Ninguém é feliz para sempre

O Ricardo tinha saído de casa há três dias e oito horas.

Não nos zangámos de repente. Foi progressivo.

Ao longo dos últimos meses, subtil e gradualmente, os momentos de tensão começaram a prolongar-se e a desgastar-nos.

A culpa era minha, mas também era dele, porque já devia saber que eu não conseguia controlar-me quando queria verdadeiramente algo.

Adorava a minha vida na província. O meu negócio de alojamento local corria bem e comprámos um monte para reconstruir perto de Santa Clara. Tinha conseguido colocação para meio horário a dois quilómetros de casa, ia para as aulas de bicicleta e os meus alunos eram uns queridos.

A minha vida era muito boa, mas para mim não era suficiente e o meu marido não compreendia o meu desejo de mais.

Eu também não sabia explicar-lhe porque não conseguia ser como ele, grata e feliz, mas a verdade é que o tanto que tinha ainda não me chegava.

Era o que eu sentia, e nunca fui boa a fingir.

Os confrontos começaram amenos e num registo semicarinhoso, mas com o tempo foram crescendo de tom e diminuindo na tolerância à opinião do outro.

Na noite anterior a ele ter saído de casa, depois de termos posto a Luisinha a dormir, atingimos o auge da discórdia.

Eu acusei-o de ser intransigente e déspota, ele retribuiu acusando-me de ser irresponsável e egoísta.

Ele queria deixar nas mãos de Deus.

Eu recusava-me a ficar à espera de outro milagre extremamente improvável. Tentei convencê-lo argumentando que a Luisinha também queria muito um irmão. Um irmão que poderíamos ter facilmente com óvulos de dadora e a tempo de ainda partilharem brincadeiras.

Ele replicou que o que a Luisinha não queria, de certeza, era ficar sem a mãe.

Perdi a calma, gritei-lhe que estava farta de o aturar mais à sua intransigência e que era insuportável viver com alguém que queria sempre fazer tudo à sua maneira.

Ele respondeu-me num tom mais baixo mas igualmente acusador.

− Pois é! Eu que o diga, Sofi.

Fiquei furiosa e respondi sem pensar.

− Tens bom remédio.

Arrependi-me logo a seguir, virei-lhe as costas porque tive medo da resposta e fui para o quarto a bater os pés para marcar a minha revolta.

Esperei por ele para fazermos as pazes, mas o Ricardo ficou no escritório até muito tarde e acabei por adormecer.

Na manhã seguinte, quando me levantei ele já estava vestido. Ia sair mais cedo porque precisava de antecipar uma reunião para depois ir para Lisboa.

Fui ter com ele à cozinha e deixei a Luisinha a escolher a roupa, certamente uma toilette com que eu não concordaria. Era um mistério para mim, que uma mãe boho como eu pudesse gerar uma filha disco, viciada em brilhos e lantejoulas.

Perguntei como se me fosse indiferente, a olhar para a máquina onde ele estava a fazer o café.

− Ainda voltas hoje?

Era comum ele ficar a dormir em Lisboa quando precisava de lá ir em trabalho. Tínhamos alugado a casa do Restelo para ajudar a financiar as obras no monte, mas a mãe dele estava sempre preparada para nos receber. Naquele dia, o facto de não regressar podia ter um significado diferente.

Respondeu-me com uma neutralidade que combinava com o meu falso desinteresse.

− Não. Vou ficar uns dias. Acho que nos vai fazer bem a ambos um tempo para pensar. Eu sei para onde nos leva este caminho que começámos ontem e não quero voltar a percorrê-lo.

Despediu-se da Luisinha, entretanto vestida com uma blusa cintilante e uma saia de tule. A ela deu-lhe vários beijos, seguidos de um abraço longo e apertado. A mim só me deu um beijo, ao de leve e com pouca emoção.

Quando a minha filha foi mostrar à Horti a toilette que ia poder levar para o infantário, passou-me a indiferença e ataquei-o.

− Fazes bem em ir para Lisboa, Ricardo. Aqui não há Urban, nem as estagiárias são tão atiradiças...

Percebi que todos os músculos da sua face se contraíam. A neutralidade condescendente também lhe passou, respondeu-me num tom baixo mas muito contrariado.

− Isso era tão completamente escusado, que nem me vou dar ao trabalho de te responder.

Fiquei a ver a carrinha desaparecer, depois sentei-me no alpendre e senti-me doente, como se me faltassem órgãos e estivesse a esvaziar-me por dentro.

Depois dessa manhã tínhamos trocado mensagens cordiais sobre a Luisinha, ele tinha ligado para falar com ela e nada mais.

Telefonei à minha mãe a contar que ele me tinha deixado. Ela ilibou-o completamente e recriminou-me apenas mim. Se o Ricardo não queria ser pai com óvulos de dadora porque eu quase tinha morrido com a eclâmpsia, eu não tinha o direito de o obrigar. Ela própria também achava muito arriscado eu engravidar outra vez e que devia era agradecer aos céus pelo marido que tinha...

Após três dias e oito horas sem ele, comecei a achar que ela podia ter razão.

Eram quatro e meia da tarde quando percebi que não ia aguentar mais e decidi render-me.

Chamei a Luisinha para falar com o pai, fomos para o escritório e liguei-lhe.

Atendeu-nos do carro. Estava a conduzir e parecia satisfeito.

