Praia da Luz, onde tudo começou

Epílogo

Agosto.

Férias.

Praia da Luz.

Dias inteiros na praia rodeada pelas minhas pessoas preferidas...

Como nada na vida é perfeito, o que até tem alguma graça e faz parte, estou bastante enjoada, de uma maneira como não fiquei em nenhuma das minhas gravidezes anteriores, nem da minha filha Luisinha nem do meu filho Ricardinho.

Estou sentada numa cadeira baixa em frente ao nosso toldo, a fixar o horizonte, como o Fred me recomendou antes de ir à procura do António.

O meu afilhado costuma desaparecer durante bastante tempo. Suspeitamos que uma menina loura com catorze anos, que está no toldo 125, seja a responsável por ele se evaporar.

Eu e a Joana já o tentámos seguir uma vez. Não nos orgulhamos da nossa decisão, mas não resistimos e ignorámos as críticas dos sensatos Fred e Ricardo, armados em defensores da privacidade na adolescência.

Foi extremamente embaraçoso, porque apesar dos nossos esforços para nos mantermos ocultas, o António despistou-nos entre as gaivotas de aluguer e um catamarã, com uma técnica de evasão digna de um agente secreto.

Das duas uma, ou ele é sobredotado e vai ser recrutado pela Mossad antes de fazer 16 anos, ou eu e a Joana perdemos muitas qualidades.

Quando desistimos de o encontrar e fomos comer um gelado, concluímos que a segunda hipótese era a mais provável. No entanto, por inúmeras razões, jamais o poderíamos admitir aos nossos maridos.

Dissemos-lhes que tínhamos reconsiderado e desistido de espiar o António. Foi a Joana que falou porque eu iria atrapalhar-me toda, mas a forma como acenei foi muito convincente.

A minha segunda gravidez foi muito tranquila, exatamente como eu tinha previsto.

Estive ótima até às 38 semanas, quando comecei a sentir umas leves contrações. Liguei ao Dr. Joaquim e ele disse-me que era normal, como o bebé se mexia bem não precisava de me preocupar e podia esperar pela consulta dois dias depois.

Fiquei descansada e fiz a minha vida normal, incluindo ir dar aulas e ajudar os meus alunos com a nossa horta biológica.

O que eu não esperava, e me preocupou bastante, foi a minha bolsa amniótica ter rompido de repente, quando eu estava agachada entre as couves portuguesas e os espinafres selvagens.

Os miúdos perceberam que a «stôra arrebentou as águas» e entraram em histeria. Disse-lhes que se acalmassem, mas houve uma aluna que não me ouviu e telefonou para o 112, porque a «stôra nã pode ter o mocinho aqui na horta».

Fui para o hospital de Beja de ambulância com uma colega muito querida, que me elogiou pela minha compostura e me contou detalhadamente o parto do seu Ruben, frisando bem a parte de ter tido dores lancinantes em que pensou que se ia partir em duas.

Felizmente, não lhe prestei muita atenção, porque tentava acalmar telefonicamente um Ricardo fora de si, que queria que o filho nascesse com o Dr. Joaquim Turcifal.

Os bombeiros disseram-me logo que o senhor arquiteto podia «tirar o cavalinho da chuva», porque o hospital da área era o de Beja e era para lá que me iam levar.

Descansei-o na medida do possível e prometi-lhe que se o bebé estivesse bem iríamos para Lisboa de carro, mas assim que cheguei ao hospital de Beja decidi que ia lá ficar.

Logo que entrei na urgência uma enfermeira reconheceu-me e abraçou-se a mim de lágrimas nos olhos.

posso... Ai que alegria ajudar a nascer um bisneto da senhora Luísa Carvalho. Ai, uma senhora boa que melhor não podia haver...

A seguir apareceu uma médica amorosa que eu conhecia de vista e tinha sido colega de liceu da minha mãe.

− Ainda hoje tenho na sala uma aguarela linda que a sua mãe me ofereceu quando me casei...

A médica amorosa ainda estava a falar quando chegou uma auxiliar que também ficou muito entusiasmada com a minha presença.

− Ai, a neta da senhora Luísa, que parecida que é com ela, mesmo assim ca cara toda inchadita... Ai, que até arrepia.

Senti-me protegida e envolvida por uma bem-querença que não sabia se iria ter no hospital privado. Foi por isso que não quis sair de Beja, não porque estivesse com medo de que o bebé nascesse no caminho, que foi o que disse ao Ricardo. Coisas estranhas de cérebros femininos que não eram passíveis de explicação.

A visão do meu filho acabado de nascer foi inesquecível.

Quase tão inesquecível quanto a imagem do Ricardo com o filho ao colo, a pedir a Deus que o protegesse sempre, de sorriso embevecido e olhos brilhantes.

