... A Horti deve estar a chegar...

Ele continuou a acariciar-me por cima do vestido, enquanto me ronronava ao ouvido.

− Não consigo, Sofi. Tu és linda demais...

Numa última tentativa de fazer o mais correto, fugi para a porta enquanto me ria do seu despropósito. Ele alcançou-me e fechou a porta à minha frente.

Senti os seus braços meigos à volta da minha cintura e ouvi a sua voz na minha nuca.

− A Horti está a desancar a Julieta e depois vai às compras. Hummm... Afinal esta mocinha vai ter sorte...

Não consegui reprimir um risinho enervado e ele respondeu puxando-me mais para si.

− Esse risinho dá cabo de mim, Sofi... Não há melhor som à face da terra que o teu risinho malandro... Era capaz de te devorar...

Virou-me para si e beijou-me. Correspondi e acariciei-lhe os cabelos, dividida entre o deleite e o receio que a Horti chegasse.

Como sempre, ele adivinhou os meus pensamentos. Interrompeu o beijo para tirar uma chave do bolso e piscou-me o olho enquanto a introduzia na fechadura.

− A Horti mostrou-me onde a tua avó guardava as chaves. A senhora proprietária tem direito de estar na sala de porta fechada. Só não pode fazer barulho.

Sorri contra o dedo que me encostou aos lábios, saboreando toda a sua premeditação.

Quando me abraçou, entreguei-me a ele e ao nosso amor. Um sentimento avassalador e indefinível, entre a pureza e a luxúria, a obsessão e a nobreza. Era nisso em que pensava e em quanto o amava, quando o segurei com todas as minhas forças.

Pensei que o tinha magoado porque ele se afastou para me encarar.

O Ricardo conseguia ouvir as palavras que eu não dizia mas que o meu coração gritava.

− Eu amo-te mais, Sofi.

Ao fim de um período de tempo maravilhoso e impossível de quantificar fomos para o sofá, que ia passar a conter uma mistura das minhas memórias doces de infância com as minhas também deliciosas leviandades adultas...

Depois de fazermos amor, ficámos enroscados um no outro e tapados com a manta alentejana da minha avó.

− Sofi, não durmas... A Horti deve estar a chegar para nos fazer o almoço...

− Só mais um bocadinho...

− Sofi?

− Hum.

− Vamos fazer apartamentos nos anexos, mas não vamos alugar os quartos da casa principal.

− Porquê? Os quartos da casa também davam dinheiro e temos tantos...

− Porque precisamos de privacidade e os quartos a mais vão-nos dar jeito para receber pessoas ao fim de semana. Mudamos o conceito da guesthouse para apartamentos privados. Já estudei o assunto, temos espaço para fazer cinco estúdios. Estive a pensar usarmos apenas matérias-primas da região e cimento afagado. Vamos apostar num conceito mais exclusivo e mais charmoso.

Adorei que ele quisesse ter privacidade comigo e receber pessoas ao fim de semana, mas não queria que transformasse a minha casa num projeto elitista e inacessível às pessoas comuns.

− Eu não quero que os apartamentos tenham preços proibitivos. Quero que venham pessoas normais e tragam as crianças...

O Ricardo riu-se das minhas preocupações.

− E vão vir, Sofi. Mas tens de ter lucro, não é? Tens de ter um negócio sustentável e liquidez para manter a propriedade bem conservada.

Rendi-me à minha inexperiência.

− Sim... Tens razão... E como é que se fazem essas contas? – Lembrava-me vagamente de conversas que tinha ouvido sobre investimentos e arrisquei a resposta. – As propriedades têm de render cinco por cento do seu valor por ano não é?

O Ricardo olhou-me divertido com a minha tentativa de parecer entendida no assunto e organizou-me os cabelos revoltos. Eu aproveitei para me aconchegar melhor nele e na manta grossa. Estava no céu e não me iria levantar tão cedo...

− Não te preocupes que eu trato dessas contas. Aliás, o melhor é nem te debruçares nesse assunto nem assinares absolutamente nada sem me mostrares primeiro. A tua falta de sensatez em questões financeiras é absoluta, ninguém acreditaria nas coisas que consegues assinar... − Suspirou e beijou-me a testa. − Não vamos voltar a falar sobre esse assunto! Que grande estupidez que isso foi! Nem sei o que me passou pela cabeça...

Não resisti a pensar que a sua estupidez me tinha feito sofrer como nunca imaginei, mas também me tinha empurrado para outro continente onde conheci a Zubaida, fui feliz, mudei o destino das mulheres raptadas pelo João Rodrigues e engravidei...

Se nos tivéssemos reconciliado eu podia ter engravidado dele, ou não. Jamais o poderia saber, o que fazia com que o meu cérebro estranho se sentisse agradecido pela sua estupidez e por toda a dor que me infligiu, pois sem ela não haveria o milagre que dormia no carrinho, alheia às complexas divagações da sua excessivamente pensadora mãe...

O Ricardo interrompeu os meus devaneios interiores e falou-me com a mesma boa disposição de antes de se lembrar do acordo de divórcio.

– Anda. Temos de nos vestir que a Horti deve estar a chegar.

Não me ia vestir. Estava a meio do meu ritual de apreciação da satisfação interior pós-love a que ele ignorantemente costumava chamar de preguiça. Ainda por cima, ele tinha-mo interrompido com a história de não querer que eu alugasse os quartos da casa principal, que depois tinha derivado nos papéis que eu tinha assinado e levado os meus pensamentos para paragens complexas.

Precisava de fechar os olhos e ficar um bocadinho sem pensar em nada...

− Eu sou a dona da casa. Posso estar fechada à chave onde quiser e dormir a meio do dia...

Fez força para nos levantar aos dois e usou o seu tom de defensor das boas maneiras.

− Sim, és a dona da casa, mas imagina que a Horti regressa com a irmã da outra para a conheceres. Quando a Horti perguntar por ti tens de abrir a porta e não podes estar nua enrolada numa manta. Pelo menos veste-te...

Desisti do meu ritual de contemplação interior e abri os olhos.

− Tantas saudadinhas que eu já tinha dessa tua mania das aparências...

Olhou-me muito sorridente, admirado com a minha afirmação.

− A sério?

Fiz uma expressão descontente e muito sisuda antes de lhe responder.

− Não.

Não me contive, passava demasiado tempo com adolescentes, achava graça às suas brincadeiras e gostava de as imitar.

A piadinha custou-me caro, fui destapada e tive de me defender enquanto ria à gargalhada. Levei dois açoites, e sob ameaça de mais, fui obrigada a admitir que tinha muitas saudades de tudo e mais alguma coisa na sua pessoa...

O que era absolutamente verdade.