− Olá, Luisinha... Como está a minha boneca linda?

Fiquei a apreciar a conversa entre os dois enquanto ela lhe contava como tinha pintado um crocodilo com as mãos no infantário. A meio da descrição, a traidora ouviu a música dos seus desenhos animados preferidos, despediu-se rapidamente e correu para a sala.

Hesitei sem saber o que dizer. Só sabia que queria continuar a ouvi-lo...

− A Luisinha queria contar-te mais coisas, mas ouviu a música da Lady Bug e esqueceu-se.

Gritei na direção da nossa sala para a Luisinha voltar, ela não me obedeceu e fiquei sem saber o que dizer.

− Não faz mal, Sofi. Deixa-a ver os desenhos animados. Depois falamos.

Impedi-o de desligar com uma tirada suplicante.

− Espera. Volta para casa. Não te vou infernizar mais o juízo para engravidar. Ficamos só com a Luisinha se queres assim.

Respondeu-me num tom paternalista, que quase me deu vontade de dar o dito por não dito.

− É muito sensato da tua parte aperceberes-te dos riscos que corres numa nova gravidez e decidires ficarmos só com a Luisinha.

Eu não tinha decidido ficar só com a Luisinha, só queria que ele voltasse para casa.

− Tenho a certeza absoluta de que não me ia acontecer nada. A gravidez da minha filha foi muito atribulada do princípio ao fim. Agora ia ser uma gravidez supertranquila... A minha tensão não ia subir nada, nadinha. Garanto-te.

Falou-me num acento bem-disposto e como se já estivesse à espera da minha retaliação.

− Já que voltaste a tocar no assunto, deixa-me dizer-te que os médicos não partilham dessa tua opinião. Corres mais riscos do que as outras mulheres de voltares a ter uma pré-eclampsia ou uma eclâmpsia, mesmo que fiques calma a gravidez toda.

Ouvi o barulho de um carro a estacionar na nossa rua. Devia ser a holandesa que estava para chegar. Ela podia esperar um bocadinho lá fora a apreciar a arquitetura da casa. Aquela conversa era muito mais importante do que a avaliação da Marit sobre a rapidez do check-in.

− Os médicos sabem lá! Eles empolam tudo, para as pessoas não arriscarem e eles não terem chatices. Eu sei que não me ia acontecer nada, mas não quero zangar-me mais contigo. Aceito a tua decisão.

− Estás muito sensata e madura, Sofi. Nunca imaginei ver-te a aceitar assim as minhas decisões... Pergunto-me quanto tempo será que vão durar essas tuas tréguas? Quanto tempo irá passar até voltares à carga, para me fazeres mudar de ideias e fazer-te a vontade?

Rimos juntos, o Ricardo conhecia-me melhor que eu própria...

− Algum tempo. Não sei...

A hóspede devia estar à procura da porta e eu tinha de desligar.

− Tenho uma holandesa lá fora. Já te ligo outra vez, pode ser?

− Pede-me outra vez para eu voltar. Gostei muito dessa frase.

Ele ia voltar...

− Volta para casa! Tenho de ir ver da chata da holandesa! Amo-te!

Corri leve até à porta e quando a abri não vi nenhuma hóspede. Vi o meu marido, com um molho de miosótis na mão. Tinha-me trazido as flores do nosso casamento e que simbolizavam o amor verdadeiro.

Agarrei-me ao seu pescoço, enrolei as pernas à volta da sua cintura e beijei-lhe a cara toda. Se a Marit entretanto chegasse, comentaria que os anfitriões da Aljana Guesthouse eram muito desinibidos nas suas demonstrações de afeto.

A anfitriã também era muito dada a dizer exatamente o que pensava.

− Não posso acreditar! Podia não me ter comprometido a deixar-te em paz com os óvulos de dadora que tu voltavas à mesma! Fui tão precipitada!

O Ricardo segredava-me palavras ternas e segurava-me ao colo enquanto recebia os meus beijos. Quando me baixou, afastou-se e olhou-me com seriedade.

− Falei com a doutora Silvana. Vais começar a fazer aspirina antes de colocares os embriões e quando engravidares vais ser seguida pelo doutor Joaquim Turcifal, um especialista em hipertensão na gravidez que ela recomendou. Também já falei com ele.

Depois de um momento em que não consegui mexer-me de tão surpresa que estava, colei-me ao seu peito.

− Estou tão feliz! Eu quero muito ter outro filho. Amo-te tanto!

Abraçou-me e senti-me nas nuvens...

− Sabes, Ricardo, os médicos aqui em Beja também devem ser bons...

Ouvi-o suspirar, libertou-me e encarou-me com uma expressão preocupada.

− Vou ser seguida pelo doutor Joaquim Turcifal. Está decidido.

Usei o meu tom de professora ajuizada para o tranquilizar. Ele sorriu-me com ternura, colocou a mão em concha no meu rosto e olhou-me com todo o seu amor.

− Eu continuo com medo de que te aconteça alguma coisa, Sofi. Nem consigo imaginar... mas não vou impedir-te de realizares os teus sonhos. Quero que sejas feliz.

Retribuí o olhar, a sentir-me a mulher mais afortunada do Universo.

− Eu também quero que sejas feliz.

Acariciou-me a face e aproximou os lábios dos meus num beijo suave, que depois evoluiu para outros, que se prolongaram até a holandesa chegar...