Estiquei a mão para acariciar o meu bebé e depois o braço do meu marido. Quando lhe toquei, ele olhou-me com um afeto profundo e uma intensidade que me deixaram extasiada.

− Obrigado por este dia, Sofi. – Inspirou fundo e deixou sair uma lágrima sem pudor. − É o dia mais feliz da minha vida.

Resolvi brincar com ele, para me distrair de como me tinha comovido até à medula e parar de chorar.

− E ainda temos mais dois embriões congelados.

Encarou-me com uma ternura que não acabava...

− Sempre terrível, a minha Sofi... − Depois voltou-se de novo para o nosso bebé. − Vais adorar a tua mana Luisinha, ela está ansiosa por te conhecer e por receber o vestido da princesa Aurora que anda a pedir desde o Natal...

Tinha-me esquecido completamente de que o Ricardinho iria trazer uma prenda à mana...

− Oh! Não, Ricardo! Porque é que cedeste!? Ela qualquer dia não tem roupa normal! Já não aguento mais tule e brilhantes!

Aquele sorriso matreiro envolvia-me como um manto de luz que me acariciava a alma.

− Como assim? Já não aguentas mais tule e brilhantes, Sofi?! Ainda temos dois embriões congelados...

O primeiro desses embriões não evoluiu para uma gravidez, mas o segundo sim, uma gravidez muito desejada, que ia nas dez semanas e me fazia vomitar quase todas as manhãs.

O Ricardo queria fazer algo para me ajudar, foi por isso que acedi quando decidiu ir buscar-me uma água das pedras ao café Papaia, apesar de já ter tentado outras vezes e não funcionar.

Desviei o olhar do horizonte para a nossa Luisinha, embrulhada em duas toalhas e sentada no colo do avô Afonso, que a esfregava para a aquecer. A minha filha estava com os lábios roxos e a tremelicar, porque a avó Pi se tinha distraído a conversar à beira-mar com o Ricky e o Sílvio. Enquanto os três debatiam qual era o melhor rooftop em Lisboa para beber um gin a ver o pôr do Sol, a minha filha e o filho deles, o Hasaki, dois anos mais velho do que a Luisinha e o seu melhor amigo, ficaram dentro da água gelada mais de uma hora.

A minha filha é também uma índia, uma quarta versão igual às três primeiras, apenas melhorada com umas sardas cor de caramelo irresistíveis no nariz e nas maçãs do rosto.

Continua a ser a neta preferida do meu sogro, não tendo sido destronada nem pelo meu Ricardinho nem pelo meu sobrinho Vicente, o primeiro filho do Diogo. O lugar da Luisinha está mais que conquistado e a predileção é mútua.

Todos os fins de semana em que ela não está com os avós, saem do meu telemóvel para o do avô Afonso, vídeos atrás de vídeos em que ela é a protagonista. A maioria são recitais de piano, que ela quis aprender encorajada por ele, mas também lhe manda saraus de ballet e de hip hop, vestida com a toilette adequada e filmados pela Horti, a sua outra grande fã.

Talvez por só ter tido meninos, o tio Afonso apaixonou-se pela Luisinha assim que a conheceu.

Quando ela começou a andar, ele passava horas com ela, todo curvado e a segurar a chatinha pelas mãos, que lhe exigia passeios a puxar-lhe as calças assim que descobriu que ele era uma presa fácil.

No dia em que a Luisinha fez um ano, eu devia estar a olhar para eles com cara de pateta quando a tia Pi me falou ao ouvido.

− É mesmo assim, o meu Afonso. Incapaz de resistir a uma linda bastardinha...

Fiquei sem reação, indecisa se ela se referia apenas à Luisinha, o que seria muito desagradável e não estava de acordo com o trato carinhoso que a tia Pi tinha para a minha filha.

Ela olhou-me de lado com um sorriso travesso.

− Não se faça de desentendida que eu sei que sabe. A minha mãe contou-me a sua conversa com o meu «tio» António. Sempre achei que entre nós não haveria meias-verdades e não me enganei.

O meu irmão Vasco sentou-se ao meu lado. Veio passar a semana connosco porque tinha saudades dos sobrinhos, principalmente do Ricardinho, que o venera à conta das brincadeiras loucas que acabam quase sempre com os bonecos todos estropiados.

Era suposto ele ajudar-me e tomar conta do sobrinho, mas em vez disso está a apreciar o facto de ele destruir os castelos de areia que umas amiguinhas da Luisinha tentam fazer.

Olhou para as patifarias do Ricardinho cheio de orgulho e sorriu muito satisfeito.

− Este puto é mau como o facadas! Saiu igualzinho a mim...

As suas palavras relembraram-me o atarefado Dr. Álvaro da clínica de Maputo, onde descobri que contra todas as probabilidades estava grávida.

«Tudo está bem quando acaba bem, e as crianças são de quem chamam pai.»

Eu iria mais longe, as crianças não são só de quem chamam pai, são de quem as cria e as mima, não importa se não são legítimas ou biológicas ou nenhuma das duas.

− Não o deixes ser assim, Vasco. Levanta-te e vai zangar-te com ele!

O Vasco fez-me uma careta, desiludido por não o deixar desfrutar das diabruras do sobrinho igual a si, que ele sabia que não tinha nascido dum óvulo meu.

Dois meses depois da conversa que tivemos em Beja, a Amélia mudou-se para o Dubai e o Vasco percebeu que tinha de se libertar da sombra da Camila.

Quando ela lhe enviou uma mensagem por WhatsApp, ele respondeu-lhe que não voltasse a mandar mensagens nem o procurasse mais.

Três semanas depois, a Camila apareceu no café Surfada, cheia de olheiras e a arrastar duas malas enormes.

O Vasco estava de costas para a entrada, a montar um sistema de arrumação para pranchas de surf. Ouviu os saltos da Camila baterem no chão de madeira, virou-se para informar a futura cliente de que ainda não estavam abertos e ficou estupefacto a olhar para ela.

− O que estás aqui a fazer? Pedi-te para não me procurares mais. Vai-te embora, a sério. Não temos mais nada para falar, Camila. É que nem te quero ouvir...

Ela largou as malas ainda com a etiqueta da TACV. Tinha aberto mão de muita coisa para desistir à primeira falta de cordialidade.

− Vi no Facebook que estavas a recrutar colaboradores e preciso de um emprego.

O Vasco apercebeu-se de que ela estava diferente, magra e mal-encarada, como se não comesse nem dormisse há algum tempo. Parecia muito nervosa e a esforçar-se para não desmoronar.

Podia tê-la tratado melhor, mas o meu irmão tinha passado a vida toda à espera dela, tinha-lhe custado muito decidir esquecê-la e não quis recuar.

− Não tenho nenhuma vaga para ti.

Ela deve ter visto nos olhos dele que valia a pena insistir.

− Ainda nem viste o meu currículo!

− Eu não preciso de ver o teu currículo porque o conheço de cor, Camila. Vai-te embora e deixa-me em paz.

Ela avançou desafiadora na sua direção.

− Não, não conheces o meu currículo. Não sabes o que é levantares-te às cinco da manhã antes de ir para a escola para regar a porcaria da horta, nem sabes o que é comer cachupa pobre ao jantar durante anos a fio.

O Vasco ficou a olhar para ela sem responder. Ele não sabia nada sobre sacrifícios matinais em hortas caseiras nem sobre falta de variedade de comida, isso era um facto.

− Mesmo assim, Vasco, ter falta de muita coisa não é tão mau como estares com uma pessoa e amares outra.

Sobre isso o Vasco sabia bastante, mas o seu orgulho não lhe permitia dizê-lo.

− E o teu marido?

Ela fixou o olhar no dele antes de responder.

− Deixei-o.

Ele podia ter corrido para ela, podia tê-la abraçado, mas essa não era a natureza do meu irmão.

Cruzou os braços e olhou-a de cima a baixo.

− Acabou-se a boa vida, foi? Está bem, podes ficar com o emprego. Faço-te um contrato à experiência por três meses.

Ela sorriu timidamente, sem perceber muito bem o que um contrato por três meses significava. Ele não lhe sorriu de volta e falou-lhe autoritário.

− Não sei se tens muitos motivos para estares feliz, Camila. Aviso-te já de que não te vou pagar horas extras e vais fazer muitas.

A Camila conhecia-o bem e soube ler-lhe no rosto exatamente em que é que ele estava a pensar.

− Muitas horas extra?

Ele acenou impassível. Ela caminhou a distância que lhe faltava e encostou-se ao peito do português que a amava desde os 17 anos.

Encarou-o com os mesmos olhos negros com pestanas compridas que o tinham deslumbrado na ilha do Sal.

− Mal posso esperar para começar...

Tiveram de sair do Surfada, para não serem apanhados em figuras menos próprias pelos senhores que estavam a montar os eletrodomésticos da cozinha, para acabarem a ser apanhados pela minha mãe, quando chegou a casa depois de almoçar com o meu pai no restaurante.

A Camila foi uma grande mais-valia para o Surfada, era muito mais organizada do que o Vasco e sabia uma receita de cachupa rica que era ideal para os surfistas reporem as energias. A cachupa da Camila, o hambúrguer duplo à Kelly Slater do Vasco, o carisma descontraído do casal e o ambiente acolhedor, fizeram do Surfada paragem obrigatória tanto para locais como para os turistas.

Ao ver o meu irmão levantar-se, a Camila juntou-se ao Vasco e levaram o Ricardinho para fazer um castelo à beira-mar.

Vi o Ricardo pouco depois, a caminhar na minha direção com o seu passo atlético e a garrafa de água gaseificada na mão.